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Alfredo Bronzato da Costa Cruz 
 
 
 
 
 
Uma versão da institucionalização do movimento cristão : 
a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia 
 
 
 
 
Monografia apresentada à Graduação em História da PUC-Rio como requisito 
parcial para obtenção do título de Bacharel em História. 
 
 
Orientador: Prof.a Silvia Patuzzi 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
Dezembro de 2009 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ficha Catalográfica 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CDD: 900 
Cruz, Alfredo Bronzato da Costa 
 
 Uma versão da institucionalização do 
movimento cristão : a História Eclesiástica de 
Eusébio de Cesaréia / Alfredo Bronzato da Costa 
Cruz ; orientadora: Silvia Patuzzi. – 2009. 
 283 f. ; 30 cm 
 
 Monografia (Graduação em História) – 
Pontifícia Universidade Católica do Rio de 
Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. 
 Inclui bibliografia 
 
 1. História – Monografias. 2. Teoria e história 
da historiografia. 3. Eusébio de Cesaréia – 
História Eclesiástica. 4. História da historiografia 
antiga. 5. História do movimento cristão. I. 
Patuzzi, Silvia. II. Pontifícia Universidade 
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de 
História. III. Título. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedicado a Ir. Leiza Azenaide, Serva da Ssma. Trindade, que em 
uma despretensiosa conversa de fim de manhã foi a primeira pessoa 
a me indicar o quanto – positiva e negativamente – o cristianismo 
ainda continua em nossos dias a repousar sobre o legado imperial 
romano, e a Augusto Sampaio e Jadir Cruz, que tenho a imensa 
alegria de poder chamar de amigos. Diz uma história do folclore 
judaico que, a cada geração, há trinta e seis pessoas realmente boas 
e justas (os lamed vavnik) cujos méritos, que ignoram, são o 
fundamento do mundo. Geralmente trabalhando no anonimato, 
ajudam eles a tornar este planeta um lugar mais habitável e decente, 
e deste modo fazem Deus continuar a se alegrar com o que criou 
(Gênesis 1, 31). Não há palavras para expressar o quanto me honra 
ter podido estar em contato com pelo menos três destas nos mais 
recentes anos de minha vida. 
AGRADECIMENTOS 
 
Muitas pessoas contribuíram de muitos modos para que eu conseguisse 
conceber o plano deste trabalho, realizar a pesquisa no qual ele se sustenta e 
redigi-lo – ainda que se deva registrar que todas as falhas que nele constam se 
devem a erros e incompreensões unicamente meus. Todas elas foram importantes, 
favoráveis cada um a seu modo a este esforço, mas algumas merecem especial 
menção nestas páginas. 
Agradeço a meus pais, Dilene Teresa Bronzato e José Alfredo Fruz, por 
todo incentivo e apoio dado, e em especial por terem me ensinado que, antes de 
qualquer outra coisa, o estudo deve ser fonte de realização pessoal. Agradeço 
também a outros familiares que me incentivaram especialmente nestes tempos 
mais recentes: Célia Bronzato e Ary Rodrigues, Jacira Cruz, Jadira Cruz e, de 
modo muito especial, a Jadir Cruz, com quem tive a honra de poder passar muitas 
horas discutindo as mais diversas idéias. 
Agradeço àquelas pessoas que foram imprescindíveis por seu incentivo e 
sua intervenção – pequenos que lhes parecessem – para que eu ousasse vir para o 
Rio de Janeiro fazer a Graduação em História na PUC-Rio e aqui me mantivesse: 
Ir. Leiza Azenaide, Serva da Ssma. Trindade, Pe. Medoro de Oliveira, Pe. Paulo 
Cezar Costa, antigo pároco e mais recentemente mestre e interlocutor das idéias 
que presidiram a redação desta monografia, e D. Elias James Manning, O.F.M., 
bispo diocesano de Valença. Também faço um destaque especial para os que de 
forma determinante foram um apoio nesta caminhada até aqui: Augusto Sampaio 
e sua estimada esposa, que demonstraram para comigo reiteradas vezes uma 
preocupação que considerei completamente surpreendente. 
Agradeço a tantos professores cujas aulas, conversas e convivência me 
nutriram de forma especial, aproveitando para advertir que as marcas que estas 
deixaram em mim talvez possam ser bastante evidentes nas linhas que se seguem. 
Da PUC-Rio devo destacar Ricardo Benzaquen de Araújo, sempre gentil e 
solícito, exemplo daquilo que o nosso ofício de historiadores tem de mais erudito 
e bem articulado, e Silvia Patuzzi, orientadora deste trabalho, que depositou em 
mim uma imensa confiança ao dar-me a liberdade de arranjar e executar este 
trabalho quase da maneira como eu achasse que deveria fazê-lo, além de ter sido 
ajuda da maior valia nos períodos de maior dificuldade e ter demonstrado 
proverbial paciência com minhas angústias e prazos ignorados, ambos do meu 
Departamento de História; e Lina Boff, Maria Clara Bingemer e o já referido Pe. 
Paulo Cezar Costa, do Departamento de Teologia. Também a Lair Amaro, de 
quem assisti no segundo semestre do corrente ano as enriquecedoras aulas do 
curso “O Jesus Histórico e as Origens do Cristianismo”, ministrado no Centro 
Loyola de Fé e Cultura da PUC-Rio; a Heloisa Bertol Domingues, amiga e 
incentivadora de todas as horas, que foi minha orientadora de Iniciação Científica 
(2007-2009) no Projeto “História da Antropologia no Acervo Luiz de Castro 
Faria” (MAST / MCT); e a Magali Romero Sá, de quem sou atualmente auxiliar 
de pesquisa (Fiocruz / Casa de Oswaldo Cruz), muitíssimo compreensiva comigo 
nestas complicadas semanas de revisão, entrega e apresentação de minha 
Monografia. Registro também um muito obrigado a Celso Taveira, da 
Universidade Federal de Ouro Preto, que, não obstante o fato de não me conhecer 
pessoalmente, com satisfação e presteza disponibilizou-me um texto de difícil 
acesso no qual tinha especial interesse. 
Agradeço àqueles diversos amigos e amigas que tornaram esta lida mais 
suportável ao me honrar com sua companhia, e dentre estes destaco Leandro 
Cesar Bedetti, Rafael Carlos Francisco, Estevão Anísio, Paulo José Belisário, 
Juliana Pereira, André Calcagno, Maria de Belém, Leonardo Silva, Eduardo 
Gonçalves, Ana Toledo, Leandro Cavalcanti, Fernanda Giesta – e seu pai, 
Antônio Muccillo, que sem sombra de dúvidas foi a pessoa com quem mais 
conversei sobre o Império Romano e os problemas da História e da Historiografia 
Antigas em toda a minha vida –, Bruno Sampaio, Rafael Rochê, Carlos Taveira e 
Ricardo Milani. De um modo muito especial, também agradeço a Isabella 
Menezes, por seu incentivo, interesse, companheirismo e (eventualmente notável) 
compreensão, sempre disposta a me ouvir e a me ajudar a conduzir da melhor 
maneira possível todas as fases de elaboração e redação deste trabalho. Foram 
pessoas que fizeram – e felizmente continuar a fazer – a minha vida mais 
agradável, e que não poucas vezes estiveram dispostas a tomar como suas as 
minhas dúvidas, angústias e esperanças. Não há palavras no mundo para agradecê-
los por isto. 
Agradeço também a PUC-Rio pela concessão de bolsa de estudos integral 
para a Graduação em História do primeiro semestre de 2005 ao segundo semestre 
de 2009, fazendo-o na pessoa do Vice-Reitor Comunitário, o supra-citado 
Augusto Sampaio, e de toda a sua equipe de trabalho. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Resumo : 
O presente trabalho é uma análise possível da História Eclesiástica de Eusébio de 
Cesaréia, obra na qual este bispo se propôs a fazer a crônica do cristianismo desde 
as suas origens até o seu favorecimento pelo Imperador Romano Constantino. 
Através da consideração de seu lugar de fala, temas, fontes e estratégias 
argumentativas, pretende-se aí esclarecer a partir de quais lentes pôde este autor 
apreender e narrar a trajetória histórica do movimento cristão, e como tal 
investigação e discurso se relacionam com o progressivo ancoramento de uma 
facção deste como instituição sociopolítica que se pretendiaguardiã de uma 
verdade exclusiva e incontestável. Na seqüência de seus capítulos, tratamos 
sucessivamente das bases materiais que viabilizaram a produção intelectual de 
Eusébio; dos pressupostos teórico-metodológicos que nos permitem lidar com 
estas de modo inter-relacionado e mutuamente esclarecedor; dos grandes temas e 
matrizes intelectuais que se articulam em sua escrita e fornecem a sustentação 
para um método específico de raciocínio e construção discursiva da verdade (e do 
erro); de como estes possuem afinidades com as idéias e posicionamentos 
político-doutrinários do bispo de Cesaréia, fornecendo, por um lado, a sustentação 
para a sua militância durante as controvérsias cristológicas do século IV e, por 
outro, um esteio lógico para o modelo de vinculação entre Igreja e Império 
Romano que se edificava neste mesmo período. 
 
Palavras-chave : 
1. Eusébio de Cesaréia – História Eclesiástica; 2. História da Historiografia 
Antiga; 3. História do Movimento Cristão. 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
UM LIVRO QUE CONTÉM UM BISPO (OU : A GLÓRIA DE EUSÉBIO) .............. 9 
I .............................................................................................................................................. 9 
II ........................................................................................................................................... 11 
III .......................................................................................................................................... 17 
A BIBLIOTECA DE CESARÉIA .................................................................................. 22 
I ............................................................................................................................................ 22 
II ........................................................................................................................................... 36 
III .......................................................................................................................................... 45 
POSSÍVEIS SIGNIFICADO HISTÓRICO E RAÍZES INTELECTUAIS DA 
HISTÓRIA ECLESIÁSTICA .......................................................................................... 65 
I ............................................................................................................................................ 65 
II ........................................................................................................................................... 76 
III ........................................................................................................................................ 122 
IV ........................................................................................................................................ 127 
V ......................................................................................................................................... 145 
VI ........................................................................................................................................ 172 
DA PAX ROMANA À PAX CHRISTI (OU VICE-VERSA) ................................... 189 
I .......................................................................................................................................... 189 
II ......................................................................................................................................... 202 
III ........................................................................................................................................ 223 
IV ........................................................................................................................................ 245 
V ......................................................................................................................................... 265 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 271 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Eu poderia ter vivido na época de Constantino, trezentos anos depois da morte 
do Salvador,do qual se sabia apenas que tinha ressuscitado como um Mitra 
ensolarado entre os legionários romanos. Eu teria testemunhado a disputa entre 
homoousios e homoiousios, sobre se a natureza de Cristo é divina ou se somente 
se assemelha à divindade. Provavelmente eu teria votado contra os trinitários, 
pois quem alguma vez pôde adivinhar a natureza do Criador? Constantino, 
Imperador do Mundo, janota e assassino,fez a balança pender para um lado no 
Concílio de Nicéia,de modo que nós, geração após geração, meditamos sobre a 
Santa Trindade, Mistério dos mistérios, sem o qual o sangue do homem teria 
sido alheio ao sangue do universo e o derramamento de Seu próprio sangue por 
um Deus sofredor, que se ofereceu a Si mesmo como sacrifício inclusive quando 
estava criando o mundo, teria sido em vão. Assim, Constantino foi simplesmente 
um instrumento indigno, inconsciente do que estava fazendo para pessoas de 
épocas distantes?E nós, sabemos para o que estamos destinados?” 
CZESLAW MILOSZ, “O Imperador Constantino” 
 
 
 
“O final da história só pode ser contado por metáforas, uma vez que se passa no 
reino dos céus, onde não há tempo. Talvez coubesse dizer que Aureliano 
conversou com Deus e que Este se interessa tão pouco pelas diferenças 
religiosas que o tomou por João da Panônia. Isso, no entanto, insinuaria uma 
confusão da mente divina. É mais correto dizer que, no paraíso, Aureliano soube 
que para a insondável divindade ele e João da Panônia (o ortodoxo e o herege, 
o abominador e o abominado, o acusador e a vítima) constituíam uma única 
pessoa.” 
JORGE LUIS BORGES, “Os teólogos” 
Introdução 
UM LIVRO QUE CONTÉM UM BISPO 
(OU: A GLÓRIA DE EUSÉBIO) 
 
I. 
 
“Seria agradável, portanto, pensar nela como a coruja de Minerva, alçando vôo 
no anoitecer de uma era intelectual. Mas ela tem uma organização que se 
assemelha mais ao vôo do inconstante pássaro pós-modernista, movendo-se em 
círculos hermenêuticos decrescentes, até que... E a referência a Minerva também 
não deve ser tomada por uma reivindicação de conhecimento profundo. Embora 
eu esvoace rapidamente por um vasto continente de erudição (...), faço-o apenas 
na condição de um turista (...), que recolhe aqui uma genealogia intelectual e, 
ali, um fragmento de folclore acadêmico, ao mesmo tempo que faz uma inspeção 
extremamente superficial dos grandes monumentos filosóficos. Como a maioria 
dos turistas, não há dúvida de que faço constantemente o papel de bobo.” 
MARSHALL SAHLINS, “A tristeza da doçura, ou a antropologia nativa da 
cosmologia ocidental” 
 
Não tenho conhecimento de nenhum formato padrão para introduzir um 
trabalho monográfico – ou qualquer outro, aliás. Tal omissão não nos deve afligir, 
já que todos sabemos (ou deveríamos saber) do que trata uma introdução. Na triste 
maioria dos casos, análogos aos (cada vez mais raros) prólogos de grande parte da 
literatura de ficção, são resumos ou encaminhamentos pouco responsáveis, que 
abundam em promessas não-cumpridas e hipérboles desimportantes, possuindo 
afinidades mais ou menos evidentes com os necrológicos, os panegíricos, os 
currículos, a publicidade e a oratória de sobremesa, de cafezinho e de bar. Não há 
porque ser assim: 
 
“(...) O prefácio comovido e lacônico dos ensaios de Montaigne não é a página 
menos admirável de seu livro admirável. O de muitas obras que o tempo não quis 
esquecer é parte inseparável do texto. Em As mil e uma noites – ou, como quer 
Burton, O livro das mil noites e uma noite –, a fábula inicial do rei que faz 
decapitar sua rainha cada manhã não é menos prodigiosa do que as que se 
seguem; o cortejo dos peregrinos que irão narrar, em sua piedosa cavalgada, os 
heterogêneos Contos de Canterbury foi por muitos considerado o mais ágil relato 
10do volume. Nos palcos elisabetanos era através do prólogo que o ator anunciava o 
tema do drama.”1 
 
Encontramos na última frase da citação acima uma coisa realmente digna 
de nota. Anunciar o tema do drama: eis um bom propósito para uma introdução 
de uma monografia de conclusão de curso de Graduação em História. Acho que é 
redundante afirmar que, dados os complexos mecanismos criativos que presidem 
a utilização da palavra escrita, e a virtual imprevisibilidade do resultado do 
esforço de colocarmos em caracteres as nossas idéias, esta introdução está sendo a 
última parte deste trabalho que redijo, de modo que também é uma espécie de 
despedida. O que pretendo fazer nesta espécie de ante-sala do discurso é 
apresentar alguns dos pressupostos, justificativas, abordagens e fontes que 
presidiram a composição de meu texto, retornando neste âmbito a um Projeto de 
Pesquisa que, com a finalidade de pontuar pela primeira vez tudo isto para mim 
mesmo, redigi em fins de novembro ou começo de dezembro do ano passado. Em 
tal esforço, espero conseguir apresentar com sucesso de onde parti e onde pude 
chegar; além do dever que me é imposto pelo imperativo da probidade intelectual, 
pretendo com isto facilitar o julgamento de eventuais leitores acerca daquilo que 
consegui (ou não) de fato obter em minha lida. 
Apresentação, projeto e instrumento de diagnóstico. De fato, não há agora 
mais nada que eu possa esperar de uma minha introdução a este modesto texto. 
 
 
 
 
 
 
 
                                                            
1 Jorge Luis BORGES. Prólogos : Com um prólogo dos prólogos. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de 
Janeiro: Rocco, 1985. pp. 8-9. 
11 
 
II. 
 
“Uma jovem chamada Ann descreveu como, na terapia, recuperou a memória 
do temível abuso satânico sofrido nas mãos dos pais e também descobriu que 
possuía múltiplas personalidades. Vídeotaipes e fotografias de família 
mostravam Ann, antes da terapia, como jovem animada e cantora de futuro 
promissor... ‘Não me importa se é ou não verdade’, afirmou o terapeuta de Ann, 
Douglas Sawin. ‘Para mim, o importante é ouvir a verdade da criança, a 
verdade da paciente. É isso que é importante. O que realmente aconteceu é 
irrelevante’. Quando lhe perguntaram sobre a possibilidade do relato de um 
cliente ser um delírio, Sawin não vacilou: ‘Todos nós vivemos em um delírio, só 
que mais ou menos delirante.’” 
DANIEL L. SCHATCHER, Em busca da memória 
 
“Nosso objeto não é a erudição do Ser e da Cultura, mas, antes, aquela Roma 
onde Cristo era Romano.” 
ERICH AUERBACH, Anotação no livro dos convidados 
do Instituto de Colônia, 1932 
   
O que pretendi fazer em minha monografia – o resultado, como já 
mencionei, fica a critério de eventuais leitores que ela venha a ter – foi analisar a 
narrativa composta por Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica, obra em 
dez livros que Jacques Liébaert designou como sendo “(...) A glória de Eusébio 
historiador”2, acerca da institucionalização do movimento cristão e sua ascensão 
de religião perseguida ou marginalizada à crença protegida e talvez professada 
pelo Imperador Constantino – e, pouco mais tarde, religião oficial do Império 
Romano. Para tal fim, busquei utilizar constantemente uma abordagem estilística 
e semântica semelhante àquela que Peter Gay fez de uma série de diferentes 
autores e obras em seu livro O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, 
Burckhardt.3 Considerei a observação de Arnaldo Momigliano de que “(...) A 
procura pelos precursores de Eusébio começou muito cedo, talvez de forma já 
esperada por um de seus seguidores imediatos, Sozômeno”4, e não pretendei de 
forma alguma seguir aqui esta linha de observação estritamente. Busquei, 
entretanto, encontrar em alguns trechos selecionados da considerada obra de 
                                                            
2 Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: 
Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). p. 148. 
3 Peter GAY. O estilo na história : Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. (Trad. Denise 
Bottmann). São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 
4 Arnaldo MOMIGLIANO. “As origens da historiografia eclesiástica”. In: As raízes clássicas da 
historiografia moderna. (Trad. Maria Beatriz B. Florenzano). Bauru: EDUSC, 2004. p. 195. 
12 
 
Eusébio as marcas de sua formação pessoal, de suas leituras, suas simpatias (e 
antipatias) doutrinais e políticas, do seu lugar institucional de redação, e das 
matrizes de pensamento com as quais dialogou ao compor sua obra magna. Fiz 
isto, conforme me foi possível, de maneira mais ou menos minuciosa, certo de que 
se tratava de esforço trabalhoso, mas de resultados suculentos na medida em que 
forneceu muitos e interessantes insights sobre os encaminhamentos específicos 
que o bispo de Cesaréia deu a seu texto. 
Ao dissertar sobre esta ruptura ou desenvolvimento que é a passagem 
daquilo que se viria a chamar de Era Apostólica ou de Cristianismo Primitivo para 
a Igreja constantiniana, Eusébio de Cesaréia se posicionou sobre a instituição 
eclesiástica cristã de seu tempo. Ao fazer tal coisa, apoiando-se em ampla 
pesquisa documental e flertando com o gênero memorialístico, o bispo historiador 
se inseriu nos grandes debates que lhe eram contemporâneos, e elaborou a partir 
deles uma teoria cristã da História, assim como uma teologia política particular, 
de grande ressonância posterior. Nesta formulação se deixam entrever as formas 
segundo as quais ele compreendeu a natureza da história e as forças que a põem 
em movimento de contínua mutação. 
Cronista das perseguições sofridas pela Igreja Cristã desde os seus 
primórdios até os dias em que viveu e defensor de sua fé frente aos argumentos 
que lhe eram opostos, por um lado, pelos críticos judeus e pagãos e, por outro, 
pelas versões alternativas do cristianismo que disputavam espaço com a sua 
própria, Eusébio descreveu o favorecimento de sua fé por Constantino e a vitória 
deste contra seus inimigos políticos mais imediatos como uma intervenção direta 
de Deus na história. Seu elogio do Imperador, novo Moisés e novo Paulo, não é 
(ou não é apenas, poderiam apontar alguns), contudo, a bajulação de um 
eclesiástico que se beneficiou diretamente da proteção imperial ao clero, mas a 
elaboração de uma narrativa original sobre o cristianismo. Para demonstrar isto, 
recorri ao exame não do tardio e declaradamente panegírico eusebiano que 
recebeu o nome de Vida de Constantino, mas de uma obra que se pretendeu 
espelho dos fatos – e que talvez por isto seja mais reveladora de que os fatos em si 
mesmos, caso existam, são impossíveis de serem apreendidos e narrados de forma 
objetiva mesmo por um autor aferrado a este propósito e extremamente cônscio de 
suas tarefas. 
13 
 
Na História Eclesiástica podemos perceber, antes de qualquer outra coisa, 
que a Igreja não é mais considerada apenas como a comunidade dos que 
esperavam a iminente volta do Cristo para julgar os vivos e os mortos, mas um 
instrumento para a realização do Reino de Deus neste mundo. Trata-se da marca 
de uma significativa mudança de paradigma em relação à crença da grande 
maioria dos cristãos dos anos anteriores. Estruturando com base neste a sua mais 
influente obra, Eusébio de Cesaréia de algum modo ajudou a desencadear o vasto 
– e então já iniciado – processo de institucionalização da esperança cristã e de 
eclesialização da idéia evangélica de “Reino”, percurso este que está, 
especificamente, na base da montagem ideológica da autocracia bizantina e, de 
maneira mais ampla, do próprio conceito de Império (ou Estado) Cristão. 
Deve-se explicitar que para este autor, na raiz mesmo de sua filosofia da 
história, estava a convicção de que a realidade não é apenas o conjunto arbitrário 
de eventos encadeados quase que ao acaso, mas sim um todo prenhe de 
significados e direcionamentos mais ou menos velados;é simbólica e demanda 
interpretação, no sentido de que remete a elementos não-visíveis, que estão 
“abaixo da superfície” dos acontecimentos. Para Eusébio esta verdade dissimulada 
sob as aparências dos episódios correspondia não a um palco conflituoso onde se 
entrechocam de maneira informe as razões secretas do próprio homem e as 
combinações e injunções de paixões e interesses que o levam a agir, mas sim a um 
mundo superior de realização dos desígnios divinos, presidido mesmo em seus 
mais caóticos momentos pela providência transcendente e salvífica manifesta na 
redenção oferecida ao mundo pelo sacrifício de Jesus Cristo. 
Como já mencionado, o mais importante referencial teórico no qual me 
alicercei para realizar a pesquisa que estrutura esta monografia e redigi-la foi o 
formulado e exercitado pelo historiador norte-americano Peter Gay no seu já 
referido trabalho. Nesta obra breve e sumamente interessante, confessadamente 
inspirada em uma frase do livro de Sir Ronald Syme sobre Tácito – “os homens e 
as dinastias passam, mas o estilo perdura”5 –, Peter Gay aplicou para análise de 
uma série de autores da historiografia o mesmo método filológico e sociológico 
que Eric Auerbach aplicou em seu Mimesis às obras clássicas da literatura 
                                                            
5 Citado em: P. GAY. Op. cit. p. 11. 
14 
 
ocidental para investigar como nestas é representada a realidade.6 Com efeito, 
desde o primeiro momento em que imaginei este empreendimento que agora 
ofereço à vossa leitura, acreditei que podia ser consideravelmente proveitoso o 
recurso ao tipo de análise que Eric Auerbach e Peter Gay formularam e 
exercitaram em suas mencionadas obras para lidar com a narrativa apresentada 
por Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica sobre a institucionalização 
do movimento cristão. Isso se dá na medida em que o estudo do estilo, que 
“molda e é por sua vez moldado pelo conteúdo”7 de um texto, possui um 
importante valor diagnóstico para a história da historiografia: 
 
“(...) a maneira cultivada do escritor expressa de maneira instrutiva tanto o seu 
passado pessoal quanto as formas de pensar, sentir, crer e operar da [sua] cultura. 
(...) O estilo é o desenho no tapete – a indicação inequívoca, para o colecionador 
informado, do local e época e sua origem. É também a marca nas asas da 
borboleta – a assinatura inconfundível, para o lepidopterista atento, de sua 
espécie. E é o gesto involuntário da testemunha no banco dos réus – o sinal 
infalível, para o advogado observador, da prova oculta.”8 
 
Acredito que semelhante abordagem, baseada na crença de que, ao invés 
de apenas buscar ler nas entrelinhas das obras para se obter informações 
relevantes sobre seus autores, pode-se chegar a resultados sumamente 
recompensadores ao se ler as próprias linhas por eles redigidas9, podem ajudar-
nos a vislumbrar as pessoas por trás – ou melhor, dentro – dos textos, a que 
diálogos devem ou contribuem em algo, como pensam seu próprio ofício e como 
compreendem a natureza do mundo em que vivem. Ainda que as convenções da 
escrita pública e, ao menos em se tratando de obras de narrativa histórica, as 
pretensões de veracidade ou verossimilhança limitem em muito as possibilidades 
de caracterização dos eventos de acordo com certas normativas retóricas, variadas 
de sociedade a sociedade, de época cultural a época cultural, sempre há certa 
margem de manobra larga o suficiente para ser muito instrutiva e nos indicar algo 
                                                            
6 Erich AUERBACH. Mimesis : A representação da realidade na literatura ocidental. (Trad. Jacob 
Guinsburg). (5ª ed.). São Paulo: Perspectiva, 2004. (Col. “Estudos”, Seção “Crítica”, n. 2; dir. 
Jacob Guinsburg). 
7 P. GAY. Op. cit. p. 17. 
8 Id. Op. cit. pp. 20-21. 
9 Ibid. Op. cit. p. 29. 
15 
 
sobre os próprios historiógrafos. Mesmo as referidas convenções nos remetem a 
certos contextos, a certas compreensões socialmente forjadas, sobre o mundo, e 
para a reflexão do historiador isto não deixa de ser um indício relevante – muito 
ao contrário! Os artifícios narrativos que um autor usa para caracterizar eventos e 
personagens são possíveis indicações de qual sua opinião sobre aquilo que ele 
narra; a maneira como ele compõe sua narrativa, identificada no “seu tom de voz 
tal como surge na tensão ou no repouso de suas orações, seus adjetivos preferidos, 
sua escolha de episódios ilustrativos, suas tônicas, seus epigramas”10, desvela, 
ainda que de modo efêmero, qual a sua particular compreensão do homem e do 
mundo – afinal, faz toda a diferença contar uma mesma história, a História, como 
se esta fosse um épico, uma tragédia, uma comédia, uma liturgia ou teatro sacro, 
uma peregrinação, um carnaval ou um caos de desmandos e arbitrariedades sem 
sentido, ou seja, sem direção e significado. Além do mais, tais representações 
acerca do homem e do mundo possuem suas conseqüências, corolários 
sociopolíticos e morais que devem ser levados em conta, ainda que não de 
maneira anacrônica, em sua análise. Os autores e fontes que um historiador cita 
também são extremamente importantes para se definir com quem ele dialoga e 
onde acredita estarem as janelas para o passado a partir de seu presente – ou 
simplesmente que narrativas e vestígios despertaram seu interesse ou estavam 
disponíveis para o seu exame. 
Como, porque e através de quê um autor capta o passado e o representa em 
uma narrativa são coisas que apenas cuidadosa leitura de sua própria obra, 
considerada em seu próprio contexto, pode revelar. Peter Gay afirma que se um 
historiador “tem alguma consciência e competência profissional, irá 
necessariamente dizer muito mais a respeito do período sobre o qual está 
escrevendo do que sobre o período em que vive”11, mas ainda assim suas escolhas 
de tema, de eventos exemplares que invoca para apresentá-lo, as expressões que 
usa para fazê-lo, as fontes que utiliza ou rejeita para sua pesquisa, os autores com 
os quais concorda ou discorda, a tradição literária e científica na qual se insere ou 
contra qual se insurge, as formas retóricas de exposição das quais se apropria, o 
“tom de voz” que se faz presente no seu texto, são todos indícios que remetem ao 
                                                            
10 Ibid. Op. cit. p. 22. 
11 Ibid. Op. cit. p. 30. 
16 
 
homem que escreve, suas intuições, crenças e intencionalidades mais profundas, 
ao mundo de seu ofício e ao seu universo de referências. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
17 
 
III. 
 
“O teólogo pode bem se comprazer na deleitosa tarefa de descrever a religião 
descendo do céu revestida de sua pureza natural. Ao historiador compete um 
encargo mais melancólico. Cumpre-lhe descobrir a inevitável mistura de erro e 
corrupção por ela contraída numa longa residência sobre a terra, em meio a 
uma raça de seres débeis e degenerados.” 
EDWARD GIBBON, Declínio e queda do Império Romano 
 
Como limitação e possibilidade de seu próprio ofício, os cientistas sociais 
– sejam eles historiadores, sociólogos, antropólogos, ou de outros tipos quaisquer 
– não podem ascender a verdades convencional e interpretativamente válidas sem 
descer ao intrincado universo de fatos particulares que compõem seu objeto de 
estudo.12 Um historiador especialmente interessado em se aproveitar do – como o 
chama o literato argentino Jorge Luis Borges – melancólico acaso que faz com 
que depois de certo tempo os próprios historiadores e suas narrativas 
historiográficas se convertam eles mesmos em objetos passíveis de uma análise de 
dimensões históricas deve ser bastante cuidadoso no trabalho de pesquisa a que se 
propõe.13 Somente a partir de um estudo adequadamente profundo de trabalhos 
específicos sobre temas bem delimitados é que ele poderá vir a em algum 
momento de sua carreira tecer considerações decaráter mais geral sobre como a 
realidade é, ou melhor, como a realidade pode ser – em diferentes contextos, de 
acordo com diferentes intencionalidades, dentro de diferentes dinâmicas de 
diálogo, pesquisa e escrita – retratada por uma obra de historiografia. 
Dessa maneira acima referida é que se quis proceder na elaboração deste 
trabalho de monografia, fazendo-o em relação a um autor e obra específicos: no 
presente caso, Eusébio de Cesaréia e sua História Eclesiástica. O que pretendi foi 
produzir como que um instantâneo discursivo sobre a imagem composta por este 
historiador acerca do desenvolvimento histórico do movimento cristão dos 
primeiros séculos e a sua institucionalização como religião permitida e protegida 
do Império Romano, buscando elencar alguns dos elementos contextuais, autores 
e conceitos com os quais o bispo de Cesaréia dialogou para compô-la. 
                                                            
12 Cf. Clifford GEERTZ. Observando o Islã : O desenvolvimento religioso no Marrocos e na 
Indonésia. (Trad. de Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (Coleção “Antropologia 
Social”; dir. Gilberto Velho). ps. 12-14 e 33-35. 
13 Cf. J. L. BORGES. Op. cit. pp. 86-87. 
18 
 
Se é verdade que certos tipos particulares de fé – aliás, como certos tipos 
particulares de dúvida – florescem em certos tipos particulares de sociedade e 
dinâmica social, também nos é possível afirmar que certa compreensão do 
historiador sobre o que faz e sobre qual a natureza de seu objeto de estudos está 
relacionada intimamente com seu contexto cultural específico. Não que isso seja 
um fator completamente determinante do que pode ou não elaborar ou fazer ele a 
partir de sua apropriação particular dos instrumentos de pensamento que lhe são 
fornecidos por sua formação cultural, mas não levá-la em conta seria como 
observar uma aranha que se move em uma teia sem considerar o formato e a 
construção da própria teia. Como já atestamos acima, qualquer historiador 
seriamente debruçado sobre determinada realidade que não é sua própria, passada, 
procurará escrever em seu âmbito profissional mais sobre seu estrito objeto de 
estudos do que sobre si mesmo; contudo, suas próprias escolhas de fatos a narrar 
como exemplares de certos processos, sua abordagem temática, as fontes que 
utiliza em sua pesquisa, os autores com os quais dialoga e como o faz, o estilo 
com o qual compõe seu texto, são indícios muito relevantes sobre o homem que 
escreve, o mundo no qual ele se insere (e para o qual ele escreve) e como ele 
compreende e lida com este mundo.14 
Fazer a análise de como Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica 
retratou e interpretou o processo de oficialização da Igreja Cristã, que marca a 
passagem do cristianismo de uma crença mais ou menos periférica e 
esporadicamente perseguida para uma religião permitida e protegida pelo Império 
Romano, é pensar também como este homem compreendia e se posicionava em 
relação à sua própria crença cristã, e, mais ainda, é entrever como este pensador 
compreendia seu próprio ofício, a natureza, da história, do homem e do mundo. 
Antes de prosseguirmos em tal intento, é necessário fazer ainda algumas 
considerações preliminares. A primeira dela diz respeito à terminologia usada no 
título e no corpo deste trabalho. Em toda a parte preferi usar para me referir ao 
conjunto dos seguidores de Jesus de Nazaré a expressão movimento cristão ou 
movimento de Jesus do que cristianismo – com a qual expressamos o variado e 
nem sempre coerente sistema de crenças dos diversos cristãos – ou Igreja Cristã – 
que associamos a uma facção do movimento cristã que veio a se tornar 
                                                            
14 Cf. C. GEERTZ. Op. cit. p. cit. P. GAY. Op. cit. p. cit. 
19 
 
hegemônica contra outras versões concorrentes que acabaram sendo silenciadas e, 
por assim dizer, ficaram para trás; por institucionalização do movimento cristão 
queremos designar justamente a conformação de uma considerável fatia sua como 
uma instituição sociopolítica e jurídica solidamente estabelecida sobre uma 
realidade humana e patrimonial concretas e um conjunto de crenças conseqüentes 
inter-relacionadas de forma sistemática. Nisto tudo segui as considerações que 
Dale T. Irvin e Scott W. Sunquist registraram no prefácio da obra História do 
movimento cristão mundial, por eles organizada: 
 
“(...) O movimento cristão tem sido sempre maior do que qualquer comunidade 
eclesial individual ou local imaginou que fosse. Sua história reflete uma enorme 
diversidade de crenças e práticas através dos dois milênios passados. Poucos 
haverão de concordar com tudo o quanto tem sido dito ou feito em nome do 
cristianismo, e na verdade a própria história do movimento está repleta de 
disputas. Para narrar uma história fidedigna do movimento, é preciso levar em 
conta esta diversidade, as divergências que muitas vezes separam várias partes 
uma da outra, sem reduzir sua história comum à perspectiva de uma só. Somos 
forçados a unir numa história comum indivíduos e comunidades que em vida 
muitas vezes lutaram para distanciar-se uns dos outros, e cujos descendentes 
eclesiásticos com freqüência permanecem em desacordo uns com os outros hoje 
em dia. Muitas dessas diferenças surgiram como resultado da ultrapassagem por 
parte da fé cristã dos limites históricos da linguagem, da cultura e da identidade. 
O próprio tempo introduziu ulteriores mudanças no significado, na expressão e na 
prática. O movimento cristão foi continuamente diversificando-se por meio de 
suas expansões, embora pretendesse permanecer o mesmo.”15 
 
Em segundo lugar, tive de enfrentar a problemática das fontes. É um pouco 
embaraçoso reconhecer que lidei como amador com a História Eclesiástica, e que 
um meu próprio estudo um pouco mais aprofundado implicaria revisões muito 
sérias no trabalho que agora apresento. Embora tenha escolhido trabalhar com a 
análise estilística de um historiador de língua grega, o meu domínio do grego é 
simplesmente uma nulidade, reduzido ao de perscrutador de notas de rodapé e um 
tanto quanto displicente utilizador de dicionários e gramáticas. Evidentemente 
também considero saudável a regra de não se tratar de autores com os quais não se 
pode lidar no original, mas fui levado a desrespeitá-la não só por um fascinado 
ímpeto aventureiro que, ultrapassando a curiosidade, chegou a constituir quase 
uma imprudência e uma deselegância, mas também pela grande importância de 
                                                            
15 Dale T. IRVIN e Scott W. SUNQUIST (orgs.). História do movimento cristão mundial. Vol. I : 
Do cristianismo primitivo a 1453. (Trad. José Raimundo Vidigal). São Paulo: Paulus, 2005. p. 5. 
20 
 
Eusébio de Cesaréia na formação da tradição historiográfica do Ocidente e do 
Oriente de matriz civilizacional cristã – assim como pelo melancólico fato de que 
este autor é muito pouco ou quase nada estudado entre nós. Prescindir de 
investigá-lo por não poder apreciá-lo na sua formulação original seria equivalente 
a dar um tratamento sofístico àquela afirmação de Heródoto de que as nascentes 
do Nilo são desconhecidas16, contentando-me em afirmar que estas são de todo 
insondáveis e a observar encantado e ignorante o movimento sazonal das baixas e 
cheias e a fecundidade e devastação que as águas deste rio trazem à terra do Egito. 
Posto tudo isto, tive de lidar com uma obscura tradução em português da História 
Eclesiástica17, que cotejei com a mais autorizada feita por Argimiro Velasco-
Delgado, publicada em espanhol junto com o texto grego e acompanhada por uma 
minuciosa introdução, índices temáticos e onomásticos, referências bibliográficas 
muito completas e abundantes notas explicativas, em dois volumes pela Biblioteca 
de Autores Cristianos (BAC).18 Comparando as duas traduções, acabei 
constatando que a brasileira de que disponho é umaversão não-creditada da 
tradução Velasco-Delgado, mantendo inclusive fragmentos de algumas de suas 
notas – aliás, muito empobrecidos – e muitos espanholismos. Dadas estas 
circunstâncias, optei por citar sempre o texto em português, recorrendo, contudo, 
às notas e etimologias da outra tradução; para os trechos e termos de 
entendimento especialmente difícil, recorri sempre a esta, e em algumas vezes não 
hesitei em tatear o vocabulário grego com o auxílio das referências do 
enciclopédico Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs.19 
Em terceiro lugar, há a questão da bibliografia que utilizei. Baseei a maior 
parte de minha análise em minhas próprias impressões e em uma mistura muito 
heterogênea de textos de historiadores, teólogos, cientistas sociais, literatos e 
filósofos. Há os que possam vir a achar que este ecletismo é uma desvantagem, 
                                                            
16 HERÓDOTO. História : O relato clássico da guerra entre Gregos e Persas. (Trad. J. Brito Broca; 
introd. Vítor de Azevedo). (2ª ed. reform.). São Paulo: Ediouro / Prestígio, 2001. (Col. “Clássicos 
Ilustrados”). Livro II, 28. p. 200: “(...) Nenhum dos Egípcios, Lídios e Gregos com quem palestrei 
vangloriava-se de conhecer as nascentes do Nilo”. 
17 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria 
Aparecida Salmeron). São Paulo: Fonte, 2005. 
18 EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiastica. (Texto bilíngüe; ver. espanhola, introd. e notas 
de Argimiro Velasco-Delgado). (2ª ed. rev.). Madri: BAC, 1997 [1973]. (2 vol.). 
19 VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo 
Di Berardino). Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. 
21 
 
mas considero justamente o contrário. Transitei de bom grado entre diferentes 
discursos, examinando-os e colhendo neles o que achei proveitoso para ser aqui 
utilizado, e procurei em toda parte ter o cuidado de fazer as adequadas referências 
que pudessem situar ao leitor o local de fala dos autores mencionados. Os eruditos 
que estudaram a Antigüidade cristã, sejam eles de quaisquer formações 
acadêmicas, certamente estavam – e estão – no nível dos mais habilidosos de seus 
pares e produziram nos últimos séculos um verdadeiro universo de tratados muito 
minuciosos, labirinto que imagino impossível de ser percorrido inteiramente em 
uma só vida humana. Não tenho a mínima pretensão de cobrir toda esta polifônica 
biblioteca de Babel, mas fico satisfeito se os que lerem este trabalho considerarem 
que consegui entrar de alguma maneira proveitosa no vasto e altamente 
especializado “Campeonato Greco-Romano”.20 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
                                                            
20 A expressão é do sociólogo Rodney Stark, que diz ter escrito o ensaio intitulado “The Class 
Basis of Early Christianity: Inferences from a Sociological Model” – cujos desdobramentos deram 
origem ao seu livro The rise of christianity – com o principal propósito de saber se era 
“suficientemente bom para jogar no Campeonato Greco-Romano”. Rodney STARK. O 
crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). 
São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 7. 
 
 
Capítulo 1 
A BIBLIOTECA DE CESARÉIA 
 
I. 
 
“Tu que transcreverás este livro, eu te conjuro, em nome de Nosso Senhor Jesus 
Cristo, e de sua volta gloriosa, na qual virá julgar os vivos e os mortos: 
confronta o que tiveres copiado, e corrige-o com cuidado no exemplar em que o 
tiveres escrito. Transcreve também do mesmo modo esta súplica e coloca-o em 
tua cópia.” 
JERÔNIMO, De viris ilustribus 
 
Os primeiros passos do cristianismo rumo à sua institucionalização se 
deram na chamada “era da ansiedade”, conforme a definiu o filósofo Eric 
Dodds.21 De acordo com o que vemos na imprensa periódica e nos jornais da 
semana, segundo aquilo que vivemos em nosso cotidiano, poderíamos objetar – e 
com muita propriedade – que o nosso próprio tempo também é um período de 
ansiedade; além disso, o estudioso de História pode afirmar que seguramente 
todos os tempos – cada um a seu modo – são de ansiedade. Mais ainda: alguns, de 
mais discernimento, declaram que não há sequer “eras”, que estas são apenas 
divisões artificiais criadas a posteriori pelos historiadores e pelos líderes 
religiosos e políticos, pessoas que pretensiosa e arbitrariamente se propõem a 
fatiar a experiência humana de acordo com suas próprias concepções e interesses. 
Nisto tudo não deixam de ter razão. Aqueles anos transcorridos entre a chegada de 
Marco Aurélio ao trono (161 d.C.) e o Edito de Milão (313 d.C.), entretanto, 
foram para os habitantes das terras que então compunham o Império Romano 
marcados de forma singular por um extremo caos e insegurança, instaurados por 
calamidades naturais e sociais: constante inquietação financeira, declínio 
acentuado do poder das autoridades civis partidárias do legalismo em favor do 
autoritarismo dos magistrados investidos de funções militares, crescente escassez 
de gêneros alimentícios, decréscimo acentuado das taxas de natalidade, 
desorganização dos padrões tradicionais de organização familiar, mudança nas 
estruturas produtivas no campo, miséria urbana crônica, epidemias de grande 
                                                            
21 Citado em: Marilia Pacheco FIORILLO. O Deus exilado : Breve história de uma heresia. Rio de 
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. pp. 121-122. 
23 
 
alcance e os efeitos debilitantes de uma estrutura cultural saturada “da crueldade 
caprichosa e do amor substitutivo da morte”.22 A tudo isto, somavam-se novas 
pressões surgidas nas fronteiras, e uma sensação de opressão e isolamento 
crescentes: o cristão Bardaisan – que eventualmente viria a se tornar, ou, como se 
queira, a ser considerado um heresiarca –, elemento complexo com uma aguda 
visão de seu mundo, falante de siríaco como língua-mãe e de pelo menos uma 
outra meia dúzia de idiomas, famoso por sua destreza como cavaleiro e arqueiro, 
bem versado na filosofia platônica e profundo conhecedor das Escrituras Sagradas 
de seus correligionários e dos judeus, afirmou. que a civilização estava cercada 
por terras ermas e povoadas por habitantes sinistros, entre os quais não havia nem 
mesmo o conhecimento das facilidades indispensáveis à vida urbana.23 No 
máximo na década de 210, escreveu ele que “(...) Em todas as regiões dos 
Sarracenos, na Líbia Superior, entre os Mauritânios... na Alemanha exterior, na 
Sarmácia Superior... em todos os territórios a norte do Ponto [mar Negro], do 
Cáucaso... e nas terras do outro lado do Oxus, ninguém vê escultores, pintores, 
perfumistas, cambistas ou poetas.”24 A maior parte dos súditos greco-latinos de 
Roma, convencidos de sua superioridade cultural, mas cada vez mais hesitantes 
quanto às suas reais capacidades bélicas, deve ter compartilhado da claustrofobia 
de Bardaisan, agravada mais e mais conforme a própria porção do mundo que 
consideravam como civilizada tornava-se um lugar tão estranho quanto violento. 
De um modo geral, o terceiro século depois do nascimento e morte de 
Jesus de Nazaré foi marcado pela turbulência e pela insegurança política na Bacia 
do Mediterrâneo, e em seus anos o governo imperial romano tornou-se, “cada vez 
mais, o prêmio a ser conquistado pelo chefe militar mais forte, pelos generais 
ambiciosos que abundavam”.25 Nestes dias, “(...) havia quase que invariavelmente 
alguma província nas mãos de um usurpador e, na prática, o império dificilmente 
                                                            
22 Cf. Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. 
(Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 
239. 
23 Cf. Peter BROWN. A ascensão do cristianismo no ocidente. (Trad. EduardoNogueira; Rev. 
Saul Barata). Lisboa: Presença, 1999. (Col. “Construir a Europa”; dir. Jacques Le Goff). ps. 21 e 
24. 
24 Citado em: Id. Op. cit. p. cit. 
25 Steven RUNCIMAN. A civilização bizantina. (Trad. Waltensir Dutra). 2ª ed. Rio de Janeiro: 
Zahar, 1977. pp. 12-13. 
24 
 
poderia ser considerado como uma comunidade unida”.26 O mais eficaz sistema 
sócio-político e econômico pré-industrial do mundo – com a possível exceção da 
China confuciana27 –, sob vários aspectos, finalmente defrontava-se com os seus 
limites e seguia a vereda do declínio; os grandes oradores e historiadores do 
mundo clássico, entretanto, operando com categorias de ordem apriorística e 
imutável, eram incapazes de propor, ou mesmo de conceber tal coisa: não viam e 
não podiam ver forças sociais em atuação, “mas somente vícios e virtudes, êxitos 
e erros; a sua maneira de colocar os problemas não é espiritual nem materialmente 
histórico-evolutiva, mas [exclusivamente] moralista.”28 Apenas na década de 280, 
Diocleciano, “o primeiro grande estadista que Roma produziu desde Augusto”29, 
conseguiu fazer implementar um programa de reformas de longo alcance com 
vistas à pacificação do Império pela reorganização das instâncias de comando 
civil e militar, uniformização da administração, submissão completa do exército, 
normalização do poder econômico do governo pela estabilização da moeda e 
valorização ideológica da pessoa do imperador – segundo Georges Suffert, ao 
proceder assim, este soberano acabou inventando “um dos primeiros Estados 
modernos e totalitários da História.”30 A Tetrarquia por ele instaurada, contudo, 
revelou-se mais frágil do que se poderia ter antecipado e, de fato, elevou a um 
novo nível os embates pelo governo de Roma: 
 
“(...) O império reformado por Diocleciano mal resistiu à sua abdicação, em 305. 
(...) [Ele] fizera o império depender do imperador, mas o sistema de dois 
                                                            
26 Id. Op. cit. p. cit. 
27 Stephen L. DYSON. “A classical archaeologist’s responses to the ‘New Archeology’”. In: 
Bulletin of the American Schools of Oriental Research, s.l., s.v., n. 242, pp. 7-13, s.d. p. 10. Apud: 
John Dominic CROSSAN. O nascimento do cristianismo : O que aconteceu nos anos que se 
seguiram à execução de Jesus. (Trad. Barbara T. Lambert). São Paulo: Paulinas, 2004. (Col. 
“Repensar”). p. 222. 
28 Erich AUERBACH. Mimesis : A representação da realidade na literatura ocidental. (Trad. Jacob 
Guinsburg). (5ª ed.). São Paulo: Perspectiva, 2004. (Col. “Estudos”, Seção “Crítica”, n. 2; dir. 
Jacob Guinsburg). p. 32. 
29 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 17. 
30 Georges SUFFERT. Tu és Pedro : Santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A 
história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Trad. Adalgisa Campos). Rio 
de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 63. O mesmo autor relativiza, a seguir, ainda na página citada, esta 
polêmica e certamente anacrônica caracterização ao declarar que se trata de um “(...) Julgamento 
um tanto excessivo, (...) [ainda que seja] certo que a centralização [administrativa] não pára de 
aumentar, que a polícia torna-se onipresente e que uma vaga religiosidade envolve este novo 
império.” Id. p. cit. 
25 
 
imperadores e uma norma de sucessão ao trono só poderia perdurar se os 
candidatos imperiais fossem homens de espírito elevado, isentos de ciúmes e de 
suspeitas. O título de césar era também perigoso, muito alto, mas ainda não 
bastante alto. Desapareceu rapidamente. Em 311 havia quatro imperadores (...). A 
cena estava, evidentemente, preparada para a guerra civil.”31 
 
Nos freqüentes conflitos armados – contra correligionários romanos, 
contra inimigos externos – cidadãos pacíficos podiam inesperadamente se ver 
desgraçados, pilhados, violados, torturados, mortos; a Pax Romana era cada vez 
mais apenas um artifício retórico do que uma realidade cotidiana retoricamente 
apresentada pelos oradores, poetas e letrados.32 Edward Gibbon escreveu sobre 
este período que então “(...) O Império se viu afligido por cinco guerras civis; no 
restante do tempo, reinou não tanto um estado de tranqüilidade como de trégua 
armada entre os diversos monarcas hostis que, encarando-se um ao outro com 
olhos de medo e rancor, forcejavam por aumentar suas respectivas forças às custas 
de seus súditos.”33 
Este ambiente político tumultuado, conforme escreveu Steven Runciman, 
contrastava com o que este historiador considerou “padrões de civilização [que] 
eram ainda altos.”34 O empobrecimento geral da população coincidiu com a 
ampliação do abismo existente entre pobres e ricos, e o fato material verificável é 
que, no âmbito de sucessivas crises, ainda que imersos na insegurança, “as classes 
mais ricas desfrutavam um conforto material e um luxo que ultrapassavam 
                                                            
31 S. RUNCIMAN. Op. cit. pp. 19-20. 
32 E isto para aqueles homens livres que possuíam a cidadania romana. Para os povos que foram 
conquistados pelas armas romanas, ou que lhes declararam por si mesmos a sua submissão, a Pax 
Romana foi sempre, constitutivamente, marcada por uma “paz” no mínimo ambígua. É fato que 
durante um considerável período em toda a grande região sob o domínio romano praticamente 
nenhuma guerra devastava os campos e as cidades, as letras, artes e ofícios podiam desenvolver-se, 
por toda parte vigorava o mesmo sistema jurídico, e as fronteiras se encontravam em relativa 
tranqüilidade, mas tratava-se de uma situação de tensão latente. A paz havia sido estabelecida e era 
mantida pela marcha das legiões – paz-de-vitória para os romanos, paz-de-submissão para os 
vencidos – e por uma relação que, sendo na teoria uma relação de direito entre dois parceiros, era 
“na realidade uma ordem de dominação (...) acompanhada de rios de sangue e lágrimas de 
enormes dimensões”. Cf. Maria Clara Lucchetti BINGEMER (org.) Violência e religião : 
Cristianismo, Islamismo, Judaísmo : Três religiões em conflito e em diálogo. Rio de Janeiro / São 
Paulo: PUC-Rio / Loyola, 2001. (Col. “Teologia e Ciências Humanas”, n. 3). pp. 123-124. A este 
respeito, ver também: Klaus WENGST. Pax Romana : Pretensão e realidade. São Paulo: Paulinas, 
1991. 
33 Edward GIBBON. Declínio e queda do Império Romano. (Org. e introd. Dero A. Saunders; 
Pref. Charles A. Robinson. Jr.; Trad. e notas suplem. José P. Paes). Ed. abreviada. São Paulo: 
Companhia das Letras, 2005. p. 197. 
34 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 13. 
26 
 
qualquer coisa já vista pelo mundo.”35 Com a miopia comum a grande parte de 
seus camaradas ricos de outros tempos e locais, em meio à doença, à violência, às 
moscas, os romanos mais abastados tornaram-se verdadeiros aficionados por 
incenso, cada vez mais ávidos dos prazeres sensuais que lhes podiam proporcionar 
os ungüentos raros, as peles e cabelos de servas e eunucos, o vinho de Falerno, as 
penas coloridas de pássaros exóticos, a lã purpúrea ou escarlate, a cera, a pimenta, 
o mel.36 Os “(...) Templos, estátuas, poemas épicos, revestiam-se todos de 
magnificência e rebuscamento”37, e a “arte e as letras ainda se mantinham fiéis 
aos velhos poemas gregos ou às suas magníficas reproduções surgidas na Roma 
augustina (...), mas a grande civilização que [o Império Romano] copiava perdera 
sua força vital”38 com o advento de profundas mudanças culturais. 
Na clássica cidade-estado grega o cidadão estava imerso na vida pública, 
identificando-a com a esfera mais imediata, mais íntima de sua existência: a lei, a 
defesa e a gestão da pólis eram assuntos intrinsecamente seus – o que não foi o 
caso nas monarquias helenísticas. Nestas a identificação entre governo e cidadão 
desapareceu, e este se viu reduzido à súdito – uma pessoa submissa à um núcleo 
de poder externo, que não se confunde com seu âmbito particular de interesses e 
afazeres. Afastado de constantes obrigações políticas, entretanto, ele também foi 
liberado para cultivarsua personalidade de diversas formas, e posto em diálogo 
com discursos e símbolos estrangeiros que então se punham à sua frente na 
medida em que as fronteiras estatais que o limitavam foram progressivamente 
extintas e seu horizonte de pensamento se expandiu para muito além daquilo que 
seus olhos podiam visar.39 Com a desintegração dos governos de origem 
macedônica e a expansão do Império Romano, que buscou a colaboração dos 
dirigentes nativos das diversas áreas que conquistou ao mesmo tempo em que 
                                                            
35 Id. p. cit. 
36 Cf. R. STARK. Op. cit. p. 172. PETRÔNIO. “A ceia de Trimalchão”. In: Saticiron. (Trad. 
Miguel Ruas). São Paulo: Atemas. 1949. (Col. “Biblioteca Clássica”, v. 30). ps. 45-46 e 54. 
37 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 14. 
38 Id. p.cit. 
39 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 124-125. Edward McNall BURNS. História da Civilização 
Ocidental. (Trad. de Lourival G. Machado, Lourdes S. Machado e Leonel Vallandro). (3ª ed. rev. e 
at.). Porto Alegre: Globo, 1975. pp. 193-210. Henri Irenée MARROU. História da Educação na 
Antigüidade. São Paulo: Herder / USP, 1966. pp. 153-163 (especialmente as pp. 156-161). Helmut 
KOESTER. Introdução ao Novo Testamento. Vol. I : História, cultura e religião do período 
helenístico. (Trad. Euclides Luiz Calloni). São Paulo: Paulus, 2005. ps. 44-47, 105-118 e 167-170. 
27 
 
“incentivou, como precavida forma de controle administrativo, a assimilação 
lingüística e cultural”40, esta tendência ao individualismo e ao cosmopolitismo se 
acentuou, sintetizando novas formas de ser no mundo, sincréticas e concorrentes 
em um mercado discursivo caracterizado justamente pela livre-concorrência de 
idéias e modos de viver.41 Constituída esta estrutura, “(...) A Paidéia helenística 
[sic] recuou e cedeu (...). Agora não se lia mais o Platão político da República ou 
o comentador da ética socrática, mas o Platão místico de textos como Timeu.”42 
Essa metamorfose teve importante ressonância na produção e preservação das 
fontes materiais do conhecimento formal nos primeiros séculos depois de Cristo. 
Para Edward Gibbon, este “homem engenhoso que, além do mais, tinha 
razão (...) [ou, para escrever em] palavras fatais, um clássico”43, este período em 
                                                            
40 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 124. 
41 Cf. Marcus J. BORG e John Dominic CROSSAN. A última semana : Um relato detalhado dos 
dias finais de Jesus. (Trad. de Alves Calado). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. ps. 27 e 31. M. 
P. FIORILLO. Op. cit. pp. 124-125. S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 14. H. I. MARROU. Op. cit. ps. 
375-410 e 447-453. 
42 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 126. Sendo plenamente válida a frase no âmbito de nossa 
argumentação, cremos, entretanto, que há uma pequena desatenção conceitual da parte da autora 
neste trecho que citamos. Pode-se considerá-la assim ou não. De nossa parte, cremos que seria 
mais adequado empregar o adjetivos helênica ao invés de helenística, de modo que se evitasse 
confundir a situação cultural da Hélade das polei com o estado das coisas durante a expansão de 
Alexandre Magno e os vários governos instaurados por seus generais sucessores. 
43 Jorge Luis BORGES. Outras Inquisições. (Trad. Davi Arrigucci Jr.). São Paulo: Companhia das 
Letras, 2007. p. 101. Sabemos o quanto esse juízo sobre Edward Gibbon pode ser mal interpretado 
e mesmo encarado como polêmico no contexto de nosso trabalho, mas ainda assim fazemos 
questão de registrá-lo. A obra magna de Gibbon, Declínio e queda do Império Romano, a qual 
faremos aqui ocasional referência, é uma narrativa que foi caracterizada por mais de duzentos 
anos, e ainda hoje, como clássica – adjetivo que contempla a sua profundidade discursiva, as 
sucessivas leituras que lhe foram feitas e cujas marcas enriquecedoras chegam até nós, o fato de 
que não deixa indiferente quem a lê, que desperta uma nuvem críticas sobre si e as repele, que 
teima em persistir como origem ou rumor mesmo em meio a tantos outros escritos atualíssimos 
sobre o mesmo tema, e que é, de alguma forma, imortal. É temeroso falar em imortalidade no que 
se refere à validade de um texto, dado que toda obra e existência humana é sempre datada, 
localizada no tempo e no espaço e necessariamente marcada por esta situação idiossincrática, mas 
o fato é quem em muitos aspectos, comparados com trabalhos mais contemporâneos sobre os 
primeiros séculos da Era Cristã, o Declínio e queda permanece incólume – e isso não apenas em 
função do encanto que desperta como peça literária. J. B. Bury, organizador de uma ilustre edição 
deste livro escreveu com muita propriedade que “nem o historiador nem o homem de letras 
subscreverão sem mil reservas os capítulos teológicos de Declínio e queda”, e que mesmo assim, 
contudo, as mais minuciosas investigações sobre o período que é objeto da maior atenção de 
Gibbon “nem modificaram de modo substancial nem infirmaram o acerto” dos argumentos mais 
gerais que estruturam sua narrativa sobre a decadência do Império Romano, de como esta se 
caracterizou como o triunfo conjunto da barbárie e do cristianismo. Cf. Jorge Luis BORGES. 
Prólogos : Com um prólogo dos prólogos. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Rocco, 1985. 
pp. 85-87. Italo CALVINO. Por que ler os clássicos? (Trad. Nilson Moulin). São Paulo: 
Companhia das Letras, 1993. pp. 9-16. Dero A. SAUNDERS. “Introdução do Organizador”. In: E. 
GIBBON. Op. cit. pp. 23-26. O literato argentino Jorge Luis Borges registra que se pode ler a obra 
do grande historiador inglês tanto para saber da história romana quanto para se verificar como 
28 
 
que convergiram a beligerância e o legalismo romanos, as ferramentas do pensar 
grego, a hermenêutica e o monoteísmo judaicos, o dualismo e a magia persas, a 
astrologia e o fatalismo babilônicos, a mitopolitologia egípcia, os cultos de 
mistério, o estoicismo, o cristianismo, o gnosticismo e o neoplatonismo44 foi uma 
“época de decadência do saber e dos valores humanos”45, na qual “(...) O 
conhecimento que melhor serve a nossa condição e faculdades, todo o âmbito da 
ciência moral, natural e matemática, era negligenciado”.46 As conseqüências desta 
negligência no referente ao que é o tema de nosso presente interesse se 
evidenciam a uma consideração mais cuidadosa com alguma facilidade. 
Durante um largo período de tempo, sucessivos imperadores romanos 
seguiram os exemplos de Júlio César e César Augusto e incluíram bibliotecas em 
seus projetos de edificação pública, não se limitando a dotar seus próprios 
palácios e templos de estantes, arquivos e salas de leitura e transcrição. Ainda sob 
o primeiro Imperador de Roma, os banhos públicos – solidários da distribuição de 
pães, das arenas de gladiadores e dos hipódromos como parte da política 
governamental de contentamento das massas – passaram a incluir bibliotecas em 
suas dependências, espaços que continham tanto tratados jurídicos, médicos e 
científicos quanto obras literárias familiares – ainda que cada vez mais destas do 
que daqueles.47 Segundo a narrativa do bibliotecário Matthew Battles, 
 
“(...) À medida que a República tornava-se Império, as bibliotecas tão adoradas 
por Cícero prosperavam como nunca. (...) em meio aos sucessivos incêndios que 
                                                                                                                                                                   
poderia imaginá-la um cavalheiro setecentista, duplicidade de sentidos que não esvazia de valor 
seu texto, mas, ao contrário, o potencializa: “(...) Afora aquela prevenção contra o sentimento 
religioso em geral e contra a fé cristã em particular, Gibbon parece abandonar-se aos fatos que 
narra e reflete-os com uma divina inconsciência que o aproxima da cegueira do destino, do próprio 
curso da história. Como quem sonha e sabe que sonha, como quem aceita os acasos e as 
trivialidades de um sonho, Gibbon em seu século XVIII, voltoua sonhar o que viveram ou 
sonharam os homens dos séculos anteriores, nas muralhas de Bizâncio ou nos desertos árabes. (...) 
Épocas houve em que se liam as páginas de Plínio em busca de precisões; hoje as lemos em busca 
de maravilhas (...). Esse dia ainda não chegou para Gibbon, e não sabemos se chegará.” J. L. 
BORGES. Prólogos. ps. cits. 
44 Que “tornou-se uma espécie de igreja-mor da causa pagã, com seus próprios dogmas e 
apologética.” M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 126. 
45 E. GIBBON. Op. cit. p. 195. 
46 Id. p. 196. 
47 Cf. Matthew BATTLES. A conturbada história das bibliotecas. (Trad. João V. G. Cuter). São 
Paulo: Planeta, 2003. pp. 52-53. 
29 
 
flagelavam Roma, elas permaneceram em funcionamento (...). Mesmo em pleno 
declínio, o esplendor do Império ainda persistiu por um bom tempo. Romanos 
cristianizados do quinto século ainda faziam visitas aos palacetes uns dos outros 
para reviver um pouco da glória dos dias idos. O prolífico epistológrafo Sidônio 
Apolinário, numa carta a seu amigo Donídio descreve uma cena desse tipo (...) 
[sua] descrição evidencia mudanças no uso dos livros, muito embora as pessoas 
continuem a apreciar ‘a grandeza da eloqüência latina’ (...) agora existe espaço 
para livros dissidentes, escritos por aqueles que Gibbon chama de ‘galileus’.”48 
 
Tanto o corrosivo desinteresse, e o abandono que lhe é naturalmente 
associado, quanto as depredações feitas por governantes ávidos de apagar a 
memória de seus antecessores, e por contingentes de invasores e multidões 
furiosas, se juntaram aos acidentes da natureza – terremotos, inundações, 
incêndios, erupções vulcânicas, traças, baratas, cupins, piolhos, vespas, fungos, 
ratos, a acidez das tintas empregadas na escrita49 – para privar a posteridade da 
maior parte dos numerosos acervos escritos da cultura greco-romana. Pela 
conjugação de vários fatores, as bibliotecas públicas romanas (assim como as 
helenísticas que as precederam e ainda subsistiam – como, por exemplo, a ilustre 
Biblioteca de Alexandria) desapareceram com alguma rapidez na confusão 
reinante na “era da ansiedade”.50 Conforme 
 
“(...) as luzes de Roma foram se afastando daquilo que Gibbon chamava de ‘a 
mais formosa porção da Terra’, suas bibliotecas também começaram a definhar e 
a morrer. De modo geral, foram tempos sombrios para o estudo, para os livros e 
para as bibliotecas. (...) Com o declínio econômico e social acentuando-se cada 
vez mais, secaram as fontes dos recursos necessários para adquirir e preparar o 
pergaminho e o papiro e para sustentar exércitos de copistas. Até mesmo as 
estradas caíram no abandono, pondo fim ao eficiente sistema postal de Roma, que 
tinha uma importância central para a vida da Respublica litterarum. Cartas do 
período tardio mostram a nobreza romana assumindo o encargo de produzir suas 
próprias cópias, sinal seguro de que a provisão de escravos cultos, que fora 
constante, agora minguava.”51 
 
                                                            
48 Id. Op. cit. pp. 56-57. 
49 Para uma síntese acerca de alguns dos variados fatores que engendram a destruição de livros, 
ver: Fernando BÁEZ. História universal da destruição dos livros : Das tábuas sumérias à guerra 
do Iraque. (Trad. Léo Schlafman). Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. (Especialmente as pp. 307-313, 
que tratam dos inimigos naturais dos livros, das tintas ácidas e dos papéis auto-destrutivos, dos 
exemplares únicos de obras antigas e modernas, e de quando as editores e alfândegas as destroem). 
50 Id. Op. cit. ps. 69 e 98-102. 
51 M. BATTLES. Op. cit. p. 61. 
30 
 
A perda do entusiasmo por certas vertentes da literatura clássica em favor 
dos textos metafísicos e místicos, e as constantes disputas entre os partidos de 
metafísicos e místicos, que não apenas liam, mas veneravam estes mencionados 
escritos, somados à fragilidade dos suportes da redação então conhecidos fizeram 
sumir para sempre um número impensável de obras.52 Para a irremediável tristeza 
dos estudiosos da posteridade, o ramo cristão que viria a triunfar sobre os demais 
– e que a partir deste ponto chamaremos neste nosso trabalho, por motivos 
puramente práticos, conscientes do anacronismo inerente ao termo, de 
paleortodoxos – construiu, ao menos em um primeiro momento (até a segunda 
metade do século III, digamos), a sua identidade por oposição à literatura e à arte 
da antigüidade pagã.53 Mais decisivamente ainda, estes homens fiéis se opuseram 
à preservação dos textos de seus opositores intramuros, que precocemente 
designaram “heréticos”, dando a este termo uma conotação pejorativa que até 
então não possuía.54 “(...) O desaparecimento dos escritos gnósticos, causado em 
grande parte, pela feroz perseguição da [incipiente] Igreja católica”55 é um 
processo histórico sintomático de uma tendência comportamental mais ampla e 
arraigada, cuja origem entre os cristãos talvez remonte aos dias da pregação do 
Apóstolo Paulo em Éfeso.56 De forma quase irônica, entretanto, foi nas 
comunidades monásticas dos “galileus” e ao redor de suas cátedras episcopais que 
a “chama frágil e oscilante”57 da cultura literária da Antigüidade continuou a 
tremular. 
                                                            
52 Fernando Báez escreve que “(...) Sem recorrer à imaginação não há forma de quantificar as 
perdas [de textos clássicos] ocorridas entre os séculos II d.C. e VI d.C.” F. BÁEZ. Op. cit. p. 114. 
53 Cf. M. BATTLES. Op. cit. p. cit. 
54 M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 95-96 ,128 e 188-191. 
55 F. BAÉZ. Op. cit. p. 106. 
56 Id. Op. cit. p. 105. O episódio referido, narrado nos Atos dos Apóstolos, é aquele em que muitos 
do que haviam abraçado a fé pregada por Paulo começaram a confessar publicamente suas práticas 
mágicas, pelas quais a cidade de Éfeso era famosa na Antigüidade, trazendo seus livros e os 
queimando-os à vista de todos. Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Coordenação 
editorial de José Bortolini; Tradução de Euclides Martins Balanci et al. São Paulo: Paulus, 2002 
(4ª impressão: 2006). Atos dos Apóstolos 19, 18-19. p. 1938 e notas correspondentes. Da violência 
simbólica contra si e contra o próprio patrimônio à agressão do outro a distância é bastante 
pequena neste caso, dado o seu elemento comum de fomento: em última instância, ao se considerar 
além de toda discussão e argumentação humana, “(...) a certeza conduz à violência.” John J. 
COLLINS. A Bíblia justifica a violência? (Trad. Walter E. Lisboa). São Paulo: Paulinas, 2006. 
(Col. “Bíblia na mão do povo”, n. 1). p. 48. 
57 M. BATTLES. Op. cit. p. 62. 
31 
 
A maior parte dos Evangelhos (e Atos dos Apóstolos) – canônicos e 
apócrifos – dos quais hoje temos conhecimento foi composta ainda nos séculos I e 
II, mas o cristianismo então não era exatamente uma religião do Livro como o 
judaísmo (e como o islamismo viria a ser): “(...) A experiência do Mestre e 
profeta Jesus assemelhou-se a um fogo que ninguém pôde extinguir, a uma luz 
capaz de iluminar a superfície da Terra, ou, seguindo a linha de Newman, a uma 
‘idéia’ viva”.58 Os cristãos de então liam as Escrituras Sagradas hebraicas e, em 
sua maioria, as consideravam dotadas de autoridade, mas seguiam a uma a Pessoa 
cuja palavra, dada de viva voz, era ela mesma uma Nova Lei, que rompe os 
estáticos quadros culturalmente estabelecidos e põe todos os indivíduos que com 
ela entram em contato em movimento rumo a algo radicalmente novo.59 John B. 
Gabel e Charles B. Wheeler ressaltam que “(...) É fato que, mesmo depois de os 
evangelhos serem escritos, alguns membros da Igreja preferiam a tradição oral e 
não conseguiam ver a necessidade de um registro escrito”.60 A afirmação do 
cristianismo como uma religião do Livro é um processo longo, que se iniciou 
talvez com a formulação por Marcião, em meados do século II, de um corpus de 
textos sagrados – e que foi catalisado pela refutação deste pelo cristianismo 
paleortodoxo. Seja como for, este desenvolvimento – se é que assimo podemos 
chamar – alcançou um seu primeiro ápice mais ou menos simultaneamente à 
formulação cristológica e litúrgica do Concílio de Nicéia (325).61 Justamente 
                                                            
58 Richard BERGERON. Fora da Igreja também há salvação. (Trad. Maria Stela Gonçalves; rev. 
Iranildo B. Lopes). São Paulo: Loyola, 2009. p. 23. 
59 Neste ponto, discordo de H. I. Marrou, que considera que o cristianismo é em princípio – ou 
seja, desde sempre e necessariamente – uma religião do Livro, e, mais ainda, uma crença livresca, 
“uma religião douta (...) [que] não poderia existir em um contexto de barbárie.” H. I. MARROU. 
Op. cit. p. 482. Cf. Mircea ELIADE. História das Crenças e das Idéias Religiosas. (2ª ed.). Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar, 1983. (Tomo II : De Gautama Buda ao Triunfo do Cristianismo; Volume 2 : 
Das Provações do Judaísmo ao Crepúsculo dos Deuses). pp. 165-166. Bernard SESBOÜË. “A 
comunicação da palavra de Deus: Dei Verbum”. In: Bernard SESBOÜË e Christoph THEOBALD 
(orgs.). Palavra da Salvação (Séculos XVIII-XX) : Doutrina da Palavra de Deus, Revelação, fé, 
Escritura, Tradição, Magistério. (Trad. Aldo Vannucchi; rev. Albertina P. L. Piva e Marcelo 
Perine). São Paulo: Loyola, 2006. (Col. “História dos Dogmas”, t. 4; dir. Bernard Sesboüë). pp. 
435-438. J. D. CROSSAN. Op. cit. ps. 89-130 e 137-150. E. AUERBACH. Op. cit. p. 37. 
60 John B. GABEL e Charles B. WHEELER. A Bíblia como literatura : Uma introdução. (Trad. 
Adail U. Sobral e Mana S. Gonçalves; apres. e anexos à ed. bras. Johan Konings). (2ª ed.). São 
Paulo: Loyola, 2003. p. 169. 
61Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 96. Alfred STUIBER e Berthold ALTANER. Patrologia : Vida, 
Obras e Doutrina dos Padres da Igreja. (Trad. Monjas Beneditinas). (2ª ed.). São Paulo: Paulinas, 
1988. (Col. “Patrologia”, n. 3). pp. 103-104. Julio Trebolle BARREIRA. A Bíblia Judaica e a 
Bíblia Cristã : Introdução à história da Bíblia. (Trad. Ramiro Mincato). Petrópolis: Vozes, 1995. 
ps. 274-284 e 294-302. Barbara ALAND. “Marcião – Marcionismo”. In: VV. AA. Dicionário 
patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino). 
32 
 
neste período intermédio – ou seja, entre o estabelecimento do corpus marcionita 
e do corpus niceno – ocorreu no ambiente cultural greco-romano que escrita 
deixou de ser um fim em si para ser apenas um meio, perecível: “(...) Na ausência 
da demanda imperial por inscrições em pedra e dos decretos e discursos a ser [sic] 
transcritos em papiro ou pergaminho, pouca coisa era escrita na forma de um 
registro perene.”62 Nos primórdios de sua fé (e igualmente nas comunidades 
monásticas tardo-antigas e medievais do Oriente e do Ocidente), os cristãos 
aprendiam a ler e a escrever apenas “para se entregarem com afinco a um trabalho 
espiritualmente recompensador”63, de modo que registravam versos das Escrituras 
e de outros textos que consideravam edificantes em cacos de cerâmicas (as 
óstracas) e em tabuinhas cobertas de cera, que não sobreviviam por muito tempo. 
A expansão das pesquisas arqueológicas nos séculos XIX e XX, somada ao 
significativo refinamento de seus métodos de análise, de fato fez vir à luz com 
surpreendente facilidade miríades de textos neste formato, importantes 
testemunhos – redigidos majoritariamente em grego, latim e siríaco, mas também 
em irlandês, etíope, armênio e sogdiano, entre outros idiomas – do 
estabelecimento e dinâmica de um imenso número de cristianismos dispersos 
entre o Atlântico e o Mar da China, dispostos como “contas de um imenso rosário 
partido. No condado de Atrim, no Norte da Irlanda, e em Panjikent, a Leste de 
Samarcanda, descobriram-se [por exemplo, alguns destes] fragmentos de cadernos 
de cópias (...) contendo linhas copiadas dos Salmos de David.”64 Inspirados nestas 
tabuletas é que os cristãos coptas e palestinos inventaram – ou pelo menos 
                                                                                                                                                                   
Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. pp. 881-882. Os efeitos desta transformação são 
vários e profundos, e um destes foi expresso de forma pungente por São Jerônimo quando este 
douto anacoreta escreveu que “(...) Tinge-se o pergaminho de cor de púrpura, traçam-se letras com 
ouro líquido, revestem-se de gemas os livros, mas diante das suas portas, totalmente nu, Cristo está 
morrendo”. Citado em: Paulo Evaristo ARNS. A técnica do livro segundo São Jerônimo. (Trad. 
Cleone A. Rodrigues). (2ª ed. rev. e ampl.). São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 28 e nota 
correspondente, n. 71, p. 37. Em referência a uma questão que é a esta conecta, ver: J. B. GABEL 
e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 167 e nota correspondente, n. 1. Sobre o caráter de definitivo 
(fechado) do cânone ortodoxo, ver a admoestação inserida no final do livro do Apocalipse, o 
último da Bíblica cristã pós-nicena: “(...) A todo o que ouve as palavras da profecia deste livro, eu 
declaro: ‘Se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste 
livro. E se alguém tirar algo das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará também a sua 
parte da Árvore da Vida e da Cidade Santa, que estão descritas neste livro!” BÍBLIA. Ver. cit. 
Apocalipse 22, 18-19. pp. 2167-2168 e notas correspondentes. 
62 M. BATTLES. Op. cit. p. 62. 
63 Id. Op. cit. p. cit. 
64 P. BROWN. Op. cit. p. 22. 
33 
 
aperfeiçoaram – o códice, que deu origem ao formato moderno do livro.65 
Substituindo os rolos, que eram o formato padrão dos livros na Antigüidade 
clássica, os códices eram formados por folhas de pergaminho ou papiro 
sobrepostas e unidas por um cordão entre si e à uma encadernação de couro 
rígido, madeira ou marfim, e foram introduzidos “em Roma pelos cristãos, que o 
trouxeram das cidades que sediaram a Igreja nos primeiros tempos, na Palestina, 
no Egito e na Grécia (...). Um mosaico em Ravena, do tempo de Sidônio, mostra 
um tradicional armarium romano cheio de códices deitados com as capas viradas 
para cima, e os títulos claramente à mostra. Eram evangelhos. O códice era algo 
tipicamente cristão.”66 
Para Evaristo Arns, o que precipitou esta evolução técnica do livro foi 
“(...) O amor ao livro sagrado e sobretudo a posição oficial da Igreja.”67 Talvez 
não estejam excluídos desta formulação cunhada pelo atual Sr. Cardeal Emérito 
da Arquidiocese de S. Paulo quando tratava-se ainda um entusiasta do estudo 
erudito da antiga literatura cristã os bem conhecidos motivos de ordem 
missionária e apologética que influíram neste processo: sabe-se, por exemplo, que 
ainda por volta de 730 Bonifácio escreveu para seus confrades ingleses 
requisitando cópias da Bíblia que fossem escritas “em letras de ouro, para que a 
reverência às Sagradas Escrituras seja impressa nas mentes carnais dos gentios.”68 
Não está no âmbito de nossa reflexão, entretanto, prosseguir tecendo 
considerações sobre as causas de tal notável mudança; cabe-nos apenas registrar 
que este novo suporte para a escrita não era apenas mais fácil de ler que os rolos e 
podia suportar mais caracteres do que estes (já que permitia que se escrevesse nos 
dois lados de uma mesma folha), mas também mais simples de ser armazenado e 
                                                            
65 Matthew Battles registra que “(...) Muitos conjecturam que a palavra inglesa para livro, ‘book’, 
teria vindo de ‘boc’, termo anglo-saxão que designa a faia, cuja madeira era muito usada na 
confecção das tabuletas. As tábuas de faia eram escavadas de maneira a conter um reservatório 
raso, onde se derramava a cera de abelha. Depois de esfriar, a cera formava uma superfície macia 
sobre a qual era possível escrever utilizando um estilo [sic]. Bastava um esfregão vigoroso para 
apagar o que estivesse escrito – algo bastante conveniente para quem escreve, mas não tão 
conveniente para o historiador. Tudo o que se escreveu sobre

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