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Alfredo Bronzato da Costa Cruz Uma versão da institucionalização do movimento cristão : a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia Monografia apresentada à Graduação em História da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em História. Orientador: Prof.a Silvia Patuzzi Rio de Janeiro Dezembro de 2009 Ficha Catalográfica CDD: 900 Cruz, Alfredo Bronzato da Costa Uma versão da institucionalização do movimento cristão : a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia / Alfredo Bronzato da Costa Cruz ; orientadora: Silvia Patuzzi. – 2009. 283 f. ; 30 cm Monografia (Graduação em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. História – Monografias. 2. Teoria e história da historiografia. 3. Eusébio de Cesaréia – História Eclesiástica. 4. História da historiografia antiga. 5. História do movimento cristão. I. Patuzzi, Silvia. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título. Dedicado a Ir. Leiza Azenaide, Serva da Ssma. Trindade, que em uma despretensiosa conversa de fim de manhã foi a primeira pessoa a me indicar o quanto – positiva e negativamente – o cristianismo ainda continua em nossos dias a repousar sobre o legado imperial romano, e a Augusto Sampaio e Jadir Cruz, que tenho a imensa alegria de poder chamar de amigos. Diz uma história do folclore judaico que, a cada geração, há trinta e seis pessoas realmente boas e justas (os lamed vavnik) cujos méritos, que ignoram, são o fundamento do mundo. Geralmente trabalhando no anonimato, ajudam eles a tornar este planeta um lugar mais habitável e decente, e deste modo fazem Deus continuar a se alegrar com o que criou (Gênesis 1, 31). Não há palavras para expressar o quanto me honra ter podido estar em contato com pelo menos três destas nos mais recentes anos de minha vida. AGRADECIMENTOS Muitas pessoas contribuíram de muitos modos para que eu conseguisse conceber o plano deste trabalho, realizar a pesquisa no qual ele se sustenta e redigi-lo – ainda que se deva registrar que todas as falhas que nele constam se devem a erros e incompreensões unicamente meus. Todas elas foram importantes, favoráveis cada um a seu modo a este esforço, mas algumas merecem especial menção nestas páginas. Agradeço a meus pais, Dilene Teresa Bronzato e José Alfredo Fruz, por todo incentivo e apoio dado, e em especial por terem me ensinado que, antes de qualquer outra coisa, o estudo deve ser fonte de realização pessoal. Agradeço também a outros familiares que me incentivaram especialmente nestes tempos mais recentes: Célia Bronzato e Ary Rodrigues, Jacira Cruz, Jadira Cruz e, de modo muito especial, a Jadir Cruz, com quem tive a honra de poder passar muitas horas discutindo as mais diversas idéias. Agradeço àquelas pessoas que foram imprescindíveis por seu incentivo e sua intervenção – pequenos que lhes parecessem – para que eu ousasse vir para o Rio de Janeiro fazer a Graduação em História na PUC-Rio e aqui me mantivesse: Ir. Leiza Azenaide, Serva da Ssma. Trindade, Pe. Medoro de Oliveira, Pe. Paulo Cezar Costa, antigo pároco e mais recentemente mestre e interlocutor das idéias que presidiram a redação desta monografia, e D. Elias James Manning, O.F.M., bispo diocesano de Valença. Também faço um destaque especial para os que de forma determinante foram um apoio nesta caminhada até aqui: Augusto Sampaio e sua estimada esposa, que demonstraram para comigo reiteradas vezes uma preocupação que considerei completamente surpreendente. Agradeço a tantos professores cujas aulas, conversas e convivência me nutriram de forma especial, aproveitando para advertir que as marcas que estas deixaram em mim talvez possam ser bastante evidentes nas linhas que se seguem. Da PUC-Rio devo destacar Ricardo Benzaquen de Araújo, sempre gentil e solícito, exemplo daquilo que o nosso ofício de historiadores tem de mais erudito e bem articulado, e Silvia Patuzzi, orientadora deste trabalho, que depositou em mim uma imensa confiança ao dar-me a liberdade de arranjar e executar este trabalho quase da maneira como eu achasse que deveria fazê-lo, além de ter sido ajuda da maior valia nos períodos de maior dificuldade e ter demonstrado proverbial paciência com minhas angústias e prazos ignorados, ambos do meu Departamento de História; e Lina Boff, Maria Clara Bingemer e o já referido Pe. Paulo Cezar Costa, do Departamento de Teologia. Também a Lair Amaro, de quem assisti no segundo semestre do corrente ano as enriquecedoras aulas do curso “O Jesus Histórico e as Origens do Cristianismo”, ministrado no Centro Loyola de Fé e Cultura da PUC-Rio; a Heloisa Bertol Domingues, amiga e incentivadora de todas as horas, que foi minha orientadora de Iniciação Científica (2007-2009) no Projeto “História da Antropologia no Acervo Luiz de Castro Faria” (MAST / MCT); e a Magali Romero Sá, de quem sou atualmente auxiliar de pesquisa (Fiocruz / Casa de Oswaldo Cruz), muitíssimo compreensiva comigo nestas complicadas semanas de revisão, entrega e apresentação de minha Monografia. Registro também um muito obrigado a Celso Taveira, da Universidade Federal de Ouro Preto, que, não obstante o fato de não me conhecer pessoalmente, com satisfação e presteza disponibilizou-me um texto de difícil acesso no qual tinha especial interesse. Agradeço àqueles diversos amigos e amigas que tornaram esta lida mais suportável ao me honrar com sua companhia, e dentre estes destaco Leandro Cesar Bedetti, Rafael Carlos Francisco, Estevão Anísio, Paulo José Belisário, Juliana Pereira, André Calcagno, Maria de Belém, Leonardo Silva, Eduardo Gonçalves, Ana Toledo, Leandro Cavalcanti, Fernanda Giesta – e seu pai, Antônio Muccillo, que sem sombra de dúvidas foi a pessoa com quem mais conversei sobre o Império Romano e os problemas da História e da Historiografia Antigas em toda a minha vida –, Bruno Sampaio, Rafael Rochê, Carlos Taveira e Ricardo Milani. De um modo muito especial, também agradeço a Isabella Menezes, por seu incentivo, interesse, companheirismo e (eventualmente notável) compreensão, sempre disposta a me ouvir e a me ajudar a conduzir da melhor maneira possível todas as fases de elaboração e redação deste trabalho. Foram pessoas que fizeram – e felizmente continuar a fazer – a minha vida mais agradável, e que não poucas vezes estiveram dispostas a tomar como suas as minhas dúvidas, angústias e esperanças. Não há palavras no mundo para agradecê- los por isto. Agradeço também a PUC-Rio pela concessão de bolsa de estudos integral para a Graduação em História do primeiro semestre de 2005 ao segundo semestre de 2009, fazendo-o na pessoa do Vice-Reitor Comunitário, o supra-citado Augusto Sampaio, e de toda a sua equipe de trabalho. Resumo : O presente trabalho é uma análise possível da História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, obra na qual este bispo se propôs a fazer a crônica do cristianismo desde as suas origens até o seu favorecimento pelo Imperador Romano Constantino. Através da consideração de seu lugar de fala, temas, fontes e estratégias argumentativas, pretende-se aí esclarecer a partir de quais lentes pôde este autor apreender e narrar a trajetória histórica do movimento cristão, e como tal investigação e discurso se relacionam com o progressivo ancoramento de uma facção deste como instituição sociopolítica que se pretendiaguardiã de uma verdade exclusiva e incontestável. Na seqüência de seus capítulos, tratamos sucessivamente das bases materiais que viabilizaram a produção intelectual de Eusébio; dos pressupostos teórico-metodológicos que nos permitem lidar com estas de modo inter-relacionado e mutuamente esclarecedor; dos grandes temas e matrizes intelectuais que se articulam em sua escrita e fornecem a sustentação para um método específico de raciocínio e construção discursiva da verdade (e do erro); de como estes possuem afinidades com as idéias e posicionamentos político-doutrinários do bispo de Cesaréia, fornecendo, por um lado, a sustentação para a sua militância durante as controvérsias cristológicas do século IV e, por outro, um esteio lógico para o modelo de vinculação entre Igreja e Império Romano que se edificava neste mesmo período. Palavras-chave : 1. Eusébio de Cesaréia – História Eclesiástica; 2. História da Historiografia Antiga; 3. História do Movimento Cristão. SUMÁRIO UM LIVRO QUE CONTÉM UM BISPO (OU : A GLÓRIA DE EUSÉBIO) .............. 9 I .............................................................................................................................................. 9 II ........................................................................................................................................... 11 III .......................................................................................................................................... 17 A BIBLIOTECA DE CESARÉIA .................................................................................. 22 I ............................................................................................................................................ 22 II ........................................................................................................................................... 36 III .......................................................................................................................................... 45 POSSÍVEIS SIGNIFICADO HISTÓRICO E RAÍZES INTELECTUAIS DA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA .......................................................................................... 65 I ............................................................................................................................................ 65 II ........................................................................................................................................... 76 III ........................................................................................................................................ 122 IV ........................................................................................................................................ 127 V ......................................................................................................................................... 145 VI ........................................................................................................................................ 172 DA PAX ROMANA À PAX CHRISTI (OU VICE-VERSA) ................................... 189 I .......................................................................................................................................... 189 II ......................................................................................................................................... 202 III ........................................................................................................................................ 223 IV ........................................................................................................................................ 245 V ......................................................................................................................................... 265 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 271 “Eu poderia ter vivido na época de Constantino, trezentos anos depois da morte do Salvador,do qual se sabia apenas que tinha ressuscitado como um Mitra ensolarado entre os legionários romanos. Eu teria testemunhado a disputa entre homoousios e homoiousios, sobre se a natureza de Cristo é divina ou se somente se assemelha à divindade. Provavelmente eu teria votado contra os trinitários, pois quem alguma vez pôde adivinhar a natureza do Criador? Constantino, Imperador do Mundo, janota e assassino,fez a balança pender para um lado no Concílio de Nicéia,de modo que nós, geração após geração, meditamos sobre a Santa Trindade, Mistério dos mistérios, sem o qual o sangue do homem teria sido alheio ao sangue do universo e o derramamento de Seu próprio sangue por um Deus sofredor, que se ofereceu a Si mesmo como sacrifício inclusive quando estava criando o mundo, teria sido em vão. Assim, Constantino foi simplesmente um instrumento indigno, inconsciente do que estava fazendo para pessoas de épocas distantes?E nós, sabemos para o que estamos destinados?” CZESLAW MILOSZ, “O Imperador Constantino” “O final da história só pode ser contado por metáforas, uma vez que se passa no reino dos céus, onde não há tempo. Talvez coubesse dizer que Aureliano conversou com Deus e que Este se interessa tão pouco pelas diferenças religiosas que o tomou por João da Panônia. Isso, no entanto, insinuaria uma confusão da mente divina. É mais correto dizer que, no paraíso, Aureliano soube que para a insondável divindade ele e João da Panônia (o ortodoxo e o herege, o abominador e o abominado, o acusador e a vítima) constituíam uma única pessoa.” JORGE LUIS BORGES, “Os teólogos” Introdução UM LIVRO QUE CONTÉM UM BISPO (OU: A GLÓRIA DE EUSÉBIO) I. “Seria agradável, portanto, pensar nela como a coruja de Minerva, alçando vôo no anoitecer de uma era intelectual. Mas ela tem uma organização que se assemelha mais ao vôo do inconstante pássaro pós-modernista, movendo-se em círculos hermenêuticos decrescentes, até que... E a referência a Minerva também não deve ser tomada por uma reivindicação de conhecimento profundo. Embora eu esvoace rapidamente por um vasto continente de erudição (...), faço-o apenas na condição de um turista (...), que recolhe aqui uma genealogia intelectual e, ali, um fragmento de folclore acadêmico, ao mesmo tempo que faz uma inspeção extremamente superficial dos grandes monumentos filosóficos. Como a maioria dos turistas, não há dúvida de que faço constantemente o papel de bobo.” MARSHALL SAHLINS, “A tristeza da doçura, ou a antropologia nativa da cosmologia ocidental” Não tenho conhecimento de nenhum formato padrão para introduzir um trabalho monográfico – ou qualquer outro, aliás. Tal omissão não nos deve afligir, já que todos sabemos (ou deveríamos saber) do que trata uma introdução. Na triste maioria dos casos, análogos aos (cada vez mais raros) prólogos de grande parte da literatura de ficção, são resumos ou encaminhamentos pouco responsáveis, que abundam em promessas não-cumpridas e hipérboles desimportantes, possuindo afinidades mais ou menos evidentes com os necrológicos, os panegíricos, os currículos, a publicidade e a oratória de sobremesa, de cafezinho e de bar. Não há porque ser assim: “(...) O prefácio comovido e lacônico dos ensaios de Montaigne não é a página menos admirável de seu livro admirável. O de muitas obras que o tempo não quis esquecer é parte inseparável do texto. Em As mil e uma noites – ou, como quer Burton, O livro das mil noites e uma noite –, a fábula inicial do rei que faz decapitar sua rainha cada manhã não é menos prodigiosa do que as que se seguem; o cortejo dos peregrinos que irão narrar, em sua piedosa cavalgada, os heterogêneos Contos de Canterbury foi por muitos considerado o mais ágil relato 10do volume. Nos palcos elisabetanos era através do prólogo que o ator anunciava o tema do drama.”1 Encontramos na última frase da citação acima uma coisa realmente digna de nota. Anunciar o tema do drama: eis um bom propósito para uma introdução de uma monografia de conclusão de curso de Graduação em História. Acho que é redundante afirmar que, dados os complexos mecanismos criativos que presidem a utilização da palavra escrita, e a virtual imprevisibilidade do resultado do esforço de colocarmos em caracteres as nossas idéias, esta introdução está sendo a última parte deste trabalho que redijo, de modo que também é uma espécie de despedida. O que pretendo fazer nesta espécie de ante-sala do discurso é apresentar alguns dos pressupostos, justificativas, abordagens e fontes que presidiram a composição de meu texto, retornando neste âmbito a um Projeto de Pesquisa que, com a finalidade de pontuar pela primeira vez tudo isto para mim mesmo, redigi em fins de novembro ou começo de dezembro do ano passado. Em tal esforço, espero conseguir apresentar com sucesso de onde parti e onde pude chegar; além do dever que me é imposto pelo imperativo da probidade intelectual, pretendo com isto facilitar o julgamento de eventuais leitores acerca daquilo que consegui (ou não) de fato obter em minha lida. Apresentação, projeto e instrumento de diagnóstico. De fato, não há agora mais nada que eu possa esperar de uma minha introdução a este modesto texto. 1 Jorge Luis BORGES. Prólogos : Com um prólogo dos prólogos. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Rocco, 1985. pp. 8-9. 11 II. “Uma jovem chamada Ann descreveu como, na terapia, recuperou a memória do temível abuso satânico sofrido nas mãos dos pais e também descobriu que possuía múltiplas personalidades. Vídeotaipes e fotografias de família mostravam Ann, antes da terapia, como jovem animada e cantora de futuro promissor... ‘Não me importa se é ou não verdade’, afirmou o terapeuta de Ann, Douglas Sawin. ‘Para mim, o importante é ouvir a verdade da criança, a verdade da paciente. É isso que é importante. O que realmente aconteceu é irrelevante’. Quando lhe perguntaram sobre a possibilidade do relato de um cliente ser um delírio, Sawin não vacilou: ‘Todos nós vivemos em um delírio, só que mais ou menos delirante.’” DANIEL L. SCHATCHER, Em busca da memória “Nosso objeto não é a erudição do Ser e da Cultura, mas, antes, aquela Roma onde Cristo era Romano.” ERICH AUERBACH, Anotação no livro dos convidados do Instituto de Colônia, 1932 O que pretendi fazer em minha monografia – o resultado, como já mencionei, fica a critério de eventuais leitores que ela venha a ter – foi analisar a narrativa composta por Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica, obra em dez livros que Jacques Liébaert designou como sendo “(...) A glória de Eusébio historiador”2, acerca da institucionalização do movimento cristão e sua ascensão de religião perseguida ou marginalizada à crença protegida e talvez professada pelo Imperador Constantino – e, pouco mais tarde, religião oficial do Império Romano. Para tal fim, busquei utilizar constantemente uma abordagem estilística e semântica semelhante àquela que Peter Gay fez de uma série de diferentes autores e obras em seu livro O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt.3 Considerei a observação de Arnaldo Momigliano de que “(...) A procura pelos precursores de Eusébio começou muito cedo, talvez de forma já esperada por um de seus seguidores imediatos, Sozômeno”4, e não pretendei de forma alguma seguir aqui esta linha de observação estritamente. Busquei, entretanto, encontrar em alguns trechos selecionados da considerada obra de 2 Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). p. 148. 3 Peter GAY. O estilo na história : Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. (Trad. Denise Bottmann). São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 4 Arnaldo MOMIGLIANO. “As origens da historiografia eclesiástica”. In: As raízes clássicas da historiografia moderna. (Trad. Maria Beatriz B. Florenzano). Bauru: EDUSC, 2004. p. 195. 12 Eusébio as marcas de sua formação pessoal, de suas leituras, suas simpatias (e antipatias) doutrinais e políticas, do seu lugar institucional de redação, e das matrizes de pensamento com as quais dialogou ao compor sua obra magna. Fiz isto, conforme me foi possível, de maneira mais ou menos minuciosa, certo de que se tratava de esforço trabalhoso, mas de resultados suculentos na medida em que forneceu muitos e interessantes insights sobre os encaminhamentos específicos que o bispo de Cesaréia deu a seu texto. Ao dissertar sobre esta ruptura ou desenvolvimento que é a passagem daquilo que se viria a chamar de Era Apostólica ou de Cristianismo Primitivo para a Igreja constantiniana, Eusébio de Cesaréia se posicionou sobre a instituição eclesiástica cristã de seu tempo. Ao fazer tal coisa, apoiando-se em ampla pesquisa documental e flertando com o gênero memorialístico, o bispo historiador se inseriu nos grandes debates que lhe eram contemporâneos, e elaborou a partir deles uma teoria cristã da História, assim como uma teologia política particular, de grande ressonância posterior. Nesta formulação se deixam entrever as formas segundo as quais ele compreendeu a natureza da história e as forças que a põem em movimento de contínua mutação. Cronista das perseguições sofridas pela Igreja Cristã desde os seus primórdios até os dias em que viveu e defensor de sua fé frente aos argumentos que lhe eram opostos, por um lado, pelos críticos judeus e pagãos e, por outro, pelas versões alternativas do cristianismo que disputavam espaço com a sua própria, Eusébio descreveu o favorecimento de sua fé por Constantino e a vitória deste contra seus inimigos políticos mais imediatos como uma intervenção direta de Deus na história. Seu elogio do Imperador, novo Moisés e novo Paulo, não é (ou não é apenas, poderiam apontar alguns), contudo, a bajulação de um eclesiástico que se beneficiou diretamente da proteção imperial ao clero, mas a elaboração de uma narrativa original sobre o cristianismo. Para demonstrar isto, recorri ao exame não do tardio e declaradamente panegírico eusebiano que recebeu o nome de Vida de Constantino, mas de uma obra que se pretendeu espelho dos fatos – e que talvez por isto seja mais reveladora de que os fatos em si mesmos, caso existam, são impossíveis de serem apreendidos e narrados de forma objetiva mesmo por um autor aferrado a este propósito e extremamente cônscio de suas tarefas. 13 Na História Eclesiástica podemos perceber, antes de qualquer outra coisa, que a Igreja não é mais considerada apenas como a comunidade dos que esperavam a iminente volta do Cristo para julgar os vivos e os mortos, mas um instrumento para a realização do Reino de Deus neste mundo. Trata-se da marca de uma significativa mudança de paradigma em relação à crença da grande maioria dos cristãos dos anos anteriores. Estruturando com base neste a sua mais influente obra, Eusébio de Cesaréia de algum modo ajudou a desencadear o vasto – e então já iniciado – processo de institucionalização da esperança cristã e de eclesialização da idéia evangélica de “Reino”, percurso este que está, especificamente, na base da montagem ideológica da autocracia bizantina e, de maneira mais ampla, do próprio conceito de Império (ou Estado) Cristão. Deve-se explicitar que para este autor, na raiz mesmo de sua filosofia da história, estava a convicção de que a realidade não é apenas o conjunto arbitrário de eventos encadeados quase que ao acaso, mas sim um todo prenhe de significados e direcionamentos mais ou menos velados;é simbólica e demanda interpretação, no sentido de que remete a elementos não-visíveis, que estão “abaixo da superfície” dos acontecimentos. Para Eusébio esta verdade dissimulada sob as aparências dos episódios correspondia não a um palco conflituoso onde se entrechocam de maneira informe as razões secretas do próprio homem e as combinações e injunções de paixões e interesses que o levam a agir, mas sim a um mundo superior de realização dos desígnios divinos, presidido mesmo em seus mais caóticos momentos pela providência transcendente e salvífica manifesta na redenção oferecida ao mundo pelo sacrifício de Jesus Cristo. Como já mencionado, o mais importante referencial teórico no qual me alicercei para realizar a pesquisa que estrutura esta monografia e redigi-la foi o formulado e exercitado pelo historiador norte-americano Peter Gay no seu já referido trabalho. Nesta obra breve e sumamente interessante, confessadamente inspirada em uma frase do livro de Sir Ronald Syme sobre Tácito – “os homens e as dinastias passam, mas o estilo perdura”5 –, Peter Gay aplicou para análise de uma série de autores da historiografia o mesmo método filológico e sociológico que Eric Auerbach aplicou em seu Mimesis às obras clássicas da literatura 5 Citado em: P. GAY. Op. cit. p. 11. 14 ocidental para investigar como nestas é representada a realidade.6 Com efeito, desde o primeiro momento em que imaginei este empreendimento que agora ofereço à vossa leitura, acreditei que podia ser consideravelmente proveitoso o recurso ao tipo de análise que Eric Auerbach e Peter Gay formularam e exercitaram em suas mencionadas obras para lidar com a narrativa apresentada por Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica sobre a institucionalização do movimento cristão. Isso se dá na medida em que o estudo do estilo, que “molda e é por sua vez moldado pelo conteúdo”7 de um texto, possui um importante valor diagnóstico para a história da historiografia: “(...) a maneira cultivada do escritor expressa de maneira instrutiva tanto o seu passado pessoal quanto as formas de pensar, sentir, crer e operar da [sua] cultura. (...) O estilo é o desenho no tapete – a indicação inequívoca, para o colecionador informado, do local e época e sua origem. É também a marca nas asas da borboleta – a assinatura inconfundível, para o lepidopterista atento, de sua espécie. E é o gesto involuntário da testemunha no banco dos réus – o sinal infalível, para o advogado observador, da prova oculta.”8 Acredito que semelhante abordagem, baseada na crença de que, ao invés de apenas buscar ler nas entrelinhas das obras para se obter informações relevantes sobre seus autores, pode-se chegar a resultados sumamente recompensadores ao se ler as próprias linhas por eles redigidas9, podem ajudar- nos a vislumbrar as pessoas por trás – ou melhor, dentro – dos textos, a que diálogos devem ou contribuem em algo, como pensam seu próprio ofício e como compreendem a natureza do mundo em que vivem. Ainda que as convenções da escrita pública e, ao menos em se tratando de obras de narrativa histórica, as pretensões de veracidade ou verossimilhança limitem em muito as possibilidades de caracterização dos eventos de acordo com certas normativas retóricas, variadas de sociedade a sociedade, de época cultural a época cultural, sempre há certa margem de manobra larga o suficiente para ser muito instrutiva e nos indicar algo 6 Erich AUERBACH. Mimesis : A representação da realidade na literatura ocidental. (Trad. Jacob Guinsburg). (5ª ed.). São Paulo: Perspectiva, 2004. (Col. “Estudos”, Seção “Crítica”, n. 2; dir. Jacob Guinsburg). 7 P. GAY. Op. cit. p. 17. 8 Id. Op. cit. pp. 20-21. 9 Ibid. Op. cit. p. 29. 15 sobre os próprios historiógrafos. Mesmo as referidas convenções nos remetem a certos contextos, a certas compreensões socialmente forjadas, sobre o mundo, e para a reflexão do historiador isto não deixa de ser um indício relevante – muito ao contrário! Os artifícios narrativos que um autor usa para caracterizar eventos e personagens são possíveis indicações de qual sua opinião sobre aquilo que ele narra; a maneira como ele compõe sua narrativa, identificada no “seu tom de voz tal como surge na tensão ou no repouso de suas orações, seus adjetivos preferidos, sua escolha de episódios ilustrativos, suas tônicas, seus epigramas”10, desvela, ainda que de modo efêmero, qual a sua particular compreensão do homem e do mundo – afinal, faz toda a diferença contar uma mesma história, a História, como se esta fosse um épico, uma tragédia, uma comédia, uma liturgia ou teatro sacro, uma peregrinação, um carnaval ou um caos de desmandos e arbitrariedades sem sentido, ou seja, sem direção e significado. Além do mais, tais representações acerca do homem e do mundo possuem suas conseqüências, corolários sociopolíticos e morais que devem ser levados em conta, ainda que não de maneira anacrônica, em sua análise. Os autores e fontes que um historiador cita também são extremamente importantes para se definir com quem ele dialoga e onde acredita estarem as janelas para o passado a partir de seu presente – ou simplesmente que narrativas e vestígios despertaram seu interesse ou estavam disponíveis para o seu exame. Como, porque e através de quê um autor capta o passado e o representa em uma narrativa são coisas que apenas cuidadosa leitura de sua própria obra, considerada em seu próprio contexto, pode revelar. Peter Gay afirma que se um historiador “tem alguma consciência e competência profissional, irá necessariamente dizer muito mais a respeito do período sobre o qual está escrevendo do que sobre o período em que vive”11, mas ainda assim suas escolhas de tema, de eventos exemplares que invoca para apresentá-lo, as expressões que usa para fazê-lo, as fontes que utiliza ou rejeita para sua pesquisa, os autores com os quais concorda ou discorda, a tradição literária e científica na qual se insere ou contra qual se insurge, as formas retóricas de exposição das quais se apropria, o “tom de voz” que se faz presente no seu texto, são todos indícios que remetem ao 10 Ibid. Op. cit. p. 22. 11 Ibid. Op. cit. p. 30. 16 homem que escreve, suas intuições, crenças e intencionalidades mais profundas, ao mundo de seu ofício e ao seu universo de referências. 17 III. “O teólogo pode bem se comprazer na deleitosa tarefa de descrever a religião descendo do céu revestida de sua pureza natural. Ao historiador compete um encargo mais melancólico. Cumpre-lhe descobrir a inevitável mistura de erro e corrupção por ela contraída numa longa residência sobre a terra, em meio a uma raça de seres débeis e degenerados.” EDWARD GIBBON, Declínio e queda do Império Romano Como limitação e possibilidade de seu próprio ofício, os cientistas sociais – sejam eles historiadores, sociólogos, antropólogos, ou de outros tipos quaisquer – não podem ascender a verdades convencional e interpretativamente válidas sem descer ao intrincado universo de fatos particulares que compõem seu objeto de estudo.12 Um historiador especialmente interessado em se aproveitar do – como o chama o literato argentino Jorge Luis Borges – melancólico acaso que faz com que depois de certo tempo os próprios historiadores e suas narrativas historiográficas se convertam eles mesmos em objetos passíveis de uma análise de dimensões históricas deve ser bastante cuidadoso no trabalho de pesquisa a que se propõe.13 Somente a partir de um estudo adequadamente profundo de trabalhos específicos sobre temas bem delimitados é que ele poderá vir a em algum momento de sua carreira tecer considerações decaráter mais geral sobre como a realidade é, ou melhor, como a realidade pode ser – em diferentes contextos, de acordo com diferentes intencionalidades, dentro de diferentes dinâmicas de diálogo, pesquisa e escrita – retratada por uma obra de historiografia. Dessa maneira acima referida é que se quis proceder na elaboração deste trabalho de monografia, fazendo-o em relação a um autor e obra específicos: no presente caso, Eusébio de Cesaréia e sua História Eclesiástica. O que pretendi foi produzir como que um instantâneo discursivo sobre a imagem composta por este historiador acerca do desenvolvimento histórico do movimento cristão dos primeiros séculos e a sua institucionalização como religião permitida e protegida do Império Romano, buscando elencar alguns dos elementos contextuais, autores e conceitos com os quais o bispo de Cesaréia dialogou para compô-la. 12 Cf. Clifford GEERTZ. Observando o Islã : O desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. (Trad. de Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (Coleção “Antropologia Social”; dir. Gilberto Velho). ps. 12-14 e 33-35. 13 Cf. J. L. BORGES. Op. cit. pp. 86-87. 18 Se é verdade que certos tipos particulares de fé – aliás, como certos tipos particulares de dúvida – florescem em certos tipos particulares de sociedade e dinâmica social, também nos é possível afirmar que certa compreensão do historiador sobre o que faz e sobre qual a natureza de seu objeto de estudos está relacionada intimamente com seu contexto cultural específico. Não que isso seja um fator completamente determinante do que pode ou não elaborar ou fazer ele a partir de sua apropriação particular dos instrumentos de pensamento que lhe são fornecidos por sua formação cultural, mas não levá-la em conta seria como observar uma aranha que se move em uma teia sem considerar o formato e a construção da própria teia. Como já atestamos acima, qualquer historiador seriamente debruçado sobre determinada realidade que não é sua própria, passada, procurará escrever em seu âmbito profissional mais sobre seu estrito objeto de estudos do que sobre si mesmo; contudo, suas próprias escolhas de fatos a narrar como exemplares de certos processos, sua abordagem temática, as fontes que utiliza em sua pesquisa, os autores com os quais dialoga e como o faz, o estilo com o qual compõe seu texto, são indícios muito relevantes sobre o homem que escreve, o mundo no qual ele se insere (e para o qual ele escreve) e como ele compreende e lida com este mundo.14 Fazer a análise de como Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica retratou e interpretou o processo de oficialização da Igreja Cristã, que marca a passagem do cristianismo de uma crença mais ou menos periférica e esporadicamente perseguida para uma religião permitida e protegida pelo Império Romano, é pensar também como este homem compreendia e se posicionava em relação à sua própria crença cristã, e, mais ainda, é entrever como este pensador compreendia seu próprio ofício, a natureza, da história, do homem e do mundo. Antes de prosseguirmos em tal intento, é necessário fazer ainda algumas considerações preliminares. A primeira dela diz respeito à terminologia usada no título e no corpo deste trabalho. Em toda a parte preferi usar para me referir ao conjunto dos seguidores de Jesus de Nazaré a expressão movimento cristão ou movimento de Jesus do que cristianismo – com a qual expressamos o variado e nem sempre coerente sistema de crenças dos diversos cristãos – ou Igreja Cristã – que associamos a uma facção do movimento cristã que veio a se tornar 14 Cf. C. GEERTZ. Op. cit. p. cit. P. GAY. Op. cit. p. cit. 19 hegemônica contra outras versões concorrentes que acabaram sendo silenciadas e, por assim dizer, ficaram para trás; por institucionalização do movimento cristão queremos designar justamente a conformação de uma considerável fatia sua como uma instituição sociopolítica e jurídica solidamente estabelecida sobre uma realidade humana e patrimonial concretas e um conjunto de crenças conseqüentes inter-relacionadas de forma sistemática. Nisto tudo segui as considerações que Dale T. Irvin e Scott W. Sunquist registraram no prefácio da obra História do movimento cristão mundial, por eles organizada: “(...) O movimento cristão tem sido sempre maior do que qualquer comunidade eclesial individual ou local imaginou que fosse. Sua história reflete uma enorme diversidade de crenças e práticas através dos dois milênios passados. Poucos haverão de concordar com tudo o quanto tem sido dito ou feito em nome do cristianismo, e na verdade a própria história do movimento está repleta de disputas. Para narrar uma história fidedigna do movimento, é preciso levar em conta esta diversidade, as divergências que muitas vezes separam várias partes uma da outra, sem reduzir sua história comum à perspectiva de uma só. Somos forçados a unir numa história comum indivíduos e comunidades que em vida muitas vezes lutaram para distanciar-se uns dos outros, e cujos descendentes eclesiásticos com freqüência permanecem em desacordo uns com os outros hoje em dia. Muitas dessas diferenças surgiram como resultado da ultrapassagem por parte da fé cristã dos limites históricos da linguagem, da cultura e da identidade. O próprio tempo introduziu ulteriores mudanças no significado, na expressão e na prática. O movimento cristão foi continuamente diversificando-se por meio de suas expansões, embora pretendesse permanecer o mesmo.”15 Em segundo lugar, tive de enfrentar a problemática das fontes. É um pouco embaraçoso reconhecer que lidei como amador com a História Eclesiástica, e que um meu próprio estudo um pouco mais aprofundado implicaria revisões muito sérias no trabalho que agora apresento. Embora tenha escolhido trabalhar com a análise estilística de um historiador de língua grega, o meu domínio do grego é simplesmente uma nulidade, reduzido ao de perscrutador de notas de rodapé e um tanto quanto displicente utilizador de dicionários e gramáticas. Evidentemente também considero saudável a regra de não se tratar de autores com os quais não se pode lidar no original, mas fui levado a desrespeitá-la não só por um fascinado ímpeto aventureiro que, ultrapassando a curiosidade, chegou a constituir quase uma imprudência e uma deselegância, mas também pela grande importância de 15 Dale T. IRVIN e Scott W. SUNQUIST (orgs.). História do movimento cristão mundial. Vol. I : Do cristianismo primitivo a 1453. (Trad. José Raimundo Vidigal). São Paulo: Paulus, 2005. p. 5. 20 Eusébio de Cesaréia na formação da tradição historiográfica do Ocidente e do Oriente de matriz civilizacional cristã – assim como pelo melancólico fato de que este autor é muito pouco ou quase nada estudado entre nós. Prescindir de investigá-lo por não poder apreciá-lo na sua formulação original seria equivalente a dar um tratamento sofístico àquela afirmação de Heródoto de que as nascentes do Nilo são desconhecidas16, contentando-me em afirmar que estas são de todo insondáveis e a observar encantado e ignorante o movimento sazonal das baixas e cheias e a fecundidade e devastação que as águas deste rio trazem à terra do Egito. Posto tudo isto, tive de lidar com uma obscura tradução em português da História Eclesiástica17, que cotejei com a mais autorizada feita por Argimiro Velasco- Delgado, publicada em espanhol junto com o texto grego e acompanhada por uma minuciosa introdução, índices temáticos e onomásticos, referências bibliográficas muito completas e abundantes notas explicativas, em dois volumes pela Biblioteca de Autores Cristianos (BAC).18 Comparando as duas traduções, acabei constatando que a brasileira de que disponho é umaversão não-creditada da tradução Velasco-Delgado, mantendo inclusive fragmentos de algumas de suas notas – aliás, muito empobrecidos – e muitos espanholismos. Dadas estas circunstâncias, optei por citar sempre o texto em português, recorrendo, contudo, às notas e etimologias da outra tradução; para os trechos e termos de entendimento especialmente difícil, recorri sempre a esta, e em algumas vezes não hesitei em tatear o vocabulário grego com o auxílio das referências do enciclopédico Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs.19 Em terceiro lugar, há a questão da bibliografia que utilizei. Baseei a maior parte de minha análise em minhas próprias impressões e em uma mistura muito heterogênea de textos de historiadores, teólogos, cientistas sociais, literatos e filósofos. Há os que possam vir a achar que este ecletismo é uma desvantagem, 16 HERÓDOTO. História : O relato clássico da guerra entre Gregos e Persas. (Trad. J. Brito Broca; introd. Vítor de Azevedo). (2ª ed. reform.). São Paulo: Ediouro / Prestígio, 2001. (Col. “Clássicos Ilustrados”). Livro II, 28. p. 200: “(...) Nenhum dos Egípcios, Lídios e Gregos com quem palestrei vangloriava-se de conhecer as nascentes do Nilo”. 17 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria Aparecida Salmeron). São Paulo: Fonte, 2005. 18 EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiastica. (Texto bilíngüe; ver. espanhola, introd. e notas de Argimiro Velasco-Delgado). (2ª ed. rev.). Madri: BAC, 1997 [1973]. (2 vol.). 19 VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino). Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. 21 mas considero justamente o contrário. Transitei de bom grado entre diferentes discursos, examinando-os e colhendo neles o que achei proveitoso para ser aqui utilizado, e procurei em toda parte ter o cuidado de fazer as adequadas referências que pudessem situar ao leitor o local de fala dos autores mencionados. Os eruditos que estudaram a Antigüidade cristã, sejam eles de quaisquer formações acadêmicas, certamente estavam – e estão – no nível dos mais habilidosos de seus pares e produziram nos últimos séculos um verdadeiro universo de tratados muito minuciosos, labirinto que imagino impossível de ser percorrido inteiramente em uma só vida humana. Não tenho a mínima pretensão de cobrir toda esta polifônica biblioteca de Babel, mas fico satisfeito se os que lerem este trabalho considerarem que consegui entrar de alguma maneira proveitosa no vasto e altamente especializado “Campeonato Greco-Romano”.20 20 A expressão é do sociólogo Rodney Stark, que diz ter escrito o ensaio intitulado “The Class Basis of Early Christianity: Inferences from a Sociological Model” – cujos desdobramentos deram origem ao seu livro The rise of christianity – com o principal propósito de saber se era “suficientemente bom para jogar no Campeonato Greco-Romano”. Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 7. Capítulo 1 A BIBLIOTECA DE CESARÉIA I. “Tu que transcreverás este livro, eu te conjuro, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, e de sua volta gloriosa, na qual virá julgar os vivos e os mortos: confronta o que tiveres copiado, e corrige-o com cuidado no exemplar em que o tiveres escrito. Transcreve também do mesmo modo esta súplica e coloca-o em tua cópia.” JERÔNIMO, De viris ilustribus Os primeiros passos do cristianismo rumo à sua institucionalização se deram na chamada “era da ansiedade”, conforme a definiu o filósofo Eric Dodds.21 De acordo com o que vemos na imprensa periódica e nos jornais da semana, segundo aquilo que vivemos em nosso cotidiano, poderíamos objetar – e com muita propriedade – que o nosso próprio tempo também é um período de ansiedade; além disso, o estudioso de História pode afirmar que seguramente todos os tempos – cada um a seu modo – são de ansiedade. Mais ainda: alguns, de mais discernimento, declaram que não há sequer “eras”, que estas são apenas divisões artificiais criadas a posteriori pelos historiadores e pelos líderes religiosos e políticos, pessoas que pretensiosa e arbitrariamente se propõem a fatiar a experiência humana de acordo com suas próprias concepções e interesses. Nisto tudo não deixam de ter razão. Aqueles anos transcorridos entre a chegada de Marco Aurélio ao trono (161 d.C.) e o Edito de Milão (313 d.C.), entretanto, foram para os habitantes das terras que então compunham o Império Romano marcados de forma singular por um extremo caos e insegurança, instaurados por calamidades naturais e sociais: constante inquietação financeira, declínio acentuado do poder das autoridades civis partidárias do legalismo em favor do autoritarismo dos magistrados investidos de funções militares, crescente escassez de gêneros alimentícios, decréscimo acentuado das taxas de natalidade, desorganização dos padrões tradicionais de organização familiar, mudança nas estruturas produtivas no campo, miséria urbana crônica, epidemias de grande 21 Citado em: Marilia Pacheco FIORILLO. O Deus exilado : Breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. pp. 121-122. 23 alcance e os efeitos debilitantes de uma estrutura cultural saturada “da crueldade caprichosa e do amor substitutivo da morte”.22 A tudo isto, somavam-se novas pressões surgidas nas fronteiras, e uma sensação de opressão e isolamento crescentes: o cristão Bardaisan – que eventualmente viria a se tornar, ou, como se queira, a ser considerado um heresiarca –, elemento complexo com uma aguda visão de seu mundo, falante de siríaco como língua-mãe e de pelo menos uma outra meia dúzia de idiomas, famoso por sua destreza como cavaleiro e arqueiro, bem versado na filosofia platônica e profundo conhecedor das Escrituras Sagradas de seus correligionários e dos judeus, afirmou. que a civilização estava cercada por terras ermas e povoadas por habitantes sinistros, entre os quais não havia nem mesmo o conhecimento das facilidades indispensáveis à vida urbana.23 No máximo na década de 210, escreveu ele que “(...) Em todas as regiões dos Sarracenos, na Líbia Superior, entre os Mauritânios... na Alemanha exterior, na Sarmácia Superior... em todos os territórios a norte do Ponto [mar Negro], do Cáucaso... e nas terras do outro lado do Oxus, ninguém vê escultores, pintores, perfumistas, cambistas ou poetas.”24 A maior parte dos súditos greco-latinos de Roma, convencidos de sua superioridade cultural, mas cada vez mais hesitantes quanto às suas reais capacidades bélicas, deve ter compartilhado da claustrofobia de Bardaisan, agravada mais e mais conforme a própria porção do mundo que consideravam como civilizada tornava-se um lugar tão estranho quanto violento. De um modo geral, o terceiro século depois do nascimento e morte de Jesus de Nazaré foi marcado pela turbulência e pela insegurança política na Bacia do Mediterrâneo, e em seus anos o governo imperial romano tornou-se, “cada vez mais, o prêmio a ser conquistado pelo chefe militar mais forte, pelos generais ambiciosos que abundavam”.25 Nestes dias, “(...) havia quase que invariavelmente alguma província nas mãos de um usurpador e, na prática, o império dificilmente 22 Cf. Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 239. 23 Cf. Peter BROWN. A ascensão do cristianismo no ocidente. (Trad. EduardoNogueira; Rev. Saul Barata). Lisboa: Presença, 1999. (Col. “Construir a Europa”; dir. Jacques Le Goff). ps. 21 e 24. 24 Citado em: Id. Op. cit. p. cit. 25 Steven RUNCIMAN. A civilização bizantina. (Trad. Waltensir Dutra). 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. pp. 12-13. 24 poderia ser considerado como uma comunidade unida”.26 O mais eficaz sistema sócio-político e econômico pré-industrial do mundo – com a possível exceção da China confuciana27 –, sob vários aspectos, finalmente defrontava-se com os seus limites e seguia a vereda do declínio; os grandes oradores e historiadores do mundo clássico, entretanto, operando com categorias de ordem apriorística e imutável, eram incapazes de propor, ou mesmo de conceber tal coisa: não viam e não podiam ver forças sociais em atuação, “mas somente vícios e virtudes, êxitos e erros; a sua maneira de colocar os problemas não é espiritual nem materialmente histórico-evolutiva, mas [exclusivamente] moralista.”28 Apenas na década de 280, Diocleciano, “o primeiro grande estadista que Roma produziu desde Augusto”29, conseguiu fazer implementar um programa de reformas de longo alcance com vistas à pacificação do Império pela reorganização das instâncias de comando civil e militar, uniformização da administração, submissão completa do exército, normalização do poder econômico do governo pela estabilização da moeda e valorização ideológica da pessoa do imperador – segundo Georges Suffert, ao proceder assim, este soberano acabou inventando “um dos primeiros Estados modernos e totalitários da História.”30 A Tetrarquia por ele instaurada, contudo, revelou-se mais frágil do que se poderia ter antecipado e, de fato, elevou a um novo nível os embates pelo governo de Roma: “(...) O império reformado por Diocleciano mal resistiu à sua abdicação, em 305. (...) [Ele] fizera o império depender do imperador, mas o sistema de dois 26 Id. Op. cit. p. cit. 27 Stephen L. DYSON. “A classical archaeologist’s responses to the ‘New Archeology’”. In: Bulletin of the American Schools of Oriental Research, s.l., s.v., n. 242, pp. 7-13, s.d. p. 10. Apud: John Dominic CROSSAN. O nascimento do cristianismo : O que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. (Trad. Barbara T. Lambert). São Paulo: Paulinas, 2004. (Col. “Repensar”). p. 222. 28 Erich AUERBACH. Mimesis : A representação da realidade na literatura ocidental. (Trad. Jacob Guinsburg). (5ª ed.). São Paulo: Perspectiva, 2004. (Col. “Estudos”, Seção “Crítica”, n. 2; dir. Jacob Guinsburg). p. 32. 29 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 17. 30 Georges SUFFERT. Tu és Pedro : Santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Trad. Adalgisa Campos). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 63. O mesmo autor relativiza, a seguir, ainda na página citada, esta polêmica e certamente anacrônica caracterização ao declarar que se trata de um “(...) Julgamento um tanto excessivo, (...) [ainda que seja] certo que a centralização [administrativa] não pára de aumentar, que a polícia torna-se onipresente e que uma vaga religiosidade envolve este novo império.” Id. p. cit. 25 imperadores e uma norma de sucessão ao trono só poderia perdurar se os candidatos imperiais fossem homens de espírito elevado, isentos de ciúmes e de suspeitas. O título de césar era também perigoso, muito alto, mas ainda não bastante alto. Desapareceu rapidamente. Em 311 havia quatro imperadores (...). A cena estava, evidentemente, preparada para a guerra civil.”31 Nos freqüentes conflitos armados – contra correligionários romanos, contra inimigos externos – cidadãos pacíficos podiam inesperadamente se ver desgraçados, pilhados, violados, torturados, mortos; a Pax Romana era cada vez mais apenas um artifício retórico do que uma realidade cotidiana retoricamente apresentada pelos oradores, poetas e letrados.32 Edward Gibbon escreveu sobre este período que então “(...) O Império se viu afligido por cinco guerras civis; no restante do tempo, reinou não tanto um estado de tranqüilidade como de trégua armada entre os diversos monarcas hostis que, encarando-se um ao outro com olhos de medo e rancor, forcejavam por aumentar suas respectivas forças às custas de seus súditos.”33 Este ambiente político tumultuado, conforme escreveu Steven Runciman, contrastava com o que este historiador considerou “padrões de civilização [que] eram ainda altos.”34 O empobrecimento geral da população coincidiu com a ampliação do abismo existente entre pobres e ricos, e o fato material verificável é que, no âmbito de sucessivas crises, ainda que imersos na insegurança, “as classes mais ricas desfrutavam um conforto material e um luxo que ultrapassavam 31 S. RUNCIMAN. Op. cit. pp. 19-20. 32 E isto para aqueles homens livres que possuíam a cidadania romana. Para os povos que foram conquistados pelas armas romanas, ou que lhes declararam por si mesmos a sua submissão, a Pax Romana foi sempre, constitutivamente, marcada por uma “paz” no mínimo ambígua. É fato que durante um considerável período em toda a grande região sob o domínio romano praticamente nenhuma guerra devastava os campos e as cidades, as letras, artes e ofícios podiam desenvolver-se, por toda parte vigorava o mesmo sistema jurídico, e as fronteiras se encontravam em relativa tranqüilidade, mas tratava-se de uma situação de tensão latente. A paz havia sido estabelecida e era mantida pela marcha das legiões – paz-de-vitória para os romanos, paz-de-submissão para os vencidos – e por uma relação que, sendo na teoria uma relação de direito entre dois parceiros, era “na realidade uma ordem de dominação (...) acompanhada de rios de sangue e lágrimas de enormes dimensões”. Cf. Maria Clara Lucchetti BINGEMER (org.) Violência e religião : Cristianismo, Islamismo, Judaísmo : Três religiões em conflito e em diálogo. Rio de Janeiro / São Paulo: PUC-Rio / Loyola, 2001. (Col. “Teologia e Ciências Humanas”, n. 3). pp. 123-124. A este respeito, ver também: Klaus WENGST. Pax Romana : Pretensão e realidade. São Paulo: Paulinas, 1991. 33 Edward GIBBON. Declínio e queda do Império Romano. (Org. e introd. Dero A. Saunders; Pref. Charles A. Robinson. Jr.; Trad. e notas suplem. José P. Paes). Ed. abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 197. 34 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 13. 26 qualquer coisa já vista pelo mundo.”35 Com a miopia comum a grande parte de seus camaradas ricos de outros tempos e locais, em meio à doença, à violência, às moscas, os romanos mais abastados tornaram-se verdadeiros aficionados por incenso, cada vez mais ávidos dos prazeres sensuais que lhes podiam proporcionar os ungüentos raros, as peles e cabelos de servas e eunucos, o vinho de Falerno, as penas coloridas de pássaros exóticos, a lã purpúrea ou escarlate, a cera, a pimenta, o mel.36 Os “(...) Templos, estátuas, poemas épicos, revestiam-se todos de magnificência e rebuscamento”37, e a “arte e as letras ainda se mantinham fiéis aos velhos poemas gregos ou às suas magníficas reproduções surgidas na Roma augustina (...), mas a grande civilização que [o Império Romano] copiava perdera sua força vital”38 com o advento de profundas mudanças culturais. Na clássica cidade-estado grega o cidadão estava imerso na vida pública, identificando-a com a esfera mais imediata, mais íntima de sua existência: a lei, a defesa e a gestão da pólis eram assuntos intrinsecamente seus – o que não foi o caso nas monarquias helenísticas. Nestas a identificação entre governo e cidadão desapareceu, e este se viu reduzido à súdito – uma pessoa submissa à um núcleo de poder externo, que não se confunde com seu âmbito particular de interesses e afazeres. Afastado de constantes obrigações políticas, entretanto, ele também foi liberado para cultivarsua personalidade de diversas formas, e posto em diálogo com discursos e símbolos estrangeiros que então se punham à sua frente na medida em que as fronteiras estatais que o limitavam foram progressivamente extintas e seu horizonte de pensamento se expandiu para muito além daquilo que seus olhos podiam visar.39 Com a desintegração dos governos de origem macedônica e a expansão do Império Romano, que buscou a colaboração dos dirigentes nativos das diversas áreas que conquistou ao mesmo tempo em que 35 Id. p. cit. 36 Cf. R. STARK. Op. cit. p. 172. PETRÔNIO. “A ceia de Trimalchão”. In: Saticiron. (Trad. Miguel Ruas). São Paulo: Atemas. 1949. (Col. “Biblioteca Clássica”, v. 30). ps. 45-46 e 54. 37 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 14. 38 Id. p.cit. 39 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 124-125. Edward McNall BURNS. História da Civilização Ocidental. (Trad. de Lourival G. Machado, Lourdes S. Machado e Leonel Vallandro). (3ª ed. rev. e at.). Porto Alegre: Globo, 1975. pp. 193-210. Henri Irenée MARROU. História da Educação na Antigüidade. São Paulo: Herder / USP, 1966. pp. 153-163 (especialmente as pp. 156-161). Helmut KOESTER. Introdução ao Novo Testamento. Vol. I : História, cultura e religião do período helenístico. (Trad. Euclides Luiz Calloni). São Paulo: Paulus, 2005. ps. 44-47, 105-118 e 167-170. 27 “incentivou, como precavida forma de controle administrativo, a assimilação lingüística e cultural”40, esta tendência ao individualismo e ao cosmopolitismo se acentuou, sintetizando novas formas de ser no mundo, sincréticas e concorrentes em um mercado discursivo caracterizado justamente pela livre-concorrência de idéias e modos de viver.41 Constituída esta estrutura, “(...) A Paidéia helenística [sic] recuou e cedeu (...). Agora não se lia mais o Platão político da República ou o comentador da ética socrática, mas o Platão místico de textos como Timeu.”42 Essa metamorfose teve importante ressonância na produção e preservação das fontes materiais do conhecimento formal nos primeiros séculos depois de Cristo. Para Edward Gibbon, este “homem engenhoso que, além do mais, tinha razão (...) [ou, para escrever em] palavras fatais, um clássico”43, este período em 40 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 124. 41 Cf. Marcus J. BORG e John Dominic CROSSAN. A última semana : Um relato detalhado dos dias finais de Jesus. (Trad. de Alves Calado). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. ps. 27 e 31. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 124-125. S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 14. H. I. MARROU. Op. cit. ps. 375-410 e 447-453. 42 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 126. Sendo plenamente válida a frase no âmbito de nossa argumentação, cremos, entretanto, que há uma pequena desatenção conceitual da parte da autora neste trecho que citamos. Pode-se considerá-la assim ou não. De nossa parte, cremos que seria mais adequado empregar o adjetivos helênica ao invés de helenística, de modo que se evitasse confundir a situação cultural da Hélade das polei com o estado das coisas durante a expansão de Alexandre Magno e os vários governos instaurados por seus generais sucessores. 43 Jorge Luis BORGES. Outras Inquisições. (Trad. Davi Arrigucci Jr.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 101. Sabemos o quanto esse juízo sobre Edward Gibbon pode ser mal interpretado e mesmo encarado como polêmico no contexto de nosso trabalho, mas ainda assim fazemos questão de registrá-lo. A obra magna de Gibbon, Declínio e queda do Império Romano, a qual faremos aqui ocasional referência, é uma narrativa que foi caracterizada por mais de duzentos anos, e ainda hoje, como clássica – adjetivo que contempla a sua profundidade discursiva, as sucessivas leituras que lhe foram feitas e cujas marcas enriquecedoras chegam até nós, o fato de que não deixa indiferente quem a lê, que desperta uma nuvem críticas sobre si e as repele, que teima em persistir como origem ou rumor mesmo em meio a tantos outros escritos atualíssimos sobre o mesmo tema, e que é, de alguma forma, imortal. É temeroso falar em imortalidade no que se refere à validade de um texto, dado que toda obra e existência humana é sempre datada, localizada no tempo e no espaço e necessariamente marcada por esta situação idiossincrática, mas o fato é quem em muitos aspectos, comparados com trabalhos mais contemporâneos sobre os primeiros séculos da Era Cristã, o Declínio e queda permanece incólume – e isso não apenas em função do encanto que desperta como peça literária. J. B. Bury, organizador de uma ilustre edição deste livro escreveu com muita propriedade que “nem o historiador nem o homem de letras subscreverão sem mil reservas os capítulos teológicos de Declínio e queda”, e que mesmo assim, contudo, as mais minuciosas investigações sobre o período que é objeto da maior atenção de Gibbon “nem modificaram de modo substancial nem infirmaram o acerto” dos argumentos mais gerais que estruturam sua narrativa sobre a decadência do Império Romano, de como esta se caracterizou como o triunfo conjunto da barbárie e do cristianismo. Cf. Jorge Luis BORGES. Prólogos : Com um prólogo dos prólogos. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Rocco, 1985. pp. 85-87. Italo CALVINO. Por que ler os clássicos? (Trad. Nilson Moulin). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 9-16. Dero A. SAUNDERS. “Introdução do Organizador”. In: E. GIBBON. Op. cit. pp. 23-26. O literato argentino Jorge Luis Borges registra que se pode ler a obra do grande historiador inglês tanto para saber da história romana quanto para se verificar como 28 que convergiram a beligerância e o legalismo romanos, as ferramentas do pensar grego, a hermenêutica e o monoteísmo judaicos, o dualismo e a magia persas, a astrologia e o fatalismo babilônicos, a mitopolitologia egípcia, os cultos de mistério, o estoicismo, o cristianismo, o gnosticismo e o neoplatonismo44 foi uma “época de decadência do saber e dos valores humanos”45, na qual “(...) O conhecimento que melhor serve a nossa condição e faculdades, todo o âmbito da ciência moral, natural e matemática, era negligenciado”.46 As conseqüências desta negligência no referente ao que é o tema de nosso presente interesse se evidenciam a uma consideração mais cuidadosa com alguma facilidade. Durante um largo período de tempo, sucessivos imperadores romanos seguiram os exemplos de Júlio César e César Augusto e incluíram bibliotecas em seus projetos de edificação pública, não se limitando a dotar seus próprios palácios e templos de estantes, arquivos e salas de leitura e transcrição. Ainda sob o primeiro Imperador de Roma, os banhos públicos – solidários da distribuição de pães, das arenas de gladiadores e dos hipódromos como parte da política governamental de contentamento das massas – passaram a incluir bibliotecas em suas dependências, espaços que continham tanto tratados jurídicos, médicos e científicos quanto obras literárias familiares – ainda que cada vez mais destas do que daqueles.47 Segundo a narrativa do bibliotecário Matthew Battles, “(...) À medida que a República tornava-se Império, as bibliotecas tão adoradas por Cícero prosperavam como nunca. (...) em meio aos sucessivos incêndios que poderia imaginá-la um cavalheiro setecentista, duplicidade de sentidos que não esvazia de valor seu texto, mas, ao contrário, o potencializa: “(...) Afora aquela prevenção contra o sentimento religioso em geral e contra a fé cristã em particular, Gibbon parece abandonar-se aos fatos que narra e reflete-os com uma divina inconsciência que o aproxima da cegueira do destino, do próprio curso da história. Como quem sonha e sabe que sonha, como quem aceita os acasos e as trivialidades de um sonho, Gibbon em seu século XVIII, voltoua sonhar o que viveram ou sonharam os homens dos séculos anteriores, nas muralhas de Bizâncio ou nos desertos árabes. (...) Épocas houve em que se liam as páginas de Plínio em busca de precisões; hoje as lemos em busca de maravilhas (...). Esse dia ainda não chegou para Gibbon, e não sabemos se chegará.” J. L. BORGES. Prólogos. ps. cits. 44 Que “tornou-se uma espécie de igreja-mor da causa pagã, com seus próprios dogmas e apologética.” M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 126. 45 E. GIBBON. Op. cit. p. 195. 46 Id. p. 196. 47 Cf. Matthew BATTLES. A conturbada história das bibliotecas. (Trad. João V. G. Cuter). São Paulo: Planeta, 2003. pp. 52-53. 29 flagelavam Roma, elas permaneceram em funcionamento (...). Mesmo em pleno declínio, o esplendor do Império ainda persistiu por um bom tempo. Romanos cristianizados do quinto século ainda faziam visitas aos palacetes uns dos outros para reviver um pouco da glória dos dias idos. O prolífico epistológrafo Sidônio Apolinário, numa carta a seu amigo Donídio descreve uma cena desse tipo (...) [sua] descrição evidencia mudanças no uso dos livros, muito embora as pessoas continuem a apreciar ‘a grandeza da eloqüência latina’ (...) agora existe espaço para livros dissidentes, escritos por aqueles que Gibbon chama de ‘galileus’.”48 Tanto o corrosivo desinteresse, e o abandono que lhe é naturalmente associado, quanto as depredações feitas por governantes ávidos de apagar a memória de seus antecessores, e por contingentes de invasores e multidões furiosas, se juntaram aos acidentes da natureza – terremotos, inundações, incêndios, erupções vulcânicas, traças, baratas, cupins, piolhos, vespas, fungos, ratos, a acidez das tintas empregadas na escrita49 – para privar a posteridade da maior parte dos numerosos acervos escritos da cultura greco-romana. Pela conjugação de vários fatores, as bibliotecas públicas romanas (assim como as helenísticas que as precederam e ainda subsistiam – como, por exemplo, a ilustre Biblioteca de Alexandria) desapareceram com alguma rapidez na confusão reinante na “era da ansiedade”.50 Conforme “(...) as luzes de Roma foram se afastando daquilo que Gibbon chamava de ‘a mais formosa porção da Terra’, suas bibliotecas também começaram a definhar e a morrer. De modo geral, foram tempos sombrios para o estudo, para os livros e para as bibliotecas. (...) Com o declínio econômico e social acentuando-se cada vez mais, secaram as fontes dos recursos necessários para adquirir e preparar o pergaminho e o papiro e para sustentar exércitos de copistas. Até mesmo as estradas caíram no abandono, pondo fim ao eficiente sistema postal de Roma, que tinha uma importância central para a vida da Respublica litterarum. Cartas do período tardio mostram a nobreza romana assumindo o encargo de produzir suas próprias cópias, sinal seguro de que a provisão de escravos cultos, que fora constante, agora minguava.”51 48 Id. Op. cit. pp. 56-57. 49 Para uma síntese acerca de alguns dos variados fatores que engendram a destruição de livros, ver: Fernando BÁEZ. História universal da destruição dos livros : Das tábuas sumérias à guerra do Iraque. (Trad. Léo Schlafman). Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. (Especialmente as pp. 307-313, que tratam dos inimigos naturais dos livros, das tintas ácidas e dos papéis auto-destrutivos, dos exemplares únicos de obras antigas e modernas, e de quando as editores e alfândegas as destroem). 50 Id. Op. cit. ps. 69 e 98-102. 51 M. BATTLES. Op. cit. p. 61. 30 A perda do entusiasmo por certas vertentes da literatura clássica em favor dos textos metafísicos e místicos, e as constantes disputas entre os partidos de metafísicos e místicos, que não apenas liam, mas veneravam estes mencionados escritos, somados à fragilidade dos suportes da redação então conhecidos fizeram sumir para sempre um número impensável de obras.52 Para a irremediável tristeza dos estudiosos da posteridade, o ramo cristão que viria a triunfar sobre os demais – e que a partir deste ponto chamaremos neste nosso trabalho, por motivos puramente práticos, conscientes do anacronismo inerente ao termo, de paleortodoxos – construiu, ao menos em um primeiro momento (até a segunda metade do século III, digamos), a sua identidade por oposição à literatura e à arte da antigüidade pagã.53 Mais decisivamente ainda, estes homens fiéis se opuseram à preservação dos textos de seus opositores intramuros, que precocemente designaram “heréticos”, dando a este termo uma conotação pejorativa que até então não possuía.54 “(...) O desaparecimento dos escritos gnósticos, causado em grande parte, pela feroz perseguição da [incipiente] Igreja católica”55 é um processo histórico sintomático de uma tendência comportamental mais ampla e arraigada, cuja origem entre os cristãos talvez remonte aos dias da pregação do Apóstolo Paulo em Éfeso.56 De forma quase irônica, entretanto, foi nas comunidades monásticas dos “galileus” e ao redor de suas cátedras episcopais que a “chama frágil e oscilante”57 da cultura literária da Antigüidade continuou a tremular. 52 Fernando Báez escreve que “(...) Sem recorrer à imaginação não há forma de quantificar as perdas [de textos clássicos] ocorridas entre os séculos II d.C. e VI d.C.” F. BÁEZ. Op. cit. p. 114. 53 Cf. M. BATTLES. Op. cit. p. cit. 54 M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 95-96 ,128 e 188-191. 55 F. BAÉZ. Op. cit. p. 106. 56 Id. Op. cit. p. 105. O episódio referido, narrado nos Atos dos Apóstolos, é aquele em que muitos do que haviam abraçado a fé pregada por Paulo começaram a confessar publicamente suas práticas mágicas, pelas quais a cidade de Éfeso era famosa na Antigüidade, trazendo seus livros e os queimando-os à vista de todos. Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Coordenação editorial de José Bortolini; Tradução de Euclides Martins Balanci et al. São Paulo: Paulus, 2002 (4ª impressão: 2006). Atos dos Apóstolos 19, 18-19. p. 1938 e notas correspondentes. Da violência simbólica contra si e contra o próprio patrimônio à agressão do outro a distância é bastante pequena neste caso, dado o seu elemento comum de fomento: em última instância, ao se considerar além de toda discussão e argumentação humana, “(...) a certeza conduz à violência.” John J. COLLINS. A Bíblia justifica a violência? (Trad. Walter E. Lisboa). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Bíblia na mão do povo”, n. 1). p. 48. 57 M. BATTLES. Op. cit. p. 62. 31 A maior parte dos Evangelhos (e Atos dos Apóstolos) – canônicos e apócrifos – dos quais hoje temos conhecimento foi composta ainda nos séculos I e II, mas o cristianismo então não era exatamente uma religião do Livro como o judaísmo (e como o islamismo viria a ser): “(...) A experiência do Mestre e profeta Jesus assemelhou-se a um fogo que ninguém pôde extinguir, a uma luz capaz de iluminar a superfície da Terra, ou, seguindo a linha de Newman, a uma ‘idéia’ viva”.58 Os cristãos de então liam as Escrituras Sagradas hebraicas e, em sua maioria, as consideravam dotadas de autoridade, mas seguiam a uma a Pessoa cuja palavra, dada de viva voz, era ela mesma uma Nova Lei, que rompe os estáticos quadros culturalmente estabelecidos e põe todos os indivíduos que com ela entram em contato em movimento rumo a algo radicalmente novo.59 John B. Gabel e Charles B. Wheeler ressaltam que “(...) É fato que, mesmo depois de os evangelhos serem escritos, alguns membros da Igreja preferiam a tradição oral e não conseguiam ver a necessidade de um registro escrito”.60 A afirmação do cristianismo como uma religião do Livro é um processo longo, que se iniciou talvez com a formulação por Marcião, em meados do século II, de um corpus de textos sagrados – e que foi catalisado pela refutação deste pelo cristianismo paleortodoxo. Seja como for, este desenvolvimento – se é que assimo podemos chamar – alcançou um seu primeiro ápice mais ou menos simultaneamente à formulação cristológica e litúrgica do Concílio de Nicéia (325).61 Justamente 58 Richard BERGERON. Fora da Igreja também há salvação. (Trad. Maria Stela Gonçalves; rev. Iranildo B. Lopes). São Paulo: Loyola, 2009. p. 23. 59 Neste ponto, discordo de H. I. Marrou, que considera que o cristianismo é em princípio – ou seja, desde sempre e necessariamente – uma religião do Livro, e, mais ainda, uma crença livresca, “uma religião douta (...) [que] não poderia existir em um contexto de barbárie.” H. I. MARROU. Op. cit. p. 482. Cf. Mircea ELIADE. História das Crenças e das Idéias Religiosas. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. (Tomo II : De Gautama Buda ao Triunfo do Cristianismo; Volume 2 : Das Provações do Judaísmo ao Crepúsculo dos Deuses). pp. 165-166. Bernard SESBOÜË. “A comunicação da palavra de Deus: Dei Verbum”. In: Bernard SESBOÜË e Christoph THEOBALD (orgs.). Palavra da Salvação (Séculos XVIII-XX) : Doutrina da Palavra de Deus, Revelação, fé, Escritura, Tradição, Magistério. (Trad. Aldo Vannucchi; rev. Albertina P. L. Piva e Marcelo Perine). São Paulo: Loyola, 2006. (Col. “História dos Dogmas”, t. 4; dir. Bernard Sesboüë). pp. 435-438. J. D. CROSSAN. Op. cit. ps. 89-130 e 137-150. E. AUERBACH. Op. cit. p. 37. 60 John B. GABEL e Charles B. WHEELER. A Bíblia como literatura : Uma introdução. (Trad. Adail U. Sobral e Mana S. Gonçalves; apres. e anexos à ed. bras. Johan Konings). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2003. p. 169. 61Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 96. Alfred STUIBER e Berthold ALTANER. Patrologia : Vida, Obras e Doutrina dos Padres da Igreja. (Trad. Monjas Beneditinas). (2ª ed.). São Paulo: Paulinas, 1988. (Col. “Patrologia”, n. 3). pp. 103-104. Julio Trebolle BARREIRA. A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã : Introdução à história da Bíblia. (Trad. Ramiro Mincato). Petrópolis: Vozes, 1995. ps. 274-284 e 294-302. Barbara ALAND. “Marcião – Marcionismo”. In: VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino). 32 neste período intermédio – ou seja, entre o estabelecimento do corpus marcionita e do corpus niceno – ocorreu no ambiente cultural greco-romano que escrita deixou de ser um fim em si para ser apenas um meio, perecível: “(...) Na ausência da demanda imperial por inscrições em pedra e dos decretos e discursos a ser [sic] transcritos em papiro ou pergaminho, pouca coisa era escrita na forma de um registro perene.”62 Nos primórdios de sua fé (e igualmente nas comunidades monásticas tardo-antigas e medievais do Oriente e do Ocidente), os cristãos aprendiam a ler e a escrever apenas “para se entregarem com afinco a um trabalho espiritualmente recompensador”63, de modo que registravam versos das Escrituras e de outros textos que consideravam edificantes em cacos de cerâmicas (as óstracas) e em tabuinhas cobertas de cera, que não sobreviviam por muito tempo. A expansão das pesquisas arqueológicas nos séculos XIX e XX, somada ao significativo refinamento de seus métodos de análise, de fato fez vir à luz com surpreendente facilidade miríades de textos neste formato, importantes testemunhos – redigidos majoritariamente em grego, latim e siríaco, mas também em irlandês, etíope, armênio e sogdiano, entre outros idiomas – do estabelecimento e dinâmica de um imenso número de cristianismos dispersos entre o Atlântico e o Mar da China, dispostos como “contas de um imenso rosário partido. No condado de Atrim, no Norte da Irlanda, e em Panjikent, a Leste de Samarcanda, descobriram-se [por exemplo, alguns destes] fragmentos de cadernos de cópias (...) contendo linhas copiadas dos Salmos de David.”64 Inspirados nestas tabuletas é que os cristãos coptas e palestinos inventaram – ou pelo menos Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. pp. 881-882. Os efeitos desta transformação são vários e profundos, e um destes foi expresso de forma pungente por São Jerônimo quando este douto anacoreta escreveu que “(...) Tinge-se o pergaminho de cor de púrpura, traçam-se letras com ouro líquido, revestem-se de gemas os livros, mas diante das suas portas, totalmente nu, Cristo está morrendo”. Citado em: Paulo Evaristo ARNS. A técnica do livro segundo São Jerônimo. (Trad. Cleone A. Rodrigues). (2ª ed. rev. e ampl.). São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 28 e nota correspondente, n. 71, p. 37. Em referência a uma questão que é a esta conecta, ver: J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 167 e nota correspondente, n. 1. Sobre o caráter de definitivo (fechado) do cânone ortodoxo, ver a admoestação inserida no final do livro do Apocalipse, o último da Bíblica cristã pós-nicena: “(...) A todo o que ouve as palavras da profecia deste livro, eu declaro: ‘Se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. E se alguém tirar algo das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará também a sua parte da Árvore da Vida e da Cidade Santa, que estão descritas neste livro!” BÍBLIA. Ver. cit. Apocalipse 22, 18-19. pp. 2167-2168 e notas correspondentes. 62 M. BATTLES. Op. cit. p. 62. 63 Id. Op. cit. p. cit. 64 P. BROWN. Op. cit. p. 22. 33 aperfeiçoaram – o códice, que deu origem ao formato moderno do livro.65 Substituindo os rolos, que eram o formato padrão dos livros na Antigüidade clássica, os códices eram formados por folhas de pergaminho ou papiro sobrepostas e unidas por um cordão entre si e à uma encadernação de couro rígido, madeira ou marfim, e foram introduzidos “em Roma pelos cristãos, que o trouxeram das cidades que sediaram a Igreja nos primeiros tempos, na Palestina, no Egito e na Grécia (...). Um mosaico em Ravena, do tempo de Sidônio, mostra um tradicional armarium romano cheio de códices deitados com as capas viradas para cima, e os títulos claramente à mostra. Eram evangelhos. O códice era algo tipicamente cristão.”66 Para Evaristo Arns, o que precipitou esta evolução técnica do livro foi “(...) O amor ao livro sagrado e sobretudo a posição oficial da Igreja.”67 Talvez não estejam excluídos desta formulação cunhada pelo atual Sr. Cardeal Emérito da Arquidiocese de S. Paulo quando tratava-se ainda um entusiasta do estudo erudito da antiga literatura cristã os bem conhecidos motivos de ordem missionária e apologética que influíram neste processo: sabe-se, por exemplo, que ainda por volta de 730 Bonifácio escreveu para seus confrades ingleses requisitando cópias da Bíblia que fossem escritas “em letras de ouro, para que a reverência às Sagradas Escrituras seja impressa nas mentes carnais dos gentios.”68 Não está no âmbito de nossa reflexão, entretanto, prosseguir tecendo considerações sobre as causas de tal notável mudança; cabe-nos apenas registrar que este novo suporte para a escrita não era apenas mais fácil de ler que os rolos e podia suportar mais caracteres do que estes (já que permitia que se escrevesse nos dois lados de uma mesma folha), mas também mais simples de ser armazenado e 65 Matthew Battles registra que “(...) Muitos conjecturam que a palavra inglesa para livro, ‘book’, teria vindo de ‘boc’, termo anglo-saxão que designa a faia, cuja madeira era muito usada na confecção das tabuletas. As tábuas de faia eram escavadas de maneira a conter um reservatório raso, onde se derramava a cera de abelha. Depois de esfriar, a cera formava uma superfície macia sobre a qual era possível escrever utilizando um estilo [sic]. Bastava um esfregão vigoroso para apagar o que estivesse escrito – algo bastante conveniente para quem escreve, mas não tão conveniente para o historiador. Tudo o que se escreveu sobre
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