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Afrofuturismo, por Fábio Kabral

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[Afrofuturismo] O futuro é 
negro — o passado e o 
presente também 
Muito mais que uma estética da moda, Afrofuturismo é, 
acima de tudo, o poder nas nossas próprias mãos 
 
Por FÁBIO KABRAL 
 
Afrofuturismo! Parece ser uma das “sensações” do 
momento; muita gente querendo saber sobre, muita gente 
buscando referências sobre, muita gente atrás de pessoas 
que possam falar sobre. Ao que tudo indica, organizadores 
de eventos literários, musicais e de arte em geral, cada vez 
mais, correm atrás de escritores, artistas e profissionais que 
possam elucidar acerca da questão, na ânsia de atender à 
crescente demanda pela temática afrofuturista por parte de 
uma fatia cada vez mais crescente do público. 
Mas o que diabos é esse tal de Afrofuturismo que tanta gente 
quer saber? Quando começou? O que é? Como é que eu 
faço? Como é que se faz pra ser um afrofuturista boladão? 
Ora essa. Afrofuturismo somos nós, pessoas de pele preta. 
Simples assim. 
As pessoas negras sempre contaram as suas histórias. 
Sempre lutaram pelo seu presente, honraram seu passado e 
projetam o seu futuro. O que ocorreu, em algum momento, é 
que o pessoal pálido do norte resolveu bagunçar tudo e 
tomar tudo pra si, dando a impressão de que ninguém faz 
mais nada além dos pálidos. 
Aliás, a expressão “Afrofuturismo” foi cunhada por um cara 
branco. Quando Octavia Butler seguia pisando firme no 
mundo escrevendo romances e mais romances e séries 
inteiras de ficção científica, quando Samuel Delany já 
havia publicado cinco romances antes de completar 23 anos 
de idade, quando Sun Ra abria as portas do Cosmos com 
sua psicodelia musical, um cara branco chamado Mark 
Dery resolveu, em 1993, rotular de “Afrofuturismo” o que 
essas mulheres e homens negros vêm produzindo desde o 
início dos tempos. 
Para ser sincero, eu não gosto dos termos 
“representatividade” e “inclusão”; de um lado, há aqueles 
que odeiam tudo que eles chamam de “politicamente 
correto” (seja lá o que essa idiotice significa); do outro lado, 
aqueles que levantam a bandeira da aclamada “diversidade” 
e representatividade como se fosse uma festa, uma turminha 
de pessoas felizes que se dão as mãos como se fôssemos 
todos iguais. 
Somos todos iguais sim. Ao mesmo em que não somos. 
Cheikh Anta Diop, uma das maiores referências do 
movimento pan-africanista, dizia, com convicção, que raças 
não existem, pelo menos não num nível biomolecular; ele 
dizia que um finlandês e um zulu poderiam ser mais 
geneticamente próximos entre si do que entre seus 
respectivos povos; no entanto, na África do Sul da década de 
80, o finlandês seria um homem livre, enquanto o zulu seria 
mais um integrante da maioria violentada e massacrada pelo 
apartheid. Dessa forma, Diop dizia que os brancos 
costumam negar a realidade das raças, ao mesmo tempo 
em que tentam destruir as outras raças.Concluímos então 
que, geneticamente, não há raças; ainda assim, a noção 
https://en.wikipedia.org/wiki/Octavia_E._Butler
https://en.wikipedia.org/wiki/Samuel_R._Delany
https://en.wikipedia.org/wiki/Sun_Ra
https://en.wikipedia.org/wiki/Cheikh_Anta_Diop
sociocultural e fenotípica de raças ainda define de forma 
decisiva a maioria das relações humanas até hoje. 
Dessa forma, independentemente de gostar ou não do 
termo, representatividade importa sim, e muito. 
A atual concepção sobre Afrofuturismo, a que figura na 
maioria das matérias sobre, é mais ou menos a seguinte: um 
movimento artístico que combina elementos de 
afrocentricidade, ficção científica, ficção histórica, ficção 
fantásticae realismo mágico-animista com cosmologias de 
inspiração africana com o intuito de denunciar os 
preconceitos atuais sofridos pelas pessoas negras, bem 
como questionar, reimaginar e reinventar os eventos 
históricos do passado. É essa a definição plastificada, 
repetida por matérias e sites gringos. E devo dizer que não 
gosto dessa descrição, pois, pra mim, Afrofuturismo 
vai muito além disso. Vai muito além de um rótulo 
espetaculoso. 
Por um lado, é preciso dizer que é leviano encarar 
afrofuturismo como “exótico”, a novidade do momento, 
mais uma “atração” para compor a Grande Festa da 
Representatividade. Não há nenhuma festa aqui. O que há 
são pessoas pretas, mulheres e homens, pisando firme no 
mundo pelo simples direito de viver como bem entendem, e 
de se expressarem para o universo da forma que bem 
desejam. E isso nós sempre fizemos e para sempre faremos, 
não importa a época, não importa qual nome pomposo 
inventem para o simples movimento que realizamos. 
 
Já numa outra ótica, considerando esta realidade atual de 
supremacia cultural, econômica e filosófica imposta pelo 
mundo branco, cujos movimentos ficcionais em livros, gibis, 
filmes e videogames são dominados majoritariamente pela 
ótica europeia, o esforço em romper com esse imaginário, 
encontrar a sua própria história através do seu próprio 
ponto de vista, a dedicação aos estudos da afrocentricidade, 
a busca pelas raízes, o foco na difusão do imaginário de 
inspiração africana, o desejo de ter como referência seus 
ancestrais africanos, o estudo das concepções filosóficas e 
culturais elaboradas pelos nossos, e não pelo outro, todo 
esse movimento em transformar o presente, recriar o 
passado e projetar um novo futuro através da nossa própria 
ótica é, para mim, a própria definição de Afrofuturismo. 
Dessa forma, ainda que eu não goste de rótulos, à luz da 
conjectura atual, o rótulo se torna necessário, para facilitar a 
comunicação e união entre os nossos. 
 
“Lidos apropriadamente, os mitos nos deixam 
harmonizados com os eternos mistérios do ser, nos ajudam 
a lidar com as inevitáveis transições da vida e fornecem 
modelos para o nosso relacionamento com a sociedade. 
Quando enfrentamos um trauma, individual ou 
coletivamente, as lendas e os mitos são uma maneira de 
restabelecer a harmonia à beira do caos”. 
Em seu livro “Herói com rosto africano”, o terapeuta e 
quiroprático afro-americano Clyde W. Ford versa a 
respeito da importância dos mitos e lendas de inspiração 
africana. Segundo Ford, é imprescindível para os 
afrodescendentes, no seu resgate à sua autoestima, entender 
o vitória do herói com rosto africano como um triunfo sobre 
as forças internas que nos movem, para o bem ou para o 
mal; as transições pelas quais atravessamos — nascimento, 
amadurecimento, conquistas, entraves, prazer, dor, 
crescimento, morte — são simbolizadas nas inúmeras 
histórias do Continente, passadas de geração a geração, 
histórias desconhecidas por muitos de nós devido ao 
processo de aculturação e apagamento. Nesse livro, Ford nos 
agracia diversas lendas da África Subsaariana, histórias de 
triunfo e poder, maravilha e espanto, cujos arquétipos e 
estereótipos são imediatamente reconhecidos por nós, uma 
vez que são muito anteriores aos mitos europeus, que mais 
tarde viriam a se apropriar desses símbolos para contar 
como se fossem seus próprios; por exemplo, é no mito 
basuto de Lituolone, a garota que nasceu sem ajuda da 
semente masculina e que venceu sozinho a grande serpente 
Kammapa que havia devorado o mundo, a noção do herói 
nascido de parto virginal, com grandes poderes mágicos, e 
que no fim é sacrificado por aqueles que salvam e dessa 
forma ascende à divindade. Há inúmeros exemplos que eu 
poderia citar aqui; mas basta dizer que os conceitos 
metafísicos e imaginários promovidos por este livro são tão 
poderosos e me marcaram de tal forma que “herói com rosto 
africano” é o meu mote até hoje. 
 
“O papel do espírito é o de guia que orienta nossos 
relacionamentos para o bem. Seu propósito é nos ajudar a 
ser pessoas melhores, a nos unir de forma manter nossa 
conexão não apenas com nós mesmos, mas também com o 
além. O espírito nos ajuda a realizar o propósito da nossa 
própria vida e a manter nossa sanidade”. 
Sobonfu Somé, em seu livro “O Espírito da 
Intimidade”, nos ensina a respeito da importância de 
alimentarmos nossos vínculos com o espírito. Para o 
afrofuturista, é importantíssimo resgataresse vínculo com a 
sabedoria ancestral das nossas anciãs e anciãos da aldeia. Na 
aldeia, aprendemos a respeitar nossas ligações com o mundo 
natural e com a nossa comunidade. Projetando um futuro 
heroico de inspiração africana, o afrofuturista fortalece esses 
vínculos, com o intuito de apresentar alternativas que 
realmente curem os nossos e que privilegiem 
relacionamentos saudáveis tanto para a nossa comunidade 
como para nós mesmos. Portanto, de nada adianta criar um 
futuro que seja meramente uma imitação das relações 
danosas de romances iludidos tais como nos é imposto 
atualmente pelo Ocidente; o afrofuturista deve ir além disso, 
apresentando propostas que realmente contemplem os 
anseios das memórias ancestrais que permeiam nossas 
almas. 
Eu poderia citar inúmeros outros exemplos de pessoas 
pretas à frente de seu tempo — na verdade, farei isso sim, em 
artigos futuros. Na verdade, meu grande mano Augusto 
Oliveira, ele mesmo um afrofuturista de mão cheia, diz 
que “toda pessoa preta é uma pessoa deslocada de seu 
tempo”, devido ao processo de diáspora no qual fomos 
sequestrados do nosso seio e dispersados em terras 
estranhas, longe das nossas tradições e do nosso imaginário. 
Augusto reverencia grandes artistas como Nina Simone, 
essa mulher poderosa que enfrentou dificuldades inúmeras 
e agraciou o mundo com seu talento sem igual — graças à 
indicação do mano Augusto, também virei fã e inclusive por 
um acaso estou ouvindo no momento em que escrevo isto. 
Da mesma forma que virei fã de Sun Ra, Janelle 
Monáe, Ellen Oléria e tantos outros músicos 
afrofuturistas que filosoficamente e organicamente buscam 
esse reencontro ancestral — “a partir da consciência da 
elaboração do mundo dos sonhos, da ficção, e eu acredito 
que um texto poético cheio de metáforas nos aproxima da 
ficção, o afrofuturismo explora um novo futuro para a raça 
negra” — diz Oléria. 
“Quando disseram que a Europa inventou a ciência, ele 
escreveu nas margens que isso era mentira. Quando 
disseram que os africanos eram inferiores e não tinham 
filósofos, ele escreveu nas margens que isso era falso. 
Quando eles disseram que a Europa originou a civilização, 
https://www.facebook.com/augusto.oliveira.011
https://www.facebook.com/augusto.oliveira.011
http://www.jmonae.com/
http://www.jmonae.com/
http://ellenoleria.com.br/
ele escreveu que os europeus haviam falsificado a 
história.” — ASANTE, Molefi Kete. 
O que pode ser dito sobre Afrofuturismo não se esgota aqui; 
trata-se apenas de uma modesta introdução. As 
possibilidades são inúmeras. Dos nossos mais velhos aos 
nossos mais novos — tais como a talentosíssima Maria 
Freitas, da página O Mago Rosa — muita coisa boa foi 
produzida e muitas maravilhas ainda estão por vir. Vamos 
estudando, vamos nos informando, vamos trocando 
informações, vamos nos fortalecendo. Nós podemos contar 
nossas histórias por nós mesmos, não dependemos que 
ninguém faça isso por nós — nem do lado que nos nega 
sempre a presença e tampouco do lado que deseja nossa 
presença como algo espetaculoso e exótico. Nós sofremos 
grandes violências diárias, físicas e psíquicas, e ainda assim 
estamos aqui. Nós somos capazes de vencer o trauma 
histórico e projetar nós mesmos nosso próprio futuro 
brilhante. Por meio de nós, descendentes do Continente, os 
sonhos dos ancestrais se tornam realidade. 
 
https://www.facebook.com/OMagoRosa

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