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A ENFERMARIA Nº 6 e outros contos Anton Tchekov ANTON Pavlovitch TCHEKOV nasceu em Tapanrog, nas margens do mar de Azov, na Rússia, em 1860, e morreu em Hadenweilcr, na Alemanha, em 1904. Neto de camponeses, recebeu uma formação escolar precária, na província. Para prover às necessidades económicas da família e custear os seus estudos de Medicina, em Moscovo, Tchekov escreve contos humorísticos e crónicas, que publica em jornais. Em 1884 é editada a sua primeira recolha de contos. Datam também dessa altura as primeiras peças de teatro: Os Malefícios do Tabaco (1886), Ivanov (1887, a mais importante das obras deste período), O Urso (1888), O Pedido de Casamento (1888) e O Casamento (1889). É com a publicação de uma novela, Â lístepc (1888), que Tchekov vê consolidada a sua posição de escritor. Dos jornais humorísticos em que colaborava, passa a escrever para revistas literárias; e o conto, até então considerado género menor na Rússia, assume nova importância. Em 1890 viaja pela ilha de Sacalina, lugar de deportação dos condenados a trabalhos forçados, e descreve-a num livro objectivo e comovente (1893). Viaja pelo estrangeiro em 1891, e compra uma propriedade nos arredores de Moscovo. Preocupado com a sorte dos camponeses, manda construir escolas e estradas. Os anos de 1891 a 1897 são bastante férteis para a sua obra: desta época data A Enfermaria nº 6, uma das suas novelas mais notáveis. Toda a dramaturgia tchekoviana é caracterizada por uma aversão aos acontecimentos espectaculares ou "teatrais". Entretanto, o encontro com a arte de Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscovo é decisivo para o desenvolvimento da concepção cénica de Tchecov. A Gaivota (1896) fracassa aquando da sua estreia em Moscovo, que coincide com o agravamento da tuberculose de que Tchekov padecia há anos. Passa o Inverno de 1897-1898 em Nice, e em 1899 compra uma propriedade em Yalta, na Crimeia. Só após o seu casamento com Olga Knipper (1898), primeira actriz do Teatro de Arte, de Stanislavski, têm início os seus triunfos dramáticos. É nos últimos anos de vida que Tchecov escreve as melhores peças da sua produção: O Tio Vânia (l 899), As Três Irmãs (1901) e O Pomar das Cerejeiras, a sua obra-prima (1904). Ao lado de Gogol e Gorki, Tchekov é dos maiores contistas da literatura russa. Debruçando-se piedosamente sobre os diversos tipos sociais da época, Anton Tchecov não revela nas suas obras quaisquer tendências políticas ou religiosas, ao contrário de tantos escritores russos. Não obstante a sua irreligiosidade, confere às coisas mais insignificantes um conteúdo densamente filosófico e uma tonalidade estranhamente mística. Versão portuguesa de Maria Luísa Anahory e Editorial Verbo Composto e impresso por Gris, Impressores Lisboa 1972 Livros RTP Biblioteca Básica Verbo nº 67 ANTON TCHEKOV A ENFERMARIA Nº 6 e outros contos A ENFERMARIA NÚMERO SEIS I No pátio do hospital existe um pequeno pavilhão rodeado de um autêntico matagal de cardos, urtigas e cânhamo silvestre. Tem o tecto oxidado, a chaminé meio destruída, os degraus da entrada apodrecidos e cobertos de erva, e do estuque restam vestígios. A fachada dá para o hospital e as traseiras para o campo, e deste separa-o uma vedação de madeira, pintada de cinzento e encimada por pregos. Estes pregos com os bicos para cima, a vedação e o próprio pavilhão oferecem aquele aspecto característico, triste e repulsivo, que no nosso país apenas os hospitais e as prisões apresentam. Se não tendes receio das urtigas, caminhemos pelo estreito atalho que conduz ao pavilhão, e lancemos um olhar ao que se passa no interior. Abrimos a primeira porta e entramos no vestíbulo. Aqui, junto à lareira, há montanhas de objectos e roupas. Colchas velhas, batas esfarrapadas, calças, camisas de riscas azuis, sapatos rotos e inúteis: todos estes trapos estão amontoados, amarrotados, remexidos, meio apodrecidos, emanando um cheiro pestilento. Permanentemente deitado sobre este lixo, com o cachimbo entre os dentes, está o trapeiro Nikita, velho soldado reformado, de galões desbotados. Tem a expressão do homem que gosta de beber; sobrancelhas arqueadas, que lhe dão o aspecto de um mastim das estepes e o nariz vermelho; de estatura baixa, seco e nervoso;mas tem um físico que se impõe e possui mãos enormes. Pertence àquela classe de pessoas simples, cumpridoras do seu dever e obstinadas, que põem a ordem acima de tudo, sinceramente convencidas de que o emprego da força é indispensável. Bate ao acaso, na cara, no peito, nas costas, em qualquer parte, com a certeza de que de outro modo não poderia manter a ordem. 7 Entramos em seguida numa divisão grande, muito espaçosa, que ocupa todo o pavilhão, salvo o vestíbulo. As paredes estão pintadas num tom azulado, e o tecto está enegrecido como nessas isbás onde não existe chaminé: vê-se que acendem a lareira no Inverno e que esta deita muito fumo. As janelas estão protegidas por dentro com varões de ferro. O chão é cinzento, e tem tábuas lascadas. Cheira a couve azeda, a fumo da torcida da lamparina, a percevejos e a amoníaco, dando este cheiro nauseabundo a impressão de termos entrado numa jaula de feras. Nesta sala estão dispostas várias camas, fixadas ao chão. Sempre sentados ou deitados, há homens envergando as fardas azuis do hospital, e tendo na cabeça gorros como os usados noutros tempos para dormir. São os loucos. São cinco ao todo. Apenas um é de origem nobre; os outros são operários. O primeiro, logo à entrada, é alto e magro, com bigode arruivado e lustroso, e olhos húmidos; está sentado, com a cabeça apoiada nas mãos e o olhar perdido no vácuo. Passa os dias e as noites envolto em profunda tristeza, abanando a cabeça, suspirando e sorrindo amargamente; raras vezes intervém na conversa e em regra não responde às perguntas. Come e bebe maquinalmente, quando o servem. A avaliar pela tosse que lhe rasga o peito, pela magreza em que se encontra e pela palidez da face, sofre de um princípio de tuberculose pulmonar. A seguir está um velhinho, mirrado mas muito vivo, que não pára de se mexer, com a sua barbicha em bico, e cabelo escuro e encarapinhado como o de um negro. Passa o dia a andar de uma janela para a outra, ou então permanece sentado no seu catre, com as pernas cruzadas à maneira turca, assobiando como um pintassilgo, cantando a meia-voz e rindo com um riso suave. A sua alegria infantil e animação bate no peito e abana a porta. É o judeu Moiseika, imbecilizado desde que há vinte anos perdeu o juízo, quando um incêndio destruiu a sua oficina de chapéus. É o único habitante da sala número seis a quem é permitido sair do pavilhão, e até do pátio do hospital, para a rua. É um privilégio de que desfruta há muito, provavelmente devido ao seu tempo de recluso e ao facto de ser um doido tranquilo e inofensivo: é o bobo da cidade, que todos se acostumaram a ver pelas ruas, rodeado de garotos e cães. Com a sua bata e o seu ridículo gorro, de alpergatas ou descalço, e às vezes até sem calças, vai e vem, parando nas portas das lojas e pedindo 8 esmola. Aqui, dão-lhe uma côdea de pão, ali um kopek , de modo que volta ao pavilhão de estômago cheio e rico. Mas Nikita tira-lhe tudo quanto traz. O soldado fa-lo com brutalidade, muito meticulosamente, passando revista aos bolsos e invocando Deus como testemunha de que não voltará a deixar sair o judeu, ao mesmo tempo que afirma não haver coisa pior do que a desordem. Moiseika gosta de fazer favores. Dá água aos seus companheiros, cobre-os quando estão a dormir, promete trazer-lhes dinheiro quando for à rua e confecciona-lhes gorros novos. Dá ainda de comer ao seu vizinho da esquerda, que é paralítico. E faz tudo isto, não por compaixão ou considerações de carácter humanitário, mas para imitar Gromov, o seu vizinhoda direita, que o domina sem que ele disso se aperceba. Ivan Dmitrich Gromov, de origem nobre, trinta e três anos, antigo oficial de diligências do julgado e secretário provincial, sofre de mania da perseguição. Permanece deitado na cama, como um novelo, ou anda de um lado para o outro como se desse um passeio higiénico; é rara a vez em que fica sentado. Mostra-se sempre excitado, inquieto, num estado de grande tensão, como se esperasse algum acontecimento confuso e indefinido. Basta o mais pequeno ruído no vestíbulo ou um grito no pátio para que erga a cabeça e se conserve alerta: estão a perguntar por ele? Procuram-no? E nestes instantes o seu rosto reflecte grande inquietação e medo. Agrada-me a sua cara comprida, de maçãs de rosto salientes, sempre pálida e infeliz, espelho de uma alma atormentada pela luta e por um sentimento de medo que nunca o abandona. Tem uns tiques estranhos e doentios, mas os finos sulcos, que um profundo e sincero sofrimento deixou no seu semblante, denotam inteligência, e os seus olhos deixam transparecer um brilho carinhoso e sadio. Agrada-me a sua personalidade: É cortês, prestável e extraordinariamente delicado no trato com toda a gente, à excepção de Nikita. Quando alguém perde um botão ou a colher, levanta-se da cama no mesmo instante e entrega-lhos. Dá os bons-dias aos companheiros todas as manhãs, e ao deitar-se deseja-lhes as boas- noites. Além da tensão permanente e dos tiques, a sua loucura tem outra forma de manifestar-se. Por vezes, ao anoitecer, embrulha-se na sua ‘ Kopek: unidade divisionária da moeda russa (N. do T.) 9 bata, e tremendo e batendo os dentes principia a andar com um passo rápido de um canto para o outro e por entre as camas. E como se tivesse um forte acesso de febre. Pela maneira como pára de súbito e contempla os seus companheiros, nota-se que tem alguma coisa muito importante para lhes dizer; mas, reflectindo melhor, chega à conclusão de que não lhe darão ouvidos ou não o compreenderão; sacode com impaciência a cabeça, e continua a caminhar. Mas depressa o desejo de falar se torna mais forte e dá rédea solta à língua; fala com calor, apaixonadamente. () seu discurso é desordenado, febril, como em delírio; nem sempre se compreende o que diz; mas mesmo assim deixa perceber, pelas palavras e pela voz, qualquer coisa que denota extrema bondade. Quando fala, distinguem-se nele o louco e o homem. É difícil traduzir para o papel os seus desvarios. Fala da maldade humana, da violência que espezinha a justiça, da bela vida que com o andar dos tempos reinará na Terra, das grades e das janelas, que a cada instante lhe recordam a obstinação e a crueldade dos opressores. Tudo é um caótico amontoado de coisas velhas mas não caducas. 10 II O funcionário Gromov, há doze para quinze anos, vivia na cidade com a família, em casa própria, situada na rua principal. Tinha dois filhos: Serguei e Ivan. Serguei, quando frequentava o quarto ano, contraiu uma tísica galopante e morreu. Foi o princípio de uma série de calamidades que caíram subitamente sobre a família dos Gromov. Uma semana depois do enterro de Serguei, o velho pai foi processado por desfalque e desvio de fundos, e não tardou em morrer na enfermaria da prisão, vitimado por uma febre tifóide. A casa e o seu recheio foram vendidos em almoeda; Ivan Dmitrich e a sua mãe ficaram sem o mínimo recurso. Antes, enquanto o pai era vivo, Ivan Dmitrich vivia em S. Petersburgo, estudava na Universidade, recebia todos os meses sessenta ou setenta rublos e não sabia o que eram necessidades; depois, tivera que mudar completamente de vida. Via-se obrigado a dar lições muito mal pagas e a fazer escrita desde manhã à noite, mas não deixava por isso de passar fome, pois mandava à mãe tudo quanto ganhava. Ivan Dmitrich não aguentou, perdeu a coragem, a sua saúde declinou e, abandonando os estudos, foi para casa. Ali, na pequena cidade, graças a empenhos, obteve um lugar de professor. Mas não se entendeu com os seus colegas, nem lhe agradaram os alunos, e depressa apresentou a demissão. A mãe morreu. Ivan vagueou sem trabalho durante seis meses, sem outro alimento além de pão e água, e entrou finalmente para oficial de diligências do tribunal, cargo que ocupou até lhe ser concedida baixa por doença. Nunca, nem mesmo nos seus anos de estudante, deu a sensação de ser um homem são. Foi sempre pálido, magro e constipava-se facilmente. Um copo de vinho causava-lhe tonturas e ataques histéricos. Gostava de companhia, mas o seu carácter irritável e os seus receios impediam-no de ter intimidade com alguém, e carecia de amigos. Falava sempre com desprezo da gente das cidades, dizendo que a sua torpe ignorância e a vida sedentária que levavam eram qualquer coisa de degradante e repulsivo. Falava com voz de tenor, alta e apaixonada, descontente e indignada, ou com entusiasmo e desassombro, e era sempre sincero. Chegava sistematicamente a uma conclusão, fosse qual fosse o tema: a vida na cidade era desgostante e aborrecida; a sociedade carecia de nível, era uma vida absurda e obscura e os únicos elementos que contribuíam para lhe dar algum imprevisto eram a violência, a grosseira corrupção e a hipocrisia. Os facínoras estavam prósperos e bem vestidos, enquanto os homens honrados se alimentavam de migalhas. Faziam falta escolas, um jornal local com uma orientação honesta, um teatro, conferências públicas, coesão dos intelectuais. Nas suas apreciações sobre as pessoas empregava grandes pinceladas de branco e negro, sem admitir nenhum outro tom de matiz: para ele, a humanidade dividia-se em honrados e canalhas, sem meio termo. Das mulheres e do amor falava sempre apaixonadamente, com entusiasmo, mas nem uma vez esteve enamorado. Na cidade, apesar da dureza dos seus julgamentos e do seu nervosismo, gostavam dele, e na sua ausência davam-lhe o carinhoso diminutivo de Vânia. A sua delicadeza inata, o seu espírito prestável, a sua dignidade e pureza moral, a sua labita coçada, o seu aspecto doentio e as suas desgraças familiares despertavam um sentimento bom, carinhoso e triste; além disso, era culto e tinha lido muito; e em tudo lhe faziam fé, sendo considerado na cidade um verdadeiro dicionário de consulta. Lia muito. Passava largas horas no clube, acariciando nervosamente a barbicha e folheando revistas e livros; notava-se pela sua expressão que não lia, mas que devorava, quase sem tempo de assimilar. Há que pensar que a leitura era para ele um hábito doentio, porque se lançava com igual avidez sobre tudo o que lhe chegava às mãos, até mesmo jornais e calendários de anos anteriores. Em casa lia sempre deitado. III Uma manhã de Outono, com a gola do casaco subida e espezinhando a lama, Ivan Dmitrich dirigia-se por vielas e pátios traseiros a casa de um operário onde devia cumprir um mandato judicial. listava de humor sombrio, como todas as manhãs. Numa das vielas passou por dois prisioneiros, carregados de correntes, conduzidos por quatro soldados armados de espingardas. Muitas vezes se encontrara já com presos, e sempre despertavam nele sentimentos de piedade e mágoa; mas desta vez produziram nele uma impressão especial e estranha. Pareceu-lhe que também o podiam carregar de grilhetas e conduzi-lo por entre a lama à prisão. Depois de resolver o assunto com o operário, de volta a casa, encontrou ao pé dos Correios um inspector da Polícia, seu conhecido, que o cumprimentou e o acompanhou durante alguns passos. Isto pareceu- lhe suspeito. Já em casa, durante todo o dia, não lhe saíam do pensamento os presos e os soldados com as espingardas; uma incompreensível inquietação de espírito impedia-o de se concentrar na leitura. Ao cair da tarde não acendeu o candeeiro de petróleo no seu quarto, e a noite passou-a de vela, pensando que podiam prendê-lo, agrilhoá-loe metê-lo na prisão. Sabia-se inocente e podia mesmo assegurar que nunca mataria ninguém, não queimaria nem roubaria nada; mas seria acaso tão difícil cometer um delito sem querer e sem intenção? Não seria admissível uma calúnia, um erro judiciário, enfim? Não é em vão que a secular experiência do povo diz que ninguém pode estar seguro contra o risco de carregar com os alforjes do mendigo ou ir parar à cadeia. E o erro judiciário, com o actual sistema de administração da justiça, seria muito possível, e nem teria nada de extraordinário. Aqueles que em virtude da sua profissão estão em contacto com os sofrimentos alheios, por exemplo, os juizes, 13 os polícias e os médicos, com o decorrer do tempo insensibilizam- se a tal ponto, pela força do hábito, que ainda que o quisessem não poderiam olhar os seus clientes senão com um sentimento de indiferença; por outro lado, não se diferenciam em nada do mujique que no curral degola carneiros e bezerros sem sequer se aperceber do sangue. Com essa atitude convencional e insensível em relação à pessoa humana, para despojar um inocente de todos os seus direitos e bens, e condená-lo ao presídio, o juiz apenas necessita de uma coisa: tempo. Apenas tempo para observar certas formalidades, para o que lhe pagavam, e tudo termina. Quem podia esperar justiça e defesa naquela uldeiazinha suja, a duzentas verstas do caminho de ferro? E não seria ridículo pensar na justiça quando qualquer acção violenta era acolhida pela sociedade como razoável e aceitável, enquanto qualquer acto de piedade, por exemplo, uma absolvição, provocava uma verdadeira explosão de sentimentos vingativos de descontentamento? Pela manhã Ivan Dmitrich levantou-se apavorado, com a fronte coberta de um suor frio e intimamente convencido de que de um momento para o outro podiam vir prendê-lo. Se os dolorosos pensamentos da véspera tardavam tanto em abandoná-lo pensava era porque havia neles qualquer ponta de verdade. Realmente, não podiam acudir-lhe à cabeça sem alguma razão. Um guarda municipal passou lentamente diante da janela. Teria decerto as suas razões. Dois homens pararam em silêncio diante da casa. Por que motivo estavam silenciosos? E para Ivan Dmitrich principiaram dias e noites de pesadelo. Imaginava que quantos passavam diante das suas janelas e entravam no pátio eram denunciantes e esbirros. Pelo meio do dia costumava passar o chefe da Polícia. Na sua carruagem, puxada por dois cavalos, vinha da sua herdade nos arredores da cidade, e dirigia- se para a sua repartição; mas Ivan Dmitrich achava sempre que ele ia demasiado depressa e com uma expressão especial: ia, sem dúvida, anunciar que tinha aparecido na cidade um delinquente de grande importância. Ivan Dmitrich estremecia sempre que batiam à porta, e ficava angustiado quando a dona da casa recebia um hóspede novo; quando se encontrava com polícias e guardas, sorria e assobiava para mostrar indiferença. Passava as noites sem pregar olho, sempre à espera de que o viessem prender; mas suspirava e fingia ressonar para que a dona da casa imaginasse que dormia porque não dormir seria prova de que tinha remorsos na 14 consciência. Que indicação! Os factos e a lógica levavam-no à convicção de que todos estes temores eram um absurdo e uma psicopatia, porque, na realidade, bem vistas as coisas, a detenção e a cadeia não constituíam preocupação quando se possuía a consciência tranquila; mas quanto mais lógicos eram os seus raciocínios, tanto maior e mais dolorosa era a sua inquietação espiritual, era como se um eremita quisesse abrir uma clareira na selva virgem para nela viver: quanto mais afanosamente trabalhava com o machado, mais espesso e vigoroso crescia o bosque. Ivan Dmitrich, vendo a inutilidade dos seus intentos, acabou por desistir, deixou de ressonar e entregou-se inteiramente ao desespero e ao medo. Principiou a evitar as pessoas; procurava estar sòzinho. O cargo que ocupava, que já antes lhe desagradava, tornou-se-lhe insuportável. Temia que lhe fizessem uma partida, que lhe metessem dinheiro no bolso a fim de o acusarem de cumplicidade, ou que ele próprio cometesse em documentos oficiais, sem querer, qualquer erro equivalente a uma falsificação, ou perdesse uma soma que não fosse sua. Coisa estranha: nunca, em nenhuma altura, fora o seu pensamento tão lúcido nem a sua imaginação tão fértil como agora, quando todos os dias descobria mil motivos diferentes para sentir sérias apreensões pela sua liberdade e a sua honra. Em contrapartida, diminuiu sensivelmente o seu interesse pelo mundo exterior, sobretudo pelos livros, e a memória principiou a traí- lo. Ao chegar a Primavera, quando a neve começou a derreter, apareceram num barranco ao pé do cemitério dois cadáveres em adiantado estado de decomposição uma mulher e um rapaz com sinais de morte violenta. Na cidade não se falava senão nestes dois cadáveres e nos presumíveis assassinos. Ivan Dmitrich, para que não se pudesse pensar que fora ele o autor do crime, caminhava sorridente pelas ruas, e ao encontrar qualquer conhecimento empalidecia e exaltava-se, insistindo em que não havia nada mais revoltante que o assassinato de pessoas -fracas e indefesas. Mas não tardou a cansar-se desta hipocrisia, e depois de reflectir chegou à conclusão de que na sua situação o melhor seria esconder- se na cave da casa. Ali permaneceu um dia, uma noite e outro dia, até que, morto de frio, depois de escurecer, caminhando silenciosamente como um ladrão, meteu-se no quarto, onde se deixou ficar até de manhã sem se mexer, prestando atenção ao menor ruído. Às primeiras horas, antes de o Sol nascer, chegaram alguns operários. Ivan Dmitrich bem sabia que tinham vindo chamados 15 pela dona da casa, para arranjar o forno da cozinha; mas o medo levou-o a pensar que eram polícias disfarçados. Saiu dissimuladamente do quarto, e, aterrorizado, sem gorro e sem casaco, deitou a correr pela rua. Perseguiam-no os cães a ladrar, alguém gritou nas suas costas, o vento silvava-lhe aos ouvidos. Ivan Dmitrich pensou que toda a violência do mundo se unira atrás dele, tentando alcançá-lo. Agarraram-no, levaram-no para casa, e mandaram a senhoria à procura do médico. O doutor Andrei Efimich, de quem falaremos mais adiante, receitou-lhe compressas frias na cabeça e gotas de loureiro e ginjas; abanou tristemente a cabeça e saiu, dizendo à dona da casa que não voltaria, visto ser impossível fazer fosse o que fosse quando as pessoas queriam endoidecer. Como em casa não o podiam tratar, Ivan Dmitrich foi pouco tempo depois levado para o hospital e aí o instalaram na sala de doenças venéreas. Não dormia de noite, mostrava-se caprichoso e incomodava os vizinhos, e por isso não tardaram em levá-lo, por ordem de Andrei Efimich, para a enfermaria número seis. Passado um ano, na cidade tinham esquecido completamente Ivan Dmitrich; e os seus livros, que a dona da casa amontoara num trenó, sob um telheiro, foram levados pelos garotos. 16 IV O vizinho da esquerda de Ivan Dmitrich, como já dissemos, era o judeu Moiscika. O da direita era um mujiquc adiposo, obeso, de cara inexpressiva e estúpida, um animal imóvel, glutão e sujo, que de há muito havia perdido a capacidade de pensar e sentir. Emanava dele constantemente um cheiro fétido e asfixiante. Nikita, encarregado da limpeza, batia-lhe sem dó nem piedade;mas o mais impressionante não era baterem-lhe, a isto ainda nos podemos acostumar , mas o facto de aquele animal insensível não reagir de maneira alguma aos golpes, nem por um som ou um movimento, nem pela expressão do olhar, limitando-se a baloiçar ligeiramente como um pesado barril. O quinto e último habitante da enfermaria número seis era um homem que fora em tempos empregado dos Correios, onde fazia a selecção das cartas, fora um indivíduo pequeno,magro, loiro, de expressão caritativa, ainda que levemente maliciosa. A julgar pelo seu olhar inteligente e tranquilo, de expressão serena e jovial, guardava no seu íntimo um segredo muito importante e aprazível. Debaixo da almofada e do enxergão ocultava qualquer coisa que não mostrava a ninguém, não por medo de que lho pudessem tirar ou roubar, mas por vergonha. As vezes aproximava-se da janela, de costas para os companheiros, colocava um objecto no peito e contemplava-o com a cabeça inclinada; mas, se naquele momento alguém se aproximava, perturbava-se e escondia-o. Não era difícil, contudo, adivinhar o seu segredo. - Dê-me os parabéns - dizia frequentemente a Ivan Dmitrich , fui proposto para a Ordem de Sto. Estanislau de segunda classe, com estrela. A segunda classe com estrela é concedida apenas aos 17 estrangeiros, mas comigo, não sei porquê, pretendem abrir uma excepção - e sorria, encolhendo os ombros, admirado. - Confesso que não contava com isso! - Não entendo nada desses assuntos - respondia Ivan Dmitrich sombriamente. - Mas mais tarde ou mais cedo hei-de consegui-lo, sabe? - prosseguia o antigo seleccionador de cartas, piscando o olho com astúcia. Obterei sem dúvida a Estrela Polar sueca. É uma ordem que vale o esforço de a conseguir. Cruz branca e fita negra, e de muito bonito efeito. Decerto, em nenhum outro local era a vida tão monótona como no pavilhão. De manhã, os doentes, à excepção do paralítico e do mujique gordo, lavavam-se no vestíbulo, numa banheira, e secavam- se com as fraldas das suas batas. Em seguida tomavam chá em xícaras de folha, que Nikita trazia do pavilhão principal. A cada um correspondia uma xícara. Ao meio-dia comiam sopa de couve e papas de farinha, e ao anoitecer jantavam as papas que tinham sobejado do almoço. Nos intervalos permaneciam deitados, dormiam, olhavam pela janela e passeavam de um lado para o outro, e assim todos os dias. O próprio antigo seleccionador de cartas falava sempre das mesmas condecorações. Eram muito poucas as caras novas que se viam na enfermaria número seis. Havia tempo que o médico deixara de admitir mais loucos, e não são muitos, neste mundo, os aficionados de manicómios. Uma vez em cada dois meses aparecia no pavilhão Simião Lazarich, o barbeiro. Não vamos falar de como cortava o cabelo aos loucos e da maneira como era ajudado por Nikita neste empreendimento, nem da confusão que se gerava entre os enfermos sempre que aparecia o barbeiro com o seu sorriso de alcoólico. Ninguém mais aparecia no pavilhão. Os doentes estavam condenados, dia após dia, a verem unicamente Nikita. Mas ultimamente corria pelo hospital um rumor muito estranho: dizia-se que o médico começara a visitar a enfermaria número seis. 18 V Estranho rumor! O doutor Andrei Kfimich Raguin era um homem notável no seu género. Dizia-se que havia sido muito devoto na juventude, tencionando seguir a carreira eclesiástica;que em 1863, ao terminar os seus estudos no liceu, se preparava para ingressar no seminário, mas que seu pai, doutor em Medicina e cirurgião, não o tomou a sério e declarou categoricamente que não o consideraria como filho se ele se ordenasse pope. Não sei até que ponto isto é verdade, mas o próprio Andrei Ffimich confessou mais de uma vez que nunca sentira vocação pela Medicina nem pelas ciências aplicadas em geral. Fosse como fosse, ao terminar os estudos na Faculdade não se fez sacerdote. Não mostrava grande devoção e no início da sua carreira médica parecia-se tão pouco com um pope como no momento em que principia a nossa história. Tinha o aspecto pesado, vagaroso, de um mujiquc, e pelas suas feições, a barba, o cabelo liso, a compleição forte e grosseira, fazia lembrar um estalajadeiro gordo, dado à bebida, e de maneiras bruscas. O seu rosto, de expressão grave, era sulcado por finas veias azuis, olhos pequenos e nariz vermelho. Muito alto e de ombros largos, tinha braços e pernas enormes, e parecia capaz de matar uma pessoa de um só golpe. Mas o seu andar era suave e cauteloso, como ondulante; quando encontrava alguém no estreito corredor, parava sempre primeiro, cedendo o lugar; e com voz que não era de baixo, como seria de esperar, mas fina e suave como de tenor, dizia: "Perdão!" Um pequeno inchaço impedia-o de usar colarinhos duros, engomados, e por isso vestia sempre camisa de linho ou de algodão. A sua maneira de trajar não era de médico. Os fatos duravam-lhe dez anos e a roupa nova, que 19 costumava comprar na loja de um judeu, parecia tão coçada e enxovalhada como a anterior. Com a mesma labita, recebia os doentes, comia e fazia visitas. Não o fazia por espírito de mesquinhez, mas porque nada se importava consigo próprio. Quando Andrei Efimich chegou à cidade para tomar posse do seu cargo, o "estabelecimento de beneficiência encontrava-se num estado deplorável. Nas salas, corredores e pátio do hospital, o cheiro era a ponto de tornar difícil respirar. Os servitas, as enfermeiras e seus filhos dormiam nas enfermarias dos doentes. Queixavam-se de que as baratas, os percevejos e os ratos lhes tornavam a vida impossível. Na secção de cirurgia não conseguiam acabar com a erisipela. Apenas existiam dois bisturis em todo o hospital; não dispunham de um único termómetro;e as banheiras serviam para guardar batatas. O inspector, a encarregada da roupa e o assistente roubavam os doentes, e dizia-se do antigo médico, o predecessor de Andrei Efimich, que vendia de contrabando o álcool do hospital e tinha um verdadeiro harém constituído por enfermeiras e doentes. Na cidade eram conhecidas todas estas irregularidades, e até as exageravam, mas toleravam-nas com a maior tranquilidade. Alguns argumentavam, para as justificar, que no hospital só havia gente do povo e mujiques, que não tinham o direito de estar descontentes, pois em suas casas viviam muito pior. Não era possível dar-lhes faisão! Outros diziam que a cidade, só por si, sem a ajuda do zemstvo, não podia custear um bom hospital; e era graças a Deus que existia um, apesar de mau. E o zemstvo, recém-constituído, não abria estabelecimentos sanitários na cidade nem nos arredores, a pretexto de que a cidade possuía já o seu hospital. Depois de uma revisão geraljAndrei Efimich chegou à conclusão de que semelhante instituição hospitalar era imoral e altamente nociva para a saúde das pessoas. Parecia-lhe que a única solução era mandar os doentes para casa e encerrá-la. Considerou, no entanto, que isto não dependia apenas da sua vontade e que não seria eficiente: se se eliminasse a imundície física e moral de um local, aquela provavelmente transferia-se para outro. Havia que esperar que desaparecesse por si própria. Além disso, se tinham aberto este hospital e o toleravam, era sinal de que as pessoas necessitavam dele; os males ‘ zemstvo: organismo autónomo com determinada tendência liberal, que, à escala provincial e distrital, mantinha hospitais e centros de ensino. Instituídos em 1864, desapareceram em 1917 (N. do T.) 20 desta vida e todas as suas vilanias são necessários, já que se convertiam com o tempo em qualquer coisa de útil, como o estrume em terra negra. Não há no mundo bem que na sua origem não contivesse uma acção abjecta. Uma vez tomada posse do seu cargo, Andrei Efimich não mostrou ligar grande importância a todas estas anomalias. Fez uma única coisa: pediu aos servitas e enfermeiras que não dormissem nas enfermarias. Mandou também colocar duas vitrinas para os instrumentos. Quanto ao inspector, à encarregada da roupa, ao assistente e ao material cirúrgico, continuaram nos seus antigos lugares. Andrei Efimich apreciava no mais alto grau a inteligência e a honestidade, mas para organizar à sua volta uma vida inteligente e honesta faltava-lhe o carácter e a fé no direito que lhe assistia. Nãosabia em absoluto mandar, proibir e insistir. Era como se tivesse feito voto de nunca levantar a voz nem empregar o imperativo. Custava-lhe dizer "dá-me" ou "traz-me" ;quando queria comer, pigarreava indeciso e dizia à cozinheira: "Se pudesse tomar uma chávena de chá...", ou "Se eu pudesse comer...".Dizer ao inspector que deixasse de roubar ou despedi-lo, ou suprimir por completo aquele cargo inútil e parasitário, era superior às suas forças. Quando o enganavam ou adulavam, ou lhe apresentavam uma conta que sabia ser falsa, tornava-se vermelho como um caranguejo e sentia-se culpado; mas, apesar de tudo, assinava. Quando os doentes se queixavam de passar fome ou dos maus tratos das enfermeiras, atrapalhava-se e balbuciava, como se fosse ele o culpado: Está bem, está bem, vou-me ocupar disso... Provavelmente trata-se de um mal-entendido... De princípio Andrei Efimich trabalhou arduamente. Dava consulta todas as manhãs até à hora da comida, operava e, inclusivamente, assistia aos partos. As senhoras diziam que diagnosticava com precisão as doenças, sobretudo em mulheres e crianças. Mas com o decorrer do tempo tudo isto acabou por aborrecê-lo, pela sua monotonia e evidente inutilidade. Hoje recebia trinta doentes, amanhã eram trinta e cinco e depois de amanhã quarenta, e assim um dia após outro, um ano atrás do outro, sem que a mortalidade diminuísse, continuando os doentes a afluir. Prestar uma assistência eficaz aos quarenta doentes que vinham à consulta desde manhã até à hora do jantar' era fisicamente ‘ O jantar na Rússia era servido às três horas (N. do T.). 21 impossível; redundava num logro. Se durante um ano tinha examinado doze mil doentes, segundo diziam, significava que tinha enganado doze mil pessoas. Internar os doentes graves e tratá-los segundo as regras da ciência também não era possível porque as regras existiam, mas não havia ciência; e se punha de parte a filosofia e se limitava a seguir com rigor as regras, como os outros médicos, necessitava para isso, acima de tudo, limpeza e arejamento, e não sujidade; e uma alimentação sã, e não a sopa da repugnante couve azeda; e bons auxiliares, e não ladrões. Além do mais, para quê impedir que as pessoas morram, se a morte é o fim normal e lógico de cada um? Que acontecia se um ricaço ou um funcionário vivia cinco ou dez anos mais? Se se considera que o objectivo da Medicina consiste em aliviar a dor, surge a pergunta: Para quê aliviá-la? Em primeiro lugar, dizem que a dor leva o homem à perfeição e, em segundo, que se a humanidade aprende, efectivamente, a aliviar as suas dores com a ajuda de pílulas e gotas, abandonará por completo a religião e a filosofia, em que até agora encontrara não apenas defesa contra todos os males mas também a felicidade. Pushkin, na hora da sua morte, sofreu dores horríveis, o pobre Heine esteve paralítico vários anos. Então, por que razão não havia de padecer doenças qualquer AndreiEfimich ou qualquer Mastriona Savishna, cujas vidas não possuíam qualquer conteúdo e seriam completamente vazias e parecidas com as de uma ameba se não fossem os sofrimentos? Acabrunhado com estas conclusões, Andrei Efimich abandonou tudo e deixou de ir diariamente ao hospital. VI A sua vida decorria da seguinte maneira: levantava-se geralmente às oito, vestia-se e tomava o chá. Sentava-se, em seguida, a ler no seu escritório ou ia ao hospital. Ali, num corredor estreito e escuro, juntavam-se os doentes externos, esperando a hora de serem recebidos. Junto deles, fazendo muito barulho com as suas botas no chão de ladrilhos, passavam os servitas e as enfermeiras transportando os mortos e os urinóis; as crianças choravam; soprava o vento; e caminhavam com aspecto abatido os doentes internos, enfiados nas suas batas. Andrei Efimich sabia que para os doentes com febre, os tuberculosos e os sensíveis aquilo era um tormento, mas que podia fazer? No escritório, esperava-o Serguei Sergueich, o assistente, um homem pequeno, anafado, de cara redonda barbeada e lavada, de maneiras suaves, que, com o seu amplo fato novo, mais parecia um senador do que um assistente. Tinha numerosa clientela na cidade, usava gravata branca, e achava que sabia mais do que o próprio médico, que não exercia clínica privada. A um canto do escritório estava uma grande imagem com a correspondente lâmpada e, a seu lado, um genuflexório forrado de branco. Nas paredes havia retratos de prelados, uma vista do Mosteiro de Seviatogorsk e várias coroas secas de flores de aciano. Serguei Sergueich era um homem religioso e gostava de sumptuosidade. A imagem fora adquirida por ele. Aos domingos, um doente, obedecendo às suas ordens, lia em voz alta o livro de orações, depois do que o próprio Serguei Sergueich percorria todas as salas com o incensório, perfumando-as conscienciosamente. Os doentes são muitos e o tempo pouco, pelo que tudo se reduz a um breve interrogatório e à receita de um remédio qualquer, um unguento ou uma purga de óleo de rícino. Andrei Efimich deixa-se ficar sentado. 23 com a cara apoiada numa das mãos, pensativo, e faz as perguntas maquinalmente. Serguei Sergueich, também sentado, esfrega as mãos e intervém de vez em quando. - Padecemos doenças e sofremos doenças - proclama - porque não rezamos conforme é devido a Deus misericordioso. Andrei Efimich não pratica cirurgia; perdeu o hábito, e a vista do sangue produz-lhe uma sensação desagradável. Quando tem que mandar abrir a boca a uma criança para lhe examinar a garganta e o pequeno chora e se defende com as mãozinhas, o barulho causa-lhe náuseas e enchem-se-lhe os olhos de lágrimas. Apressa-se a escrever a receita e faz um gesto para que a mãe leve quanto antes a criança. Com a agradável sensação de que, graças a Deus, não tem doentes privados e ninguém virá incomodá-lo, Andrei Efimich instala-se no seu escritório, logo que chega a casa, e começa a ler. Lê muito e sempre com intenso prazer. Gasta metade do seu ordenado em livros, estando três divisões do andar que ocupa a abarrotar com livros e revistas velhas. O que mais lhe agrada são as obras de História e Filosofia. De Medicina assina apenas a publicação O Médico, que principia sistematicamente a ler pelas últimas páginas. A leitura prolonga-se sempre durante várias horas, sem nenhuma interrupção, e não o cansa. Não lê com tanta rapidez e ânsia como noutros tempos Ivan Dmitrich, mas devagar, e tratando de assimilar bem o sentido, parando com frequência nos parágrafos que mais lhe agradam ou que não entende. Ao lado do livro está sempre uma garrafa de vodka e pepinos de salmoura ou uma maçã de conserva, tudo colocado em cima da toalha, sem pratos. De meia em meia hora, sem desviar os olhos do livro, serve-se de um copo de vodka, bebe- o, e a seguir, sem olhar, procura às apalpadelas o pepino e come um bocado. Às três horas aproxima-se silenciosamente da porta da cozinha, pigarreia e diz: Se pudesse comer, Dariushka... Depois do jantar, bastante mau e servido sem asseio, Andrei Hfimich, de braços cruzados, passeia pelas divisões da sua casa e medita. De quando em quando ouve-se ranger a porta da cozinha e vê-se assomar a cara corada e sonolenta de Dariushka. - Andrei Efimich, não serão horas de lhe servir a cerveja? - pergunta, solícita. - Não, ainda não... - responde Andrei. - Prefiro esperar um pouco... Prefiro... Ao cair da tarde costuma chegar Mikail Averianich, o chefe dos Correios, a única pessoa, em toda a cidade, cuja companhia não o aborrece. Mikail Avcriunich fora em tempos um fazendeiro muito rico e servira na cavalaria; mas arruinara-se e, já na velhice, a necessidade obrigara-o a ingressar no Departamento dos Correios. O seu aspecto era jovial e resplandecente de saúde, usava umas magníficas patilhas grisalhas, as suas maneiras denotavam boa educaçãoe possuía uma voz forte e agradável. Era bom e sensível, mas impulsivo. Se alguém vinha reclamar aos Correios, não aceitava os protestos ou começava a raciocinar por sua conta, ficava muito corado, frenético, e gritava com voz de trovão: "Calem-se!" De tal modo que o departamento alcançara a reputação de um lugar onde as pessoas tinham medo de ir. Mikail Averianich apreciava e estimava Andrei Efimich pela sua cultura e nobreza de espírito; e olhava o resto dos seus vizinhos com altivez, como se fossem seus subordinados. - Cá estou eu! - exclama ao entrar em casa de Andrei Efimich - Boas tardes, meu caro. Não está cansado de mim? Os dois amigos sentam-se no sofá do escritório e fumam durante algum tempo em silêncio. - Dariushka.se nos trouxesses cerveja... - diz Andrei Efimich. A primeira garrafa bebem-na ainda em silêncio: o doutor pensativo e Mikail Averianich com o aspecto alegre e animado de quem tem qualquer coisa muito interessante para contar. É o médico quem inicia sempre a conversa. - Que pena - diz em voz lenta e baixa, abanando a cabeça e sem olhar o seu interlocutor (nunca olha as pessoas de frente) - que pena, caro Mikail Averianich, que na nossa cidade não haja o que se chama ninguém que saiba e goste de manter uma conversa espirituosa, interessante! Para nós significa uma grande privação. Nem sequer os intelectuais se elevam acima do vulgar; o nível do seu desenvolvimento, asseguro-lhe, não é melhor do que o das classes baixas. - Tem toda a razão. Concordo consigo. - Você próprio sabe - continua o médico, em voz baixa, falando com lentidão - que neste mundo tudo carece de importância e interesse, excepção feita às supremas manifestações espirituais do raciocínio humano. A inteligência marca nítidas fronteiras entre o animal e o homem, sugere o carácter divino deste último, e, em certo grau, substitui a sua imortalidade, que não existe. Partindo desta base, o raciocínio e a única fonte do prazer. Nós, pelo contrário, não vemos nem sentimos junto de nós manifestações do raciocínio: ou seja, vemo-nos privados do prazer. É certo que temos os livros, mas isso é muito diferente da conversa viva e da convivência. Se me permite uma comparação não muito feliz,, os livros são as notas e a conversação o canto. - Inteiramente certo. Faz-se um silêncio. Dariushka sai da cozinha e com uma expressão de estúpido enlevo, com a cabeça apoiada no punho, pára no limiar da porta para escutar. - Ai! - suspira Mikail Averianich. - Você pretende exigir inteligência às pessoas de hoje! E começa a falar na vida de outros tempos, sã, alegre e interessante; na inteligência dos intelectuais na Rússia; e no seu alto conceito de honra e de amizade. Emprestava-se dinheiro sem exigir uma letra de câmbio e era considerado vergonhoso não estender a mão para ajudar um companheiro necessitado. E que campanhas, que aventuras, que brigas, que mulheres! E o Cáucaso, que maravilhoso país! A esposa de um chefe de batalhão, uma mulher muito estranha, costumava disfarçar-se de oficial e ir à tarde para as montanhas, sozinha, sem companhia. Dizia-se que naquelas aldeias tinha amores com um pequeno rei. - Rainha dos céus, mãezinha... - suspira Dariushka. E como se comia! Como se bebia! E que liberais aqueles! Andrei Efimich ouve e não ouve; pensa em qualquer coisa e toma um gole de cerveja. - Sonho frequentemente com pessoas inteligentes e que converso com elas - diz de súbito, interrompendo Mikail Averianich. - Meu pai deu-me uma excelente educação, e, sob a influência das ideias dos anos sessenta, obrigou-me a formar-me em Medicina. Parece-me que, se nessa altura não lhe tivesse dado ouvidos, estaria agora no próprio centro do movimento intelectual. Faria possivelmente parte de uma Faculdade. Claro que o raciocínio também não é eterno, mas um fenómeno passageiro. Mas você sabe porque tanto me agrada. A vida é um engano nojento. Quando o homem que pensa alcança a maturidade e está consciente dos seus actos, sente-se sem querer envolvido numa armadilha sem saída. Com efeito, contra sua vontade, em virtude de diversos acontecimentos fortuitos, foi arrancado do não ser para a vida... Para quê! Quer saber o sentido e o fim da sua existência e não lhe 26 dizem nada ou é estúpido o que lhe dizem. Chama e não lhe abrem. A morte vem, também contra sua vontade. E da mesma maneira que na prisão os homens ligados por um infortúnio comum sentem um alívio quando se reúnem, também na vida uma pessoa não evita as ciladas quando os homens inclinados para as análises e generalizações se juntam e passam o tempo trocando ideias orgulhosas e livres. - Neste sentido, a inteligência é um prazer insubstituível. - Tem toda a razão. Sem fixar o olhar no seu interlocutor, em voz baixa e pausadamente, Andrei Efimich continua a falar em homens inteligentes e em conversas com eles, enquanto Mikail Averianich escuta atentamente, concordando: "Tem toda a razão." - Você não acredita na imortalidade da alma? - pergunta de súbito o chefe dos Correios. - Não, caro Mikail Averianich, não acredito, nem tenho razões para acreditar. - Pois eu confesso que também tenho as minhas dúvidas. Apesar de que, quanto ao resto, tenho a sensação de que não hei-de morrer nunca. Às vezes penso: "Já são horas de morrer, velho maduro!" Mas certa vozinha exclama do fundo do meu coração: "Não acredites, não morrerás!..." Pouco depois das nove, Mikail Averianich retira-se. Ao vestir o casaco, na entrada, diz, suspirando: - No entanto, a que lugar perdido nos trouxe o destino! E o mais desagradável de tudo é que teremos que morrer aqui. Ah!... 27 VII Depois de se despedir do amigo, Andrei Efimich sentava-se à mesa e recomeçava a ler. Nem o mais pequeno ruído perturbava o silêncio da tarde e da noite. Parecia que o tempo se imobilizara juntamente com o médico e o seu livro; era como se não existisse mais nada senão esse livro e o candeeiro de petróleo, com o seu quebra-luz verde. O rosto tosco de mujique do médico iluminava-se pouco a pouco com um sorriso enternecido e entusiasta perante os reflexos da inteligência humana. "Oh!, por que razão o homem não é imortal? ", pensava. "Para que servem os centros e circunvoluções cerebrais, para quê a vista, a fala, o próprio sentimento, o génio, se tudo isto vai parará terra e à posteridade, esfriará juntamente com a crosta terrestre, e depois, durante milhões de anos, seguirá unido com a Terra, sem nenhum outro sentido e sem finalidade, girando em volta do Sol? Para arrefecer e depois percorrer o espaço, não valia a pena tirar o homem do não ser, com a sua inteligência divina, e, a seguir, como para lhe pregar a partida, convertê-lo em barro." O intercâmbio de matéria! Que cobardia consolar-se com este sucedâneo da imortalidade! Os processos inconscientes que se verificam na natureza estão inclusivamente abaixo da estupidez humana, já que na estupidez, apesar de tudo, há consciência e vontade, e nos processos da natureza não há absolutamente nada. Só o cobarde, em quem o medo da morte é superior à dignidade, pode consolar-se pensando que o seu corpo viverá com o tempo, na erva, numa pedra, num sapo,... Ver a própria imortalidade no intercâmbio das matérias é tão absurdo como prometer um futuro brilhante ao estojo, depois que o valioso violino se estragou e deixou de servir. 28 Quando soam no relógio as badaladas, Andrei Efemich instala-se na cadeira e fecha os olhos para meditar um pouco, e, sem dar por isso, movido pelos agradáveis pensamentos que acabou de ler no livro, lança um olhar pelo passado e pelo presente. O passado é assunto que afasta, é melhor não o recordar. Quanto ao presente, passa-se em grande parte o mesmo. Sabe que enquanto os seus pensamentos giram à volta do Sol, à semelhança da Terra arrefecida, a meia dúzia de passos, no pavilhãoprincipal, há gente que sofre vítima das suas enfermidades e da sociedade que a rodeia. Acaso há alguém que não dorme e luta com os insectos, alguém que contraiu erisipela, ou geme sofrendo a dor de uma ligadura apertada. Talvez os doentes estejam a jogar às cartas com as enfermeiras e bebendo vodka. No ano passado foram enganadas doze mil pessoas. Toda a organização hospitalar, tal como há vinte anos, assenta no roubo, nas discussões, nas intrigas, na protecção injusta, no logro grosseiro, continuando o hospital a ser um estabelecimento imoral e nocivo, no mais alto grau, para a saúde das pessoas. Sabe que na enfermaria número seis, por detrás das grades, Nikita espanca os doentes e que Moiseika percorre a cidade todos os dias pedindo esmola. Por outro lado, sabe perfeitamente que, durante os últimos vinte e cinco anos, se produziu na Medicina uma mudança espectacular. Quando estudava na Universidade, pensava que a Medicina teria em breve a sorte da Química e da Metafísica; agora, pelo contrário, a Medicina comovia-o, despertando nele admiração e até mesmo entusiasmo, quando, à noite, se documentava lendo, efectivamente, que inesperada grandeza, que revolução! Graças aos anti-sépticos, realizavam-se operações que o grande Pirogov considerava impossíveis até in spe. Os simples médicos de província decidiam fazer ressecções do joelho; entre cem laporotomias, apenas se registava um caso mortal; e as pedras no rim eram consideradas uma doença tão insignificante que nem sequer havia nada escrito sobre ela. A sífilis curava-se radicalmente. E a teoria da hereditariedade, o hipnotismo, as descobertas de Pastcur e de Koch, a higiene baseada na estatística, a medicina russa dos zemstvos? A psiquiatria, com a sua actual classificação das doenças, com os métodos de diagnóstico e de tratamento, era qualquer coisa de inacreditável, em comparação com o ‘ Nikolai Ivanich Pirogov (1810-1881), cirurgião russo. As suas investigações deram começo à orientação anatómica experimental em cirurgia. Contribuiu muito para o avanço da anestesia (N. do T.). 29 que existia antes. Agora já não se deitava água fria na cabeça dos loucos, nem os metiam em coletes-de-forças; facultavam-lhes condições humanas de vida, e, segundo publicavam os jornais, até lhes ofereciam espectáculos e bailes. Andrei Efimich sabia que, dentro desta ordem de coisas, uma vergonha como a da enfermaria número seis só era possível, a duzentos verxtas do caminho de ferro, numa miserável cidade em que o presidente da Câmara e todos os vereadores eram semianalfabetos, que viam no médico um sacerdote no qual era obrigatório acreditar sem a mais pequena crítica, ainda que deitasse na boca estanho derretido. Noutro lugar, desde há muito que o público e os jornais teriam feito em pedaços esta pequena Bastilha. E, então? pergunta a si próprio Andrei Efimich, abrindo os olhos. Qual é o resultado disto tudo? Temos os anti-sépticos, Koch, Pasteur, mas nada mudou na sua essência. A morbidez e a mortalidade continuam na mesma. Celebram-se bailes e espectáculos para os loucos, mas no entanto não os deixam sair à rua. Ou seja, que tudo é absurdo e vão e que, na sua essência, entre a melhor clínica de Viena e o meu hospital não existe qualquer diferença. Mas o desgosto e um sentimento parecido com a inveja não lhe permitem ficar indiferente. A causa deve ser a fadiga. A cabeça pesa-lhe e inclina-se sobre o livro. Põe a mão debaixo da cara como se fosse uma almofada e pensa: "Estou ao serviço de uma obra prejudicial e recebo dinheiro de pessoas a quem engano. Mas só por mim não sou nada, uma simples partícula de um mal social necessário: lodosos funcionários do distrito são nocivos e recebem um ordenado que não mereceram... O que significa que não sou eu o culpado de ser desonesto, mas sim o tempo... SE tivesse nascido duzentos anos mais tarde, seria um homem diferente." Às três horas apaga o candeeiro de petróleo e dirige-se para o dormitório. Não tem sono. 30 VIII Dois anos antes, o zemstvo sentira-se generoso e votara a concessão de um crédito de trezentos rublos anuais para aumentar o pessoal do hospital da cidade até que se inaugurasse outro mais apropriado. Para ajudar Andrei Efimich, requisitaram-se os serviços de Evgueni riodorich Kobotov. Era um médico muito jovem ainda não completara trinta anos, moreno e alto, com as maçãs do rosto salientes e olhos pequeninos. Os seus antecessores, provavelmente, não eram russos. Chegara à cidade sem um kopek, com uma maleta e uma mulher feia e jovem, que dizia ser sua cozinheira. A mulher trazia um filho de peito, Evgucni Fiodorich Kobotov usava gorro de pala e botas altas, e no Inverno uma pelica. Tornou-se íntimo amigo do assistente Serguei Sergueich e do tesoureiro, mantendo-se afastado dos demais funcionários, a quem não se sabe por que razão chamava aristocratas. Não tinha em sua casa senão um único livro: Últimas Receitas da Clinica de Viena para 1881, que levava sempre consigo quando ia visitar um doente. De tarde jogava bilhar no clube, pois não apreciava jogos de cartas. Gustava muito de empregar na conversação palavras e expressões como "pachorra", "pepinos de conserva", "não armes sarilhos", etc. Ia duas vezes por semana ao hospital, percorria as enfermarias e recebia os doentes externos. 'A total falta de anti-sépticos e as ventosas irritavam-no, mas não se decidia a fazer inovações com receio de poder com isso melindrar Andrei Efimich. Considerava este um velho farsante, tomando-o por um homem rico e invejando-o no seu íntimo. De muito boa vontade ocuparia o seu lugar. 31 IX Numa noite primaveril de fins de Março, quando a neve desaparecera do chão e os estorninhos cantavam no jardim do hospital, o médico saiu até ao portão para acompanhar o chefe dos Correios, seu amigo. Naquele preciso momento entrava no pátio o judeu Moiseika, que regressava com o seu pecúlio. Não trazia gorro e vinha sem meias, com os pés enfiados nuns tamancos muito usados. Trazia na mão um saquito com as esmolas. - Dá-me um kopek - pediu ao médico, tiritando de frio e sorrindo. • Andrei Efimich, que nunca soubera dizer que não, deu-lhe uma moeda de dez, kopcks. "Que horror! pensou, olhando para os seus pés descalços, com os tornozelos delgados e roxos. Vem completamente molhado." E, movido por um sentimento ao mesmo tempo de piedade e de repugnância, dirigiu-se ao pavilhão atrás do judeu, olhando a sua cabeça calva e os tornozelos. Ao ver entrar o doutor, Nikita levantou-se num salto de sobre o montão de trapos onde estava deitado e colocou-se em posição de sentido. - Olá, Nikita - disse Andrei Efimich em tom suave - era preciso dar umas botas a este judeu; senão pode apanhar um resfriamento. - As suas ordens, meu senhor. Levarei esse assunto ao conhecimento do inspector. - Sim, faz favor. Pede-lhe em meu nome. Diz que sou eu que peço. A porta do vestíbulo que dava entrada para a sala estava aberta. Ivan Dmitrich permanecia deitado no seu catre, ergueu-se atento àquela voz estranha, tendo de súbito reconhecido o médico. Estremecendo de cólera, pôs-se de pé, num salto, congestionado e com os olhos a sair das órbitas, e correu para o meio da sala. 32 - Chegou o médico! - gritou, dando uma gargalhada. - Finalmente! Felicito-os, meus senhores, o médico dignou-se visitar-nos! Maldito réptil! - gritou, e, frenético como nunca o tinham visto na enfermaria, deu com o pé uma pancada no chão. - Temos que matar este réptil! Não, matá-lo é pouco! Temos que o lançar ao fundo do poço! Andrei Efimich, que o ouvira, olhou-o do vestíbulo e perguntou suavemente: - E então, porquê? - Porquê? - gritou Ivan Dmitrich, aproximando-se dele com ar ameaçador e agitando-se convulsivamente na sua bata. - Porquê? ladrão! - acrescentou com repugnância, juntandoos beiços como se se preparasse para lhe cuspir - Charlatão! Carrasco! - Acalme-se - disse Andrei Efimich, sorrindo como quem se desculpa. - Asseguro-lhe que nunca roubei nada a ninguém, e quanto ao resto exagera provavelmente muito. Noto que está muito zangado comigo. Peço-lhe que sossegue, se puder, e diga-me calmamente: quais os motivos do seu aborrecimento? - Porque me tem aqui? - Porque está doente. - Sim, estou doente. Mas dezenas e centenas de loucos passeiam em liberdade porque, na sua ignorância, ninguém os distingue das pessoas sãs. Por que razão estes desgraçados e eu temos que estar aqui em nome de todos, como cabeças-de-turco? O senhor, o assistente, o inspector e toda essa canalha do hospital estão moralmente muito abaixo de nós. Porque havemos de estar encarcerados e não vocês? Onde está a lógica disto? - O sentido moral e a lógica não tem nada a ver com isso. É tudo obra do destino. Encontram-se aqui os que foram internados, e aqueles que não foram passeiam-se livremente, e é tudo. O facto de eu ser médico e você um doente mental não tem nada a ver para o caso, nem a moral nem a lógica; É simplesmente o destino. - Não entendo essa estupidez... - balbuciou em surdina Ivan Dmitrich, e sentou-se no seu catre. Moiseika, a quem Nikita não se atrevia a castigar em presença do médico, foi colocando em cima da cama nacos de pão, papéis e ossos, e ainda tiritando de frio principiou a falar, com voz, rápida e cantante, em hebreu. Imaginava provavelmente que tinha aberto uma loja. 33 - Deixe-me ir embora - disse Ivan Dmitrich com voz trémula. - Não posso. - Porquê? Porquê? - Porque isso é uma coisa que não depende de mim. Avalie você próprio: que acontecerá se o deixar sair? Vá-se embora. Arrisca-se a ser preso pela gente da cidade, ou pela Polícia, e voltarão a trazê-lo. - Sim, sim, isso é verdade... - articulou Ivan Dmitrich, e passou a mão pela fronte. - É horrível! E que posso fazer? O quê? A voz de Ivan Dmitrich e a sua cara jovem e inteligente, agitada por tiques nervosos, agradaram a Andrei Efimich. Sentiu desejo de lhe dizer alguma coisa carinhosa e consoladora. Sentou-se junto dele no catre, ficou uns instantes pensativo e disse: - Que há-de fazer, pergunta? Na sua situação o melhor seria fugir daqui. Mas infelizmente seria inútil. Prendê-lo-iam. Quando a sociedade se protege contra os delinquentes, enfermos mentais e gente que incomoda em geral, não há ninguém que se possa defender. A única solução que lhe resta é dominar-se, procurando compreender que a sua estada aqui é necessária. - Não é necessária para ninguém. - Visto que existem as prisões e os manicómios, alguém tem que lá estar; se não for o senhor serei eu, e se não for eu será outra pessoa. Aguarde; quando num futuro longínquo deixarem de existir as prisões e os manicómios, não haverá mais grades nas janelas nem essas fardas. Isto sucederá, é claro, mais tarde ou mais cedo. Ivan Dmitrich sorriu com ironia. - Está a brincar - disse revirando as pálpebras. - As pessoas como você e o seu ajudante Nikita não se preocupam absolutamente nada com o futuro. Mas pode estar certo, senhor, de que virão tempos melhores! Talvez me exprima de maneira banal, ria-se se quiser, mas resplandecerá a aurora de uma vida nova, triunfará a justiça e nós estaremos de parabéns, eu já não assistirei a isso, rebentarei antes, mas vê-lo-ão os nosso bisnetos. Saúdo esse momento com toda a minha alma e alegro-me. Alegro-me por eles! Avante! Que Deus os ajude, amigos! Ivan Dmitrich levantou-se, com os olhos resplandecentes, e, estendendo as mãos em direcção à janela, prosseguiu com voz emocionada: - Através destas grades os abençoo! Viva a justiça! Estou satisfeito! 34 - Não vejo grandes motivos para se alegrar - replicou Andrei Efimich, a quem a atitude de Ivan Dmitrich, embora lhe parecesse teatral, agradara extremamente. - Não haverá prisões nem manicómios, e a justiça, segundo a sua própria expressão, triunfará, mas não mudará a essência das coisas, e as leis da natureza serão as mesmas. Os homens sofrerão doenças, envelhecerão e morrerão tanto como agora. Por melhor que seja a estrela que ilumina a sua vida, no final metem-nos num ataúde e lançam-nos na fossa. - Ha imortalidade? - Não fale nisso! - O senhor talvez não acredite nela.mas eu acredito. Numa obra de Dostoievski ou Voltaire, há alguém que diz que se Deus não existisse, tê-lo-iam inventado os homens. Estou profundamente convencido de que se a imortalidade não existe, mais tarde ou mais cedo será superiormente inventada pela mentalidade humana. - Bem dito - articulou Andrei Efimich, sorrindo satisfeito. - Agrada-me que você acredite. Com essa fé, até mesmo um enclausurado pode viver perfeitamente. Você fez alguns estudos? • - Sim, estive na Universidade, mas não cheguei a acabar a carreira. - Você é um homem que sabe pensar. Em qualquer situação pode encontrar tranquilidade interior. O pensamento livre e profundo, que aspira a compreender a vida, e o desprezo total pela estúpida vaidade humana são os dois bens supremos que o homem conhece, e você pode possuí-los ainda que viva atrás de grades. Diógenes viveu num tonel, mas, apesar disso, foi mais feliz que todos os reis da Terra. - Diógenes era parvo - rosnou Ivan Dmitrich, mal humorado. - Porque me fala de Diógenes e da compreensão humana? - explodiu subitamente, pondo-se de pé. - Eu amo a vida, amo-a apaixonadamente! Sofro de mania da perseguição, um medo permanente que me tortura, mas há momentos em que me domina a sede de viver, e então receio enlouquecer. Tenho uma ânsia de viver espantosa,espantosa! Dominado pela agitação, deu uns passos pela sala e disse, baixando a voz: - Quando sonho vejo fantasmas. Aparecem-me uns homens, oiço vozes, música, parece-me que passeio por um bosque à beira-mar, e sinto um tal desejo de ter interesses na vida, fazer alguma coisa... Diga-me, que há de novo por aí? - perguntou Ivan Dmitrich. - Que novidades há? 35 - Deseja saber da cidade ou de uma maneira geral? - Bem, em primeiro lugar fale-me da cidade e depois em geral. - Que posso dizer-lhe? A vida na cidade é de um aborrecimento que dá náuseas... Não há com quem trocar uma palavra, não há ninguém que se possa ouvir. Não há gente nova. Quanto ao resto, chegou há pouco Kobotov, o jovem médico. - Chegou antes de me terem internado. É um homem boçal, não é verdade? - Sim, não é um homem culto. É estranho, sabe?... De uma maneira geral, nas nossas cidades não há estagnação intelectual, há movimento: quero dizer que nas cidades deve haver gente capaz. Mas, não sei porque, mandam-nos sempre pessoas para quem não se pode nem olhar. Desgraça da cidade! - Sim, desgraçada cidade! - suspirou Ivan Dmitrich e desatou a rir. - E, de um modo geral, que se passa? Que dizem os jornais e as revistas? A sala estava já envolta em penumbra. O médico levantou-se e, sempre de pé, principiou a contar o que se publicava no estrangeiro e na Rússia, e qual a orientação que se observava no campo das ideias. Ivan Dmitrich escutava atentamente e fazia perguntas; mas, de repente, como se recordasse qualquer coisa de horrível, agarrou a cabeça com as mãos, deitando-se no catre, de costas para o médico. - Que lhe aconteceu? - perguntou Andrei Efimich. - Não ouvirá nem mais uma pergunta minha! - articulou grosseiramente Ivan Dmitrich. Deixe-me! - E porque? - Repito que me deixe! Que diabo está a fazer aqui? - Andrei Efimich encolheu os ombros, deixou escapar um suspiro e abandonou a enfermaria. Ao passar no vestíbulo disse: - Seria conveniente limpar isto, Nikita... Está um cheiro horrível! - As suas ordens, meu senhor. "Que rapaz tão interessante pensou Andrei Efimich, enquanto se dirigia ao seu andar. Desde que vivo aqui, creio que é a primeira pessoa que encontrocom quem se pode falar. Sabe raciocinar e interessa-se precisamente pelo que deve ser." Durante a sua sessão de leitura e depois, ao deitar-se, não deixou de pensar em Ivan Dmitrich. Ao acordar, na manhã seguinte, recordou que na véspera conhecera um homem inteligente e com interesse, tomando a decisão de ir visitá-lo na primeira oportunidade. 36 Ivan Dmitrich permanecia na mesma posição da véspera, com a cabeça entre as mãos e as pernas encolhidas. Não se lhe via a cara. - Boas tardes, meu amigo - disse Andrei Efimich. - Não está a dormir? - Em primeiro lugar, não sou seu amigo - retorquiu Ivan Dmitrich, com a cara enterrada na almofada. - E, em segundo lugar, é inútil o seu interesse: não me arrancará uma só palavra. - É estranho... - balbuciou Andrei Efimich, perturbado. - Ontem estávamos a conversar tranquilamente e, de repente, você ofendeu- se e não quis continuar...Terei talvez dito coisas que não lhe agradaram, ou manifestado alguma opinião contrária às suas ideias... - Como posso acreditar em si? - disse Ivan Dmitrich,erguendo-se e olhando o médico com uma mistura de ironia e de inquietação; os seus olhos estavam injectados de sangue. - Pode ir espiar e iludir para outro sítio; aqui não tem nada que fazer. Ontem compreendi bem as razões que o trouxeram. - Que estranha fantasia! - sorriu o médico com ironia. - Imaginará você que sou um espião? - Penso que sim... Um espião ou um médico a quem incumbiram da missão de me pôr à prova, é a mesma coisa. - Que pessoa tão excêntrica que você é. Perdoe-me a expressão. - O médico sentou-se numa banquinha junto da cama e abanou a cabeça num gesto de reprovação. - Suponhamos que tem razão - prosseguiu. - Admitamos que venho com a malévola intenção de o fazer falar para o denunciar. Podem levá- lo preso e a seguir condená-lo. Mas estaria pior no tribunal e na prisão do que aqui? E ainda que o exilem e inclusivamente o 37 mandem para o presídio, seria pior do que permanecer neste pavilhão? Creio que não .. .Então de que tem medo? Estas palavras pareceram influir em Ivan Dmitrich, que se sentou calmamente. Eram pouco mais de quatro da tarde, hora em que Andrei Efimich tinha por costume passear pelas divisões da sua casa e Dariushka lhe perguntava se queria cerveja. Estava um dia tranquilo e claro. - Depois do jantar saí a dar um passeio e vim até aqui, como pode verificar - disse o médico. - Está um tempo primaveril. - Em que mês estamos? Em Março? - perguntou Ivan Dmitrich. - Sim, em fins de Março. - Há lama nas ruas? - Não, nem por isso. No jardim já há veredas. - Neste momento gostaria de dar um passeio de carro pelos arredores da cidade - ponderou Ivan Dmitrich, esfregando os olhos avermelhados como se despertasse do sono. - E depois voltar para casa, para um escritório aquecido e confortável, e fazer que um bom médico me curasse a dor de cabeça... Já há tempos que não vivo como gente. Isto aqui é um nojo! Um nojo insuportável! Depois da excitação da véspera, estava cansado e falava com desalento. Tremiam-lhe os dedos e notava-se pela sua expressão que lhe doía muito a cabeça. - Entre um escritório aquecido e confortável e esta sala não há a mais pequena diferença - respondeu Andrei Efimich. - O repouso e a satisfação não estão fora do homem, mas dentro de si próprio. - Que quer isso dizer? - O homem vulgar espera o bom e o mau do exterior, quer dizer, do carro e do escritório, enquanto o homem que pensa espera-o de si próprio. - Vá pregar essa filosofia para a Grécia, onde está calor e cheira a laranjas; o clima aqui não favorece. Com quem falei de Diógenes? Foi consigo? - Sim, foi ontem comigo. - Diógenes não precisava de um escritório e uma casa aquecida; a Grécia é um país quente; podia permanecer no seu tonel comendo laranjas e azeitonas. Mas se tivesse vivido na Rússia, já não digo em Dezembro, mas mesmo em Maio, teria pedido uma casa. Ficaria gelado. - Não. Pode resistir-se ao frio como a qualquer outra dor. Marco Aurélio disse: "A dor é a exteriorização viva da dor: faz um esforço de 38 vontade para mudar esta exteriorização, repele-a, deixa de te lamentar, e a dor desaparecerá." Isto é exacto. O sábio ou simplesmente o homem que pensa, que medita, distingue-se precisamente pelo facto de que despreza o sofrimento. Está sempre satisfeito e nada o desgosta. - Quer isso dizer que sou idiota, visto que sofro, estou descontente e desgosta-me a maldade humana. - Não deve pensar assim. Se reflectir, compreenderá a significação de tudo o que é exterior, tudo o que nos inquieta. Há que tentar compreender a vida; nisso está o verdadeiro bem. - Compreender a vida... - replicou Ivan Dmitrich, franzindo o sobrolho. - O exterior, o interior... Perdão, mas não o compreendo. A única coisa que sei - concordou, levantando-se e olhando irritado para o médico - a única coisa que sei é que Deus me criou com sangue quente e nervos, como está a ouvir! O tecido orgânico, se é capaz de vida, deve reagir a qualquer excitação. E eu reajo! A dor respondo com gritos e lágrimas; à maldade, com indignação; à vilania, com asco. Quanto a mim, isto é, na realidade, aquilo a que se chama vida. Quanto mais débil é o organismo, menos sensível se mostra e mais frouxamente resiste à excitação. E quanto mais elevado, tanto mais sensível e enérgica é a sua reacção à realidade. Como pode ignorá-lo? É você médico e não sabe umas coisas tão elementares! Para desprezar a dor, estar sempre satisfeito e não se preocupar com coisa alguma há que atingir esse estado - Ivan Dmitrich apontou para o mujique obeso, transbordante de gordura -, ou então ter-se identificado com a dor até ao extremo de perder qualquer sensibilidade em relação a si próprio; ou seja, por outras palavras, deixar de existir. Perdoe- me, não sou sábio nem filósofo - prosseguiu, irritado -, e não compreendo nada destas coisas. Não me sinto em condições de raciocinar. - Pelo contrário, você raciocina até muito bem. - Os estóicos a que você se refere eram homens notáveis, mas a sua doutrina estagnou há dois mil anos e não avançou mais, nem avançará, porque não é prática nem tem vida. Apenas obteve um certo êxito entre uma minoria que passa o seu tempo a estudar e a ruminar toda a espécie de doutrinas; a maior parte das pessoas não chegou a compreendê-la. Uma doutrina que preconiza a indiferença em relação às riquezas, às comodidades da vida, e o desdém pelos sofrimentos e a morte, é totalmente incompreensível para a imensa maioria, já que esta não conheceu nunca as riquezas nem as comodidades. E desprezar o sofrimento significaria para ela desprezar a própria vida, visto que o 39 homem na sua essência é feito de sensações de fome, frio, desconsiderações, derrotas, e um medo perante a morte à semelhança de Hamlet. Nestas sensações está encerrada a vida inteira: pode cansar-nos, podemos odiá-la, mas não desprezá-la. Assim, portanto, repito: a doutrina dos estóicos nunca poderá ter futuro. Pelo contrário, aquilo que progride, conforme pode observar, desde o princípio do mundo até ao dia de hoje, é a luta, a sensibilidade perante a dor, a capacidade de responder às excitações... Ivan Dmitrich perdeu subitamente o fio ao discurso e calou-se, passando irritado a mão pela testa. - Queria dizer qualquer coisa importante, mas não me recordo - declarou. - De que tenho estado a falar? Ah, é verdade! Já sei o que estava a dizer. Um estóico vendeu-se como escravo para redimir o seu semelhante. Como vê, isso significa que também o estóico reagiu à excitação, visto que para realizar um acto tão generoso como o de se aniquilar a si próprio para bem do próximo é necessário ter uma alma capaz de se indignar e de se compadecer. Aqui, nesta prisão, esqueci tudo o que aprendi; possuía alguns conhecimentos que poderia recordar. E, se olharmospara Cristo? Cristo reagiu perante a realidade com as suas lágrimas, o seu sorriso, a sua tristeza, a sua cólera, até mesmo com a sua angústia. Não foi com um sorriso ao encontro do sofrimento, nem desprezou a morte, mas, pelo contrário, orou no horto de Getsémani, para que afastassem dele o cálix da amargura. Ivan Dmitrich principiou a rir e sentou-se. - Admitamos que a tranquilidade e a satisfação estão dentro do próprio homem, e não fora dele - disse. - Admitamos que há que desprezar o sofrimento e não se admirar com coisa alguma. Mas em que se apoia você para o proclamar? Julga-se um sábio? Um filósofo? - Não, não sou um filósofo, mas isto qualquer pessoa o deve proclamar, porque é sensato. - Não, o que pretendo saber é porque se considera competente no que respeita à compreensão do mundo, o desprezo pelo sofrimento e tudo o mais. Acaso não terá sofrido nunca? Tem alguma noção do que é o sofrimento? Diga-me: batiam-lhe quando era pequeno? - Não, meus pais eram contrários aos castigos corporais. - Pois, a mim, meu pai tocava-me a pavana. Era um funcionário público, de carácter violento, que sofria de hemorróidas, e tinha um grande nariz e pescoço amarelo. Mas falemos de si. Em toda a sua vida nunca ninguém lhe tocou nem com um dedo, ninguém o assustou nem 40 lhe bateu; tem uma saúde de ferro, cresceu amparado por seu pai, que lhe pagou os estudos, e depois obteve imediatamente uma sinecura. Vive de graça há mais de vinte anos, numa casa com aquecimento e luz. tendo uma serviçal; deixam-no trabalhar como e quando quer; pode, inclusivamente, não fazer nada. É preguiçoso e frouxo por natureza, por isso tratou de organizar a sua vida de modo a que nada o inquietasse nem obrigasse a mexer-se. Abandonou tudo nas mãos do assistente e outros canalhas, enquanto o senhor ficava na sua casa aquecida e silenciosa, juntava dinheiro, lia livros, entregava-se a meditações sobre toda a espécie de sublimes coisas estúpidas - e aqui Ivan Dmitrich parou fitando o nariz vermelho do médico - bebia. Numa palavra, não sabe nada da vida, não a conhece em absoluto; da validade tem apenas uma noção teórica. Se desdenha do sofrimento e nada o perturba, é por uma razão muito simples: vaidade das vaidades; o externo e o interno, o desprezo pela vida, pelos sofrimentos e pela morte, a compreensão do mundo, o verdadeiro bem: tudo isto e a filosofia mais apropriada ao vadio russo. Você vê, por exemplo um mujique a bater na mulher. Para quê meter-se de permeio? Que lhe bata; tanto faz, têm de morrer os dois mais tarde ou mais cedo; além do mais, quem bate não magoa com as suas pancadas a quem as recebe, mas a si próprio. Embebedar-se é uma coisa estúpida e indecorosa, mas beber é morrer e não beber também o é. Aparece uma mulher com dor de dentes... E então? A dor é o sinal do sofrimento e sem doenças é impossível viver; todos temos de morrer. Assim o quê, mulher? Vai-te daqui e deixa-me que pense e beba vodka. Um jovem pede um conselho, pergunta que deve fazer, como viver. Outro, antes de responder, meditaria, mas você tem a resposta preparada: procura compreender o sentido da existência ou aspira ao autêntico bem. E o que é esse fantástico "autêntico bem"? Não existe resposta, claro. A nós têm-nos aqui entre grades, apodrecemos, martirizamo- nos, mas isso é belo e racional, porque entre esta enfermaria e um escritório aquecido e confortável não há nenhuma diferença. É uma filosofia muito cómoda; não há nada a fazer, a pessoa tem a consciência tranquila e considera-se sábio... Não, senhor, isso não é filosofia, não é pensamento, não é grandeza de ideias, mas preguiça, mentalidade de faquir, hipóteses... Sim! - voltou a irritar-se Ivan Dmitrich - despreza o sofrimento, mas se lhe entalassem um dedo numa porta bradava aos céus! - Talvez não - disse Andrei Efimich, sorrindo docemente. 41 - Claro que sim! Mas se acaso ficasse paralítico ou se, suponhamos, um estúpido e insolente, valendo-se da sua posição e do seu prestígio, o ofendesse em público e você tivesse conhecimento que o assunto ia ficar impune, compreenderia então o que significa isso de se conformar, no que se refere aos outros, ao sentido da vida e ao autêntico bem. - Isso é original - disse Andrei Efimich, rindo de satisfação e esfregando as mãos. - Impressiona-me agradavelmente o seu gosto pelas generalizações, e o que disse de mim é simplesmente brilhante. Tenho que confessar que a conversa consigo me proporciona um prazer extraordinário. Bem, estive a ouvi-lo; agora faça o favor de me ouvir a mim... 42 XI Esta conversa prolongou-se cerca de uma hora e produziu, segundo parece, uma profunda impressão em Andrei Efimich. A partir de então habituou-se a ir todos os dias ao pavilhão. Costumava aparecer de manhã e depois do jantar, sendo frequentemente surpreendido ao entardecer a conversar com Ivan Dmitrich. Nos primeiros tempos este mostrava-se insociável, desconfiando que Andrei Efimich vinha de má fé, e manifestando abertamente a sua hostilidade; mas depressa se acostumou a cie e a sua brusquidão de antes transformou-se numa atitude indulgente e irónica. Não tardou em propagar-se no hospital o rumor de que o doutor Andrei Efimich começara a visitar a enfermaria número seis. Ninguém, nem o assistente, nem Nikita, nem as enfermeiras, compreendiam a razão dessa atitude, nem porque passava ali as horas mortas, ou de que assunto falava, e porque nunca receitava. As suas atitudes causavam estranheza. Mikail Avcrianich frequentemente não o encontrava em casa, coisa que antes nunca acontecia. E Dariushka sentia-se desorientada, em virtude de o médico ter deixado de tomar a sua cerveja a determinada hora, e até às vezes chegar tarde para comer. Numa ocasião passava-se isto já em fins de Junho , tendo o doutor Kobotov tido necessidade de falar com Andrei Efimich, foi a sua casa; como não o encontrasse, procurou-o no pátio, onde lhe disseram que o velho médico estava no pavilhão com os doentes mentais. Ao entrar no pavilhão, parou no vestíbulo ouvindo a seguinte conversa: - Nunca chegaremos a um acordo, não conseguirá convencer-me - dizia Ivan Dmitrich, irritado. - O senhor não conhece nada do que é a realidade e nunca sofreu. A única coisa que fez 43 foi alimentar-se como uma sanguessuga com os sofrimentos alheios; eu, pelo contrário, sofri desde o dia em que nasci até ao dia de hoje. Por isso digo-lhe francamente que me considero superior a si e mais competente em todos os sentidos. Você não é ninguém para me dar lições. - Não pretendo de modo algum convertê-lo às minhas convicções - murmurava Andrei Efimich em voz baixa e como lamentando que não quisessem entendê-lo. - Não se trata disso, meu amigo. Não se trata de você ter sofrido e eu não. As alegrias e os sofrimentos são efémeros. Ponhamo-los de parte, e que os leve o vento. Trata- se do que você e eu pensamos; vemos, um no outro, duas pessoas capazes de pensar e raciocinar, e isto torna-nos solidários por mais diferentes que sejam os nossos pontos de vista. Se você soubesse, amigo, como me aborrecem a loucura geral, a falta de talento, a torpeza, e como me alegra conversar consigo! Você é uma pessoa inteligente e encanta-me a sua conversa. Kobotov entreabriu a porta, lançando um olhar para a sala. Ivan Dmitrich, com o seu gorro de dormir, e o doutor Andrei Efimich estavam sentados no catre, um ao lado do outro. O louco gesticulava, estremecia, amarfanhava-se convulsivamente na sua bata, enquanto o médico permanecia imóvel, com a cabeça baixa; e a sua face estava corada e mostrava uma expressão abatida e triste. Kobotov encolheu os ombros, sorriu ironicamente e trocou um olhar com Nikita. Este encolheu igualmente os ombros. No dia seguinte, Kobotov apresentou-se no pavilhão acompanhado pelo assistente. Pararam ambos à escuta,
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