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GLICONEOGÊNESE VISÃO GERAL Alguns tecidos, como o encéfalo, os eritrócitos, a medula renal, o cristalino e a córnea, os testículos e o músculo em exercício necessitam de suprimento contínuo de glicose como combustível metabólico. O glicogênio hepático, uma fonte essencial pós-prandial de glicose, pode satisfazer essas necessidades por menos de 24 horas na ausência de ingestão de carboidratos. Durante um jejum prolongado, contudo, as reservas hepáticas de glicogênio são depletadas, e a glicose é produzida a partir de precursores não glicídicos. A formação de glicose não ocorre por simples reversão da glicólise, pois o equilíbrio geral da glicólise favorece fortemente a formação de piruvato. Em vez disso, a glicose é sintetizada de novo por uma via especial, a gliconeogênese, que requer tanto enzimas mitocondriais quanto citosólicas. Durante o jejum de uma noite, cerca de 90% da gliconeogênese ocorre no fígado, com os rins fornecendo 10% das moléculas de glicose recém-sintetizadas. No jejum prolongado, no entanto, os rins tornam- se importantes órgãos produtores de glicose, contribuindo com aproximadamente 40% da produção total de glicose. SUBSTRATOS Precursores gliconeogênicos são moléculas que podem ser utilizadas na produção líquida de glicose. Glicerol, lactato e α-cetoácidos, obtidos do metabolismo de aminoácidos glicogênicos, são os mais importantes precursores da gliconeogênese (apenas dois leucina e lisina não são glicogênicos). GLICEROL O glicerol é liberado durante a hidrólise dos triacilgliceróis (TAGs) no tecido adiposo e levado ao fígado pelo sangue. O glicerol é fosforilado pela glicerol-cinase, resultando em glicerol-3-fosfato, que é oxidado pela glicerol-3-fosfato-desidrogenase, produzindo di-hidroxiacetona-fosfato – um intermediário da glicólise e da gliconeogênese. LACTATO O lactato, produzido na glicólise anaeróbia, é liberado no sangue pelo músculo esquelético em exercício e pelas células que não possuem mitocôndrias, como os eritrócitos. No ciclo de Cori, esse lactato é captado pelo fígado e oxidado, produzindo piruvato, que é reconvertido em glicose, a qual é liberada de volta para a circulação. AMINOÁCIDOS Os aminoácidos produzidos pela hidrólise de proteínas teciduais são a principal fonte de glicose durante um jejum. Seu metabolismo produz α-cetoácidos, como o piruvato, que é convertido em glicose, ou como o α-cetoglutarato, que pode entrar no ciclo do ácido cítrico e formar oxalacetato (OAA), um precursor direto do fosfoenolpiruvato (PEP). REAÇÕES A acetil-coenzima A e os compostos que produzem apenas este metabólito (acetoacetato e aminoácidos como lisina e leucina) não podem levar à síntese líquida de glicose. Isso se deve à natureza irreversível da reação do complexo da piruvato-desidrogenase (PDHC), que converte o piruvato em acetil-CoA. Esses compostos originam, em vez da glicose, os corpos cetônicos e são, portanto, denominados cetogênicos. Sete reações glicolíticas são reversíveis, sendo utilizadas na síntese de glicose a partir de lactato ou piruvato. Três das reações glicolíticas, no entanto, são irreversíveis e devem ser contornadas pela utilização de quatro reações alternativas, que favorecem energeticamente a síntese de glicose. Essas reações irreversíveis, que em conjunto são exclusivas da gliconeogênese, são descritas a seguir. CARBOXILAÇÃO DO PIRUVATO O primeiro “bloqueio na via” que deve ser contornado, na síntese de glicose a partir do piruvato, é a conversão irreversível de PEP em piruvato, catalisada pela piruvato-cinase (PK) na glicólise. Na gliconeogênese, o piruvato é carboxilado pela piruvato-carboxilase (PC), produzindo OAA, que é então convertido em PEP pela ação da PEP-carboxicinase (PEPCK). - BIOTINA A PC requer, para sua ação, a coenzima biotina, que se liga covalentemente à proteína enzimática pelo grupo ε-amino de um resíduo de lisina. A hidrólise de um ATP impulsiona a formação de um intermediário enzima- biotina-dióxido de carbono, o qual então carboxila o piruvato, formando OOA. A reação da PC ocorre na mitocôndria de células hepáticas e renais e tem dois propósitos: fornecer o PEP, um substrato importante para a gliconeogênese, e fornecer OAA, para repor os intermediários do ciclo do ácido cítrico, pois esses podem sofrer depleção. As células musculares também contêm PC, mas utilizam o OAA produzido apenas para esse último propósito (anaplerótico) – elas não sintetizam glicose (uma proteína transportadora de piruvato o carrega do citosol para a mitocôndria). - REGULAÇÃO ALOSTÉRICA A PC é ativada alostericamente pela acetil-CoA. Níveis elevados de acetil-CoA na mitocôndria sinalizam um estado metabólico em que é necessária uma síntese aumentada de OAA. Por exemplo, isso pode ocorrer durante o jejum, quando o OAA é utilizado para a gliconeogênese no fígado e nos rins. Por outro lado, quando os níveis de acetil-CoA estiverem baixos, a PC encontra-se praticamente inativa, e o piruvato é, em sua maior parte, oxidado pelo PDHC, produzindo acetil-CoA, que pode ser posteriormente oxidada pelo ciclo do ácido cítrico. TRANSPORTE DE OXALACETATO PARA O CITOSOL Para a gliconeogênese continuar, o OAA deve ser convertido em PEP pela PEPCK. Para a produção de PEP no citosol, é necessário transportar o OAA para fora da mitocôndria. Não existe, entretanto, um transportador de OAA na membrana mitocondrial interna; ele deve ser primeiramente reduzido a malato pela malato- desidrogenase (MD) mitocondrial. O malato é transportado para o citosol e reoxidado a OAA pela MD citosólica, enquanto nicotinamida-adenina-dinucleotídeo (NAD+) é reduzido a NADH. O NADH produzido é utilizado na redução do 1,3-bisfos-foglicerato a gliceraldeído-3-fosfato pela gliceraldeído-3-fosfato- desidrogenase, um passo comum à glicólise e à gliconeogênese. DESCARBOXILAÇÃO DO OXALACETATO NO CITOSOL O OAA é descarboxilado e fosforilado no citosol pela PEPCK, produzindo PEP. A reação utiliza energia da hidrólise de trifosfato de guanosina (GTP). As ações combinadas da PC e da PEPCK fornecem uma via energeticamente favorável do piruvato ao PEP. O PEP sofre então as reações da glicólise, andando no sentido inverso, até chegar à frutose-1,6-bisfosfato. DESFOSFORILAÇÃO DA FRUTOSE-1,6-BISFOFATO A hidrólise da frutose-1,6-bisfosfato pela frutose-1,6-bisfosfatase, encontrada no fígado e nos rins, contorna a reação irreversível da fosfofrutocinase-1 (PFK-1) da via glicolítica e fornece uma via energeticamente favorável para a formação de frutose-6-fosfato. Essa reação é um importante sítio regulatório da gliconeogênese. - REGULAÇÃO PELOS NÍVEIS ENERGÉTICOS INTRACELULARES A fruto-se-1,6-bisfosfatase é inibida por um aumento na relação monofosfato de adenosina (AMP)/ATP, que sinaliza um estado de “baixa energia” na célula. Por sua vez, níveis baixos de AMP e níveis altos de ATP estimulam a gliconeogênese, uma via que demanda energia. - REGULAÇÃO PELA FRUTOSE-1,6-BISFOSFATO A frutose-1,6-bisfosfatase é inibida pela frutose-2,6-bisfosfato, um efetor alostérico cuja concentração é influenciada pela relação insulina/glucagon. Quando os níveis de glucagon aumentam, esse efetor deixa de ser produzido pela PFK-2 hepática, e, assim, a fosfatase é ativada. Quando o lactato estiver em abundância, ele é oxidado a piruvato ao mesmo tempo em que o NAD+ é reduzido. O piruvato é transportado para dentro da mitocôndria e carboxilado pela PC, produzindo OAA, que pode ser convertido em PEP pela isozima mitocondrial da PEPCK. O PEP é transportado então para o citosol. O OAA pode também ser convertido em aspartato, que é transportado para o citosol. O pareamento da carboxilação com a descarboxilação possibilita a ocorrência de reações que seriam, de outra forma, energeticamente desfavoráveis. os sinais que inibem (baixa energia, altos níveis de frutose-2,6-bisfosfato) ou quefavorecem (alta energia, baixos níveis de frutose-2,6-bisfosfato) a gliconeogênese apresentam efeito oposto sobre a glicólise, permitindo o controle recíproco da síntese e da oxidação da glicose. DESFOSFORILAÇÃO DA GLICOSE-6-FOSFATO A hidrólise da glicose-6-fosfato pela glicose-6-fosfatase contorna a reação irreversível da hexocinase/glicocinase e fornece uma via energeticamente favorável para a formação de glicose livre. O fígado é o principal órgão que produz glicose livre a partir da glicose-6-fosfato. Esse processo requer um complexo de duas proteínas encontradas apenas em tecidos gliconeogênicos: a glicose-6-fosfato-translocase, que transporta a glicose-6-fosfato através da membrana do retículo endoplasmático (RE), e a glicose-6-fosfatase, que remove o fosfato, produzindo glicose livre. Transportadores específicos são responsáveis pelo transporte de glicose para o citosol e daí para o sangue. RESUMO DAS REAÇÕES DA GLICÓLISE E DA GLICONEOGÊNESE Das 11 reações necessárias para converter piruvato em glicose livre, sete são reversíveis, catalisadas por enzimas glicolíticas. As três reações irreversíveis da glicólise (catalisadas pelas enzimas hexocinase/glicocinase, PFK-1 e PK) são contornadas pelas reações catalisadas pelas enzimas glicose-6-fosfatase, frutose- 1,6-bisfosfatase, PC e PEPCK. Na gliconeogênese, o equilíbrio das sete reações reversíveis da glicólise é deslocado para favorecer a síntese de glicose como resultado da formação essencialmente irreversível de PEP, frutose-6--fosfato e glicose, catalisada pelas enzimas gliconeogênicas. Essas proteínas da membrana do RE são também necessárias para o último passo da degradação do glicogênio. As doenças do armazenamento do glicogênio Ia e Ib, causadas por deficiências na fosfatase e na translocase, respectivamente, caracterizam-se por grave hipoglicemia no jejum, pois não é possível produzir glicose livre, seja pela gliconeogênese, seja pela glicogenólise.) A estequiometria da gliconeogênese a partir de duas moléculas de piruvato associa a clivagem de seis ligações de fosfato de alta energia e a oxidação de dois NADHs com a formação de uma molécula de glicose. REGULAÇÃO A regulação momento a momento da gliconeogênese é determinada principalmente pelos níveis circulantes de glucagon e pela disponibilidade de substratos gliconeogênicos. Além disso, lentas mudanças adaptativas na atividade enzimática resultam de alterações na velocidade de síntese ou degradação de enzimas, ou de ambas. GLUCAGON Esse hormônio peptídico é produzido pelas células α das ilhotas pancreáticas e estimula a gliconeogênese por meio de três mecanismos. - ALTERAÇÕES EM EFETORES ALOSTÉRICOS O glucagon diminui os níveis hepáticos de frutose-2,6-bisfosfato, resultando na ativação da frutose-1,6- bisfosfatase e na inibição da PFK-1, favorecendo a gliconeogênese em detrimento da glicólise. - MODIFICAÇÃO DA ATIVIDADE ENZIMTICA POR LIGAÇÕES COVALENTES O glucagon liga-se ao seu receptor, o qual é acoplado à proteína G, e, via aumento nos níveis de AMP cíclico (AMPc) e na atividade da proteína-cinase A dependente de AMPc, estimula a conversão da PK hepática em sua forma inativa (fosforilada). Isso diminui a conversão do PEP em piruvato, tendo o efeito de redirecioná-lo para a gliconeogênese. - INDUÇÃO DA SÍNTESE DE ENZIMAS O glucagon causa um aumento na transcrição do gene da PEPCK via ativação do fator de transcrição proteína-ligante do elemento responsivo ao AMPc (CREB), desse modo aumentando a disponibilidade dessa enzima, na medida em que os níveis de seu substrato aumentam durante o jejum (o cortisol [um glicocorticoide] também aumenta a expressão desse gene, enquanto a insulina a diminui). DISPONIBILIDADE DE SUBSTRATO A disponibilidade de precursores gliconeogênicos, especialmente de aminoácidos glicogênicos, influencia de modo considerável a velocidade da síntese de glicose. A diminuição nos níveis de insulina favorece a mobilização de aminoácidos a partir de proteínas musculares, para disponibilizar os esqueletos carbonados para a gliconeogênese. O ATP e as coenzimas NADH necessários para a gliconeogênese são fornecidos principalmente pela oxidação de ácidos graxos (AG). ATIVAÇÃO ALOSTÉRICA PELA ACETIL-COA Durante o jejum, ocorre a ativação alostérica da PC hepática pela acetil-CoA. Como resultado do aumento da hidrólise de TAG no tecido adiposo, o fígado é inundado com AG. A velocidade de formação de acetil-CoA pela β-oxidação desses AG excede a capacidade do fígado de oxidá-la a CO2 e água. Como resultado, a acetil-CoA acumula e ativa a PC. INIBIÇÃO ALOSTÉRICA PELO AMP A frutose-1,6-bisfosfatase é inibida por AMP – um composto que ativa a PFK-1. Isso resulta na regulação recíproca da glicólise e da gliconeogênese, como visto anteriormente para a frutose-2,6-bisfosfato. Desse modo, níveis elevados de AMP estimulam vias produtoras de energia e inibem vias que demandam energia. A acetil-CoA inibe o PDHC por meio da ativação da PDH-cinase. Desse modo, esse composto sozinho pode redirecionar o piruvato no sentido da gliconeogênese, removendo-o da oxidação no ciclo do ácido cítrico. Bibliografia: CHAMPE, Pamela C.; HARVEY, Richard A.; FERRIER, Denise R. Bioquímica ilustrada. 4. ed. Porto Alegre, RS: Artmed, 2009. 519 p. (Biblioteca Artmed). ISBN 978-85-363-1713-7.
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