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Sem Essa Aranha: uma proposta de cinema descolonizadora

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“SEM ESSA ARANHA” : UMA PROPOSTA DE CINEMA DESCOLONIZADORA
Tatiana Trad Netto1
Mestranda em Cultura e Sociedade
UFBA/ IHAC
tatianatradn@gmail.com
Simpósio Temático 5- Gênero, Arte e Cultura
RESUMO
Neste artigo proponho uma breve análise do filme “Sem Essa Aranha” do cineasta Rogério Sganzerla, integrante
da Escola do Cinema Marginal e que nos aponta um olhar descolonizador sobre um Brasil marginalizado,
opressor, subalternizado e absurdo. Sem essa Aranha, é um relato do Brasil de 1970 por jovens cineastas que
propunham um cinema brasileiro, vanguardista, experimental e fora dos padrões comerciais de Hollywood.
Naturalmente carregado de brasilidade em seus personagens, paisagens, e enunciados; é um filme genuinamente
brasileiro, do terceiro mundo, subdesenvolvido, filmado em 16mm, no Rio de Janeiro. O Cinema Marginal
assumia seu rompimento com o Cinema Novo , trazendo para as telas um Brasil urbanizado, com indivíduos
mais individualistas e caóticos.
O filme promove rupturas nas representações normalmente estereotipadas da mulher no cinema brasileiro, 
contribuindo para o surgimento de outras identidades possíveis e ampliando a esfera do "ser" mulher no âmbito 
das representações. Neste artigo pretendo articular algumas autoras e autores latino americanos,com as questões 
de gênero e identidade presentes no filme. Este artigo faz parte da minha pesquisa de Mestrado onde pesquiso o 
papel da mulher no Cinema Marginal, através da análise da trajetória da atriz Helena Ignez e de algumas 
personagens que interpretou no Cinema Marginal.
Palavras-chave: cultura, identidade, gênero, cinema marginal, estudos subalternos
INTRODUÇÃO
A utilização da linguagem cinematográfica como elemento auxiliador ao estudo das culturas
nos abre a possibilidade de um aprofundamento no universo simbólico e imagético concebido
pelo ser humano. A entrada para o mundo simbólico, é a entrada para o reino da cultura,
resultante da integração/interação do homem e da natureza. O domínio dos símbolos permite
ao indivíduo operar culturalmente em sua realidade social. Neste sentido, proponho uma
breve reflexão acerca das questões de identidade e de gênero no filme “Sem essa Aranha”
compreendendo o imbricamento da própria ficção com o caráter documental histórico do
filme, o que nos permite reflexões sociológicas, psicanalíticas e antropológicas das questões
que tratam do indivíduo e dos fenômenos culturais numa perspectiva pós-colonialista. 
1 Pesquisadora bolsista da Fapesb
OBJETIVO
Este artigo pretende fazer uma breve reflexão acerca das questões identitárias e das
representações de gênero no filme “Sem essa Aranha”, sob a luz das teorias da cultura,
propondo novas reflexões acerca da representação da mulher no cinema brasileiro e
contribuindo para uma melhor compreensão da contra cultura produzida por estes cineastas .
SEM ESSA ARANHA
Neste filme, Rogério Sganzerla, em um processo anárquico- antropofágico, digere, vomita e
rasura; conceitos artísticos, políticos e culturais concebendo um filme ácido, violento ,
subversivo e que questiona as relações de poder. Pelo alto teor de experimentalismo, o filme
não foi bem recebido pela crítica intelectual da época. Não houve exibição comercial devido a
censura nem críticas ou divulgação nos jornais. Realizado durante a ditadura militar, o filme
foi produzido pela Belair2; que produzia seus filmes em esquema de guerrilha. O desafio de
realizar os filmes; filmes-vômito, filmes-grito, filmes experimentais era o que movia a
produtora. Um dos incômodos que o filme nos apresenta é a questão identitária Para da Silva
(2007:76), “É por meio da representação que a identidade e a diferença adquirem sentido,
passam a existir e também se ligam a sistemas de poder”. Ao questionar a identidade e a
diferença através da representação, o autor da obra ironicamente desconstroi regras, padrões,
convenções e apropria-se de elementos do brega, do rock'n roll, do pop estrangeiro, da contra-
cultura, da poesia concreta, do cinema erudito e da cultura popular, subvertendo e
resignificando seus símbolos e signos, resultando em uma obra brasileira e questionadora. O
filme é uma coletânea de fragmentos de relatos individuais; colados, amontoados, arranhados
e enviesados, costurados por um ponto sem nó. A liberdade de improvisação é uma
característica essencial do filme–performance; possibilitando interpretações ousadas,
espontâneas e criativas. Desde o início do filme o diretor torna visível o local/sujeito de
enunciação da obra e deixa claro que a proposta fílmica é um rompimento com a visão
colonizadora sobre o Brasil. Para Larissa Pelúcio:
“anunciar o lugar de fala significa muito em termos epistemológicos, porque rompe não só com os
padrões de produção de saberes que escondem seu narrador, como denuncia que essa forma de
2 Belair filmes :produtora de cinema independente da Boca do Lixo paulistana, criada por Julio 
Bressane ,Rogério Sganzerla e Helena Ignez que, entre fevereiro e maio de 1970, realizou sete filmes 
de longa-metragem.
produzir conhecimento é geocentrada, e se consolidou a partir da desqualificação de outros
sistemas simbólicos e de produção de saberes.”(Pelúcio, Larissa. 2012: 398)
O filme nos conduz através de uma narrativa caótica, não-linear e apocalíptica à um Brasil
favelado, sensual, decadente, subdesenvolvido, subversivo, miserável e esquizofrênico que
desafia os discursos hegemônicos e pode nos despertar nojo e/ou repulsa através do
estranhamento e do profundo sentimento de desamparo que nos provoca.@s personagens de
“Sem essa Aranha” são caótic@s, verborrágic@s, viscerais,singulares, anárquic@s e se
questionam sobre sua própria identidade. São subaltern@s, são brasileir@s, são latin@s, com
suas identidades fragmentadas assim como o próprio Brasil diante das incertezas do futuro em
um momento tão instável como o período vivido durante o regime militar.
O filme dialoga com diversos tabús; no campo da sexualidade, da religiosidade, das questões
de raça e de gênero, tornando-se grande aliado principalmente ao processo de desconstrução
visual do estereótipo feminino eurocêntrico e patriarcal. Esta desconstrução segundo
Barriendos (2011), contribui com o processo de descolonização do olhar e é fundamental
para a construção de novas relações de alteridade. Teóricas feministas do cinema como Laura
Mulvey e Teresa de Lauretis, acreditavam que o cinema independente poderia ser o espaço de
subversão do papel feminino comumente representado.Para a teoria feminista do cinema, os
estereótipos impostos à mulher através dos meios de comunicação em massa, resultam como
uma forma de opressão, objetificando a mulher (principalmente quando endereçadas às
audiências masculinas), anulando-a como sujeito e recalcando seu papel social. De acordo
com Laura Mulvey:
“A mulher, desta forma, existe na cultura patriarcal como o significante do outro masculino, presa
por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do
comando lingüístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa a seu lugar
como portadora de significado e não produtora de significado.” (MULVEY, 1977, s/p.).
Ao resignificar a mulher, permitindo-lhe a possibilidade de fazer o que quiser, inclusive se
masturbar com uma garrafa, ou se relacionar com dois homens ao mesmo tempo, ou até
mesmo não se relacionar com ninguém, Rogério Sganzerla cria novos espaços de
representação da mulher, subvertendo o conservadorismo patriarcal e ampliando a esfera do
ser “mulher”. É a partir da perspectiva da descolonização do ser, das subjetividades e
particularidades do indivíduo que as mulheres de Sem essa Aranha, dão vozes a corpos de
subclasse; são uma espécie de consciência d@ oprimid@, d@ subaltern@. Gritam,berram,
urram, tentam se fazer ouvir em meio ao caos, ao lixo e a decadência. A loira atraente (Helena
Ignez), a morena suburbana (Maria Gladys) e a mulata (Aparecida), são os símbolos do
Brasil-nação mestiço; mas no filme percebemos uma miscigenação que não se mistura, a
falácia da democracia racial, a sociedade brasileira dividida em classes, onde podemos notar
através das relações das três mulheres as situações de privilégios sociais em decorrência da
cor ou classe social; estas mulheres são como ecos na consciência de Aranha, o opressor.
Aranha é um banqueiro corrupto de um país fictício dotado de uma personalidade
esquizofrênica. O personagem é interpretado por Zé Bonitinho, que é um personagem
interpretado pelo ator Jorge Loredo. A proposta de criar um distanciamento entre ator e
personagem é interessante pois permite o diretor e o ator Jorge Loredo fazerem denúncias e
críticas severas ao Estado, ao sistema capitalista, ao imperialismo utilizando-se da poética do
absurdo do personagem (o que confere enorme ambiguidade a Aranha tornando-o ainda mais
complexo em sua dimensão dramática).
Ao longo do filme outr@s personagens entram em cena, sendo importante destacar a
participação de dois ícones da cultura popular brasileira: Luiz Gonzaga e Moreira da Silva;
ambos representando a musicalidade e poesia popular nacional; o samba e o baião, negros e
nordestinos. O autor afirma o grande valor estético da cultura popular nacional e contribui
com a discussão sobre a dicotomia existente entre Alta Cultura e baixa cultura. 
Em “Sem essa Aranha”, Rogério Sganzerla transcende todos os cânones do cinema. Rompe
com as regras de construção de uma narrativa convencional e tradicional; avacalhando,
esculhambando e transgredindo todos os padrões estilísticos e até mesmo técnicos
estabelecidos pela academia. Um filme onde atores e personagens são uma performance única
e caótica, misturados `a população do Morro do Vidigal. Apesar do forte teor documental por
ser um registro daquele momento, o filme não pretender ser verossímil; rompe com a
realidade e se faz representações, aparições, nada é verdadeiro ao mesmo tempo que é
profundamente real.
Em um longo plano sequência, Luiz Gonzaga sai de um corredor escuro para um iluminado
quintal da favela onde chega tocando a musica Boca de forno. Luiz Gonzaga, no centro da
cena ( uma clara referência ao Sol do sistema Solar, o Sol da Verdade) é coroado por uma
mulher com um lenço (manto) e o chapéu de cangaceiro (coroa). Esta coroação da cultura
popular na favela é uma afirmação do reconhecimento da diversidade cultural do país como
uma de suas grandes riquezas. A música e a cultura nordestina no centro de tudo. Luiz
Gonzaga segue tocando e Helena, como um satélite, orbita ao redor de Gonzaga. Num dos
momentos mais fortes do filme, Helena dando voltas em seu próprio eixo e ao redor de Luiz
Gonzaga grita : “O sistema solar é um lixo! Planetazinho vagabundo! “. Ela grita isso
repetidas vezes girando na cena e a câmera a acompanha em uma sequência de movimentos
de 360, nos causando uma certa confusão. A fala de Helena, demonstra revolta, ira, falta de
boas perspectivas para o país. Nesta cena, Helena a mulher subalterna, terceiro-mundista, está
apenas à margem. Gira perdida ao redor da verdade (Luiz Gonzaga) em uma tentativa de se
iluminar.
A favela é o cenário escolhido para o filme como o território autêntico que legitima nossa
condição de país subdesenvolvido pós-colonial; é na favela onde o Brasil cinema e o Brasil
subdesenvolvido se encontram; ficção e realidade representadas na dimensão do absurdo e do
abjeto. Em seus estudos Florestan Fernandes (in SOUZA.2006) nos aponta :
“ Para o negro, sem a oportunidade de classificação social burguesa ou proletária, restava os
interstícios e as franjas marginais do sistema como forma de preservar a dignidade de homem
livre: o mergulho na escória proletária, no ócio dissimulado, ou ainda, na vagabundagem
sistemática e na criminalidade fortuita ou permanente” (2006:155).
O diretor retrata uma marginalidade presente em um Brasil que não aparece no mapa nem do
próprio Brasil. A presença de Luiz Gonzaga na favela aponta para as imigrações de
trabalhadores nordestinos ( presença quase absoluta de negros e mulatos), indivíduos basilares
na constituição das favelas como território único e possível para os excluídos; aqueles que a
cidade em crescimento rejeita e vomita. Atualmente podemos afirmar que os resíduos da
colonização não desapareceram ao longo dos anos como afirmavam alguns teóricos.
Quarenta de cinco anos após a realização de Sem essa Aranha, jovens negr@s ainda são a
grande maioria brutalmente assassinada ou violada no Brasil, as favelas continuam a se
expandir e a população afro-brasileira necessita de políticas inclusivas e afirmativas como
medidas reparadoras, numa tentativa do Estado de garantir os mesmos direitos à tod@s e
tentar superar as desigualdades herdadas do colonialismo.
Pela favela, atrizes/atores seguem em um Brasil brasileiro, sem maquiagem. Em meio ao
próprio caos do ambiente, transeuntes se tornam coadjuvantes, posicionam-se na frente da
câmera, se fazem ser olhados provando para “@ outr@” suas existências marginais. Existe
um momento de denúncia onde a mulata (Aparecida), cantora e dançarina do cabaré conversa
com Helena Ignez e diz que “foi para o exterior contratada pra dançar ,mas que quando
chegou lá, percebeu que era outra coisa. Ela conta das outras mulheres que como ela, em
busca de uma vida melhor se iludiram com propostas criminosas e são exploradas
sexualmente, mantidas em cárcere privado na Europa. De acordo com Jessé Souza(2006:157)
as condições de trabalho para as mulheres negras após o fim da escravidão ou eram os
serviços domésticos, ou era a baixa prostituição, pois até neste campo, as mulatas e negras
valiam menos. Sganzerla retrata uma realidade pós- colonial/contemporânea e que ainda
mantém condições de trabalho colonizadoras para a mulher negra subalterna. Este relato é
uma tentativa do diretor de deixar a mulher subalterna falar, embora muitas vezes durante a
fala dela, um barulho alto e proposital interfira na cena nos impedindo de ouvir o seu relato
por inteiro, é na verdade uma ironia, é a quase possibilidade dessa fala se concretizar e que
através da ironia da quase fala, denuncia a ausência deste espaço de escuta na sociedade.
O filme traz indagações, reflexões, problemas, que permanecem atuais como : a fome, a
miséria, as desigualdades sociais e de gênero, subalternidade e colonialismo. A questão
identitária ,é a tônica do filme e encontra na marca da diferença e da pluralidade um Brasil
absurdo. A pergunta “ O que é o Brasil?”, “O que é o brasileiro?” é repetida diversas vezes ao
longo do filme, mostrando a crise existencial e de identidade do povo brasileiro naquele
momento. Em uma cena, Helena Ignez e Maria Gladys procuram o Brasil no mapa e não o
encontram. Helena Ignez diz: “O Brasil está fora do mapa, está fora da página, é carta fora
do baralho!” Com esta fala, Helena nos provoca a nos situarmos. Onde está o Brasil que não
está no mapa? Por que ele não está no mapa? Esta cena é uma crítica direta as cartografias
eurocentradas. Uma crítica a construção e legitimação do saber geopoliticamente centrado.
Barriendos, em seu texto La colonialidad del ver nos aponta que :
“Una de las maquinarias geoepistémicas en donde más claramente puede observarse el surgimiento
de la colonialidad del ver es la que concierne a la redistribución entre el “afuera” ontológico y el
“adentro” etnográfico de las cartografías imperiales. Debido a que tras el “descubrimiento” del
“Nuevo Mundo” y a su forzada aceptación como apéndice de la geografía tripartita delmundo—
éste ya no podía seguir siendo un “afuera” geográfico”.(2011:19)
Rogério Sganzerla, através de seu filme anti-colonialista e anti–imperialista questiona de
forma direta e agressiva as estruturas de poder colonizadoras que hoje conhecemos por
colonialidade do saber, do ser e do poder. Podemos compreender que a “Colonialidade do
poder” é um modelo de poder especificamente moderno que interliga a formação racial, o
controle do trabalho, o Estado e a produção de conhecimento” (Quijano, 200) . A ironia do
autor em fazer um filme de fato subdesenvolvido, é um rompimento com as matrizes. Sua
proposta é criar e realizar, com pouco dinheiro e criatividade algo que seja realmente
brasileiro, um cinema além do Cinema Novo.
Guiados por Aranha, nos deparamos com questões como o divórcio, desigualdade de gênero e
desigualdade social. Em seu diálogo com a atriz Helena Ignez que faz sua esposa no filme
Aranha propõe o divórcio. Ela diz que “não se divorcia apenas para não dar este gostinho a
ele, que prefere permanecer na situação”. Nesta cena há uma contradição entre o texto verbal
e o texto corporal. Ao mesmo tempo que ela diz que permanecerá casada, ambos começam a
se agredir, ele começa a enforcá-la, para calá- la, revelando toda a hipocrisia da relação e
denunciando também o cotidiano da vida real naquele momento onde a grande maioria das
mulheres optavam por sustentar um casamento falido `a enfrentar o conservadorismo da
sociedade. Este diálogo é uma provocação direta à moral e aos bons costumes. O puritanismo
social que a ética do patriarcado promovia, começava a ser corroído pelo movimento hippie,
pelo movimento feminista, através da descoberta do amor livre e do contraceptivo. No Brasil,
eram anos de chumbo, mas também anos de Tropicalismo, Cinema experimental,
Mutantes,Leila Diniz e Dzicroquetes .
A sexualidade retratada no filme é naturalizada, conduzida de forma cafona, desglamurizada e
desprovida de tabús. Há uma cena da Maria Gladys no banheiro, onde ela transa com dois
homens e cada um segue sua vida. O sexo nesta cena está situado no plano instintivo,
“selvagem”, material. A imagem de uma mulher se masturbando em meio a tantas
necessidades vitais a serem atendidas também é só mais uma necessidade. Para os grupos
excluídos e marginalizados de acordo com Florestan Fernandes “o sexo se erige na única
área livre de exercício das aptidões humanas” (in Souza, Jessé/ 2006 p. 157 ) e é neste
sentido que o diretor retrata a sexualidade no filme. Assim como se ouve gemidos de prazer,
também ouve-se gritos de Fome como os de Maria Gladys que passa o filme inteiro
desesperada gritando e gemendo de dor de barriga, de dor de fome . 
Em um Cabaré decadente, o corpo adquire valor cenográfico. Entre pequenos shows , uma
cantora de bolero inicia sua fala brindando `a “Cuba”. Helena Ignez e Maria Gladys entram
em cena dançando juntas uma dança descompassada. Não estão felizes, estão entediadas; são
mais engraçadas e menos sensuais. Desajustadas, dançam até a exaustão. Em conversa na
mesa do cabaré Maria Gladys diz :“ Se tiver que casar novamente, vou me casar com uma
mulher, com homem não caso mais não. Nunca mais!” Neste momento Helena Ignez começa
a gofar, a provocar um vômito que não se realiza . Repetidamente, Helena força o vômito,
tornando a cena nauseante. Maria Gladys começa também a forçar o vômito em uma longa
sequência. É clara a insatisfação das personagens com os homens, é algo repugnante, que lhes
causa vontade de vomitar; mas este enjôo nos sugere um significado para além das questões
de gênero; pode ser um enjôo/nojo, do sistema, do capitalismo, da opressão vivida pelas
mulheres, do regime militar. O vômito não se realiza nunca, causando grande agonia e
desconforto à quem assiste. O quase – vômito, a quase- fala da mulher subalternizada, fazem
do “quase” um lugar permanente no filme e afirma sua condição de filme subdesenvolvido.
Rogério Sganzerla embora não siga um roteiro literário convencional, utiliza pequenos textos
denúncia e através de Aranha expõe suas reflexões sobre o país como na fala em que diz :
“O pouco de riqueza que é produzido ou vai para contas secretas em bancos suíços ou para cofres
estrangeiros, a exportação do açúcar é toda controlada por uma empresa americana. Não há
consumo porque não existem consumidores, a terra é de poucos a renda de alguns,vivemos numa
tensão de 40 milhões de analfabetos em um pais com renda per capita um pouco acima da
Bolívia,os salários engaiolados, os sindicatos mudos, os empresários de pires na mão , o crédito
baixo e as falências em alta. A burrice não é privilégio de ninguém , muito menos dos brasileiros .
Para o caro milionário brasileiro pergunto: ainda tem você chance de entrar no reino dos céus?”
Esta fala, dita quase como um vômito é um desabafo, uma denúncia da verdadeira situação do
Brasil subdesenvolvido que em nada se beneficiava do “Milagre Econômico “ de Delfim
Netto. Esta fala, também nos soa atual, embora os índices de analfabetismo estejam
diminuindo desde o governo Lula, e políticas como o Bolsa-família tenham sido criadas para
minimizar a questão da distribuição desequilibrada de renda, ainda existe um déficit enorme
em diversas áreas como as questões da reforma agrária, previdência e saúde por exemplo.
Existe um abismo profundo entre ricos e pobres no Brasil. Sem dúvida avançamos em muitas
áreas e aos poucos o país consegue apontar indicadores positivos que aumentam a esperança
da população mas, a classe de corruptos brasileiros ainda segue enviando quantias
desconhecidas para ilhas fiscais. O PIB interno dos país aumentou, mas a violência segue
crescendo descontroladamente.
Na favela, Aranha desesperado pelos 6.000 anos de atraso na humanidade (a consciência de
que a origem dos problemas sociais é maior e mais antigo que o próprio Brasil) chama por
Iemanjá, diz Saravá; o mesmo Aranha nos diz que o Diabo gosta do brasileiro . O Diabo, aliás
é mais próximo aos brasileiros do que Deus de acordo com Aranha (uma clara associação do
indivíduo subdesenvolvido com o lugar do“baixo”, baixa cultura x Alta cultura,Riqueza e
pobreza,Conhecimento e ignorância ). O sincretismo religioso é um elemento sempre presente
nos filmes de Sganzerla como o lugar possível de existência para a crença do
subdesenvolvido, do povo brasileiro. Fruto de processos de transculturação decorrentes da
colonização, o sincretismo religioso é o lugar da verdade nas diferenças, é a possibilidade
existencial da fé d@ subaltern@.
A cena final é um desfecho possível em meio a tanto caos e falta de esperança. Em uma
performance transgressora, subversiva e herege; vemos as pernas de uma mulher e um
crucifixo encostado na parede. A mulher sem rosto começa a esfregar o pé no Cristo do
crucifixo, esfrega os pés na genitália do Cristo do crucifixo, pisa no rosto de Cristo. O filme
termina com a Igreja Católica sendo pisada, seu Cristo blasfemado, sexualizado; sob os pés de
uma mulher. A mulher renegando o pai, pisando no Totem (mito freudiano). Diante de tanta
miséria, caos e confusão, porque acreditar em uma igreja que nada faz? Que Deus é este?
Aceitar a igreja enquanto instituição é ser servil ao colonialismo; tudo o que Rogério
Sganzerla questionava naquele momento sombrio.
 Seguindo seu antecessor “A mulher de todos”, “Sem essa Aranha” também contribui no
processo de empoderamento da mulher, retratando uma mulher liberal, autônoma, forte, e
capaz de transgredir padrões em nome de sua própria vontade.
A mulher representa boa parte das subversões da narrativa, são as mulheres os elementos
disparadores dos tensionamentos da grande maioria das cena. As mulheres dão voz aos
pensamentos mais transgressores, mais agressivos e revolucionáriosdo filme; elevando a
mulher à condição de agente ativa na sociedade, de protagonista, capaz de falar, questionar e
se expressar independente das normas e convenções sociais que buscam enquadrar a mulher a
estereótipos construídos por uma sociedade machista e patriarcal .
Considerações Finais
Num momento onde a América latina era invadida pelo imperialismo americano, Sem essa
Aranha é um relato anti-imperialista que propõe uma descolonização dos universalismos
através da ruptura com os padrões cinematográficos hollywoodianos e europeus; um filme
que se vale da perspectiva do subdesenvolvimento para provocar reflexões profundas quanto
às particularidades de um Brasil que não é visto, do Brasil marginalizado, de um sujeito
urbanizado, mais individualista, materialista (à medida que o capitalismo o engole).
Os cineastas marginais; operando fora do sistema comercial de produção cinematográfica,
estavam livres das fórmulas, principalmente do “Star System 3, o que possibilitou novas
representações de gênero no cinema, contribuindo para a ruptura de um modelo opressor para
a mulher.
Com este artigo pretende-se ampliar a reflexão crítica acerca das questões de identidade e
gênero, ampliando o conhecimento acerca da análise fílmica, entendendo o cinema enquanto
cultura dinâmica e plural, dando voz a um segmento não comercial e compreendendo que o
cinema marginal foi um espaço de rupturas inclusive nas questões que tratam da mulher e do
papel dela no cinema nacional, trazendo à tona outras identidades femininas no cinema
brasileiro As questões identitárias presentes em Sem essa Aranha, evidenciam a necessidade
de um lugar de escuta na sociedade para @s subaltern@s, para as minorias, cada vez mais
engolidos pela lógica capitalista de padronização das particularidades do indivíduo.
Divórcio, casamento, sexualidade, fé e religiosidade são temas abordados na obra que nos
leva ao campo das subjetividades de um Brasil rumo a uma modernidade sem perspectivas
positivas.
Ao analisarmos movimentos vanguardistas como o Cinema Marginal, que através de seus
filmes propõe uma forte crítica social e que nos aponta um olhar descolonizado sobre o Brasil,
compreendemos melhor os fenômenos culturais e as forças que operam no complexo cultural.
A estética pós-colonialista dos cineastas marginais se vale da ambiguidade, da estranheza e do
3 O star system é um método de criação, promoção e exploração de estrelas de cinema de Hollywood.Este 
método enfatiza a imagem mais do que a atuação e contribui negativamente com o estabelecimento de padrões 
estéticos e estereótipos hegemônicos principalmente para as mulheres.
sentimento de desamparo presentes na estética freudiana para alcançar o sentimento de
identificação ou repulsa d@ espectad@r, tirando- @ da recepção passiva, contribuindo assim
para a produção de novas reflexões.
Para Freud, este desamparo nos remete a primeira infância, ao nosso primeiro contato com o
mundo, com a cultura, com a linguagem, com o primal. É através de um certo primitivismo ,
da visceralidade, da violência e do humor, que Rogério Sganzerla realiza um dos filmes mais
ricos e denso da cinematografia brasileira. Ao apostar em uma proposta fílmica que é um
devir performático, um happening; personagens se valem de suas condições absurdas e
esquizofrênicas para denunciarem um Brasil opressor, colonizado, recalcado e machista; vai
na ferida do país subdesenvolvido que está fora do mapa, que é carta fora do baralho como diz
a personagem de Helena Ignez. O Cinema Marginal através das personagens anormais
interpretadas principalmente por Helena Ignez, cumpriu de maneira inteligente o
enfrentamento ao universo machista, sem atender as demandas comerciais da indústria
cinematográfica da época e trouxe à tona de forma crua, a fragmentação do indivíduo
resultante da instabilidade de uma modernidade vivida
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