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Anton Tchekov - A Enfermaria nº 6 e outros Contos

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A ENFERMARIA Nº 6 e outros contos 
Anton Tchekov 
 
ANTON Pavlovitch TCHEKOV nasceu em Tapanrog, nas margens do mar de 
Azov, na Rússia, em 1860, e morreu em Hadenweilcr, na Alemanha, em 
1904. Neto de camponeses, recebeu uma formação escolar precária, 
na província. Para prover às necessidades económicas da família e 
custear os seus estudos de Medicina, em Moscovo, Tchekov escreve 
contos humorísticos e crónicas, que publica em jornais. Em 1884 é 
editada a sua primeira recolha de contos. Datam também dessa 
altura as primeiras peças de teatro: Os Malefícios do Tabaco 
(1886), Ivanov (1887, a mais importante das obras deste período), 
O Urso (1888), O Pedido de Casamento (1888) e O Casamento (1889). 
É com a publicação de uma novela, Â lístepc (1888), que Tchekov vê 
consolidada a sua posição de escritor. Dos jornais humorísticos em 
que colaborava, passa a escrever para revistas literárias; e o 
conto, até então considerado género menor na Rússia, assume nova 
importância. Em 1890 viaja pela ilha de Sacalina, lugar de 
deportação dos condenados a trabalhos forçados, e descreve-a num 
livro objectivo e comovente (1893). Viaja pelo estrangeiro em 
1891, e compra uma propriedade nos arredores de Moscovo. 
Preocupado com a sorte dos camponeses, manda construir escolas e 
estradas. Os anos de 1891 a 1897 são bastante férteis para a sua 
obra: desta época data A Enfermaria nº 6, uma das suas novelas 
mais notáveis. Toda a dramaturgia tchekoviana é caracterizada por 
uma aversão aos acontecimentos espectaculares ou "teatrais". 
Entretanto, o encontro com a arte de Stanislavski e o Teatro de 
Arte de Moscovo é decisivo para o desenvolvimento da concepção 
cénica de Tchecov. A Gaivota (1896) fracassa aquando da sua 
estreia em Moscovo, que coincide com o agravamento da tuberculose 
de que Tchekov padecia há anos. Passa o Inverno de 1897-1898 em 
Nice, e em 1899 compra uma propriedade em Yalta, na Crimeia. Só 
após o seu casamento com Olga Knipper (1898), primeira actriz do 
Teatro de Arte, de Stanislavski, têm início os seus triunfos 
dramáticos. É nos últimos anos de vida que Tchecov escreve as 
melhores peças da sua produção: O Tio Vânia (l 899), As Três Irmãs 
(1901) e O Pomar das Cerejeiras, a sua obra-prima (1904). Ao lado 
de Gogol e Gorki, Tchekov é dos maiores contistas da literatura 
russa. Debruçando-se piedosamente sobre os diversos tipos sociais 
da época, Anton Tchecov não revela nas suas obras quaisquer 
tendências políticas ou religiosas, ao contrário de tantos 
escritores russos. Não obstante a sua irreligiosidade, confere às 
coisas mais insignificantes um conteúdo densamente filosófico e 
uma tonalidade estranhamente mística. 
 
Versão portuguesa de 
Maria Luísa Anahory 
e Editorial Verbo 
 
Composto e impresso por 
Gris, Impressores 
Lisboa 1972 
 
Livros RTP 
Biblioteca Básica Verbo nº 67 
 
ANTON TCHEKOV 
A ENFERMARIA Nº 6 e outros contos 
 
A ENFERMARIA NÚMERO SEIS 
 
I 
 
No pátio do hospital existe um pequeno pavilhão rodeado de um 
autêntico matagal de cardos, urtigas e cânhamo silvestre. Tem o 
tecto oxidado, a chaminé meio destruída, os degraus da entrada 
apodrecidos e cobertos de erva, e do estuque restam vestígios. A 
fachada dá para o hospital e as traseiras para o campo, e deste 
separa-o uma vedação de madeira, pintada de cinzento e encimada 
por pregos. Estes pregos com os bicos para cima, a vedação e o 
próprio pavilhão oferecem aquele aspecto característico, triste e 
repulsivo, que no nosso país apenas os hospitais e as prisões 
apresentam. 
Se não tendes receio das urtigas, caminhemos pelo estreito atalho 
que conduz ao pavilhão, e lancemos um olhar ao que se passa no 
interior. Abrimos a primeira porta e entramos no vestíbulo. Aqui, 
junto à lareira, há montanhas de objectos e roupas. Colchas 
velhas, batas esfarrapadas, calças, camisas de riscas azuis, 
sapatos rotos e inúteis: todos estes trapos estão amontoados, 
amarrotados, remexidos, meio apodrecidos, emanando um cheiro 
pestilento. 
Permanentemente deitado sobre este lixo, com o cachimbo entre os 
dentes, está o trapeiro Nikita, velho soldado reformado, de galões 
desbotados. Tem a expressão do homem que gosta de beber; 
sobrancelhas arqueadas, que lhe dão o aspecto de um mastim das 
estepes e o nariz vermelho; de estatura baixa, seco e nervoso;mas 
tem um físico que se impõe e possui mãos enormes. Pertence àquela 
classe de pessoas simples, cumpridoras do seu dever e obstinadas, 
que põem a ordem acima de tudo, sinceramente convencidas de que o 
emprego da força é indispensável. Bate ao acaso, na cara, no 
peito, nas costas, em qualquer parte, com a certeza de que de 
outro modo não poderia manter a ordem. 
 
7 
 
Entramos em seguida numa divisão grande, muito espaçosa, que ocupa 
todo o pavilhão, salvo o vestíbulo. As paredes estão pintadas num 
tom azulado, e o tecto está enegrecido como nessas isbás onde não 
existe chaminé: vê-se que acendem a lareira no Inverno e que esta 
deita muito fumo. As janelas estão protegidas por dentro com 
varões de ferro. O chão é cinzento, e tem tábuas lascadas. Cheira 
a couve azeda, a fumo da torcida da lamparina, a percevejos e a 
amoníaco, dando este cheiro nauseabundo a impressão de termos 
entrado numa jaula de feras. 
Nesta sala estão dispostas várias camas, fixadas ao chão. Sempre 
sentados ou deitados, há homens envergando as fardas azuis do 
hospital, e tendo na cabeça gorros como os usados noutros tempos 
para dormir. São os loucos. 
São cinco ao todo. Apenas um é de origem nobre; os outros são 
operários. O primeiro, logo à entrada, é alto e magro, com bigode 
arruivado e lustroso, e olhos húmidos; está sentado, com a cabeça 
apoiada nas mãos e o olhar perdido no vácuo. Passa os dias e as 
noites envolto em profunda tristeza, abanando a cabeça, suspirando 
e sorrindo amargamente; raras vezes intervém na conversa e em 
regra não responde às perguntas. Come e bebe maquinalmente, quando 
o servem. A avaliar pela tosse que lhe rasga o peito, pela magreza 
em que se encontra e pela palidez da face, sofre de um princípio 
de tuberculose pulmonar. 
A seguir está um velhinho, mirrado mas muito vivo, que não pára de 
se mexer, com a sua barbicha em bico, e cabelo escuro e 
encarapinhado como o de um negro. Passa o dia a andar de uma 
janela para a outra, ou então permanece sentado no seu catre, com 
as pernas cruzadas à maneira turca, assobiando como um 
pintassilgo, cantando a meia-voz e rindo com um riso suave. A sua 
alegria infantil e animação bate no peito e abana a porta. É o 
judeu Moiseika, imbecilizado desde que há vinte anos perdeu o 
juízo, quando um incêndio destruiu a sua oficina de chapéus. 
É o único habitante da sala número seis a quem é permitido sair do 
pavilhão, e até do pátio do hospital, para a rua. É um privilégio 
de que desfruta há muito, provavelmente devido ao seu tempo de 
recluso e ao facto de ser um doido tranquilo e inofensivo: é o 
bobo da cidade, que todos se acostumaram a ver pelas ruas, rodeado 
de garotos e cães. Com a sua bata e o seu ridículo gorro, de 
alpergatas ou descalço, e às vezes até sem calças, vai e vem, 
parando nas portas das lojas e pedindo 
 
8 
 
esmola. Aqui, dão-lhe uma côdea de pão, ali um kopek , de modo que 
volta ao pavilhão de estômago cheio e rico. Mas Nikita tira-lhe 
tudo quanto traz. O soldado fa-lo com brutalidade, muito 
meticulosamente, passando revista aos bolsos e invocando Deus como 
testemunha de que não voltará a deixar sair o judeu, ao mesmo 
tempo que afirma não haver coisa pior do que a desordem. 
Moiseika gosta de fazer favores. Dá água aos seus companheiros, 
cobre-os quando estão a dormir, promete trazer-lhes dinheiro 
quando for à rua e confecciona-lhes gorros novos. Dá ainda de 
comer ao seu vizinho da esquerda, que é paralítico. E faz tudo 
isto, não por compaixão ou considerações de carácter humanitário, 
mas para imitar Gromov, o seu vizinhoda direita, que o domina sem 
que ele disso se aperceba. 
Ivan Dmitrich Gromov, de origem nobre, trinta e três anos, antigo 
oficial de diligências do julgado e secretário provincial, sofre 
de mania da perseguição. Permanece deitado na cama, como um 
novelo, ou anda de um lado para o outro como se desse um passeio 
higiénico; é rara a vez em que fica sentado. Mostra-se sempre 
excitado, inquieto, num estado de grande tensão, como se esperasse 
algum acontecimento confuso e indefinido. Basta o mais pequeno 
ruído no vestíbulo ou um grito no pátio para que erga a cabeça e 
se conserve alerta: estão a perguntar por ele? Procuram-no? E 
nestes instantes o seu rosto reflecte grande inquietação e medo. 
Agrada-me a sua cara comprida, de maçãs de rosto salientes, sempre 
pálida e infeliz, espelho de uma alma atormentada pela luta e por 
um sentimento de medo que nunca o abandona. Tem uns tiques 
estranhos e doentios, mas os finos sulcos, que um profundo e 
sincero sofrimento deixou no seu semblante, denotam inteligência, 
e os seus olhos deixam transparecer um brilho carinhoso e sadio. 
Agrada-me a sua personalidade: É cortês, prestável e 
extraordinariamente delicado no trato com toda a gente, à excepção 
de Nikita. Quando alguém perde um botão ou a colher, levanta-se da 
cama no mesmo instante e entrega-lhos. Dá os bons-dias aos 
companheiros todas as manhãs, e ao deitar-se deseja-lhes as boas-
noites. 
Além da tensão permanente e dos tiques, a sua loucura tem outra 
forma de manifestar-se. Por vezes, ao anoitecer, embrulha-se na 
sua 
 
‘ Kopek: unidade divisionária da moeda russa (N. do T.) 
 
9 
 
bata, e tremendo e batendo os dentes principia a andar com um 
passo rápido de um canto para o outro e por entre as camas. E como 
se tivesse um forte acesso de febre. Pela maneira como pára de 
súbito e contempla os seus companheiros, nota-se que tem alguma 
coisa muito importante para lhes dizer; mas, reflectindo melhor, 
chega à conclusão de que não lhe darão ouvidos ou não o 
compreenderão; sacode com impaciência a cabeça, e continua a 
caminhar. Mas depressa o desejo de falar se torna mais forte e dá 
rédea solta à língua; fala com calor, apaixonadamente. () seu 
discurso é desordenado, febril, como em delírio; nem sempre se 
compreende o que diz; mas mesmo assim deixa perceber, pelas 
palavras e pela voz, qualquer coisa que denota extrema bondade. 
Quando fala, distinguem-se nele o louco e o homem. É difícil 
traduzir para o papel os seus desvarios. Fala da maldade humana, 
da violência que espezinha a justiça, da bela vida que com o andar 
dos tempos reinará na Terra, das grades e das janelas, que a cada 
instante lhe recordam a obstinação e a crueldade dos opressores. 
Tudo é um caótico amontoado de coisas velhas mas não caducas. 
 
10 
 
II 
 
O funcionário Gromov, há doze para quinze anos, vivia na cidade 
com a família, em casa própria, situada na rua principal. Tinha 
dois filhos: Serguei e Ivan. Serguei, quando frequentava o quarto 
ano, contraiu uma tísica galopante e morreu. Foi o princípio de 
uma série de calamidades que caíram subitamente sobre a família 
dos Gromov. Uma semana depois do enterro de Serguei, o velho pai 
foi processado por desfalque e desvio de fundos, e não tardou em 
morrer na enfermaria da prisão, vitimado por uma febre tifóide. A 
casa e o seu recheio foram vendidos em almoeda; Ivan Dmitrich e a 
sua mãe ficaram sem o mínimo recurso. 
Antes, enquanto o pai era vivo, Ivan Dmitrich vivia em S. 
Petersburgo, estudava na Universidade, recebia todos os meses 
sessenta ou setenta rublos e não sabia o que eram necessidades; 
depois, tivera que mudar completamente de vida. Via-se obrigado a 
dar lições muito mal pagas e a fazer escrita desde manhã à noite, 
mas não deixava por isso de passar fome, pois mandava à mãe tudo 
quanto ganhava. Ivan Dmitrich não aguentou, perdeu a coragem, a 
sua saúde declinou e, abandonando os estudos, foi para casa. Ali, 
na pequena cidade, graças a empenhos, obteve um lugar de 
professor. Mas não se entendeu com os seus colegas, nem lhe 
agradaram os alunos, e depressa apresentou a demissão. A mãe 
morreu. Ivan vagueou sem trabalho durante seis meses, sem outro 
alimento além de pão e água, e entrou finalmente para oficial de 
diligências do tribunal, cargo que ocupou até lhe ser concedida 
baixa por doença. 
Nunca, nem mesmo nos seus anos de estudante, deu a sensação de ser 
um homem são. Foi sempre pálido, magro e constipava-se facilmente. 
Um copo de vinho causava-lhe tonturas e ataques 
histéricos. Gostava de companhia, mas o seu carácter irritável e 
os seus receios impediam-no de ter intimidade com alguém, e 
carecia de amigos. Falava sempre com desprezo da gente das 
cidades, dizendo que a sua torpe ignorância e a vida sedentária 
que levavam eram qualquer coisa de degradante e repulsivo. Falava 
com voz de tenor, alta e apaixonada, descontente e indignada, ou 
com entusiasmo e desassombro, e era sempre sincero. Chegava 
sistematicamente a uma conclusão, fosse qual fosse o tema: a vida 
na cidade era desgostante e aborrecida; a sociedade carecia de 
nível, era uma vida absurda e obscura e os únicos elementos que 
contribuíam para lhe dar algum imprevisto eram a violência, a 
grosseira corrupção e a hipocrisia. Os facínoras estavam prósperos 
e bem vestidos, enquanto os homens honrados se alimentavam de 
migalhas. Faziam falta escolas, um jornal local com uma orientação 
honesta, um teatro, conferências públicas, coesão dos 
intelectuais. Nas suas apreciações sobre as pessoas empregava 
grandes pinceladas de branco e negro, sem admitir nenhum outro tom 
de matiz: para ele, a humanidade dividia-se em honrados e 
canalhas, sem meio termo. Das mulheres e do amor falava sempre 
apaixonadamente, com entusiasmo, mas nem uma vez esteve enamorado. 
Na cidade, apesar da dureza dos seus julgamentos e do seu 
nervosismo, gostavam dele, e na sua ausência davam-lhe o carinhoso 
diminutivo de Vânia. A sua delicadeza inata, o seu espírito 
prestável, a sua dignidade e pureza moral, a sua labita coçada, o 
seu aspecto doentio e as suas desgraças familiares despertavam um 
sentimento bom, carinhoso e triste; além disso, era culto e tinha 
lido muito; e em tudo lhe faziam fé, sendo considerado na cidade 
um verdadeiro dicionário de consulta. 
Lia muito. Passava largas horas no clube, acariciando nervosamente 
a barbicha e folheando revistas e livros; notava-se pela sua 
expressão que não lia, mas que devorava, quase sem tempo de 
assimilar. Há que pensar que a leitura era para ele um hábito 
doentio, porque se lançava com igual avidez sobre tudo o que lhe 
chegava às mãos, até mesmo jornais e calendários de anos 
anteriores. Em casa lia sempre deitado. 
 
III 
 
Uma manhã de Outono, com a gola do casaco subida e espezinhando a 
lama, Ivan Dmitrich dirigia-se por vielas e pátios traseiros a 
casa de um operário onde devia cumprir um mandato judicial. 
listava de humor sombrio, como todas as manhãs. Numa das vielas 
passou por dois prisioneiros, carregados de correntes, conduzidos 
por quatro soldados armados de espingardas. Muitas vezes se 
encontrara já com presos, e sempre despertavam nele sentimentos de 
piedade e mágoa; mas desta vez produziram nele uma impressão 
especial e estranha. Pareceu-lhe que também o podiam carregar de 
grilhetas e conduzi-lo por entre a lama à prisão. Depois de 
resolver o assunto com o operário, de volta a casa, encontrou ao 
pé dos Correios um inspector da Polícia, seu conhecido, que o 
cumprimentou e o acompanhou durante alguns passos. Isto pareceu-
lhe suspeito. Já em casa, durante todo o dia, não lhe saíam do 
pensamento os presos e os soldados com as espingardas; uma 
incompreensível inquietação de espírito impedia-o de se concentrar 
na leitura. Ao cair da tarde não acendeu o candeeiro de petróleo 
no seu quarto, e a noite passou-a de vela, pensando que podiam 
prendê-lo, agrilhoá-loe metê-lo na prisão. Sabia-se inocente e 
podia mesmo assegurar que nunca mataria ninguém, não queimaria nem 
roubaria nada; mas seria acaso tão difícil cometer um delito sem 
querer e sem intenção? Não seria admissível uma calúnia, um erro 
judiciário, enfim? Não é em vão que a secular experiência do povo 
diz que ninguém pode estar seguro contra o risco de carregar com 
os alforjes do mendigo ou ir parar à cadeia. E o erro judiciário, 
com o actual sistema de administração da justiça, seria muito 
possível, e nem teria nada de extraordinário. Aqueles que em 
virtude da sua profissão estão em contacto com os sofrimentos 
alheios, por exemplo, os juizes, 
 
13 
 
os polícias e os médicos, com o decorrer do tempo insensibilizam-
se a tal ponto, pela força do hábito, que ainda que o quisessem 
não poderiam olhar os seus clientes senão com um sentimento de 
indiferença; por outro lado, não se diferenciam em nada do mujique 
que no curral degola carneiros e bezerros sem sequer se aperceber 
do sangue. Com essa atitude convencional e insensível em relação à 
pessoa humana, para despojar um inocente de todos os seus direitos 
e bens, e condená-lo ao presídio, o juiz apenas necessita de uma 
coisa: tempo. Apenas tempo para observar certas formalidades, para 
o que lhe pagavam, e tudo termina. Quem podia esperar justiça e 
defesa naquela uldeiazinha suja, a duzentas verstas do caminho de 
ferro? E não seria ridículo pensar na justiça quando qualquer 
acção violenta era acolhida pela sociedade como razoável e 
aceitável, enquanto qualquer acto de piedade, por exemplo, uma 
absolvição, provocava uma verdadeira explosão de sentimentos 
vingativos de descontentamento? 
Pela manhã Ivan Dmitrich levantou-se apavorado, com a fronte 
coberta de um suor frio e intimamente convencido de que de um 
momento para o outro podiam vir prendê-lo. Se os dolorosos 
pensamentos da véspera tardavam tanto em abandoná-lo pensava era 
porque havia neles qualquer ponta de verdade. Realmente, não 
podiam acudir-lhe à cabeça sem alguma razão. 
Um guarda municipal passou lentamente diante da janela. Teria 
decerto as suas razões. Dois homens pararam em silêncio diante da 
casa. Por que motivo estavam silenciosos? 
E para Ivan Dmitrich principiaram dias e noites de pesadelo. 
Imaginava que quantos passavam diante das suas janelas e entravam 
no pátio eram denunciantes e esbirros. Pelo meio do dia costumava 
passar o chefe da Polícia. Na sua carruagem, puxada por dois 
cavalos, vinha da sua herdade nos arredores da cidade, e dirigia-
se para a sua repartição; mas Ivan Dmitrich achava sempre que ele 
ia demasiado depressa e com uma expressão especial: ia, sem 
dúvida, anunciar que tinha aparecido na cidade um delinquente de 
grande importância. Ivan Dmitrich estremecia sempre que batiam à 
porta, e ficava angustiado quando a dona da casa recebia um 
hóspede novo; quando se encontrava com polícias e guardas, sorria 
e assobiava para mostrar indiferença. Passava as noites sem pregar 
olho, sempre à espera de que o viessem prender; mas suspirava e 
fingia ressonar para que a dona da casa imaginasse que dormia 
porque não dormir seria prova de que tinha remorsos na 
 
14 
 
consciência. Que indicação! Os factos e a lógica levavam-no à 
convicção de que todos estes temores eram um absurdo e uma 
psicopatia, porque, na realidade, bem vistas as coisas, a detenção 
e a cadeia não constituíam preocupação quando se possuía a 
consciência tranquila; mas quanto mais lógicos eram os seus 
raciocínios, tanto maior e mais dolorosa era a sua inquietação 
espiritual, era como se um eremita quisesse abrir uma clareira na 
selva virgem para nela viver: quanto mais afanosamente trabalhava 
com o machado, mais espesso e vigoroso crescia o bosque. Ivan 
Dmitrich, vendo a inutilidade dos seus intentos, acabou por 
desistir, deixou de ressonar e entregou-se inteiramente ao 
desespero e ao medo. 
Principiou a evitar as pessoas; procurava estar sòzinho. O cargo 
que ocupava, que já antes lhe desagradava, tornou-se-lhe 
insuportável. Temia que lhe fizessem uma partida, que lhe metessem 
dinheiro no bolso a fim de o acusarem de cumplicidade, ou que ele 
próprio cometesse em documentos oficiais, sem querer, qualquer 
erro equivalente a uma falsificação, ou perdesse uma soma que não 
fosse sua. Coisa estranha: nunca, em nenhuma altura, fora o seu 
pensamento tão lúcido nem a sua imaginação tão fértil como agora, 
quando todos os dias descobria mil motivos diferentes para sentir 
sérias apreensões pela sua liberdade e a sua honra. Em 
contrapartida, diminuiu sensivelmente o seu interesse pelo mundo 
exterior, sobretudo pelos livros, e a memória principiou a traí-
lo. 
Ao chegar a Primavera, quando a neve começou a derreter, 
apareceram num barranco ao pé do cemitério dois cadáveres em 
adiantado estado de decomposição uma mulher e um rapaz com sinais 
de morte violenta. Na cidade não se falava senão nestes dois 
cadáveres e nos presumíveis assassinos. Ivan Dmitrich, para que 
não se pudesse pensar que fora ele o autor do crime, caminhava 
sorridente pelas ruas, e ao encontrar qualquer conhecimento 
empalidecia e exaltava-se, insistindo em que não havia nada mais 
revoltante que o assassinato de pessoas -fracas e indefesas. Mas 
não tardou a cansar-se desta hipocrisia, e depois de reflectir 
chegou à conclusão de que na sua situação o melhor seria esconder-
se na cave da casa. Ali permaneceu um dia, uma noite e outro dia, 
até que, morto de frio, depois de escurecer, caminhando 
silenciosamente como um ladrão, meteu-se no quarto, onde se deixou 
ficar até de manhã sem se mexer, prestando atenção ao menor ruído. 
Às primeiras horas, antes de o Sol nascer, chegaram alguns 
operários. Ivan Dmitrich bem sabia que tinham vindo chamados 
 
15 
 
pela dona da casa, para arranjar o forno da cozinha; mas o medo 
levou-o a pensar que eram polícias disfarçados. Saiu 
dissimuladamente do quarto, e, aterrorizado, sem gorro e sem 
casaco, deitou a correr pela rua. Perseguiam-no os cães a ladrar, 
alguém gritou nas suas costas, o vento silvava-lhe aos ouvidos. 
Ivan Dmitrich pensou que toda a violência do mundo se unira atrás 
dele, tentando alcançá-lo. 
Agarraram-no, levaram-no para casa, e mandaram a senhoria à 
procura do médico. O doutor Andrei Efimich, de quem falaremos mais 
adiante, receitou-lhe compressas frias na cabeça e gotas de 
loureiro e ginjas; abanou tristemente a cabeça e saiu, dizendo à 
dona da casa que não voltaria, visto ser impossível fazer fosse o 
que fosse quando as pessoas queriam endoidecer. Como em casa não o 
podiam tratar, Ivan Dmitrich foi pouco tempo depois levado para o 
hospital e aí o instalaram na sala de doenças venéreas. Não dormia 
de noite, mostrava-se caprichoso e incomodava os vizinhos, e por 
isso não tardaram em levá-lo, por ordem de Andrei Efimich, para a 
enfermaria número seis. 
Passado um ano, na cidade tinham esquecido completamente Ivan 
Dmitrich; e os seus livros, que a dona da casa amontoara num 
trenó, sob um telheiro, foram levados pelos garotos. 
 
16 
 
IV 
 
O vizinho da esquerda de Ivan Dmitrich, como já dissemos, era o 
judeu Moiscika. O da direita era um mujiquc adiposo, obeso, de 
cara inexpressiva e estúpida, um animal imóvel, glutão e sujo, que 
de há muito havia perdido a capacidade de pensar e sentir. Emanava 
dele constantemente um cheiro fétido e asfixiante. 
Nikita, encarregado da limpeza, batia-lhe sem dó nem piedade;mas o 
mais impressionante não era baterem-lhe, a isto ainda nos podemos 
acostumar , mas o facto de aquele animal insensível não reagir de 
maneira alguma aos golpes, nem por um som ou um movimento, nem 
pela expressão do olhar, limitando-se a baloiçar ligeiramente como 
um pesado barril. 
O quinto e último habitante da enfermaria número seis era um homem 
que fora em tempos empregado dos Correios, onde fazia a selecção 
das cartas, fora um indivíduo pequeno,magro, loiro, de expressão 
caritativa, ainda que levemente maliciosa. A julgar pelo seu olhar 
inteligente e tranquilo, de expressão serena e jovial, guardava no 
seu íntimo um segredo muito importante e aprazível. Debaixo da 
almofada e do enxergão ocultava qualquer coisa que não mostrava a 
ninguém, não por medo de que lho pudessem tirar ou roubar, mas por 
vergonha. As vezes aproximava-se da janela, de costas para os 
companheiros, colocava um objecto no peito e contemplava-o com a 
cabeça inclinada; mas, se naquele momento alguém se aproximava, 
perturbava-se e escondia-o. Não era difícil, contudo, adivinhar o 
seu segredo. 
- Dê-me os parabéns - dizia frequentemente a Ivan Dmitrich , fui 
proposto para a Ordem de Sto. Estanislau de segunda classe, com 
estrela. A segunda classe com estrela é concedida apenas aos 
 
17 
 
estrangeiros, mas comigo, não sei porquê, pretendem abrir uma 
excepção - e sorria, encolhendo os ombros, admirado. - Confesso 
que não contava com isso! 
- Não entendo nada desses assuntos - respondia Ivan Dmitrich 
sombriamente. 
- Mas mais tarde ou mais cedo hei-de consegui-lo, sabe? - 
prosseguia o antigo seleccionador de cartas, piscando o olho com 
astúcia. Obterei sem dúvida a Estrela Polar sueca. É uma ordem que 
vale o esforço de a conseguir. Cruz branca e fita negra, e de 
muito bonito efeito. 
Decerto, em nenhum outro local era a vida tão monótona como no 
pavilhão. De manhã, os doentes, à excepção do paralítico e do 
mujique gordo, lavavam-se no vestíbulo, numa banheira, e secavam-
se com as fraldas das suas batas. Em seguida tomavam chá em 
xícaras de folha, que Nikita trazia do pavilhão principal. A cada 
um correspondia uma xícara. Ao meio-dia comiam sopa de couve e 
papas de farinha, e ao anoitecer jantavam as papas que tinham 
sobejado do almoço. Nos intervalos permaneciam deitados, dormiam, 
olhavam pela janela e passeavam de um lado para o outro, e assim 
todos os dias. O próprio antigo seleccionador de cartas falava 
sempre das mesmas condecorações. 
Eram muito poucas as caras novas que se viam na enfermaria número 
seis. Havia tempo que o médico deixara de admitir mais loucos, e 
não são muitos, neste mundo, os aficionados de manicómios. Uma vez 
em cada dois meses aparecia no pavilhão Simião Lazarich, o 
barbeiro. Não vamos falar de como cortava o cabelo aos loucos e da 
maneira como era ajudado por Nikita neste empreendimento, nem da 
confusão que se gerava entre os enfermos sempre que aparecia o 
barbeiro com o seu sorriso de alcoólico. 
Ninguém mais aparecia no pavilhão. Os doentes estavam condenados, 
dia após dia, a verem unicamente Nikita. 
Mas ultimamente corria pelo hospital um rumor muito estranho: 
dizia-se que o médico começara a visitar a enfermaria número seis. 
 
18 
 
V 
 
Estranho rumor! 
O doutor Andrei Kfimich Raguin era um homem notável no seu género. 
Dizia-se que havia sido muito devoto na juventude, tencionando 
seguir a carreira eclesiástica;que em 1863, ao terminar os seus 
estudos no liceu, se preparava para ingressar no seminário, mas 
que seu pai, doutor em Medicina e cirurgião, não o tomou a sério e 
declarou categoricamente que não o consideraria como filho se ele 
se ordenasse pope. Não sei até que ponto isto é verdade, mas o 
próprio Andrei Ffimich confessou mais de uma vez que nunca sentira 
vocação pela Medicina nem pelas ciências aplicadas em geral. 
Fosse como fosse, ao terminar os estudos na Faculdade não se fez 
sacerdote. Não mostrava grande devoção e no início da sua carreira 
médica parecia-se tão pouco com um pope como no momento em que 
principia a nossa história. 
Tinha o aspecto pesado, vagaroso, de um mujiquc, e pelas suas 
feições, a barba, o cabelo liso, a compleição forte e grosseira, 
fazia lembrar um estalajadeiro gordo, dado à bebida, e de maneiras 
bruscas. O seu rosto, de expressão grave, era sulcado por finas 
veias azuis, olhos pequenos e nariz vermelho. Muito alto e de 
ombros largos, tinha braços e pernas enormes, e parecia capaz de 
matar uma pessoa de um só golpe. Mas o seu andar era suave e 
cauteloso, como ondulante; quando encontrava alguém no estreito 
corredor, parava sempre primeiro, cedendo o lugar; e com voz que 
não era de baixo, como seria de esperar, mas fina e suave como de 
tenor, dizia: "Perdão!" Um pequeno inchaço impedia-o de usar 
colarinhos duros, engomados, e por isso vestia sempre camisa de 
linho ou de algodão. A sua maneira de trajar não era de médico. Os 
fatos duravam-lhe dez anos e a roupa nova, que 
 
19 
 
costumava comprar na loja de um judeu, parecia tão coçada e 
enxovalhada como a anterior. Com a mesma labita, recebia os 
doentes, comia e fazia visitas. Não o fazia por espírito de 
mesquinhez, mas porque nada se importava consigo próprio. 
Quando Andrei Efimich chegou à cidade para tomar posse do seu 
cargo, o "estabelecimento de beneficiência encontrava-se num 
estado deplorável. Nas salas, corredores e pátio do hospital, o 
cheiro era a ponto de tornar difícil respirar. Os servitas, as 
enfermeiras e seus filhos dormiam nas enfermarias dos doentes. 
Queixavam-se de que as baratas, os percevejos e os ratos lhes 
tornavam a vida impossível. Na secção de cirurgia não conseguiam 
acabar com a erisipela. Apenas existiam dois bisturis em todo o 
hospital; não dispunham de um único termómetro;e as banheiras 
serviam para guardar batatas. O inspector, a encarregada da roupa 
e o assistente roubavam os doentes, e dizia-se do antigo médico, o 
predecessor de Andrei Efimich, que vendia de contrabando o álcool 
do hospital e tinha um verdadeiro harém constituído por 
enfermeiras e doentes. Na cidade eram conhecidas todas estas 
irregularidades, e até as exageravam, mas toleravam-nas com a 
maior tranquilidade. Alguns argumentavam, para as justificar, que 
no hospital só havia gente do povo e mujiques, que não tinham o 
direito de estar descontentes, pois em suas casas viviam muito 
pior. Não era possível dar-lhes faisão! 
Outros diziam que a cidade, só por si, sem a ajuda do zemstvo, não 
podia custear um bom hospital; e era graças a Deus que existia um, 
apesar de mau. E o zemstvo, recém-constituído, não abria 
estabelecimentos sanitários na cidade nem nos arredores, a 
pretexto de que a cidade possuía já o seu hospital. 
Depois de uma revisão geraljAndrei Efimich chegou à conclusão de 
que semelhante instituição hospitalar era imoral e altamente 
nociva para a saúde das pessoas. Parecia-lhe que a única solução 
era mandar os doentes para casa e encerrá-la. Considerou, no 
entanto, que isto não dependia apenas da sua vontade e que não 
seria eficiente: se se eliminasse a imundície física e moral de um 
local, aquela provavelmente transferia-se para outro. Havia que 
esperar que desaparecesse por si própria. Além disso, se tinham 
aberto este hospital e o toleravam, era sinal de que as pessoas 
necessitavam dele; os males 
 
‘ zemstvo: organismo autónomo com determinada tendência liberal, 
que, à escala provincial e distrital, mantinha hospitais e centros 
de ensino. Instituídos em 1864, desapareceram em 1917 (N. do T.) 
 
20 
 
desta vida e todas as suas vilanias são necessários, já que se 
convertiam com o tempo em qualquer coisa de útil, como o estrume 
em terra negra. Não há no mundo bem que na sua origem não 
contivesse uma acção abjecta. 
Uma vez tomada posse do seu cargo, Andrei Efimich não mostrou 
ligar grande importância a todas estas anomalias. Fez uma única 
coisa: pediu aos servitas e enfermeiras que não dormissem nas 
enfermarias. Mandou também colocar duas vitrinas para os 
instrumentos. Quanto ao inspector, à encarregada da roupa, ao 
assistente e ao material cirúrgico, continuaram nos seus antigos 
lugares. 
Andrei Efimich apreciava no mais alto grau a inteligência e a 
honestidade, mas para organizar à sua volta uma vida inteligente e 
honesta faltava-lhe o carácter e a fé no direito que lhe assistia. 
Nãosabia em absoluto mandar, proibir e insistir. Era como se 
tivesse feito voto de nunca levantar a voz nem empregar o 
imperativo. Custava-lhe dizer "dá-me" ou "traz-me" ;quando queria 
comer, pigarreava indeciso e dizia à cozinheira: "Se pudesse tomar 
uma chávena de chá...", ou "Se eu pudesse comer...".Dizer ao 
inspector que deixasse de roubar ou despedi-lo, ou suprimir por 
completo aquele cargo inútil e parasitário, era superior às suas 
forças. Quando o enganavam ou adulavam, ou lhe apresentavam uma 
conta que sabia ser falsa, tornava-se vermelho como um caranguejo 
e sentia-se culpado; mas, apesar de tudo, assinava. Quando os 
doentes se queixavam de passar fome ou dos maus tratos das 
enfermeiras, atrapalhava-se e balbuciava, como se fosse ele o 
culpado: 
Está bem, está bem, vou-me ocupar disso... Provavelmente trata-se 
de um mal-entendido... 
De princípio Andrei Efimich trabalhou arduamente. Dava consulta 
todas as manhãs até à hora da comida, operava e, inclusivamente, 
assistia aos partos. As senhoras diziam que diagnosticava com 
precisão as doenças, sobretudo em mulheres e crianças. Mas com o 
decorrer do tempo tudo isto acabou por aborrecê-lo, pela sua 
monotonia e evidente inutilidade. Hoje recebia trinta doentes, 
amanhã eram trinta e cinco e depois de amanhã quarenta, e assim um 
dia após outro, um ano atrás do outro, sem que a mortalidade 
diminuísse, continuando os doentes a afluir. Prestar uma 
assistência eficaz aos quarenta doentes que vinham à consulta 
desde manhã até à hora do jantar' era fisicamente 
 
‘ O jantar na Rússia era servido às três horas (N. do T.). 
 
21 
 
impossível; redundava num logro. Se durante um ano tinha examinado 
doze mil doentes, segundo diziam, significava que tinha enganado 
doze mil pessoas. Internar os doentes graves e tratá-los segundo 
as regras da ciência também não era possível porque as regras 
existiam, mas não havia ciência; e se punha de parte a filosofia e 
se limitava a seguir com rigor as regras, como os outros médicos, 
necessitava para isso, acima de tudo, limpeza e arejamento, e não 
sujidade; e uma alimentação sã, e não a sopa da repugnante couve 
azeda; e bons auxiliares, e não ladrões. 
Além do mais, para quê impedir que as pessoas morram, se a morte é 
o fim normal e lógico de cada um? Que acontecia se um ricaço ou um 
funcionário vivia cinco ou dez anos mais? Se se considera que o 
objectivo da Medicina consiste em aliviar a dor, surge a pergunta: 
Para quê aliviá-la? Em primeiro lugar, dizem que a dor leva o 
homem à perfeição e, em segundo, que se a humanidade aprende, 
efectivamente, a aliviar as suas dores com a ajuda de pílulas e 
gotas, abandonará por completo a religião e a filosofia, em que 
até agora encontrara não apenas defesa contra todos os males mas 
também a felicidade. Pushkin, na hora da sua morte, sofreu dores 
horríveis, o pobre Heine esteve paralítico vários anos. Então, por 
que razão não havia de padecer doenças qualquer AndreiEfimich ou 
qualquer Mastriona Savishna, cujas vidas não possuíam qualquer 
conteúdo e seriam completamente vazias e parecidas com as de uma 
ameba se não fossem os sofrimentos? 
Acabrunhado com estas conclusões, Andrei Efimich abandonou tudo e 
deixou de ir diariamente ao hospital. 
 
VI 
 
A sua vida decorria da seguinte maneira: levantava-se geralmente 
às oito, vestia-se e tomava o chá. Sentava-se, em seguida, a ler 
no seu escritório ou ia ao hospital. Ali, num corredor estreito e 
escuro, juntavam-se os doentes externos, esperando a hora de serem 
recebidos. Junto deles, fazendo muito barulho com as suas botas no 
chão de ladrilhos, passavam os servitas e as enfermeiras 
transportando os mortos e os urinóis; as crianças choravam; 
soprava o vento; e caminhavam com aspecto abatido os doentes 
internos, enfiados nas suas batas. Andrei Efimich sabia que para 
os doentes com febre, os tuberculosos e os sensíveis aquilo era um 
tormento, mas que podia fazer? No escritório, esperava-o Serguei 
Sergueich, o assistente, um homem pequeno, anafado, de cara 
redonda barbeada e lavada, de maneiras suaves, que, com o seu 
amplo fato novo, mais parecia um senador do que um assistente. 
Tinha numerosa clientela na cidade, usava gravata branca, e achava 
que sabia mais do que o próprio médico, que não exercia clínica 
privada. A um canto do escritório estava uma grande imagem com a 
correspondente lâmpada e, a seu lado, um genuflexório forrado de 
branco. Nas paredes havia retratos de prelados, uma vista do 
Mosteiro de Seviatogorsk e várias coroas secas de flores de 
aciano. Serguei Sergueich era um homem religioso e gostava de 
sumptuosidade. A imagem fora adquirida por ele. Aos domingos, um 
doente, obedecendo às suas ordens, lia em voz alta o livro de 
orações, depois do que o próprio Serguei Sergueich percorria todas 
as salas com o incensório, perfumando-as conscienciosamente. 
Os doentes são muitos e o tempo pouco, pelo que tudo se reduz a um 
breve interrogatório e à receita de um remédio qualquer, um 
unguento ou uma purga de óleo de rícino. Andrei Efimich deixa-se 
ficar sentado. 
 
23 
 
com a cara apoiada numa das mãos, pensativo, e faz as perguntas 
maquinalmente. Serguei Sergueich, também sentado, esfrega as mãos 
e intervém de vez em quando. 
- Padecemos doenças e sofremos doenças - proclama - porque não 
rezamos conforme é devido a Deus misericordioso. 
Andrei Efimich não pratica cirurgia; perdeu o hábito, e a vista do 
sangue produz-lhe uma sensação desagradável. Quando tem que mandar 
abrir a boca a uma criança para lhe examinar a garganta e o 
pequeno chora e se defende com as mãozinhas, o barulho causa-lhe 
náuseas e enchem-se-lhe os olhos de lágrimas. Apressa-se a 
escrever a receita e faz um gesto para que a mãe leve quanto antes 
a criança. 
Com a agradável sensação de que, graças a Deus, não tem doentes 
privados e ninguém virá incomodá-lo, Andrei Efimich instala-se no 
seu escritório, logo que chega a casa, e começa a ler. Lê muito e 
sempre com intenso prazer. Gasta metade do seu ordenado em livros, 
estando três divisões do andar que ocupa a abarrotar com livros e 
revistas velhas. O que mais lhe agrada são as obras de História e 
Filosofia. De Medicina assina apenas a publicação O Médico, que 
principia sistematicamente a ler pelas últimas páginas. A leitura 
prolonga-se sempre durante várias horas, sem nenhuma interrupção, 
e não o cansa. Não lê com tanta rapidez e ânsia como noutros 
tempos Ivan Dmitrich, mas devagar, e tratando de assimilar bem o 
sentido, parando com frequência nos parágrafos que mais lhe 
agradam ou que não entende. Ao lado do livro está sempre uma 
garrafa de vodka e pepinos de salmoura ou uma maçã de conserva, 
tudo colocado em cima da toalha, sem pratos. De meia em meia hora, 
sem desviar os olhos do livro, serve-se de um copo de vodka, bebe-
o, e a seguir, sem olhar, procura às apalpadelas o pepino e come 
um bocado. 
Às três horas aproxima-se silenciosamente da porta da cozinha, 
pigarreia e diz: 
Se pudesse comer, Dariushka... 
Depois do jantar, bastante mau e servido sem asseio, Andrei 
Hfimich, de braços cruzados, passeia pelas divisões da sua casa e 
medita. De quando em quando ouve-se ranger a porta da cozinha e 
vê-se assomar a cara corada e sonolenta de Dariushka. 
- Andrei Efimich, não serão horas de lhe servir a cerveja? - 
pergunta, solícita. 
- Não, ainda não... - responde Andrei. - Prefiro esperar um 
pouco... Prefiro... 
Ao cair da tarde costuma chegar Mikail Averianich, o chefe dos 
Correios, a única pessoa, em toda a cidade, cuja companhia não o 
aborrece. 
Mikail Avcriunich fora em tempos um fazendeiro muito rico e 
servira na cavalaria; mas arruinara-se e, já na velhice, a 
necessidade obrigara-o a ingressar no Departamento dos Correios. O 
seu aspecto era jovial e resplandecente de saúde, usava umas 
magníficas patilhas grisalhas, as suas maneiras denotavam boa 
educaçãoe possuía uma voz forte e agradável. Era bom e sensível, 
mas impulsivo. Se alguém vinha reclamar aos Correios, não aceitava 
os protestos ou começava a raciocinar por sua conta, ficava muito 
corado, frenético, e gritava com voz de trovão: "Calem-se!" De tal 
modo que o departamento alcançara a reputação de um lugar onde as 
pessoas tinham medo de ir. Mikail Averianich apreciava e estimava 
Andrei Efimich pela sua cultura e nobreza de espírito; e olhava o 
resto dos seus vizinhos com altivez, como se fossem seus 
subordinados. 
- Cá estou eu! - exclama ao entrar em casa de Andrei Efimich - 
Boas tardes, meu caro. Não está cansado de mim? 
Os dois amigos sentam-se no sofá do escritório e fumam durante 
algum tempo em silêncio. 
- Dariushka.se nos trouxesses cerveja... - diz Andrei Efimich. 
A primeira garrafa bebem-na ainda em silêncio: o doutor pensativo 
e Mikail Averianich com o aspecto alegre e animado de quem tem 
qualquer coisa muito interessante para contar. É o médico quem 
inicia sempre a conversa. 
- Que pena - diz em voz lenta e baixa, abanando a cabeça e sem 
olhar o seu interlocutor (nunca olha as pessoas de frente) - que 
pena, caro Mikail Averianich, que na nossa cidade não haja o que 
se chama ninguém que saiba e goste de manter uma conversa 
espirituosa, interessante! Para nós significa uma grande privação. 
Nem sequer os intelectuais se elevam acima do vulgar; o nível do 
seu desenvolvimento, asseguro-lhe, não é melhor do que o das 
classes baixas. - Tem toda a razão. Concordo consigo. 
- Você próprio sabe - continua o médico, em voz baixa, falando com 
lentidão - que neste mundo tudo carece de importância e interesse, 
excepção feita às supremas manifestações espirituais do raciocínio 
humano. A inteligência marca nítidas fronteiras entre o animal e o 
homem, sugere o carácter divino deste último, e, em certo grau, 
substitui a sua imortalidade, que não existe. Partindo desta base, 
o raciocínio e a única fonte do prazer. Nós, pelo contrário, não 
vemos nem sentimos junto de nós manifestações do raciocínio: ou 
seja, vemo-nos privados do prazer. É certo que temos os livros, 
mas isso é muito diferente da conversa viva e da convivência. Se 
me permite uma comparação não muito feliz,, os livros são as notas 
e a conversação o canto. 
- Inteiramente certo. 
Faz-se um silêncio. Dariushka sai da cozinha e com uma expressão 
de estúpido enlevo, com a cabeça apoiada no punho, pára no limiar 
da porta para escutar. 
- Ai! - suspira Mikail Averianich. - Você pretende exigir 
inteligência às pessoas de hoje! 
E começa a falar na vida de outros tempos, sã, alegre e 
interessante; na inteligência dos intelectuais na Rússia; e no seu 
alto conceito de honra e de amizade. Emprestava-se dinheiro sem 
exigir uma letra de câmbio e era considerado vergonhoso não 
estender a mão para ajudar um companheiro necessitado. E que 
campanhas, que aventuras, que brigas, que mulheres! E o Cáucaso, 
que maravilhoso país! A esposa de um chefe de batalhão, uma mulher 
muito estranha, costumava disfarçar-se de oficial e ir à tarde 
para as montanhas, sozinha, sem companhia. Dizia-se que naquelas 
aldeias tinha amores com um pequeno rei. 
- Rainha dos céus, mãezinha... - suspira Dariushka. 
E como se comia! Como se bebia! E que liberais aqueles! Andrei 
Efimich ouve e não ouve; pensa em qualquer coisa e toma um gole de 
cerveja. 
- Sonho frequentemente com pessoas inteligentes e que converso com 
elas - diz de súbito, interrompendo Mikail Averianich. - Meu pai 
deu-me uma excelente educação, e, sob a influência das ideias dos 
anos sessenta, obrigou-me a formar-me em Medicina. Parece-me que, 
se nessa altura não lhe tivesse dado ouvidos, estaria agora no 
próprio centro do movimento intelectual. Faria possivelmente parte 
de uma Faculdade. Claro que o raciocínio também não é eterno, mas 
um fenómeno passageiro. Mas você sabe porque tanto me agrada. A 
vida é um engano nojento. Quando o homem que pensa alcança a 
maturidade e está consciente dos seus actos, sente-se sem querer 
envolvido numa armadilha sem saída. Com efeito, contra sua 
vontade, em virtude de diversos acontecimentos fortuitos, foi 
arrancado do não ser para a vida... Para quê! Quer saber o sentido 
e o fim da sua existência e não lhe 
 
26 
 
dizem nada ou é estúpido o que lhe dizem. Chama e não lhe abrem. A 
morte vem, também contra sua vontade. E da mesma maneira que na 
prisão os homens ligados por um infortúnio comum sentem um alívio 
quando se reúnem, também na vida uma pessoa não evita as ciladas 
quando os homens inclinados para as análises e generalizações se 
juntam e passam o tempo trocando ideias orgulhosas e livres. - 
Neste sentido, a inteligência é um prazer insubstituível. 
- Tem toda a razão. 
Sem fixar o olhar no seu interlocutor, em voz baixa e 
pausadamente, Andrei Efimich continua a falar em homens 
inteligentes e em conversas com eles, enquanto Mikail Averianich 
escuta atentamente, concordando: "Tem toda a razão." 
- Você não acredita na imortalidade da alma? - pergunta de súbito 
o chefe dos Correios. 
- Não, caro Mikail Averianich, não acredito, nem tenho razões para 
acreditar. 
- Pois eu confesso que também tenho as minhas dúvidas. Apesar de 
que, quanto ao resto, tenho a sensação de que não hei-de morrer 
nunca. Às vezes penso: "Já são horas de morrer, velho maduro!" Mas 
certa vozinha exclama do fundo do meu coração: "Não acredites, não 
morrerás!..." 
Pouco depois das nove, Mikail Averianich retira-se. Ao vestir o 
casaco, na entrada, diz, suspirando: 
- No entanto, a que lugar perdido nos trouxe o destino! E o mais 
desagradável de tudo é que teremos que morrer aqui. Ah!... 
 
27 
 
VII 
 
Depois de se despedir do amigo, Andrei Efimich sentava-se à mesa e 
recomeçava a ler. Nem o mais pequeno ruído perturbava o silêncio 
da tarde e da noite. Parecia que o tempo se imobilizara juntamente 
com o médico e o seu livro; era como se não existisse mais nada 
senão esse livro e o candeeiro de petróleo, com o seu quebra-luz 
verde. O rosto tosco de mujique do médico iluminava-se pouco a 
pouco com um sorriso enternecido e entusiasta perante os reflexos 
da inteligência humana. "Oh!, por que razão o homem não é imortal? 
", pensava. "Para que servem os centros e circunvoluções 
cerebrais, para quê a vista, a fala, o próprio sentimento, o 
génio, se tudo isto vai parará terra e à posteridade, esfriará 
juntamente com a crosta terrestre, e depois, durante milhões de 
anos, seguirá unido com a Terra, sem nenhum outro sentido e sem 
finalidade, girando em volta do Sol? Para arrefecer e depois 
percorrer o espaço, não valia a pena tirar o homem do não ser, com 
a sua inteligência divina, e, a seguir, como para lhe pregar a 
partida, convertê-lo em barro." 
O intercâmbio de matéria! Que cobardia consolar-se com este 
sucedâneo da imortalidade! Os processos inconscientes que se 
verificam na natureza estão inclusivamente abaixo da estupidez 
humana, já que na estupidez, apesar de tudo, há consciência e 
vontade, e nos processos da natureza não há absolutamente nada. Só 
o cobarde, em quem o medo da morte é superior à dignidade, pode 
consolar-se pensando que o seu corpo viverá com o tempo, na erva, 
numa pedra, num sapo,... Ver a própria imortalidade no intercâmbio 
das matérias é tão absurdo como prometer um futuro brilhante ao 
estojo, depois que o valioso violino se estragou e deixou de 
servir. 
 
28 
 
Quando soam no relógio as badaladas, Andrei Efemich instala-se na 
cadeira e fecha os olhos para meditar um pouco, e, sem dar por 
isso, movido pelos agradáveis pensamentos que acabou de ler no 
livro, lança um olhar pelo passado e pelo presente. O passado é 
assunto que afasta, é melhor não o recordar. Quanto ao presente, 
passa-se em grande parte o mesmo. Sabe que enquanto os seus 
pensamentos giram à volta do Sol, à semelhança da Terra 
arrefecida, a meia dúzia de passos, no pavilhãoprincipal, há 
gente que sofre vítima das suas enfermidades e da sociedade que a 
rodeia. Acaso há alguém que não dorme e luta com os insectos, 
alguém que contraiu erisipela, ou geme sofrendo a dor de uma 
ligadura apertada. Talvez os doentes estejam a jogar às cartas com 
as enfermeiras e bebendo vodka. No ano passado foram enganadas 
doze mil pessoas. Toda a organização hospitalar, tal como há vinte 
anos, assenta no roubo, nas discussões, nas intrigas, na protecção 
injusta, no logro grosseiro, continuando o hospital a ser um 
estabelecimento imoral e nocivo, no mais alto grau, para a saúde 
das pessoas. Sabe que na enfermaria número seis, por detrás das 
grades, Nikita espanca os doentes e que Moiseika percorre a cidade 
todos os dias pedindo esmola. 
Por outro lado, sabe perfeitamente que, durante os últimos vinte e 
cinco anos, se produziu na Medicina uma mudança espectacular. 
Quando estudava na Universidade, pensava que a Medicina teria em 
breve a sorte da Química e da Metafísica; agora, pelo contrário, a 
Medicina comovia-o, despertando nele admiração e até mesmo 
entusiasmo, quando, à noite, se documentava lendo, efectivamente, 
que inesperada grandeza, que revolução! Graças aos anti-sépticos, 
realizavam-se operações que o grande Pirogov considerava 
impossíveis até in spe. Os simples médicos de província decidiam 
fazer ressecções do joelho; entre cem laporotomias, apenas se 
registava um caso mortal; e as pedras no rim eram consideradas uma 
doença tão insignificante que nem sequer havia nada escrito sobre 
ela. A sífilis curava-se radicalmente. E a teoria da 
hereditariedade, o hipnotismo, as descobertas de Pastcur e de 
Koch, a higiene baseada na estatística, a medicina russa dos 
zemstvos? A psiquiatria, com a sua actual classificação das 
doenças, com os métodos de diagnóstico e de tratamento, era 
qualquer coisa de inacreditável, em comparação com o 
 
‘ Nikolai Ivanich Pirogov (1810-1881), cirurgião russo. As suas 
investigações deram começo à orientação anatómica experimental em 
cirurgia. Contribuiu muito para o avanço da anestesia (N. do T.). 
 
29 
 
que existia antes. Agora já não se deitava água fria na cabeça dos 
loucos, nem os metiam em coletes-de-forças; facultavam-lhes 
condições humanas de vida, e, segundo publicavam os jornais, até 
lhes ofereciam espectáculos e bailes. Andrei Efimich sabia que, 
dentro desta ordem de coisas, uma vergonha como a da enfermaria 
número seis só era possível, a duzentos verxtas do caminho de 
ferro, numa miserável cidade em que o presidente da Câmara e todos 
os vereadores eram semianalfabetos, que viam no médico um 
sacerdote no qual era obrigatório acreditar sem a mais pequena 
crítica, ainda que deitasse na boca estanho derretido. Noutro 
lugar, desde há muito que o público e os jornais teriam feito em 
pedaços esta pequena Bastilha. 
E, então? pergunta a si próprio Andrei Efimich, abrindo os olhos. 
Qual é o resultado disto tudo? Temos os anti-sépticos, Koch, 
Pasteur, mas nada mudou na sua essência. A morbidez e a 
mortalidade continuam na mesma. Celebram-se bailes e espectáculos 
para os loucos, mas no entanto não os deixam sair à rua. Ou seja, 
que tudo é absurdo e vão e que, na sua essência, entre a melhor 
clínica de Viena e o meu hospital não existe qualquer diferença. 
Mas o desgosto e um sentimento parecido com a inveja não lhe 
permitem ficar indiferente. A causa deve ser a fadiga. A cabeça 
pesa-lhe e inclina-se sobre o livro. Põe a mão debaixo da cara 
como se fosse uma almofada e pensa: "Estou ao serviço de uma obra 
prejudicial e recebo dinheiro de pessoas a quem engano. Mas só por 
mim não sou nada, uma simples partícula de um mal social 
necessário: lodosos funcionários do distrito são nocivos e recebem 
um ordenado que não mereceram... O que significa que não sou eu o 
culpado de ser desonesto, mas sim o tempo... SE tivesse nascido 
duzentos anos mais tarde, seria um homem diferente." 
Às três horas apaga o candeeiro de petróleo e dirige-se para o 
dormitório. Não tem sono. 
 
30 
 
VIII 
 
Dois anos antes, o zemstvo sentira-se generoso e votara a 
concessão de um crédito de trezentos rublos anuais para aumentar o 
pessoal do hospital da cidade até que se inaugurasse outro mais 
apropriado. Para ajudar Andrei Efimich, requisitaram-se os 
serviços de Evgueni riodorich Kobotov. Era um médico muito jovem 
ainda não completara trinta anos, moreno e alto, com as maçãs do 
rosto salientes e olhos pequeninos. Os seus antecessores, 
provavelmente, não eram russos. Chegara à cidade sem um kopek, com 
uma maleta e uma mulher feia e jovem, que dizia ser sua 
cozinheira. A mulher trazia um filho de peito, Evgucni Fiodorich 
Kobotov usava gorro de pala e botas altas, e no Inverno uma 
pelica. Tornou-se íntimo amigo do assistente Serguei Sergueich e 
do tesoureiro, mantendo-se afastado dos demais funcionários, a 
quem não se sabe por que razão chamava aristocratas. Não tinha em 
sua casa senão um único livro: Últimas Receitas da Clinica de 
Viena para 1881, que levava sempre consigo quando ia visitar um 
doente. De tarde jogava bilhar no clube, pois não apreciava jogos 
de cartas. Gustava muito de empregar na conversação palavras e 
expressões como "pachorra", "pepinos de conserva", "não armes 
sarilhos", etc. 
Ia duas vezes por semana ao hospital, percorria as enfermarias e 
recebia os doentes externos. 'A total falta de anti-sépticos e as 
ventosas irritavam-no, mas não se decidia a fazer inovações com 
receio de poder com isso melindrar Andrei Efimich. Considerava 
este um velho farsante, tomando-o por um homem rico e invejando-o 
no seu íntimo. De muito boa vontade ocuparia o seu lugar. 
 
31 
 
IX 
 
Numa noite primaveril de fins de Março, quando a neve desaparecera 
do chão e os estorninhos cantavam no jardim do hospital, o médico 
saiu até ao portão para acompanhar o chefe dos Correios, seu 
amigo. Naquele preciso momento entrava no pátio o judeu Moiseika, 
que regressava com o seu pecúlio. Não trazia gorro e vinha sem 
meias, com os pés enfiados nuns tamancos muito usados. Trazia na 
mão um saquito com as esmolas. 
- Dá-me um kopek - pediu ao médico, tiritando de frio e sorrindo. 
• Andrei Efimich, que nunca soubera dizer que não, deu-lhe uma 
moeda de dez, kopcks. 
"Que horror! pensou, olhando para os seus pés descalços, com os 
tornozelos delgados e roxos. Vem completamente molhado." 
E, movido por um sentimento ao mesmo tempo de piedade e de 
repugnância, dirigiu-se ao pavilhão atrás do judeu, olhando a sua 
cabeça calva e os tornozelos. Ao ver entrar o doutor, Nikita 
levantou-se num salto de sobre o montão de trapos onde estava 
deitado e colocou-se em posição de sentido. 
- Olá, Nikita - disse Andrei Efimich em tom suave - era preciso 
dar umas botas a este judeu; senão pode apanhar um resfriamento. 
- As suas ordens, meu senhor. Levarei esse assunto ao conhecimento 
do inspector. 
- Sim, faz favor. Pede-lhe em meu nome. Diz que sou eu que peço. 
A porta do vestíbulo que dava entrada para a sala estava aberta. 
Ivan Dmitrich permanecia deitado no seu catre, ergueu-se atento 
àquela voz estranha, tendo de súbito reconhecido o médico. 
Estremecendo de cólera, pôs-se de pé, num salto, congestionado e 
com os olhos a sair das órbitas, e correu para o meio da sala. 
 
32 
 
- Chegou o médico! - gritou, dando uma gargalhada. - Finalmente! 
Felicito-os, meus senhores, o médico dignou-se visitar-nos! 
Maldito réptil! - gritou, e, frenético como nunca o tinham visto 
na enfermaria, deu com o pé uma pancada no chão. - Temos que matar 
este réptil! Não, matá-lo é pouco! Temos que o lançar ao fundo do 
poço! 
Andrei Efimich, que o ouvira, olhou-o do vestíbulo e perguntou 
suavemente: 
- E então, porquê? 
- Porquê? - gritou Ivan Dmitrich, aproximando-se dele com ar 
ameaçador e agitando-se convulsivamente na sua bata. - Porquê? 
ladrão! - acrescentou com repugnância, juntandoos beiços como se 
se preparasse para lhe cuspir - Charlatão! Carrasco! 
- Acalme-se - disse Andrei Efimich, sorrindo como quem se 
desculpa. - Asseguro-lhe que nunca roubei nada a ninguém, e quanto 
ao resto exagera provavelmente muito. Noto que está muito zangado 
comigo. Peço-lhe que sossegue, se puder, e diga-me calmamente: 
quais os motivos do seu aborrecimento? 
- Porque me tem aqui? 
- Porque está doente. 
- Sim, estou doente. Mas dezenas e centenas de loucos passeiam em 
liberdade porque, na sua ignorância, ninguém os distingue das 
pessoas sãs. Por que razão estes desgraçados e eu temos que estar 
aqui em nome de todos, como cabeças-de-turco? O senhor, o 
assistente, o inspector e toda essa canalha do hospital estão 
moralmente muito abaixo de nós. Porque havemos de estar 
encarcerados e não vocês? Onde está a lógica disto? 
- O sentido moral e a lógica não tem nada a ver com isso. É tudo 
obra do destino. Encontram-se aqui os que foram internados, e 
aqueles que não foram passeiam-se livremente, e é tudo. O facto de 
eu ser médico e você um doente mental não tem nada a ver para o 
caso, nem a moral nem a lógica; É simplesmente o destino. 
- Não entendo essa estupidez... - balbuciou em surdina Ivan 
Dmitrich, e sentou-se no seu catre. 
Moiseika, a quem Nikita não se atrevia a castigar em presença do 
médico, foi colocando em cima da cama nacos de pão, papéis e 
ossos, e ainda tiritando de frio principiou a falar, com voz, 
rápida e cantante, em hebreu. Imaginava provavelmente que tinha 
aberto uma loja. 
 
33 
 
- Deixe-me ir embora - disse Ivan Dmitrich com voz trémula. 
- Não posso. 
- Porquê? Porquê? 
- Porque isso é uma coisa que não depende de mim. Avalie você 
próprio: que acontecerá se o deixar sair? Vá-se embora. Arrisca-se 
a ser preso pela gente da cidade, ou pela Polícia, e voltarão a 
trazê-lo. 
- Sim, sim, isso é verdade... - articulou Ivan Dmitrich, e passou 
a mão pela fronte. - É horrível! E que posso fazer? O quê? 
A voz de Ivan Dmitrich e a sua cara jovem e inteligente, agitada 
por tiques nervosos, agradaram a Andrei Efimich. Sentiu desejo de 
lhe dizer alguma coisa carinhosa e consoladora. Sentou-se junto 
dele no catre, ficou uns instantes pensativo e disse: 
- Que há-de fazer, pergunta? Na sua situação o melhor seria fugir 
daqui. Mas infelizmente seria inútil. Prendê-lo-iam. Quando a 
sociedade se protege contra os delinquentes, enfermos mentais e 
gente que incomoda em geral, não há ninguém que se possa defender. 
A única solução que lhe resta é dominar-se, procurando compreender 
que a sua estada aqui é necessária. 
- Não é necessária para ninguém. 
- Visto que existem as prisões e os manicómios, alguém tem que lá 
estar; se não for o senhor serei eu, e se não for eu será outra 
pessoa. Aguarde; quando num futuro longínquo deixarem de existir 
as prisões e os manicómios, não haverá mais grades nas janelas nem 
essas fardas. Isto sucederá, é claro, mais tarde ou mais cedo. 
Ivan Dmitrich sorriu com ironia. 
- Está a brincar - disse revirando as pálpebras. - As pessoas como 
você e o seu ajudante Nikita não se preocupam absolutamente nada 
com o futuro. Mas pode estar certo, senhor, de que virão tempos 
melhores! Talvez me exprima de maneira banal, ria-se se quiser, 
mas resplandecerá a aurora de uma vida nova, triunfará a justiça e 
nós estaremos de parabéns, eu já não assistirei a isso, rebentarei 
antes, mas vê-lo-ão os nosso bisnetos. Saúdo esse momento com toda 
a minha alma e alegro-me. Alegro-me por eles! Avante! Que Deus os 
ajude, amigos! 
Ivan Dmitrich levantou-se, com os olhos resplandecentes, e, 
estendendo as mãos em direcção à janela, prosseguiu com voz 
emocionada: 
- Através destas grades os abençoo! Viva a justiça! Estou 
satisfeito! 
 
34 
 
- Não vejo grandes motivos para se alegrar - replicou Andrei 
Efimich, a quem a atitude de Ivan Dmitrich, embora lhe parecesse 
teatral, agradara extremamente. - Não haverá prisões nem 
manicómios, e a justiça, segundo a sua própria expressão, 
triunfará, mas não mudará a essência das coisas, e as leis da 
natureza serão as mesmas. Os homens sofrerão doenças, envelhecerão 
e morrerão tanto como agora. Por melhor que seja a estrela que 
ilumina a sua vida, no final metem-nos num ataúde e lançam-nos na 
fossa. 
- Ha imortalidade? 
- Não fale nisso! 
- O senhor talvez não acredite nela.mas eu acredito. Numa obra de 
Dostoievski ou Voltaire, há alguém que diz que se Deus não 
existisse, tê-lo-iam inventado os homens. Estou profundamente 
convencido de que se a imortalidade não existe, mais tarde ou mais 
cedo será superiormente inventada pela mentalidade humana. 
- Bem dito - articulou Andrei Efimich, sorrindo satisfeito. - 
Agrada-me que você acredite. Com essa fé, até mesmo um 
enclausurado pode viver perfeitamente. Você fez alguns estudos? • 
- Sim, estive na Universidade, mas não cheguei a acabar a 
carreira. 
- Você é um homem que sabe pensar. Em qualquer situação pode 
encontrar tranquilidade interior. O pensamento livre e profundo, 
que aspira a compreender a vida, e o desprezo total pela estúpida 
vaidade humana são os dois bens supremos que o homem conhece, e 
você pode possuí-los ainda que viva atrás de grades. Diógenes 
viveu num tonel, mas, apesar disso, foi mais feliz que todos os 
reis da Terra. 
- Diógenes era parvo - rosnou Ivan Dmitrich, mal humorado. - 
Porque me fala de Diógenes e da compreensão humana? - explodiu 
subitamente, pondo-se de pé. - Eu amo a vida, amo-a 
apaixonadamente! Sofro de mania da perseguição, um medo permanente 
que me tortura, mas há momentos em que me domina a sede de viver, 
e então receio enlouquecer. Tenho uma ânsia de viver 
espantosa,espantosa! 
Dominado pela agitação, deu uns passos pela sala e disse, baixando 
a voz: 
- Quando sonho vejo fantasmas. Aparecem-me uns homens, oiço vozes, 
música, parece-me que passeio por um bosque à beira-mar, e sinto 
um tal desejo de ter interesses na vida, fazer alguma coisa... 
Diga-me, que há de novo por aí? - perguntou Ivan Dmitrich. - Que 
novidades há? 
 
35 
 
- Deseja saber da cidade ou de uma maneira geral? 
- Bem, em primeiro lugar fale-me da cidade e depois em geral. 
- Que posso dizer-lhe? A vida na cidade é de um aborrecimento que 
dá náuseas... Não há com quem trocar uma palavra, não há ninguém 
que se possa ouvir. Não há gente nova. Quanto ao resto, chegou há 
pouco Kobotov, o jovem médico. 
- Chegou antes de me terem internado. É um homem boçal, não é 
verdade? 
- Sim, não é um homem culto. É estranho, sabe?... De uma maneira 
geral, nas nossas cidades não há estagnação intelectual, há 
movimento: quero dizer que nas cidades deve haver gente capaz. 
Mas, não sei porque, mandam-nos sempre pessoas para quem não se 
pode nem olhar. Desgraça da cidade! 
- Sim, desgraçada cidade! - suspirou Ivan Dmitrich e desatou a 
rir. - E, de um modo geral, que se passa? Que dizem os jornais e 
as revistas? 
A sala estava já envolta em penumbra. O médico levantou-se e, 
sempre de pé, principiou a contar o que se publicava no 
estrangeiro e na Rússia, e qual a orientação que se observava no 
campo das ideias. Ivan Dmitrich escutava atentamente e fazia 
perguntas; mas, de repente, como se recordasse qualquer coisa de 
horrível, agarrou a cabeça com as mãos, deitando-se no catre, de 
costas para o médico. 
- Que lhe aconteceu? - perguntou Andrei Efimich. 
- Não ouvirá nem mais uma pergunta minha! - articulou 
grosseiramente Ivan Dmitrich. Deixe-me! 
- E porque? 
- Repito que me deixe! Que diabo está a fazer aqui? - Andrei 
Efimich encolheu os ombros, deixou escapar um suspiro e abandonou 
a enfermaria. Ao passar no vestíbulo disse: 
- Seria conveniente limpar isto, Nikita... Está um cheiro 
horrível! 
- As suas ordens, meu senhor. 
"Que rapaz tão interessante pensou Andrei Efimich, enquanto se 
dirigia ao seu andar. Desde que vivo aqui, creio que é a primeira 
pessoa que encontrocom quem se pode falar. Sabe raciocinar e 
interessa-se precisamente pelo que deve ser." 
Durante a sua sessão de leitura e depois, ao deitar-se, não deixou 
de pensar em Ivan Dmitrich. Ao acordar, na manhã seguinte, 
recordou que na véspera conhecera um homem inteligente e com 
interesse, tomando a decisão de ir visitá-lo na primeira 
oportunidade. 
 
36 
 
Ivan Dmitrich permanecia na mesma posição da véspera, com a cabeça 
entre as mãos e as pernas encolhidas. Não se lhe via a cara. 
- Boas tardes, meu amigo - disse Andrei Efimich. - Não está a 
dormir? 
- Em primeiro lugar, não sou seu amigo - retorquiu Ivan Dmitrich, 
com a cara enterrada na almofada. - E, em segundo lugar, é inútil 
o seu interesse: não me arrancará uma só palavra. 
- É estranho... - balbuciou Andrei Efimich, perturbado. - Ontem 
estávamos a conversar tranquilamente e, de repente, você ofendeu-
se e não quis continuar...Terei talvez dito coisas que não lhe 
agradaram, ou manifestado alguma opinião contrária às suas 
ideias... 
- Como posso acreditar em si? - disse Ivan Dmitrich,erguendo-se e 
olhando o médico com uma mistura de ironia e de inquietação; os 
seus olhos estavam injectados de sangue. - Pode ir espiar e iludir 
para outro sítio; aqui não tem nada que fazer. Ontem compreendi 
bem as razões que o trouxeram. 
- Que estranha fantasia! - sorriu o médico com ironia. - Imaginará 
você que sou um espião? 
- Penso que sim... Um espião ou um médico a quem incumbiram da 
missão de me pôr à prova, é a mesma coisa. 
- Que pessoa tão excêntrica que você é. Perdoe-me a expressão. - O 
médico sentou-se numa banquinha junto da cama e abanou a cabeça 
num gesto de reprovação. 
- Suponhamos que tem razão - prosseguiu. - Admitamos que venho com 
a malévola intenção de o fazer falar para o denunciar. Podem levá-
lo preso e a seguir condená-lo. Mas estaria pior no tribunal e na 
prisão do que aqui? E ainda que o exilem e inclusivamente o 
 
37 
 
mandem para o presídio, seria pior do que permanecer neste 
pavilhão? Creio que não .. .Então de que tem medo? 
Estas palavras pareceram influir em Ivan Dmitrich, que se sentou 
calmamente. 
Eram pouco mais de quatro da tarde, hora em que Andrei Efimich 
tinha por costume passear pelas divisões da sua casa e Dariushka 
lhe perguntava se queria cerveja. Estava um dia tranquilo e claro. 
- Depois do jantar saí a dar um passeio e vim até aqui, como pode 
verificar - disse o médico. - Está um tempo primaveril. 
- Em que mês estamos? Em Março? - perguntou Ivan Dmitrich. 
- Sim, em fins de Março. 
- Há lama nas ruas? 
- Não, nem por isso. No jardim já há veredas. 
- Neste momento gostaria de dar um passeio de carro pelos 
arredores da cidade - ponderou Ivan Dmitrich, esfregando os olhos 
avermelhados como se despertasse do sono. - E depois voltar para 
casa, para um escritório aquecido e confortável, e fazer que um 
bom médico me curasse a dor de cabeça... Já há tempos que não vivo 
como gente. Isto aqui é um nojo! Um nojo insuportável! 
Depois da excitação da véspera, estava cansado e falava com 
desalento. Tremiam-lhe os dedos e notava-se pela sua expressão que 
lhe doía muito a cabeça. 
- Entre um escritório aquecido e confortável e esta sala não há a 
mais pequena diferença - respondeu Andrei Efimich. - O repouso e a 
satisfação não estão fora do homem, mas dentro de si próprio. 
- Que quer isso dizer? 
- O homem vulgar espera o bom e o mau do exterior, quer dizer, do 
carro e do escritório, enquanto o homem que pensa espera-o de si 
próprio. 
- Vá pregar essa filosofia para a Grécia, onde está calor e cheira 
a laranjas; o clima aqui não favorece. Com quem falei de Diógenes? 
Foi consigo? 
- Sim, foi ontem comigo. 
- Diógenes não precisava de um escritório e uma casa aquecida; a 
Grécia é um país quente; podia permanecer no seu tonel comendo 
laranjas e azeitonas. Mas se tivesse vivido na Rússia, já não digo 
em Dezembro, mas mesmo em Maio, teria pedido uma casa. Ficaria 
gelado. 
- Não. Pode resistir-se ao frio como a qualquer outra dor. Marco 
Aurélio disse: "A dor é a exteriorização viva da dor: faz um 
esforço de 
 
38 
 
vontade para mudar esta exteriorização, repele-a, deixa de te 
lamentar, e a dor desaparecerá." Isto é exacto. O sábio ou 
simplesmente o homem que pensa, que medita, distingue-se 
precisamente pelo facto de que despreza o sofrimento. Está sempre 
satisfeito e nada o desgosta. 
- Quer isso dizer que sou idiota, visto que sofro, estou 
descontente e desgosta-me a maldade humana. 
- Não deve pensar assim. Se reflectir, compreenderá a significação 
de tudo o que é exterior, tudo o que nos inquieta. Há que tentar 
compreender a vida; nisso está o verdadeiro bem. 
- Compreender a vida... - replicou Ivan Dmitrich, franzindo o 
sobrolho. - O exterior, o interior... Perdão, mas não o 
compreendo. A única coisa que sei - concordou, levantando-se e 
olhando irritado para o médico - a única coisa que sei é que Deus 
me criou com sangue quente e nervos, como está a ouvir! O tecido 
orgânico, se é capaz de vida, deve reagir a qualquer excitação. E 
eu reajo! A dor respondo com gritos e lágrimas; à maldade, com 
indignação; à vilania, com asco. Quanto a mim, isto é, na 
realidade, aquilo a que se chama vida. Quanto mais débil é o 
organismo, menos sensível se mostra e mais frouxamente resiste à 
excitação. E quanto mais elevado, tanto mais sensível e enérgica é 
a sua reacção à realidade. Como pode ignorá-lo? É você médico e 
não sabe umas coisas tão elementares! Para desprezar a dor, estar 
sempre satisfeito e não se preocupar com coisa alguma há que 
atingir esse estado - Ivan Dmitrich apontou para o mujique obeso, 
transbordante de gordura -, ou então ter-se identificado com a dor 
até ao extremo de perder qualquer sensibilidade em relação a si 
próprio; ou seja, por outras palavras, deixar de existir. Perdoe-
me, não sou sábio nem filósofo - prosseguiu, irritado -, e não 
compreendo nada destas coisas. Não me sinto em condições de 
raciocinar. 
- Pelo contrário, você raciocina até muito bem. 
- Os estóicos a que você se refere eram homens notáveis, mas a sua 
doutrina estagnou há dois mil anos e não avançou mais, nem 
avançará, porque não é prática nem tem vida. Apenas obteve um 
certo êxito entre uma minoria que passa o seu tempo a estudar e a 
ruminar toda a espécie de doutrinas; a maior parte das pessoas não 
chegou a compreendê-la. Uma doutrina que preconiza a indiferença 
em relação às riquezas, às comodidades da vida, e o desdém pelos 
sofrimentos e a morte, é totalmente incompreensível para a imensa 
maioria, já que esta não conheceu nunca as riquezas nem as 
comodidades. E desprezar o sofrimento significaria para ela 
desprezar a própria vida, visto que o 
 
39 
 
homem na sua essência é feito de sensações de fome, frio, 
desconsiderações, derrotas, e um medo perante a morte à semelhança 
de Hamlet. Nestas sensações está encerrada a vida inteira: pode 
cansar-nos, podemos odiá-la, mas não desprezá-la. Assim, portanto, 
repito: a doutrina dos estóicos nunca poderá ter futuro. Pelo 
contrário, aquilo que progride, conforme pode observar, desde o 
princípio do mundo até ao dia de hoje, é a luta, a sensibilidade 
perante a dor, a capacidade de responder às excitações... 
Ivan Dmitrich perdeu subitamente o fio ao discurso e calou-se, 
passando irritado a mão pela testa. 
- Queria dizer qualquer coisa importante, mas não me recordo - 
declarou. - De que tenho estado a falar? Ah, é verdade! Já sei o 
que estava a dizer. Um estóico vendeu-se como escravo para redimir 
o seu semelhante. Como vê, isso significa que também o estóico 
reagiu à excitação, visto que para realizar um acto tão generoso 
como o de se aniquilar a si próprio para bem do próximo é 
necessário ter uma alma capaz de se indignar e de se compadecer. 
Aqui, nesta prisão, esqueci tudo o que aprendi; possuía alguns 
conhecimentos que poderia recordar. E, se olharmospara Cristo? 
Cristo reagiu perante a realidade com as suas lágrimas, o seu 
sorriso, a sua tristeza, a sua cólera, até mesmo com a sua 
angústia. Não foi com um sorriso ao encontro do sofrimento, nem 
desprezou a morte, mas, pelo contrário, orou no horto de 
Getsémani, para que afastassem dele o cálix da amargura. 
Ivan Dmitrich principiou a rir e sentou-se. 
- Admitamos que a tranquilidade e a satisfação estão dentro do 
próprio homem, e não fora dele - disse. - Admitamos que há que 
desprezar o sofrimento e não se admirar com coisa alguma. Mas em 
que se apoia você para o proclamar? Julga-se um sábio? Um 
filósofo? 
- Não, não sou um filósofo, mas isto qualquer pessoa o deve 
proclamar, porque é sensato. 
- Não, o que pretendo saber é porque se considera competente no 
que respeita à compreensão do mundo, o desprezo pelo sofrimento e 
tudo o mais. Acaso não terá sofrido nunca? Tem alguma noção do que 
é o sofrimento? Diga-me: batiam-lhe quando era pequeno? 
- Não, meus pais eram contrários aos castigos corporais. 
- Pois, a mim, meu pai tocava-me a pavana. Era um funcionário 
público, de carácter violento, que sofria de hemorróidas, e tinha 
um grande nariz e pescoço amarelo. Mas falemos de si. Em toda a 
sua vida nunca ninguém lhe tocou nem com um dedo, ninguém o 
assustou nem 
 
40 
 
lhe bateu; tem uma saúde de ferro, cresceu amparado por seu pai, 
que lhe pagou os estudos, e depois obteve imediatamente uma 
sinecura. Vive de graça há mais de vinte anos, numa casa com 
aquecimento e luz. tendo uma serviçal; deixam-no trabalhar como e 
quando quer; pode, inclusivamente, não fazer nada. É preguiçoso e 
frouxo por natureza, por isso tratou de organizar a sua vida de 
modo a que nada o inquietasse nem obrigasse a mexer-se. Abandonou 
tudo nas mãos do assistente e outros canalhas, enquanto o senhor 
ficava na sua casa aquecida e silenciosa, juntava dinheiro, lia 
livros, entregava-se a meditações sobre toda a espécie de sublimes 
coisas estúpidas - e aqui Ivan Dmitrich parou fitando o nariz 
vermelho do médico - bebia. Numa palavra, não sabe nada da vida, 
não a conhece em absoluto; da validade tem apenas uma noção 
teórica. Se desdenha do sofrimento e nada o perturba, é por uma 
razão muito simples: vaidade das vaidades; o externo e o interno, 
o desprezo pela vida, pelos sofrimentos e pela morte, a 
compreensão do mundo, o verdadeiro bem: tudo isto e a filosofia 
mais apropriada ao vadio russo. Você vê, por exemplo um mujique a 
bater na mulher. Para quê meter-se de permeio? Que lhe bata; tanto 
faz, têm de morrer os dois mais tarde ou mais cedo; além do mais, 
quem bate não magoa com as suas pancadas a quem as recebe, mas a 
si próprio. Embebedar-se é uma coisa estúpida e indecorosa, mas 
beber é morrer e não beber também o é. Aparece uma mulher com dor 
de dentes... E então? A dor é o sinal do sofrimento e sem doenças 
é impossível viver; todos temos de morrer. Assim o quê, mulher? 
Vai-te daqui e deixa-me que pense e beba vodka. Um jovem pede um 
conselho, pergunta que deve fazer, como viver. Outro, antes de 
responder, meditaria, mas você tem a resposta preparada: procura 
compreender o sentido da existência ou aspira ao autêntico bem. E 
o que é esse fantástico "autêntico bem"? Não existe resposta, 
claro. A nós têm-nos aqui entre grades, apodrecemos, martirizamo-
nos, mas isso é belo e racional, porque entre esta enfermaria e um 
escritório aquecido e confortável não há nenhuma diferença. É uma 
filosofia muito cómoda; não há nada a fazer, a pessoa tem a 
consciência tranquila e considera-se sábio... Não, senhor, isso 
não é filosofia, não é pensamento, não é grandeza de ideias, mas 
preguiça, mentalidade de faquir, hipóteses... Sim! - voltou a 
irritar-se Ivan Dmitrich - despreza o sofrimento, mas se lhe 
entalassem um dedo numa porta bradava aos céus! 
- Talvez não - disse Andrei Efimich, sorrindo docemente. 
 
41 
 
- Claro que sim! Mas se acaso ficasse paralítico ou se, 
suponhamos, um estúpido e insolente, valendo-se da sua posição e 
do seu prestígio, o ofendesse em público e você tivesse 
conhecimento que o assunto ia ficar impune, compreenderia então o 
que significa isso de se conformar, no que se refere aos outros, 
ao sentido da vida e ao autêntico bem. 
- Isso é original - disse Andrei Efimich, rindo de satisfação e 
esfregando as mãos. - Impressiona-me agradavelmente o seu gosto 
pelas generalizações, e o que disse de mim é simplesmente 
brilhante. Tenho que confessar que a conversa consigo me 
proporciona um prazer extraordinário. Bem, estive a ouvi-lo; agora 
faça o favor de me ouvir a mim... 
 
42 
 
XI 
 
Esta conversa prolongou-se cerca de uma hora e produziu, segundo 
parece, uma profunda impressão em Andrei Efimich. A partir de 
então habituou-se a ir todos os dias ao pavilhão. Costumava 
aparecer de manhã e depois do jantar, sendo frequentemente 
surpreendido ao entardecer a conversar com Ivan Dmitrich. Nos 
primeiros tempos este mostrava-se insociável, desconfiando que 
Andrei Efimich vinha de má fé, e manifestando abertamente a sua 
hostilidade; mas depressa se acostumou a cie e a sua brusquidão de 
antes transformou-se numa atitude indulgente e irónica. 
Não tardou em propagar-se no hospital o rumor de que o doutor 
Andrei Efimich começara a visitar a enfermaria número seis. 
Ninguém, nem o assistente, nem Nikita, nem as enfermeiras, 
compreendiam a razão dessa atitude, nem porque passava ali as 
horas mortas, ou de que assunto falava, e porque nunca receitava. 
As suas atitudes causavam estranheza. Mikail Avcrianich 
frequentemente não o encontrava em casa, coisa que antes nunca 
acontecia. E Dariushka sentia-se desorientada, em virtude de o 
médico ter deixado de tomar a sua cerveja a determinada hora, e 
até às vezes chegar tarde para comer. 
Numa ocasião passava-se isto já em fins de Junho , tendo o doutor 
Kobotov tido necessidade de falar com Andrei Efimich, foi a sua 
casa; como não o encontrasse, procurou-o no pátio, onde lhe 
disseram que o velho médico estava no pavilhão com os doentes 
mentais. Ao entrar no pavilhão, parou no vestíbulo ouvindo a 
seguinte conversa: 
- Nunca chegaremos a um acordo, não conseguirá convencer-me - 
dizia Ivan Dmitrich, irritado. - O senhor não conhece nada do que 
é a realidade e nunca sofreu. A única coisa que fez 
 
43 
 
foi alimentar-se como uma sanguessuga com os sofrimentos alheios; 
eu, pelo contrário, sofri desde o dia em que nasci até ao dia de 
hoje. Por isso digo-lhe francamente que me considero superior a si 
e mais competente em todos os sentidos. Você não é ninguém para me 
dar lições. 
- Não pretendo de modo algum convertê-lo às minhas convicções - 
murmurava Andrei Efimich em voz baixa e como lamentando que não 
quisessem entendê-lo. - Não se trata disso, meu amigo. Não se 
trata de você ter sofrido e eu não. As alegrias e os sofrimentos 
são efémeros. Ponhamo-los de parte, e que os leve o vento. Trata-
se do que você e eu pensamos; vemos, um no outro, duas pessoas 
capazes de pensar e raciocinar, e isto torna-nos solidários por 
mais diferentes que sejam os nossos pontos de vista. Se você 
soubesse, amigo, como me aborrecem a loucura geral, a falta de 
talento, a torpeza, e como me alegra conversar consigo! Você é uma 
pessoa inteligente e encanta-me a sua conversa. 
Kobotov entreabriu a porta, lançando um olhar para a sala. Ivan 
Dmitrich, com o seu gorro de dormir, e o doutor Andrei Efimich 
estavam sentados no catre, um ao lado do outro. O louco 
gesticulava, estremecia, amarfanhava-se convulsivamente na sua 
bata, enquanto o médico permanecia imóvel, com a cabeça baixa; e a 
sua face estava corada e mostrava uma expressão abatida e triste. 
Kobotov encolheu os ombros, sorriu ironicamente e trocou um olhar 
com Nikita. Este encolheu igualmente os ombros. 
No dia seguinte, Kobotov apresentou-se no pavilhão acompanhado 
pelo assistente. Pararam ambos à escuta,

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