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TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO História, Legislação e Impunidade MauroPitanga TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO História, Legislação e Impunidade 1ª edição: dezembro de 2013 1ª edição revista e atualizada: abril de 2014 2ª edição revista e atualizada: janeiro de 2015 3ª edição revista e atualizada: fevereiro de 2015 Manaus Edição do Autor 2015 Copyright © by Mauro Pitanga, 2014 Editor O Autor Capa KDP Imagem da Capa Fotografia fornecida pela plataforma KDP de Amazon. Projeto Gráfico O Autor Diagramação e Editoração Eletrônica O Autor Revisão O Autor ISBN-10 da Edição Impressa: 8591652800 ISBN-13 da Edição Impressa: 978-85-916528-0-8 ISBN-13 da Edição eBook: 978-85-916528-1-5 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pitanga, Mauro Trabalho Escravo no Brasil Contemporâneo : história, legislação e impunidade / Mauro Pitanga. 3. ed. - Manaus, AM : Edição do Autor, 2015. 13 - 13333 CDU - 34 : 331 (81) Índices para catálogo sistemático: 1. Trabalho escravo – Brasil 2. Direito I. 3. Título. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO AUTOR. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. Exceto, se com a permissão expressa do autor. Breves extratos dessas publicações podem, entretanto, ser reproduzidos sem autorização, desde que mencionada a fonte. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos direitos Autorais). Críticas, dúvidas e sugestões: mauropitanga@gmail.com Para conhecer outros títulos do autor: www.mauropitanga.com.br In Memoriam de Eratóstenes de Almeida Gonsalves, João Batista Soares Lage, Nelson José da Silva, Ailton Pereira de Oliveira, pelos relevantes serviços prestados ao Ministério do Trabalho e Emprego. Ambos vítimas da “Chacina de Unaí” (MG), em 28 janeiro de 2004, quando fiscalizavam o trabalho escravo naquela região. Agradecimentos À Mônica e ao Ciro, por me acompanharem nesta aventura chamada vida e, sem os quais este livro não teria sido possível. Lista de Abreviaturas e Siglas CNJ Conselho Nacional de Justiça CP Código Penal CPB Código Penal Brasileiro CPT Comissão Pastoral da Terra CTPS Carteira de Trabalho e Previdência Social Ex. Êxodo FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura FHC Fernando Henrique Cardoso GEFM Grupo Especial de Fiscalização Móvel GETRAF Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado Gn. Gênesis LACP Lei de Ação Civil Pública LOMPU Lei Orgânica do Ministério Público da União MPF Ministério Público Federal MPT Ministério Público do Trabalho MPU Ministério Público da União MTE Ministério do Trabalho e Emprego NR Norma Regulamentadora NRs Normas Regulamentadoras OIT Organização Internacional do Trabalho ONG Organização não governamental PEC Proposta de Emenda Constitucional RE Recurso Extraordinário SIT Secretaria de Inspeção do Trabalho STF Supremo Tribunal Federal STJ Supremo Tribunal de Justiça TRF Tribunal Regional Federal LISTA DE FIGURAS Figura 1-1 Números de Operações x Trabalhadores Resgatados Figura 1-2 Retrato Escravo Barracão de Trabalhadores (PA) Figura 1-3 Retrato Escravo - Extração de Madeira (PR) Figura 1-4 Retrato Escravo - Cana-de-Açúcar (MS) Figura 1-5 Retrato Escravo - Cana-de-Açúcar (BA) Figura 1-6 Retrato Escravo Carvoaria (MS) Figura 1-7 Retrato Escravo Cana de Açúcar (BA) Figura 1-8 Retrato Escravo Cana de Açúcar (SP) Figura 1-9 Retrato Escravo (Norte de MG) Figura 2-1 Resgatados por Região de Desmatamento Figura 2-2 Produção do Trabalho Escravo por Área Econômica Figura 4-1 Ministério Público Federal e Justiça Federal no Combate ao Trabalho Escravo Lista de Quadros e Tabelas Tabela 1-1 Comparação entre a antiga e a nova escravidão Tabela 1-2 Comparação entre a antiga e a nova escravidão: acréscimo à tabela 1 Tabela 2-3 Casos Identificados entre 2011 e 2012 (por grande região) Tabela 2-4 Casos Identificados por UF SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CAPÍTULO 1 UM BREVE HISTÓRICO SOBRE A ESCRAVIDÃO 1.1 Na antiguidade 1.2 Na medievalidade 1.3 Na modernidade 1.3.1 A escravidão no Brasil 1.3.1.1 Sua herança contemporânea: a caminho do reconhecimento do problema na atualidade 1.3.1.2 Uma comparação entre o escravismo colonial e o contemporâneo 1.3.1.3 Parâmetros de aproximação e de distanciamento entre a antiga e a nova escravidão CAPÍTULO 2 A DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DO DELITO NO MEIO RURAL E SEU COMBATE PELO MTE 2.1 O trabalho escravo na Amazônia Legal e em outras regiões do país: questão econômica e ambiental 2.2 Grupo especial de fiscalização móvel (GEFM): fiscaliza, regulariza, liberta e pune 2.3 “Lista suja” CAPÍTULO 3 AS POSSIBILIDADES JURÍDICAS DE COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO 3.1 Um longo caminho percorrido 3.2 Legislação internacional 3.2.1 A legislação internacional sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro: aspectos preliminares 3.2.2 Convenção sobre a escravatura (1926) – ratificada em 1966 3.2.3 Convenção OIT 29 (1930) – ratificada em 1957 3.2.4 Convenção OIT 105 (1957) – ratificada em 1965 3.2.5 Carta das Nações Unidas (1945) 3.2.6 Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) 3.2.7 Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (1966) – ratificado em 1992 3.2.8 Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (1966) – ratificado em 1992 3.2.9 Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica - (1969) – ratificada em 1992 3.2.9.1 Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano - Declaração de Estocolmo - (1972) 3.2.9.2 Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998) – ratificado em 2002 3.3 Legislação nacional 3.3.1 Código Penal - Artigo 149 3.3.2 Normas regulamentadoras e outras instruções 3.3.2.1 NR nº 6 – Equipamento de Proteção Individual - EPI 3.3.2.2 NR nº 31 - Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, Pecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Aquicultura 3.3.2.3 NR nº 24 – Condições Sanitárias e de Conforto nos Locais de Trabalho 3.3.2.4 NR nº 21 – Trabalhos a Céu Aberto CAPÍTULO 4 COMPETÊNCIA PARA PROCESSAR E JULGAR O CRIME DO ARTIGO 149 DO CPB 4.1 A competência 4.2 A sanção penal: por que não acontece? CONSIDERAÇÕES FINAIS BIOGRAFIA DO AUTOR BIBLIOGRAFIA Apresentação Diz-se que o Brasil foi um dos últimos países do ocidente a abolir a escravidão: 1888. Até Cuba chegou na frente: 1886. Mas tais asserções parecem insignificantes diante de uma realidade que aponta para outra direção. Chancelas em documentos não foram capazes de modificar a realidade e a sorte de grande parte da população mundial que vive sob algum tipo de julgo desigual. A realidade social e laboral de muitos grupos sociais no mundo contemporâneo indicam que a situação para esses é perversa e desumana: seja pela imposição de políticas de castas ou segregacionistas – como é o caso da Índia e da África; seja pela implantação de políticas de domínio do estado, a qual privilegia uma minoria que se perpetua no poder e vive pomposamente, em detrimento de uma maioria que subsiste no limite da inópia - a exemplo da Coréia do Norte e de Cuba; seja por relações laborais humilhantes e vexatórias, que resgatam antigos e ultrapassados sistemas de produção, impostas a trabalhadores da indústria e do campo– como é o caso do Brasil. No Brasil, centenas de milhares de trabalhadores vêm sendo submetidos, todos os anos, a trabalhos em condições degradantes e exaustivas, transfigurando-os em coisas, em objetos descartáveis. Coloca-se, portanto, a saúde e a vida desses operários em risco. Embora não se possa debitar, unicamente, na conta do capitalismo a existência do escravismo contemporâneo, vê-se que esses fatores históricos aliados a fenômenos capitalistas de produção têm ajudado forjar nas relações de trabalho e de emprego situações análogas a de escravidão. Isso porque tais estados de penúria são maximizados em decorrência da busca do baixo custo da mão-de-obra e da produção. Gera-se, inclusive, consequências nocivas ao meio ambiente, tendo em vista, por exemplo, a expansão da fronteira agrícola em terras da união. Essas condições de exploração têm seus tentáculos nos mais diversos ramos da atividade econômica. No campo estão explícitas na pecuária, nas carvoarias, nas usinas de álcool e açúcar, nos campos de mineração, nas plantações de milho e de soja, no extrativismo em geral, nas pedreiras, nas olarias, bem como em outras áreas da economia. As regiões do país que mais consomem o trabalho escravo são Centro-Oeste e Norte; e a que mais fornece a mão-de-obra é a região Nordeste. Na busca de um estudo sistemático sobre o assunto, sob a perspectiva histórico-jurídica, foi que concebemos esta obra. No primeiro capítulo analisamos o contexto histórico da escravidão, desde a antiguidade até à contemporaneidade. A relação do Brasil com a escravidão africana a partir do século VXI dará o start para avaliarmos esse acontecimento em nosso país, embora tal ocorrência já tivesse sido registrada entre os indígenas autóctones. Esse fundo histórico não tem a pretensão de ser uma aula sobre a história da escravidão no Brasil e no mundo, mas sim de servir de modelo comparativo com as ocorrências atuais de trabalho no campo. Tal comparação se mostrou bem oportuna, uma vez que foi possível reconhecer que embora o escravismo contemporâneo se paute por critérios bem diferentes do escravismo colonial, ainda assim há semelhanças pertinentes entre um e outro. Na parte seguinte, observamos o caminho que o Brasil trilhou para reconhecer a escravidão contemporânea como uma realidade brasileira. Notamos que o diálogo foi longo e difícil. O governo federal se recusava aceitar o problema; demorou-se décadas para, enfim, o Estado brasileiro admitir tal existência, e empreender, ao lado da Organização Internacional do Trabalho (OIT) esforços mútuos para a erradicação do escravismo contemporâneo. Foi nessa esteira que o Brasil promoveu importantes iniciativas endógenas a fim de entrar decisivamente na luta contra o escravismo contemporâneo: ratificações de normas internacionais, expedição de portarias, inclusão de novos expedientes administrativos, modificações de normas regulamentadoras, até a alterações legislativas que culminaram na nova redação dada ao artigo 149 do Código Penal. Essa nova redação, exarada em 2003, representou um grande avanço, porque permitiu reconhecer o trabalho escravo contemporâneo como crime punível com pena de reclusão. No três apresentaremos a forma como o escravismo contemporâneo é fiscalizado e punido; o importante papel do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MPT), criado em 1995, a quem é devido essa missão. Assim como a relevante função do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério Público Federal (MPF). Esses incrementos possibilitaram reconhecer que o trabalho “escravo” é uma realidade doméstica. Ainda que essa empreitada custasse a vida de três auditores fiscais do trabalho e de um motorista, na famigerada “chacina de Unaí” (MG), em 28 de janeiro de 2004 - até hoje sem julgamento definitivo. Foi uma preocupação nossa também distinguir como as cadeias produtivas se relacionam com o trabalho escravo; dessa forma ficou possível mapear geograficamente a participação de cada região do país nesse perverso sistema. Na quarta e derradeira parte discutimos sobre a competência para o julgamento do mencionado crime do Artigo 149 do CP; e a respeito do papel de cada órgão ou instituição na busca da persecução penal. Ao final deste estudo apresentamos os resultados com sugestões que reputamos necessárias a reformas na atuação do MPF e da Justiça Federal. Bem, por fim, ambicionamos que esta obra seja um referencial de consulta e aprendizado para operadores do direito, para pesquisadores e, do mesmo modo, para o público em geral que desejar conhecer mais o assunto. Mauro Pitanga E Capítulo 1 Um breve histórico sobre a escravidão ste capítulo inicial visa apresentar ao leitor as impressões primeiras, mais remotas, sobre a escravidão humana, em três épocas da civilização. Ainda que sejam recortes, são demonstrações que a escravidão do homem pelo homem é uma experiência antiga, cuja explicação obedece aos próprios contornos sociais e políticos de cada época, ou seja, à sua dinâmica. 1.1 Na antiguidade A ideia que concebe a coexistência entre pessoas livres e escravizadas é muito antiga. É ancestral. As grandes nações de épocas remotas sempre conviveram com a servidão ou com o escravismo. Fazia parte da cultura, da tradição e do próprio desenvolvimento dos Estados, não era um costume restrito a uma sociedade em especial; mesmo a Grécia, que é colocada nos livros didáticos, hoje, como um exemplo de Estado democrático, incentivava e desenvolvia a escravidão em seu território: Na Grécia, por exemplo, o operariado era composto absolutamente de escravos, enquanto, em Roma, existiam escravos de várias classes, como pastores, músicos e até mesmo poetas. (SUSSEKIND. 2003:27 apud SILVA, 2008, p. 11). Dentro dessa lógica de pensamento que os gregos privavam alguns grupos sociais, como o das crianças, o das mulheres e o dos estrangeiros, de muitas das garantias legais dadas ao cidadão. Atribuíam-lhes deveres considerados menos importantes para à época, ou melhor, menos nobres. Seus direitos, portanto, também eram limitadíssimos. É corrente relatos na literatura grega que evidenciam que muitas mulheres foram apoderadas como espólios de guerra, geralmente para serem concubinas – escravas sexuais. Assim como há informações de que muitas crianças, além das espartanas, eram treinadas para serem utilizadas em refregas. O juízo de valor que se fazia da escravidão na antiguidade era, praticamente, o de uma divisão natural ou tradicional do trabalho. Uma divisão quase que sagrada e inquestionável. Nem todos eram considerados cidadãos: Cabia aos escravos o trabalho servil, ficando o cidadão liberado do esforço físico para se dedicar ao pensamento (filosofia) e ao governo da polis (política). (Martins Filho, 2006:3 apud SILVA, 2008, p. 11). Ora, é evidente que as causas que levavam pessoas a serem submetidas à escravidão eram muito distintas e diversificadas entre si. Assim como os vencedores de guerras tinham direito aos espólios dos derrotados, em outros casos, conforme já relatado, ficavam com direitos sobre a vida dos próprios perdedores, além de escravizações por dívida. Dessa forma, esses eram utilizados como escravos por àqueles. Vê-se, assim, que a escravidão surgiu pela dominação do mais forte. Para um juízo mais holístico, mais geral, do assunto, seria interessante compreender o conceito antigo de trabalho, o qual remetia à ideia de castigo, atividade ruim, trabalho penoso, sofrido: Além de atividade e exercício, trabalho também significa dificuldade e incômodo: ‘aqui vieram passar trabalho; a última enchente deu muito trabalho’. Pois junto a todas as suas significações ativas, trabalho em português, e no plural, quer dizer preocupações, desgostos e aflições. É o conteúdo que predomina em labor, mas ainda está presente em trabalho. (ALBARNOZ, 2002, p. 10). Portanto, a ideia de trabalho ou labor na antiguidade,parece-nos ligada ao conceito bíblico do livro dos Gêneses - quiçá não conscientemente - de que o trabalho foi dado a nós como castigo pela nossa “desobediência”. Daí as pessoas mais ricas, mais afortunadas deixarem essa atividade para os menos abastados, menos estudados, menos poderosos e, por que não dizer, menos “santos”. O valor simbólico do trabalho, logo, era mínimo, não era uma atividade para os reis, para os nobres, para os “puros”, para os “representantes” de Deus na terra. O próprio Aristóteles ratificou esse juízo, dizendo que para conseguir cultura era necessário ser rico e ocioso e que isso não seria possível sem a escravidão. E disse mais: Se cada instrumento pudesse realizar seu trabalho obedecendo ou antecipando a vontade de outros, como as estátuas feitas por Dédalo, ou trípodes girados de Hefesto, os quais, diz o poeta, “sozinhos entravam na assembléia dos deuses”, se, da mesma maneira, a lançadeira do tear tecesse sozinha e a palheta tocasse a lira, os manufatureiros não precisariam de trabalhos, nem os senhores precisariam de escravos (ARISTÓTELES, 1999, p. 148/149). Bem, sendo o trabalho pouco valorizado é certo que aqueles que desempenhariam as atividades mais penosas também o seriam. Em tempo, vale lembrar que o trabalho escravo não se iniciou na Grécia ou em Roma. José, filho de Jacó representa um dos primeiros relatos bíblicos de escravidão. Em contraponto a esse, há um exemplo inusitado: existiu um grupo de escravos que furava as orelhas, os chamados “escravos de orelha furada”. Esse gesto simbolizava o carinho e a gratidão que esses escravos nutriam pelo seu senhor - furavam as orelhas para demonstrar que não desejavam mais deixar seus donos, mesmo podendo fazê-lo, após certo período de servidão. Bem, se tal fato existiu, e não temos razão para acreditar que não existiu, tais escravos deveriam ter um tratamento diferenciado dos demais de outros senhores. 1.2 Na medievalidade Para muitos estudiosos, durante a idade média houve uma valorização do trabalho humano. Essa assertiva toma o escravo da antiguidade como paradigma. Quando o império romano tombou no século V, o escravismo antigo deu lugar ao servilismo medieval, ambos, sistemas de produção, e a transição de um sistema a outro tem haver menos com vontade e mais com necessidade. O sistema escravista de produção romano entrou em crise dois séculos antes, no III, em virtude das invasões germânicas. Os proprietários de fazendas, de terras - até então - moravam nas cidades, porque lá a vida era mais confortável, havia o comércio e estavam mais próximos do centro do poder político. Diante da invasão “barbara” o comércio perdeu importância; praticamente tudo na cidade perdeu o significado. Assim, retornaram às suas propriedades e, logo, foram seguidos pelos proprietários de terras menos ricos, por plebeus e até por escravos, que se ofereceram para trabalhar para eles. Nessa nova estrutura que se formou, parte da produção era entregue ao proprietário, dessa forma, iniciou-se o colonato e os primeiros feudos nesses domínios. Ou seja, o servilismo medieval. É possível, sem dúvidas, vislumbrar mudanças significativas para melhor, no sentido da valorização do trabalho humano e do próprio homem em si. Os direitos dos servos eram incomparavelmente maiores do que do escravo. Contudo, na entrada à modernidade, o tempo do artesão, do artífice, do aprendiz e a do servo foi ficando para traz. Os mares foram sendo singrados; as distâncias diminuídas; os comerciantes se enriqueceram e surgiam as primeiras manufaturas, embora o poder de fato sempre estivesse com a classe que detinha o poder das armas – primeiro a nobreza, até a segunda metade do século XV; depois o exército moderno a partir da formação dos Estados nacionais. A partir do século XIII iniciou-se o processo de formação dos Estados Nacionais na Europa; em quatro séculos chegariam as revoluções burguesas e com elas a industrialização. Bem, o século XIX chegou e trouxe uma sobrecarga de trabalho ao homem, sobretudo ao que caminhava para as cidades, haja vista que seu ritmo de trabalho era outro. Assim, o homem medieval se tornou coisa do passado, agora para lá de moderno, precisaria se acostumar com extensas horas de trabalho, às vezes jornadas diárias de 16 horas e péssimas condições de trabalho. O labor nessa época chegava à exaustão física, ninguém era poupado, nem crianças, nem mulheres. Próximo à segunda metade do século XIX, a classe operária passou a ficar mais “crítica”, ou talvez mais barulhenta, uma vez que teve acesso a várias obras socialistas. Com a escolarização, a criação dos sindicatos e a politização - fenômenos “modernos” - o trabalhador ganhava capacidade de negociação e reivindicação. Todavia, a aceleração da industrialização acarretou uma série de eventos em cadeia, não tão propícios ao homem; junto à urbanização vieram o êxodo rural, o aumento da oferta de mão-de-obra e a favelização nas cidades. Em seguida, o desemprego, o alcoolismo, a prostituição e a delinquência. O empregador também ganhou poder de barganha, na medida em que o trabalhador passou a ser facilmente descartado e substituído. 1.3 Na modernidade 1.3.1 A escravidão no Brasil No Brasil, a escravidão teve seu momento também. É bom que se diga que o escravismo no Brasil não se principiou com os negros; muitas tribos indígenas já tinham o costume de aprisionar índios de outras tribos, fazendo-os escravos ou transformando-os em “moeda” de troca. Com a chegada dos europeus, muitos desses grupos indígenas venderam sua experiência de captura para os colonizadores. Contudo, foi com o tráfico negreiro que a escravidão no Brasil mostrou sua face mais perversa. Desde a primeira metade do século XIX o Brasil ensaiava uma postura de pôr fim ao tráfico negreiro e ao trabalho escravo. Foram mais de sete atos, só do governo brasileiro nesse sentido. Em 1827 - a postura de José Bonifácio sobre o fim do tráfico negreiro no processo de reconhecimento da independência do Brasil, em acordo com a Inglaterra; 1831 – o Decreto regencial do Pe. Diogo Antônio Feijó, através do qual decretou que todos os escravos vindos de fora do império deveriam ser considerados livres, bem como estabeleceu punições aos importadores de escravos; 1850 – a Lei Eusébio de Queirós, do ministro Eusébio de Queirós que proibia o tráfico de escravos interatlântico (África-América), em conformidade com o Bill Aberdeen ; 1854 – a Lei Nabuco de Araújo proibindo o contrabando de escravos - por pressão da Inglaterra quatro anos antes - porque queria consumidores para seus produtos; 1871 – a Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco que libertou os filhos de escravos nascidos a partir do ano de sua promulgação – tal iniciativa foi arduamente defendida por Visconde do Rio Branco (José Maria da Silva Paranhos); 1855 – a Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva- Cotegipe que libertou os escravos maiores de 65 anos; 1888 – a Lei Áurea, abolição da escravatura no Brasil. Vejamos esses comentários: Do decreto regencial de 1831 à lei Áurea de 1888 foram necessários mais de 50 anos, para que de fato, colocassem essas idéias em prática. Idéias essas que estão intimamente ligadas aos interesses políticos e econômicos que se seguiram por esse mesmo período – até 13 de maio de 1888. (PITANGA, 2011, p. 1). As motivações que marcaram a atuação de determinados grupos contra a escravidão, nem sempre foram isentas de outros interesses: As motivações como se sabem que levaram o país para à libertação dos escravos vai, naturalmente, do próprio negro, passando por simpatizantes, como os conjurados baianos, contribuindo os ingleses por motivos econômicos e os republicanos por motivos políticos. Esses últimos, no final do Segundo Reinado, se aproveitaram da imagem desgastada da monarquia afetada pela guerra do Paraguai, para galgarem lugar de destaque no cenário político brasileiro. (PITANGA, 2011, p. 1). Não só políticos,mas grandes escritores também se envolveram na causa abolicionista: Não menos importantes alguns monarcas como Joaquim Nabuco, que viria a ser o grande abolicionista, ao lado de colaboradores como, Castro Alves, José do Patrocínio e tantos outros, também foram decisivos nesse processo de transição do trabalho escravo para o livre. Somando-se a tudo isso, a influência liberal, como se sabe, influenciou categoricamente esse novo raciocínio. (Idem, ibidem). 1.3.1.1 Sua herança contemporânea: a caminho do reconhecimento do problema na atualidade Para que o problema da escravidão contemporânea seja erradicado do Brasil, primeiro será necessário admitir sua existência. Mais adiante veremos que ainda existem muitas oposições em confessa-lo, em admiti-lo. Por ora, o que nos importa é provar que ele existe. Talvez, nesta seção comece a se descortinar o núcleo do problema ou da solução, porque se há ausências de sentenças condenatórias pelo crime de ‘reduzir alguém a condição análoga à de escravo’ é também pela não admissibilidade do problema, ou por encarar essa ‘condição análoga à de escravo’, como uma questão de somenos. O trabalho escravo contemporâneo não precisa ter as mesmas características que teve o escravismo ocorrido entre os séculos XVI e XIX, para que se tenha sua existência reconhecida. É sabido que as condições e o cenário nos quais o escravo contemporâneo está inserido é diferente. Mas notem! Um dos fatores dessa engrenagem – o econômico – é o mesmo. E ainda assim, a Tabela 1-2 Comparação entre a antiga e a nova escravidão: acréscimo à tabela 1 que desenvolvemos nos mostrará que existem outras semelhanças a serem analisadas. É curioso, entretanto, o fato das produções acadêmicas dessa temática, não terem traçado tal relação. Leis e resoluções, por seu turno, faltaram em não elaborar um arcabouço teórico sistemático que demonstrasse o que é trabalho em condição análoga à de escravo. Por outro lado, o fato de não demonstrá-lo não implica dizer que o problema não está aparente, visível. Essa tentativa de explicação sistêmica é importante, porquanto é nela que se amparam os defensores do status quo exploratório: Para ele, [Senador pelo PMDB de Tocantins, Leomar Quintanilha], a interpretação equivocada da legislação trabalhista pode levar os fiscais a considerarem como trabalho escravo atividades próprias do meio rural. (SECRETARIA JORNAL DO SENADO, 2011, p. 49). O papel de dizer o que é reduzir alguém a condição análoga à de escravo pertence ao poder legislativo: O Congresso tem de definir direito o que é trabalho escravo, (João Ribeiro, do então PFL e hoje no PR). (SECRETARIA JORNAL DO SENADO, 2011, p. 49). Segundo a ex-ministra do STF, Ellen Gracie, o único instrumento internacional a conceituar a escravidão seria o Tratado de Roma no seu Artigo 7º, § 2º, Alínea “c”. Então, vejamos o que ele diz: Crimes contra a Humanidade 1 Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por ‘crime contra a humanidade’, qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: c) Escravidão; 2. Para efeitos do parágrafo 1o: c) Por “escravidão” entende-se ‘o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa’, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças; (...). (ONU, 1998, grifo nosso). Pois bem, há outros instrumentos internacionais que definem trabalho escravo, a exemplo da OIT 29, OIT 105, Convenção sobre a escravidão de 1926, dentre tantos outros, como veremos. Embora não citados na assentada acima. Observem o principal deles: Convenção OIT nº 29 Art. 2º § 1º - Para os fins da presente convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça e qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade. (OIT, 1930). É prudente reconhecer que nenhum dos instrumentos acima ajuda muito na definição de trabalho forçado em condição análoga à de escravo. Notem que a definição dada pelo Tratado de Roma e o dado pela Convenção 29 são bem diferentes e questionáveis. Facilmente um proprietário de terras ou um pecuarista ou um usineiro, desmistificaria a ideia de que esteja exercendo direito de propriedade sobre um grupo de pessoas (colocaria em xeque, portanto, o Estatuto de Roma), assim como seria muito fácil provar que os trabalhadores que em sua propriedade labutam, assim o fazem por vontade própria, uma vez que não estivessem algemados ou acorrentados (ao mesmo risco estaria submetido a Convenção 29 da OIT). 1.3.1.2 Uma comparação entre o escravismo colonial e o contemporâneo Conforme já deixamos entrever, e ao contrário do que muitos defendem, acreditamos que devemos comparar a escravidão colonial com a escravidão contemporânea. Aqueles que asseveram que não se pode traçar uma relação entre ambos, não percebem que, ao não fazê-lo, além de “enfraquecer” o Artigo 149 do CP, ainda ficamos sem parâmetros sólidos de análise – exaurindo o citado artigo de seu conteúdo histórico-simbólico. Guardadas as devidas proporções, a escravidão no campo, hoje, nada mais é do que resquício e desdobramento da história escravagista brasileira, porquanto mesmo o fator econômico, assim como foi elemento importante naquele período, de tal modo o é hoje. Esse delito está em todo o país, mas sua maior incidência é no meio rural e na parte setentrional do país, sendo o Maranhão o principal Estado fornecedor desses trabalhadores e o Pará o maior consumidor. 1.3.1.3 Parâmetros de aproximação e de distanciamento entre a antiga e a nova escravidão A captura deu lugar ao convite. Convite fraudulento, diga-se de passagem. As correntes e cordas foram trocadas pelo dinheiro do “gato”. Os remos e as velas dos navios negreiros cederam lugar ao motor dos caminhões de boias-frias. Mas, no final, todos chegaram ao mesmo destino: à exploração da mão-de-obra, e à violação da dignidade da pessoa humana. Uma das poucas iniciativas de comparação entre o escravismo colonial e o contemporâneo partiu da ONG Repórter Brasil. Vejam a seguir: Tabela 1-1 Comparação entre a antiga e a nova escravidão Brasil Antiga Escravidão Nova Escravidão Propriedade legal Proibida Permitida Custo de aquisição de mão-de-obra Alto. A riqueza de uma pessoa podia ser medida pela quantidade de escravos. Muito baixo. Não há compras, e muitas vezes gasta-se apenas o transporte. Lucros Baixos. Havia custos com a manutenção dos escravos. Altos. Se alguém fica doente pode ser mandado embora, sem nenhum direito. Mão-de-obra Escassa. Dependia do tráfico negreiro, prisão de índios ou reprodução. Bales afirma que, em 1850, um escravo era vendido por uma quantia a R$ 120 mil. Descartável. Um grande contingente de trabalhadores desempregados. Um homem foi levado por um “gato” por R$ 150,00 em Eldorado dos Carajás, sul do Pará. Relacionamento Longo período. A vida inteira do escravo e até a de seus descendentes. Curto período. Terminado o serviço não é mais necessário prover o sustento. Diferenças étnicas Relevantes para a escravização. Pouco relevantes. Qualquer pessoa pobre e miserável são os que se tornam escravos, independente da cor da pele. Manutenção da ordem Ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e até assassinatos. Ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e até assassinatos. Apesar da importância dessa comparação foi possível verificar que se trata de comparação de sistemas, de modus operandi, não tem o escravo em si como parâmetro. Proporíamos os seguintes acréscimos: Tabela 1-2 Comparação entre a antiga e a nova escravidão: acréscimo à tabela 1 Brasil Antiga escravidãoNova escravidão Forma de apreensão Captura mediante pagamento a terceiros. Convite fraudulento. Forma de ser transportado Navios negreiros. Presos a correntes. Ônibus ou caminhões de boias-frias, através do dinheiro do “gato” (preposto do patrão). Bem atingido Dignidade da pessoa humana, direito à liberdade, direito ao livre trabalho, direito ao trabalho digno. Dignidade da pessoa humana, direito à liberdade, direito ao livre trabalho, direito ao trabalho digno, crime contra a organização do trabalho. Trabalho oferecido Trabalho rural, desmatamento, atividades no canavial, na mineração, na pecuária, em outras lavouras, trabalhos domésticos na Casa-Grande. Trabalho rural, desmatamento, atividades no canavial, na mineração, na pecuária, em reflorestamento, no extrativismo, em carvoarias, em outras lavouras, dentre outros setores. Estrutura domiciliar Senzala de madeira ou alvenaria, chão batido, dormiam em redes, cadeiras, em pedaços de pano, em tabuas. Palhoça, cabana, choupana, dormitório de alvenaria sobre o chão batido (sem piso), redes, colchões sobre plásticos, e raramente em beliches. Alimentação Restos do dia anterior da Casa- Grande. Alguns escravos podiam podiam caçar, pescar e plantar. Bebiam água pura dos rios e das bicas. Em geral se alimentavam bem. O alimento deve ser comprado no armazém do proprietário da fazenda, em geral se alimentam mal. Bebem água dos açudes, salobra, suja e barrenta. Bem como de animais. Remuneração Nenhuma. Abaixo do piso mínimo, e sempre estão endividados com o patrão. Ficam meses sem receberem, e quando recebem são pequenos vales insignificantes. Talvez, agora sim a distância entre a antiga e a nova escravidão tenha diminuído, e sem trampolim exegético. Podemos visualizar, inclusive, que em alguns casos a situação do novo escravo é até pior. Até aqui pudemos constatar a existência de uma herança escravocrata perversa que insiste em aviltar o trabalhador humilde. E os números confirmam isto. Observem no próximo gráfico a relação entre o número de operações do Grupo de Fiscalização Móvel e a quantidade de trabalhadores resgatados. É possível constatar que o número de resgatados em 2012 foi praticamente o mesmo de 2002, algo em torno de mais de dois mil trabalhadores. O resultado da comparação entre os números de 2012 e 2002 revela a insistência desses empresários no cometimento do delito. Ora, tais empregadores de mão de obra escrava não se importam muito com a fiscalização nem temem a justiça. Outro dado dessa revelação é que a quantidade de resgatados diminui ou aumenta independentemente do aumento ou não de fiscalizações. Logo, a contratação de trabalhador escravo não se pauta por mais ou menos intervenção dos órgãos fiscalizadores, e sim pelo mercado, por datas de colheitas, de plantio, de encomendas de outros setores. Basta observar que em 2011 houveram mais fiscalizações (158) que em 2007 (116), e nem por isso a quantidade de resgatados foi maior: 2.271 em 2011 e 5.999 em 2007. Como mostraremos mais adiante, a sanção administrativa é uma das poucas punições que tem alcançado os empresários do setor rural, e, para essa punição, eles estão preparados: o dinheiro que é deixado de ser pago aos trabalhadores durante o ano, é aplicado e parte dessa quantia é reservada para pagamento de indenizações de verbas trabalhista, por imposição do MPT, através do TAC (Termo de Ajuste de Conduta). Figura 1-1 Números de Operações x Trabalhadores Resgatados Bem, notem que não são somente as condições de trabalho que oferecem riscos, todo o sistema é precário: alojamento, saúde, transporte, logística, alimentação, dentre outros. Comprovando o que já foi mostrado na Tabela 1-2 Comparação entre a antiga e a nova escravidão: acréscimo à tabela 1. A OIT registrou bem esses fatos na sua obra Retrato Escravo, publicada em 2010. Os alojamentos, muitas das vezes ficam sobre o chão batido, deixando os trabalhadores expostos a toda sorte de doenças e contaminações. Violando o que preceitua algumas normas reguladoras do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego). Como esses operários são facilmente substituídos, essa é uma questão que não interessa aos proprietários das fazendas e a seus prepostos; pois a mão-de-obra é farta em alguns Estados, como o Maranhão, ou seja, de onde se consegue alguns trabalhadores sempre é possível se obter mais. A miséria, a seca, a falta de investimentos vultosos por parte dos governos estaduais e municipais agravam este cenário. O Brasil ainda é um país muito dependente da agricultura, do campo, do setor primário; e a dinâmica da produção industrial sofre constantes alternâncias, o que implica em mais ou menos demissões de trabalhadores no decorrer do ano. De modo que o trabalhador no Brasil está sempre ameaçado, o que favorece o êxodo e a exploração. Mais adiante mostraremos duas figuras que retratam bem a questão das moradias, dos alojamentos, As paredes sem emboço permitem a entrada de bichos, como escorpiões, cobras, aranhas, ratos, dentre outros. Além de representar tratamento desumano ao trabalhador: Figura 1-2 Retrato Escravo Barracão de Trabalhadores (PA) Fonte: (RIPPER e CARVALHO, 2010, p. 48). Bem, além dessa, temos outra que retrata a mesma singularidade. Ou seja, diz respeito aos mesmos problemas de moradias: Figura 1-3 Retrato Escravo - Extração de Madeira (PR) Fonte: (RIPPER e CARVALHO, 2010, p. 103). Todo esse conjunto de fatores representa as ‘condições degradantes de trabalho’, às quais o Caput do Artigo 149 do CP se refere. Esses empregadores envolvidos em trabalho escravo impõem sua força – tanto econômica, como das armas - num mundo distante, esquecido, longe das grandes mídias, dos grandes centros, em uma população ignorante e carente, em que pese a presença de mulheres e de crianças nesses locais - o que poderia sensibilizar tais patrões. É o que se presumi, porém, não o que acontece. É calculável supor que pelo fato desses trabalhadores terem uma vida muito simples e de carência de quase tudo, ou seja, de extrema pobreza, os produtores rurais acreditarem estar fazendo um favor em empregá- los. A fotografia que veremos mais ao sul transfigura o momento da alimentação. Tal ocasião deveria ser de paz e tranquilidade, não de desespero. O fato é que a alimentação disponibilizada é precária em quantidade e em qualidade. Não se pode cultivar alimentos, nem comprá-lo fora do armazém localizado na propriedade do produtor. Como tudo custa muito caro no estabelecimento do produtor rural, os trabalhadores não têm como adquirirem mantimento de qualidade a preço baixo. É o mesmo sistema implantado na Amazônia à época do auge da produção da borracha (XIX). Tal como os seringueiros se tornavam escravos por dívida, assim ocorre hoje com os escravos da pecuária, da cana-de-açúcar, do corte de madeira, da mineração, da produção de carvão e da agricultura em geral. Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, referindo-se à vida dos seringueiros, afirmou que a vida nos seringais era uma “criminosa organização do trabalho”. Passados tantos anos vemo-la repeti-la com outros atores: Figura 1-4 Retrato Escravo - Cana-de-Açúcar (MS) Fonte: (RIPPER e CARVALHO, 2010, p. 61). Na comparação que fizemos entre a antiga e nova escravidão pudemos mostrar que a alimentação dos escravos no Brasil colônia era melhor do que a de muitos trabalhadores em condição análoga à de escravo dos dias atuais. Uma das razões é que àqueles escravos custavam mais caros. Observe outro exemplo do momento da alimentação: Figura 1-5 Retrato Escravo - Cana-de-Açúcar (BA) Fonte: (RIPPER e CARVALHO, 2010, p. 50). Enquanto as imagens acima retratam problemas enfrentados no campo da alimentação e da moradia, as próximas darão uma amostra das dificuldades enfrentadas em matéria de proteção ao desempenho do trabalho e de exploração do trabalho infantil: FIGURA1-6 RETRATO ESCRAVO CARVOARIA (MS) Fonte: (RIPPER e CARVALHO, 2010, p. 63). FIGURA 1-7 RETRATO ESCRAVO CANA DE AÇÚCAR (BA) Fonte: (RIPPER e CARVALHO, 2010, p. 110). FIGURA 1-8 RETRATO ESCRAVO CANA DE AÇÚCAR (SP) Fonte: (RIPPER e CARVALHO, 2010, p. 6). Figura 1-9 Retrato Escravo (Norte de MG) Fonte: (RIPPER e CARVALHO, 2010, p. 7). Pois bem, a partir desse conjunto probatório, podemos afirmar que existe realmente no Brasil o ‘trabalho forçado em condições análogas à de escravo’, conforme prescreve o Código Penal, no seu Artigo 149. A fim de encerrar esse capítulo, gostaríamos apenas de ratificar e condensar as ideias já colocadas. Hoje, a escravidão no Brasil não escolhe mais a cor da pele, ou gênero, ou raça (etnia), nem a idade. Ela está concentrada no Centro-Oeste e no Norte do país, por questões históricas, sociais e econômicas combinadas. Mas existe em todas as regiões. A região que mais fornece trabalhadores é o Nordeste. Semelhantemente, só que em menor medida, os escravos hodiernos labutam em lugares afastados dos seus ambientes de origem. São aliciados pelos “gatos”, (prepostos dos proprietários das terras), com falsas promessas de um trabalho digno, de garantias trabalhistas e sociais. Aqueles que acreditam na promessa e aceitam o convite são levados para longe, com as despesas de viajem custeadas pelo agenciador e, a partir daí, o trabalhador já se torna devedor do empregador. O simples fato de aliciar o trabalhador e levá-lo para outra localidade do território nacional, já caracteriza crime, conforme dispõe o Artigo 207 do Código Penal: Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional. Art. 207 - Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena - detenção de um a três anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998) § 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998). § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998). O que virá adiante será uma sucessão de eventos vexatórios e desesperadores – tudo na vida desse operário será escasso ou nulo, conforme já acostado acima. Muitos querem e tentam ir embora, mas são proibidos, pois precisam quitar suas dívidas, sofrem ameaças, são espancados e humilhados. Seus direitos trabalhistas são desrespeitados, seus documentos são retidos e quando ficam doentes são abandonados, pois são objetos sem valor e facilmente substituídos. R Capítulo 2 A distribuição geográfica do delito no meio rural e seu combate pelo MTE evelar onde o escravismo contemporâneo está escondido é uma etapa importante desse quebra-cabeça. Aliás, aliado ao capítulo derradeiro que revelará se a justiça está sendo feita ou não, amboCapítulo 1Capítulo 1s se revelarão etapas sine qua non para entendimento e desfecho desse tema. Os rincões desse país, e os setores econômicos do campo têm muito a dizer sobre o escravismo rural; sobretudo os Estados que formam a Amazônia Legal, e em especial o Pará. 2.1 O trabalho escravo na Amazônia Legal e em outras regiões do país: questão econômica e ambiental Por questões históricas, geográficas, econômicas e sociais, a região brasileira que mais abriga trabalho escravo é a Norte seguida da Nordeste. Nessas comarcas a pobreza é generalizada, o acesso é difícil, e a cobertura jornalística limitada. Confira: Tabela 2-3 Casos Identificados entre 2011 e 2012 (por grande região) Estando as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste liderando o 1º, 2º e 3º lugares, respectivamente, no ranking das regiões com mais casos identificados de trabalho escravo, significa, a priori, mais desmatamento, mais queimadas, mais avanço da fronteira agrícola e mais crimes ambientais. Isso porque a agricultura, o extrativismo e a pecuária são setores econômicos muito fortes nessas regiões, um pouco menos no nordeste, de tal forma que necessitam de grandes extensões de terras para se expandirem. Ademais, o trabalho escravo é muito utilizado em propriedades não legalizadas. Percebam na próxima tabela, que os números na coluna ‘casos Identificados’ significam a quantidade de unidades produtivas ou empresariais nas quais o problema foi detectado. E os números na coluna ‘pessoas envolvidas’ correspondem ao total de trabalhadores envolvidos na totalidade dos ‘casos identificados’. Assim sendo, em dezembro de 2012 havia 1.244 trabalhadores em condições irregular em 50 estabelecimentos. Ainda há os casos denunciados mas não examinados pelo MTE. Nesse conjunto de Regiões, o Estado que se destaca em implantar o trabalho escravo é o Pará. A maioria dos municípios do Pará envolvidos em trabalho escravo está distante da capital Belém. No topo da lista São Félix do Xingu, com 106 denúncias; seguida por Marabá, com 88, e Rondon do Pará, com 49 acusações. Ao todo foram catorze municípios denunciados, somente no Pará. Registros ocorridos entre 2003 e 2009, mas como pôde ser observado no quadro acima, o Pará continuou liderando o ranking nos anos seguintes. Observe: Tabela 2-4 Casos Identificados por UF Esses dados corroboram com a ideia que ilustramos a pouco, de que quanto mais distante estiver a região dos grandes centros, maior a vulnerabilidade e as chances de aliciamento de sua população - nesse sentido, a Amazônia Legal leva desvantagem. Para compreender com mais lucides, que população e quais regiões estão mais vulneráveis ao aliciamento do trabalho escravo, recomendamos a apreciação da pesquisa intitulada geografias do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, publicada na Revista NERA, no âmbito da Universidade Estadual Paulista. Reputamos esse trabalho respeitável, sobretudo, porque ele tenta criar um índice de vulnerabilidade ao trabalho escravo, o que permitiria que o Estado detectasse esses casos sem esperar as denúncias: Detectar casos de trabalho escravo sem esperar as denúncias é evidentemente um progresso, mas pode-se tentar avançar mais, pelos mesmos métodos, e dar mais um passo: identificar as regiões onde existe um risco sério de recrutamento de trabalhadores para atividades que os colocarão em situação de escravidão, criando um índice de vulnerabilidade ao aliciamento de escravos. O índice é composto pela média das variáveis que definimos, após testes, como marcadoras de regiões deprimidas, onde homens podem ser convencidos pelos argumentos dos “gatos”: baixa esperança de vida ao nascer, baixa renda per capita, baixos índices no ranking do IDH, elevado índice de exclusão, elevada taxa de pobreza, elevada proporção da população vivendo em domicílio cuja renda é inferior à R$ 37,75, elevada mortalidade de crianças de menos de cinco anos. Em escala nacional, o mapa de vulnerabilidade ao aliciamento, mostra que é muito forte a coincidência entre as zonas de alto índice de vulnerabilidade e os lugares onde nasceram os trabalhadores resgatados de situações de escravidão, principalmente no Nordeste, de onde é proveniente a maior parte dos casos conhecidos. (THÉRY, MELLO-THÉRY, et al., 2010, p. 22). O Pará não só lidera o ranking dos estados com o maior número de trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel, como igualmente lidera o ranking de desmatamento. A maior parte do carvão vegetal produzido na região vai para as siderúrgicas, e a maioria das carvoarias de Rondon do Pará utiliza resíduos da mata para produzir carvão: O Pará é líder, inclusive, em desmatamento: Em 2012, mais de 450 mil hectares de floresta foram derrubados na Amazônia. A porcentagem é 27% maior em relação à registrada no ano anterior. Masa situação ainda está longe do ideal. Hoje, Pará é o estado que mais desmata. Quem navega pelas águas mansas do rio Xingu não imagina o contraste. Ao lado da bela paisagem está um cenário desolador. Motosserras não dão trégua e queimadas criminosas deixam a selva em cinzas. Essa região, no Pará concentra os municípios que mais destroem a Amazônia brasileira. (PAINEL GLOBAL, 2013, grifo nosso). Tal situação já havia sido mapeada, porque as regiões de desmatamento têm mais resgatados, logo, mais trabalho escravo. É um círculo vicioso que não tem sido rompido com facilidade. Observem abaixo a relação entre o desmatamento e o trabalho escravo, publicada na importante obra de Xavier Plassat, 25 anos de denúncia e fiscalização. Figura 2-1 Resgatados por Região de Desmatamento A verdade é que o poder econômico e o poder político se confundem. Muitos parlamentares são proprietários de grandes fazendas e, alguns deles, já tiveram suas propriedades flagradas com mão-de-obra escrava. Isso explicará o resultado de nosso estudo, no capítulo derradeiro. Vejam um extrato de matéria publicada no portal Repórter Brasil, em junho do corrente ano: Oito políticos, todos ruralistas, entraram na atualização do cadastro de empregadores flagrados com trabalho escravo, divulgada nesta sexta-feira (28). Mais conhecida como “lista suja” do trabalho escravo, (...). Entre os destaques dessa atualização semestral estão as inclusões envolvendo propriedades dos deputados federais João Lyra (PSD-AL) e Urzeni Rocha (PSDB-RR), e do ex- ministro da Agricultura de Fernando Collor (1990-1992) Antônio Cabrera. Dos oito, quatro foram incluídos por causa de flagrantes de exploração de pessoas na pecuária, atividade econômica mais presente na atualização. A Repórter Brasil tentou contato com todos eles para ouvi-los sobre a inclusão após a divulgação da relação, no final desta sexta-feira, mas não obteve nenhum posicionamento. Lyra entrou na lista por causa da libertação de 207 trabalhadores reduzidos à escravidão dos canaviais da unidade de Capinópolis (MG) da Laginha Agroindustrial, usina do Grupo João Lyra, em agosto de 2010. Os trabalhadores migrantes foram resgatados em casas superlotadas, em péssimo estado de conservação, vivendo e trabalhando em condições degradantes. A inclusão é consequência do segundo flagrante envolvendo o Grupo João Lyra. Em 2008, outros 53 trabalhadores tinham sido resgatados na usina Laginha de União dos Palmares (AL). No ano passado, a ação criminal decorrente dessa libertação chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Lyra e seu filho, Antônio José Pereira de Lyra, também considerado responsável pela situação, podem acabar presos pelo crime. (OJEDA, 2013). Os crimes ambientais se interligam. Assim como o desmatamento está ligado à pecuária, também está às carvoarias. Não por menos que a maioria é ilegal: Das 68 carvoeiras visitadas pelos pesquisadores apenas 12% são consideradas legais, enquanto 88% são ilegais. Segundo os dados obtidos em campo e os disponibilizados pelo Ministério do Trabalho, as mesmas produzem aproximadamente 13.872 m³ de carvão por semana, o que equivale à remoção de 27.744 m³ de madeira. Ao considerar o detalhamento do estudo realizado por Monteiro et al. (2007) podemos levantar a hipótese de que, sendo a atividade ilegal, em sua maioria absoluta, os trabalhadores que estão ocupados com a mesma estarão, certamente, muito longe de se encontrarem com todas as proteções do emprego formal. Se a atividade produtiva é ilegal, o que pensar dos trabalhadores que estão nela envolvidos? Tornar a atividade legal pode resultar em impactos menos agressivos ao equilíbrio da floresta e inviabilizar a prática do trabalho escravo. (THÉRY, MELLO-THÉRY, et al., 2010, p. 15-16, grifo nosso). É inadimissível que esse conjunto de crimes esteja acontecendo diante do governo, haja vista que todas essas ações maléficas são conhecidas, mapeadas e já foram expostas: o desmatamento que serve à pecuária e às carvoarias; o carvão vegetal que alimenta as usinas siderúrgicas, e ambos os processos têm o trabalhador escravo como força motriz e o crime ambiental como pano de fundo. Em que pese a quantidade de trabalhadores escravos na ação de desmatamento é a pecuária que vem contribuindo sistematicamente para esse resultado. Tóras vêm tombando para dar lugar à pastagem de animais. Observem na próxima figura que de 2002 a 2009 houve um aumento de 40% na participação da pecuária e do desmatamento no trabalho escravo. Figura 2-2 Produção do Trabalho Escravo por Área Econômica Em outras palavras, é possível constatar o que o trabalho escravo anda produzindo na economia brasileira. Em quanto isso, a previsão da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) é de aumento na produção de alimentos. Segundo a FAO, a produção de alimentos precisa crescer 70% até 2050, em relação aos números de 20091. Esse número preocupa, porque grande parte da expansão da fronteira agrícola é para atender ao mercado externo – a chamada commodity agrícola. A maneira pela qual a economia brasileira é gerida contribui metódica e sistematicamente para uma série de crimes ambientais. O governo é responsável solidário por todo este descaso, na medida em que não fiscaliza e não pune a contento todos esses crimes. São multas que nunca são pagas e prisões apenas para bandidos comuns. Sem falar do setor industrial e tecnológico que não fazem frente ao rural, deixando o país mais refém de uma balança comercial deficitária. Não é possível mais que o Brasil continue convivendo com todos esses crimes sem um posicionamento sério sobre o assunto. O poder econômico sobrepuja todos os interesses éticos, humanos, ecológicos e ambientais, em busca apenas do lucro e do baixo custo do investimento. O resultado é esse que paulatinamente vem se formando na esfera das relações de trabalho e nas relações com o meio ambiente. À vista dessas engrenagens econõmicas, nas quais o trabalho escravo está inserido, se compreendem as afirmações de Valderez Maria Monte Rodriguês2: Nossa missão não é fiscalizar apenas simples infrações trabalhistas. Em cada ação da Fiscalização Móvel, trabalha-se de forma investigativa e, sem que queiramos, nos deparamos com uma fama de crimes, como aliciamento, degradação ambiental com poluição de águas, desmatamentos irregulares que atingem nascentes e matas ciliares; queimadas; aplicação de veneno para folhas largas no plantio da soja, que destrói as plantações de pequenos agricultores; prostituição; trabalho infantil, plantação de maconha; pistas clandestinas. Discriminação, maus tratos físicos e mortes exemplares; homicídios de todo tipo; acidentes de trabalho com mutilações e óbitos; além da exposição da vida dos trabalhadores pela inobservância às normas de higiene, segurança e saúde, inclusive pela comida pouca e da pior qualidade. As armas existem em expressiva quantidade. Presumimos que alguns escravagistas tenham conexão com o crime organizado. (FÓRUM INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS HUMANOS E DIREITOS SOCIAIS, 2004, p. 179). 2.2 Grupo especial de fiscalização móvel (GEFM)3: fiscaliza, regulariza, liberta e pune No ano de 1995 foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, através da Portaria nº 549 de 14 de junho de 1995: Considerando que compete à União organizar, manter e executar a Inspeção do Trabalho, conforme dispõe o inciso XXIV, do art. 21, da Constituição Federal; Considerando a necessidade de ação fiscal mais ágil e eficiente o que concerne às Normas de Proteção ao Trabalho, especialmente, visando coibir a prática de trabalho escravo, forçado e infantil; Considerando a necessidade de preparação de Agentes da Inspeção do Trabalho para operações dessa natureza, Resolve: Art. 1º - Atribuir competência à Secretaria de Fiscalização do Trabalho - SEFIT, para ouvida a Secretaria de Segurança e Saúde no Trabalho - SSST, convocar Agentes da Inspeção do Trabalho para integrarGrupo Especial de Fiscalização Móvel, indicando o Coordenador de cada grupo. (BRASIL. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 1995). A OIT, que estava atenta a essas discussões, fez questão de registrar esse fato importante: Em 1995 o Governo Brasileiro reconheceu oficialmente a existência de trabalho em condição análoga à de escravo no país e começou a tomar medidas para erradicá-lo. Em relação à inspeção do trabalho, isso se concretizou com a criação no mesmo ano do Grupo Especial de Fiscalização Móvel - GEFM. (OIT, 2010, p. 14). O Grupo de Fiscalização Móvel é constituído de auditores-fiscais do trabalho que recebem apoio de promotores do Ministério Público do Trabalho (MPT), de agentes e delegados da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Todas as diretrizes são emanadas, primeiramente, da Secretaria de Inspeção do Trabalho: Em 1995 o MTE criou o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que é ligado ao Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GETRAF) e à Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), ambos do MTE. (THÉRY, MELLO-THÉRY, et al., 2010, p. 10). O trabalho acontece da seguinte forma: A Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT/MTE) recebe denúncias por meio de uma rede institucional de parceiros e, com base nelas, o GEFM conduz operações sigilosas de fiscalização, que são realizadas majoritariamente no meio rural. Quando encontrados trabalhadores em condição análoga à de escravo, estes são resgatados, com o objetivo principal de assegurar sua segurança e seus direitos trabalhistas. (idem, ibidem, p. 13). Esse apoio recebido do Grupo Móvel é, evidentemente, importante. Através dele é possível conhecer o problema nos mais longínquos lugares que, a priori, dada a uma série de limitações, o Estado não teria condições de tomar conhecimento do delito e atuar. Contudo, mesmo após 18 anos de sua criação, a fiscalização ainda não consegue atender toda a demanda de denúncias: As estimativas da Pastoral da Terra dão conta de que, para cada trabalhador escravizado do qual a entidade tem conhecimento, existem outros quatro ou cinco na mesma situação. Ou seja, existiriam hoje no país entre 25 mil e 30 mil pessoas trabalhando em condições semelhantes à escravidão. Há setores que falam em até 100 mil. Para o subprocurador do Trabalho Luís Antônio Camargo, “apenas 50% das denúncias são apuradas. Então, mesmo tendo sido resgatados quase 38 mil (de 1995 a 2010), há ainda um número enorme de trabalhadores aguardando pela intervenção do poder público, aguardando pelo resgate da cidadania”. (SECRETARIA JORNAL DO SENADO, 2011, p. 16). O número de denúncias é bem maior do que o número de operações de fiscalizações realizadas. Segundo estimativa da ONG Comissão Pastoral da Terra existem mais de 25 mil trabalhadores em condições análogas à de escravo, logo, embora importante, todo o esforço no seu combate até aqui tem sido insuficiente. Outro dado é que conforme mostrado, o número de trabalhadores resgatados é menor do que o número de trabalhadores envolvidos. Ora, apesar de todo o apoio da rede de parceiros à fiscalização móvel, o que se tem – em termos solução desses conflitos - nada mais é do que um recorte de uma realidade, do que se conseguiu apurar. O tamanho do desafio, sem dúvida, é bem maior. E nem estamos a falar do trabalho escravo em área urbana. De 2003 a 2009 houveram 1.788 denúncias contabilizadas, contra 1.708 fiscalizações.4 Em 2009 ocorreram 169 fiscalizações ou operações. Se comparadas com os números de 2010 (142 operações) e 2011 (146 operações), os números são praticamente os mesmos5. Portanto, o problema é recorrente e atual. Apesar dos vários valores atribuídos ao Grupo de Fiscalização Móvel, com efeito, sua maior contribuição, em ação conjunta com o MPT, tem sido no resgate desses trabalhadores e no pagamento das indenizações trabalhistas. Uma consequência no plano trabalhista. De 1995 a 2012 foram pagos R$ 77.076.908,356 a títulos de rescisão trabalhistas7. Desses, mais de oito milhões foram pagos somente em 20128. A regularização da situação trabalhista e o pagamento dessas indenizações permitem ao trabalhador o recebimento do seguro-desemprego9. No último capítulo veremos o papel do MPF, que junto com o MPT e, sob a coordenação do MPU, trabalham para erradicar o escravismo contemporâneo. 2.3 “Lista suja”10 Diante da grande quantidade de casos envolvendo o trabalho escravo, concluiu-se, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, que seria de bom parecer que houvesse um cadastro nacional contendo a qualificação de todos os autuados pelo Grupo Especial de Inspeção Móvel. Ao acionar diferentes instituições, a ação de fiscalização gera para o infrator consequências nos planos administrativo, civil, trabalhista e criminal. No plano administrativo, para garantir a punição dos culpados, o MTE conta com o cadastro de empregadores infratores, também conhecido como ‘Lista Suja’. O cadastro lista as pessoas físicas e jurídicas flagradas utilizando mão-de-obra em condições análogas à de escravo, dando publicidade à fiscalização e desencadeando uma série de ações no sentido de punir e desencorajar a prática do delito11. A referida lista foi criada pela Portaria nº. 540 de 15 outubro de 2004, e traz o seguinte teor: O MINISTRO DE ESTADO DO TRABALHO E EMPREGO, no uso da atribuição que lhe confere o art. 87, parágrafo único, inciso II, e tendo em vista o disposto no art. 186, incisos III e IV, da Constituição, resolve: Art. 1º - Criar, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, o Cadastro de Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo. Art. 2º - A inclusão do nome do infrator no Cadastro ocorrerá após decisão administrativa final relativa ao auto de infração lavrado em decorrência de ação fiscal em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo. Art. 3º - O MTE atualizará, semestralmente, o Cadastro a que se refere o art. 1º e dele dará conhecimento aos seguintes órgãos: (...). Na mesma linha restritiva de direitos, porém, um ano antes, se posicionou o Ministério da Integração Nacional, ao baixar a Portaria nº. 1.150 de 18 novembro de 2003: Art. 1º - Determinar ao Departamento de Gestão dos Fundos de Desenvolvimento Regional da Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional do Ministério que encaminhe, semestralmente, aos bancos administradores dos Fundos Constitucionais de Financiamento, idem com relação aos Fundos Regionais, relação de empregadores e de propriedades rurais, que submetam trabalhadores a formas degradantes de trabalho ou que os mantenham em condições análogas ao de trabalho escravo, cujas autuações com decisão administrativa são de procedência definitiva, publicada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, para as providências cabíveis. Art. 2º - Recomendar aos agentes financeiros que se abstenham de conceder financiamentos ou qualquer outro tipo de assistência com recursos sob a supervisão deste Ministério para as pessoas físicas e jurídicas que venham a integrar a relação a que se refere o art. 1º. Por esta Portaria as pessoas físicas ou jurídicas envolvidas em contratação de mão-de- obra escrava não teriam direito a crédito de fomento. Um exemplo de consequência no plano civil. Uma penalidade dura para quem vive diretamente do crédito e muito justa pelo prisma da ética, da concorrência justa e do princípio da legalidade. Mas a julgar pelas estatísticas mais recentes que se seguiram após essas portarias, nada disso foi capaz de parar a atuação desses empregadores, uma vez que, em 2010, 2.628 trabalhadores foram resgatados e em 2011, 2.20312. Redução pouco significativa. Ademais, é possível que esses empregadores estejam acessando esses créditos de outra forma, através de fraude fiscal, por meio de empresas laranjas, ou através de ouras empresas do grupo. Portanto, governo e justiça terão que vencer esses obstáculos criativose fraudulentos, se quiserem realmente provar para os trabalhadores e sociedade que estão fazendo justiça. Por enquanto o que vemos são ensaios de boas intenções. E, segundo alguns, desses o hades está cheio. A “lista Suja” contava até 06.03.2013, com 404 empregadores. Listagem essa que serviu de base para esta obra; e pode ser consultada nos seguintes sítios13. 1 (O ESTADÃO, 2009). 2 Ex-coordenadora do grupo móvel de fiscalização. 3 Sobre a implantação do Grupo Móvel e várias outras melhorias que o combate ao trabalho escravo recebeu, consulte também a publicação da OIT: Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, publicado em 2003. 4 (SECRETARIA JORNAL DO SENADO, 2011, p. 16). 5 (XAVIR PLASSAT, 2010 apud SECRETARIA JORNAL DO SENADO, 2011). 6 Valores constantes do “quadro geral das operações de fiscalização para erradicação do trabalho escravo – SIT/SRTE – 1995 A 2012”. 7 O problema é que depois da rescisão, a maioria desses trabalhadores se tornam vítimas de novos “gatos” novamente. 8 Dados atualizados até 17/01/2013. 9 Conforme resolução do MTE nº 306/2002 e Lei 10.608/2002. 10 Sobre este subcapítulo, consulte também a obra da OIT: Possibilidades Jurídicas de Combate à Escravidão Contemporânea, publicada em 2007. 11 (OIT, 2010, p. 13). 12 “Quadro geral das operações de fiscalização para erradicação do trabalho escravo – SIT/SRTE – 1995 A 2012”. 13 reporterbrasil.org.br ou portal.mte.gov.br Capítulo 3 As possibilidades jurídicas de combate ao trabalho escravo contemporâneo Uma vez percorrido o caminho do julgo e do infortúnio de alguns homens, por vários séculos, e retirado todo tipo de véu que encobria a realidade social do Brasil contemporâneo nesse aspecto, cumpre-nos mostrar-lhes que o caminho da justiça não foi menos íngreme, nem tardou em ser, também, longo e moroso. 3.1 Um longo caminho percorrido O caminho percorrido pelo Brasil na busca de soluções legais ao combate do trabalho escravo foi longo. Até o final do século XX o problema foi ignorado pelo governo e pelos parlamentares brasileiros. As iniciativas sempre partiram de organizações não governamentais: Durante muito tempo, o trabalho escravo foi ignorado pelas autoridades brasileiras, mas na década de 70, D. Pedro Casaldáliga14, presidente da Comissão Pastoral da Terra, começou a denunciar fazendeiros que mantinham vários trabalhadores em condições análogas à de escravo. Finalmente, em 1995, foi criado um grupo de repressão ao trabalho escravo em nosso país. (SILVA, 2008, p. 21). Segundo a especialista em normas internacionais da OIT, Carmen Sottas15, o Brasil percorreu um longo caminho para reconhecer a Convenção 29. Desde os anos 80 que uma comissão de peritos - órgão de controle para aplicação de convenções da OIT - formula comentários sobre a situação de trabalho forçado que afeta milhares de trabalhadores no Brasil. E tal comissão pedia ao governo brasileiro que informasse sobre essa situação e que tomasse medidas para erradica-lo. Segundo a mesma, trata-se de uma realidade que os governos raramente estão dispostos a aceitar. Conforme Sottas, quatro instituições foram importantes no fornecimento de dados sobre o trabalho forçado: (1) os sindicatos; (2) a Contag – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura; (3) a Comissão Pastoral da Terra e o (4) MPT – Ministério Público do Trabalho. Ela afirma ainda que o MPT foi de suma importância, porquanto fornecia dados precisos sobre o trabalho forçado no Brasil: Então, a Comissão de Peritos, já com toda a informação que tinha do Ministério Público, dos sindicatos etc., conseguiu formular comentários muito mais detalhados e concluiu que existia uma violação grave da Convenção nº 29 sobre trabalho forçado. Então, ela solicitou ao Governo que tomasse medidas enérgicas devido a essa situação tão grave. (SOTTAS, 2010, p. 132). Contudo, segundo a especialista, ainda o Brasil contra argumentava, alegando que havia uma má-fé em desprestigiá-lo. O cenário só começou a mudar de fato quando nos anos 90, em uma dada conferência, o MPT asseverou dizendo: Sim, o trabalho forçado existe no Brasil. É um fenômeno muito importante e vamos fazer tudo o que for preciso para combatê-lo”16. Esse fato ocorreu no governo FHC, e ocasionou no programa de combate ao trabalho escravo. A inspeção do trabalho foi fortalecida e criado o Grupo Especial Móvel de Inspeção ou Grupo Especial de Fiscalização Móvel - ao qual voltaremos no capítulo três. A Convenção 29 (1930) da OIT foi ratificada em 1957 e passou a viger no Brasil em 1958. Este é o principal instrumento internacional sobre trabalho forçado ou obrigatório. Ainda têm a Convenção 105 ratificada em 1965 com vigência em 1966 - sobre a abolição do trabalho forçado e a Convenção 182 ratificada no ano 2000 com vigência em 2001 - sobre proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação. É interessante observar que desde a década de 50 o Brasil é signatário de normas internacionais de combate ao trabalho escravo, porém, haja vista a conjuntura de uma época que o país priorizava o crescimento, a modernização e o consumo -, pois ainda sentia as consequências da segunda grande guerra, que limitou o desenvolvimento da maioria das nações -, as iniciativas de ratificar as citadas normas tiveram efeitos apenas proforma17. 3.2 Legislação internacional 3.2.1 A legislação internacional sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro: aspectos preliminares Com efeito, antes de declinarmos os diplomas internacionais que consolidam nosso entendimento sobre todo o corpo normativo que nos permite entender, juridicamente, as possibilidades de combate ao trabalho escravo no Brasil, reputamos de suma importância deitar o juízo do Supremo Tribunal Federal a respeito da validade dessas normas no nosso ordenamento legal: Em conclusão, entendo que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2009, p. 60, grifo nosso). Pois bem, no julgamento do RE 466343/SP, em 2009, quando o STF julgava in concreto, acerca da prisão civil de um depositário infiel foi firmado entendimento sobre a posição que ocupava em nosso ordenamento as normas internacionais que versam sobre direitos humanos, em que pese toda discussão existente entre as teorias monista (Kelsen) e dualista (Triepel)18. Ficou estabelecido, portanto, que tais normas tinham caráter supralegal, logo, estavam abaixo da Constituição Federal e acima das leis. Posição que se perpetua até hoje. Contudo, a Constituição Federal, no § 2º do artigo 5º, vai além, ao dar status de emenda constitucional às Convenções e aos Tratados sobre direitos humanos que forem submetidas ao mesmo crivo de votação das emendas constitucionais. Deste modo, dando- lhes natureza Constitucional19: § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º - Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes àsemendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). (Atos aprovados na forma deste parágrafo). Cremos que toda Convenção, Tratado, Declaração, Pacto ou qualquer outra norma internacional que verse sobre trabalho escravo ou forçado diz respeito diretamente aos direitos humanos. Não tem como dissociar uma questão da outra, estão intimamente ligadas, daí o valor de observarmos o entendimento acima. Essa ideia de que o trabalho forçado e todas as suas características atingem os direitos humanos foi defendida pelo relator do RE 398041/PA, Ministro Joaquim Barbosa, e aceita pelo pleno do STF, em novembro de 2006, como veremos no capítulo 4. Após o exame do citado julgamento pôde-se determinar o caráter essencial e fundamental das normas internacionais sobre direitos humanos para o corpo normativo de combate ao escravismo contemporâneo. A seguir vamos discutir e analisar os principais diplomas legais sobre o tema. 3.2.2 Convenção sobre a escravatura (1926) – ratificada em 1966 Art. 2º - As Altas Partes contratantes se comprometem, na medida em que ainda não ajam tomado as necessárias providências, e cada uma no que diz respeito aos territórios colocados sob a sua soberania, jurisdição, proteção, suserania ou tutela: b) a promover a abolição completa da escravidão sob todas as suas formas progressivamente e logo que possível. Art. 5º - As Altas Partes contratantes reconhecem que o recurso ao trabalho forçado ou obrigatório pode ter graves conseqüências e se comprometem, cada uma no que diz respeito aos territórios submetidos à sua soberania, jurisdição, proteção suserania ou tutela, a tomar as medidas necessárias para evitar que o trabalho forçado ou obrigatório produza condições análogas à escravidão. (ONU, 1926). Tal Convenção foi emendada em 1956 pela Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, adotada em Genebra, a 7 de setembro de 1956. Vamos observar o que segue: Seção I Instituições e práticas análogas à escravidão Art. 1º - Cada um dos Estados-membros à presente Convenção tomará todas as medidas, legislativas e de outra natureza, que sejam viáveis e necessárias, para obter progressivamente e logo que possível a abolição completa ou o abandono das instituições e práticas seguintes, onde quer ainda subsistam, enquadrem-se ou não na definição de escravidão assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926: § 1º - A servidão por dívidas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for eqüitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida. § 2º - A servidão, isto é, a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição. É curioso, mas não surpreendente, notar que o Brasil precisou ser muito pressionado para inserir na sua prática governamental o combate às injustiças sociais e às agressões aos direitos humanos, haja vista que a Convenção sobre a escravatura (1926) foi ratificada somente após a ratificação da Convenção OIT 29 (1930) e OIT 105 (1957), apesar de ter origem anterior. Esses dois parágrafos parecem ter sido talhados observando a situação que o Brasil se encontra. 3.2.3 Convenção OIT 29 (1930) – ratificada em 1957 Conforme explicado, não será simplesmente a redação de um diploma legal que nos ensinará o que é trabalho escravo, mas, todo um conjunto histórico-simbólico-jurídico. As convenções existem e servem para, além de normatizarem a questão, ratificarem o que já sabíamos: que o trabalho escravo existe e que precisa ser combatido. Vamos agora à Convenção 29: Art. 2º § 1º - Para os fins da presente convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade. A redação do § 1º, do Artigo 2º da Convenção 29 foi muito oportuna ao retratar o trabalho forçado como aquele que se realiza sob o julgo da ameaça, mas foi infeliz quando prescreveu que o indivíduo deveria se oferecer para o trabalho espontaneamente, a fim de não se configurar a ameaça. Ora, a maioria dos trabalhos ou empregos no Brasil somente é conquistada, após um anuncio de oferta, nem por isso sua contratação é considerada sob coação. O que significa se oferecer espontaneamente, então? Em outras palavras, o empregador ou o “gato” podem questionar essa suposta coação. O simples oferecimento de uma quantia para transporte até o novo local de trabalho pode ser considerado uma coação? E o vale transporte que é dado em dinheiro em muitos estabelecimentos? Quem deveria elucidar essa pergunta seria o legislador constituinte derivado, através de instrumentos legais próprios, não obstante, se cala. Há uma falha, pois, na redação da convenção 29? Não! Ela foi editada nos anos 30, após o crash da bolsa de Nova Iorque: o mundo todo sofreu as consequências desse colapso. A mão-de-obra estava farta e não se tinha emprego, porque havia uma crise de superprodução. Os países pararam de importar, as pessoas aceitavam qualquer coisa para não morrerem de fome. A Convenção 29 precisaria ser adaptada à realidade contemporânea brasileira. Voltando à questão da coação: uma coisa é coação na ‘contratação’ (Convenção 29), outra coisa é coação ‘durante’ o trabalho. Diferenciar de qual coação estamos a tratar é importante, bem como prescrever o que seria coação na contratação, pois identificar a coação durante o trabalho é mais fácil: É muito fácil identificar o trabalho forçado, aquela condição em que às vezes o trabalhador é ‘mantido’ por situações várias: por coação, coação moral, coação psicológica, violência (...), surras (...), surra de facão (...) surra de corrente de motosserra. (MELO, 2009, p. 96, grifo nosso). 3.2.4 Convenção OIT 105 (1957) – ratificada em 1965 A Convenção 105 é mais genérica, ela abarca uma realidade maior. Tem a ver com o trabalho forçado, inclusive praticado por instituições públicas, por governos. Faz menção ao trabalho forçado como punição, como pena, como castigo. Inclusive admite e aceita deixar a cargo dos governos, se presos devem ou não receber trabalhos como penas. A esse respeito há uma curiosa contradição na legislação brasileira20. Ademais, dois pontos são relevantes: (1) abolição da escravidão por dívidas e (2) o trabalho forçado constitui uma violação dos direitos do homem. Vamos conferir: Após ter examinado a questão do trabalho forçado, que constitui o quarto ponto da ordem do dia da sessão; Após ter tomado conhecimento das disposições da convenção sobre o trabalho forçado, 1930; Após ter verificado que a convenção de 1926, relativa à escravidão, prevê que medidas úteis devem ser tomadas para evitar que o trabalho forçado ou obrigatório produza condições análogas à escravidão, e que a convenção suplementar de 1956 relativa à abolição da escravidão, do tráfico de escravos e de instituições e práticas análogas à escravidão visa a obter a abolição completa da escravidão por dívidas e da servidão; Após ter verificado que a convenção sobre a proteção do salário, 1949, declara que o salário será pago em intervalos regulares e condena os modos de pagamento que privam o trabalhador de toda possibilidade real de deixar seu emprego; Após ter decidido adotar outras proposições relativas à abolição de certas formas de trabalho forçado ou obrigatório que constituem uma violação dos direitos ao homem, da forma em que foram previstos pela Carta das Nações Unidas e enunciados
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