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Nelson Câmara 3ª EDIÇÃO O advogado dos escravos Luiz Gama MULTICULTURAL O advogado dos escravos Luiz Gama Nelson Câmara Apoio MULTICULTURAL São Paulo – 2016 3ª EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA O advogado dos escravos Luiz Gama Copyright © 2010, 2016 by Nelson Câmara Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem a expressa autorização do autor. Diretor editorial Décio Nascimento Guimarães Editor da obra José Augusto Altran Diretora adjunta Milena Ferreira Hygino Nunes Coordenadora científica Giséle Pessin Design Fernando Dias Capa Montagem de ilustração de Luiz Gama, em bico de pena por Angelo Agostini e trecho de quadro “Recife, capital de Pernambuco”, em meados da década de 1820, por Johann Moritz Rugendas. Assistente editorial Samara Moço Azevedo Revisão Ariadne Patriota Bomfim Apoio à Pesquisa Histórica/Imagens de Arquivo José Augusto Altran Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C172a Câmara, Nelson 3. ed. rev. ampl. O advogado dos escravos : Luiz Gama / Nelson Câmara. -- 3. ed. rev. ampl. – Campos dos Goytacazes, RJ : Brasil Multicultural, 2016. Incluir paginação p. 360 Inclui bibliografia ISBN 978-85-5635-018-3 1. GAMA, LUIZ GONZAGA PINTO DA, 1830-1882 2. ABOLICIONISTA 3. NEGROS – BRASIL I. Câmara, Nelson II. Título CDD 921 Instituto Brasil Multicultural de Educação e Pesquisa - IBRAMEP Av. Alberto Torres, 229 - Sala 1101 - Centro Campos dos Goytacazes - RJ MULTICULTURAL 28035-580 - Tel: (22) 2030-7746 E-mail: contato@brasilmulticultural.com.br “Eu disse, uma vez, que a escravidão nacional nunca havia produzido um Terêncio, um Epitecto, ou sequer, um Spártaco. Há, agora, uma exceção a fazer: a escravidão, entre nós, produziu Luiz Gama, que teve muito de Terêncio, de Epitecto e de Spártaco”. SILVIO ROMERO (1851-1914) História da literatura brasileira ed. 2003, p. 447. Dedico esse livro às leais companheiras em longa jornada de trabalho profissional, Leni (Diolene Monscofsque Dourado), Dora (Maria Dores Silva Pereira) e Raquel (Fiuza de Almeida). Dedico também às minha irmãs Marilza, Marlene e Izabel, pelos laços de família. Uma menção especial para meu amigo, cunhado e médico Paulo Eduardo Rangel, estudioso e sempre interessado nos problemas sociais. Dedico, finalmente, a todos aqueles, advogados ou não, que conduzem sua vida na defesa dos necessitados e da solidariedade social. Prefácio a primeira edição O negro libertador dos negros Nelson Câmara, advogado e mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da USP, dedica-se, também, a produzir um relato consistente e isento de nossa História. Graças à busca de fontes legitimadoras das informações que coletou acerca do fato mais marcante da vida brasileira até o final do século XIX, ou seja, a escravidão. Esta narrativa não torna o historiador Nelson Câmara um observador distante, mero relator objetivo e frio dos fatos. Assume o papel de denunciante das mazelas de nossa História e de promotor das figuras que enfrentaram com denodo e risco, por suas convicções humanitárias, a defesa dos escravos e a abolição da escravidão. Já dedicou Nelson Câmara em livro anterior intitulado Escravidão nunca mais!, um denso capítulo à figura de Luiz Gama, o negro mais importante do século XIX, o autodidata que foi jornalista, poeta e advogado militante, dedicado, com inúmeros sacrifícios, a defender a liberdade dos escravos indevidamente escravizados em afronta à lei ou criminalmente acusados em vingativa perseguição. O livro que agora vem a lume, em sua terceira edição, além de destacar a multifacetada personalidade de Luiz Gama, reúne as virtudes de poeta sensível à capacidade da ironia mais fina na edição de jornais satíricos e de crítica política, dedica-se então, a fixar a vertente mais marcante da vida do biografado: a coragem e Nelson Câmara a mais desabrida combatividade na defesa dos negros, esgrimindo argumentos criativos de forma ferina, nos autos e na própria imprensa, ao comentar a parcialidade e o descaso das decisões judiciais. Se a vida de Luiz Gama é um romance que aconteceu, pode-se dizer que sua existência é uma história que traz todos os ingredientes de um herói: filho de mulher negra forra, lutadora e de temperamento forte, que desapareceu após a Revolução da Sabinada na Bahia e foi, por seu pai branco, vendido como escravo e enviado ao Rio de Janeiro. Lutou pela própria liberdade, afirma-se, depois de muito esforço em diversos misteres, como jornalista, e encontrou a sua marca no destino: ser advogado, mesmo sendo rejeitado pela Academia do Largo de São Francisco. O seu escritório no Largo da Sé passou a ser ponto de encontro dos estudantes da Academia que o rechaçara, bem como de professores, como José Bonifácio, o Moço, além da presença constante de líderes do movimento republicano e da Loja Maçônica América. Sua luta incansável como advogado dos escravos constituiu grande exemplo para os jovens Raul Pompeia, Américo de Campos, Américo Brasiliense, Joaquim Nabuco e os baianos Rui Barbosa e Castro Alves. Esta é a faceta de Luiz Gama que o eterniza: O advogado dos escravos, título da obra importante como documento que traz à tona, a prova do labor contínuo de Nelson Câmara, fruto de intensa pesquisa nos Arquivos do Tribunal de Justiça de São Paulo. O mais curioso e historicamente fundamental, consiste na transcrição de dezenas de petições e processos nos quais se verifica a sabedoria e a versatilidade de quem advogava em favor dos desvalidos contra o peso dos interesses econômicos e contra o preconceito de muitos juízes formados na mentalidade escravagista da época. Este livro de Nelson Câmara passa a ser de consulta obrigatória para os estudiosos da escravidão e da O advogado dos escravos Luiz Gama vida judiciária brasileira, hino ao heroísmo de um negro que lutou em favor da Justiça contra a violência da submissão dos homens de sua cor, vítimas de todos os abusos e desumanidades. As partituras deste hino estão editadas nas diversas páginas em que se reproduzem e se transcrevem as afiadas petições deste espadachim do justo em uma terra de pessoas conscientemente insensíveis ao sofrimento e exploração dos negros. O nosso herói, como se poderá ver, venceu muitas vezes a indiferença e o comodismo para presentear aos seus patrocinados a esperada liberdade. O livro de Nelson Câmara traz o travo amargo da memória de nossa terra injusta mas, ao mesmo tempo, reconforta pelo exemplo edificante do biografado, cujas petições podem ser lidas para auferir ânimo na luta contra todas as injustiças que ainda nos assolam. Miguel Reale Júnior Apresentação Ler um livro sempre é uma experiência fascinante e revigorante. O conhecimento obtido é uma dádiva que entretém a mente, mas também abastece o coração. Os livros abrem os horizontes para as ideias brilhantes), sem prescindir das benesses de dar asas à imaginação. Ao mesmo tempo, a literatura de caráter histórico-documental descortina as pegadas de grandes homens e mulheres do passado, inclusive daqueles que caminharam em terras áridas. A história documental de Luiz Gama nutre o intelecto, revitaliza o coração e desvenda os passos percorridos por um homem que, guardadas as devidas proporções, foi uma voz que clamava no deserto (cf. Bíblia Sagrada, Mateus 3.3). Essa voz solitária ainda se faz ouvir, reverberando em nossa sociedade com brados de equidade, liberdade, tolerância, compreensão e complacência. Entrementes, os dias de Luiz Gama não podem receber uma comparação mais apropriada do que tempos vividos em hostil deserto. Sobretudo, quando sua história é compreendida sob as agruras da escravatura brasileira. A escravidão, pois produziu aridez social, política e especialmente humanitária. Sob o sol escaldante da impiedade e sofrendo de insaciável sede por justiça, o povo negro foi subjugado e submetido aos mais terríveis escárnios e castigos físicos e psicológicos. O curso da vida de escravo era apontado por gargalheiras e chibatas. Atitudes hediondas e vis que, de fato, macularam a naçãobrasileira com o sangue de mártires. À semelhança de outros momentos históricos, havia quem soubesse se aproveitar da dor e do sofrimento alheio para obter benefício próprio, todavia, havia também quem fosse uma voz para os que foram feitos mudos à força. Em um tempo que até mesmo o choro e gemido não eram abafados, Luiz Gama foi o paladino moderno de milhões de negros, tornando-se o mais célebre advogado dos escravos brasileiros. As habilidades como poeta, jornalista e advogado são belamente relatadas nesse documentário histórico que foi reunido em forma de livro. Por semelhante modo, o caráter de Luiz Gama é indelevelmente imiscuído com sua capacidade intelectual. O texto realça as mais diversas qualidades desse porta-voz da nação dos negros esquecidos pelas leis brasileiras. Ademais, mesmo seus poemas revelam a sensibilidade e o olhar típico de um artista, sem imergir na ingenuidade e na alienação. Como jornalista, sua postura crítica de cunho social e político vem acompanhada de um tom satírico, reafirmando a desenvoltura de Luiz Gama dominar e espargir os mais elevados saberes de sua época. A tudo isso, por fim, agrega-se o incansável esforço para fazer cumprir a lei do Império em favor da libertação dos escravos. Com efeito, Luiz Gama não nutria um círculo de amizades, colaboradores e defensores da causa abolicionista sem razão para tanto. Foi por sua comprovada competência jurídica, literária e argumentativa que Rui Barbosa e Castro Alves permaneceram ao seu lado. Da mesma forma, outros ícones brasileiros reverenciaram a figura de Luiz Gama, como Silvio Romero, Raul Pompeia, Rangel Pestana, André Rebouças, Lúcio de Mendonça, José Bonifácio Sobrinho e Bernardino de Campos, homens que contribuíram para a causa abolicionista. Destarte, as ações inspiradoras de Luiz Gama, sua incessante busca por justiça e liberdade, bem como sua capacidade Nelson Câmara de dialogar esbanjando conhecimento de causa, destacam que a sociedade brasileira pode alçar uma condição mais elevada de empatia e alteridade quando apoiada em ideias que superaram os meros interesses particulares. De fato, Luiz Gama liberalmente advogava em favor dos negros pobres e excluídos em prejuízo próprio. A advocacia, os poemas e o jornalismo o fizeram entesourar bens e fomentar um império particular. Luiz Gama não angariou cargos políticos ou se deixou tomar pelas garras do poder. Ele não pode ser acusado de enriquecer às custas dos sofrimentos dos outros. Ao contrário, como outros que vieram antes e depois dele, seu anseio de transformação social e política foi regado pelo altruísmo, atitude que deveria inspirar de forma decisiva ações atuais. A história de Luiz Gama nos faz compreender que os sonhos de liberdade e justiça se tornam pesadelos sociais quando não procedem de abnegação e desprendimento. Quando a voz que clama no deserto visa benefício próprio e transforma a causa alheia em ponto de alavanca para empreitadas particulares, a sociedade está fadada a alimentar suas próprias aberrações. Uma voz clamou no deserto da sociedade escravagista brasileira. Um brado justo, porém, benevolente. Nesse ponto, há um viés de comparação com outro personagem que protestou em um deserto e tempo diferentes, a saber, na Judéia do primeiro século da era cristã. Ambos buscavam justiça para o seu povo. Luiz Gama reivindicou a justiça para os negros. João Batista é o personagem bíblico que reclamou por justiça para o povo de Deus. No final das contas, os dois deixaram suas pegadas numa terra árida e diante da situação mais improvável; pois, como deixar pegadas na areia? Luiz Gama abriu caminhos no deserto para que pudéssemos vislumbrar uma sociedade mais equânime, benevolente e humanitária. Tais atitudes para nós O advogado dos escravos Luiz Gama da Universidade Presbiteriana Mackenzie indicam uma verossimilhança com a figura de João Batista, que também anunciou e protestou contra a maldade ao ser a voz do deserto, antecedendo Jesus Cristo. Portanto, descortinar os erros humanos em favor de uma sociedade imparcial, tolerante e destituída de preconceitos raciais é um alvo que obtém seu cumprimento pleno na Pessoa e Obra de Jesus Cristo. Afinal, de modo consciente ou não Luiz Gama adotou posturas e valores, bem como obteve ganhos que encontram sua plena consecução na sociedade celestial que Cristo Jesus oferece a todos que o amam e o servem, mesmo neste mundo que tantas vezes tem insistido em permanecer na aridez do deserto. A obra que ora apresentamos em sua terceira edição, narrada pela pena do professor Dr. Nelson Câmara, presidente da Academia Mackenzista de Letras – AML, fruto de uma rigorosa e profunda pesquisa sobre os caminhos percorridos por Luiz Gama, nos deixando diante de um personagem exemplar, singular por suas ações em prol da dignidade e liberdade humana. Rev. Dr. Davi Charles Gomes Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie Dr. Benedito Guimarães Aguiar Neto Reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Presb. Dr. José Inácio Ramos Presidente do Instituto Presbiteriano Mackenzie. Introdução “De verre pour gémir, d’airaim pour résister” – “De vidro para gemer, de bronze para resistir” – foi com essa significativa expressão invocatória do poeta da “Legenda dos Séculos” (Victor Hugo – no poema Les Chants du crépuscule), que Rui Barbosa referiu-se ao seu saudoso amigo Luiz Gama, quando da Conferência sobre o Abolicionismo por ele proferida no Rio de Janeiro a 18 de maio de 1911, no discurso de posse no Instituto dos Advogados. Afirmou ter sido uma rara fortuna da sua vida ter cultivado intimamente a amizade de Luiz Gama, “em lutas que nunca esquecerei”. Disse mais: [...] que Luiz Gama era um coração de anjo com uma alma de “harpa eólia de todos os sofrimentos da opressão”, além de ser, também, um espírito genial com uma torrente de eloquência, de dialética e de graça, uma abnegação de apóstolo com uma personalidade de granito aureolado de luz e “povoado pelas abelhas do Himeto” [...] (in: BARBOSA, s.d., p. 197). A menção de Rui Barbosa merece ser lida por inteiro: “Para não nomear vivos, lembrarei apenas Luiz Gama... (aplausos repetidos). Uma das raras fortunas de minha vida é a de ter cultivado intimamente sua amizade, em lutas que nunca esquecerei. Um coração de anjo, uma alma que era a harpa eólia de todos os sofrimentos da opressão; um espírito genial; uma torrente de eloquência, de dialética e de graça; um caráter adamantino, cidadão para a Roma antiga, inaclimável no Baixo Império; uma abnegação de apóstolo: personalidade de granito, aureolado de luz e povoado pelas abelhas do Himeto (aplausos). Se eu houvesse de escrever-lhe o epitáfio, iria pedir este ao poeta da Legenda dos Séculos: De verre pour gémir, d’airaim pour résister” (BARBOSA, RUI. s.d., p. 197). Passados vinte anos da Abolição, esse foi o testemunho de Rui Barbosa ao seu amigo e ídolo Luiz Gama. Como esquecer e não valorizar aquele que foi seu mote em São Paulo durante sua juventude acadêmica na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, bem como na loja Maçônica América e na redação do Jornal Radical, em lutas memoráveis? Os baianos Castro Alves, “o poeta dos escravos”, e Rui Barbosa, ambos residentes na então denominada “República dos baianos” na rua da Glória, hoje próximo à praça João Mendes Júnior, no centro da cidade de São Paulo, desde logo passaram a frequentar o escritório de Luiz Gama na Travessa da Sé, nº 4. A história caprichosamente estabeleceu as contradições de origem entre eles para vincular eternamente os três personagens ao mesmo ideário, com condições diferentes de manifestação e luta de cada um. Rui Barbosa e Castro Alves eram de família e classe social tradicional da sociedade baiana, com progenitores intelectualizados e cada um recebendo, na origem, educação aprimorada. Luiz Gama, ao contrário, era filho de uma negra africana liberta e fruto de uma união com um fidalgo de origem portuguesa, que acabou pelo desatino de sua vida desregrada a vender seu próprio filho como escravo aos dez anos de idade. Apartir daí, iniciou-se a saga desse extraordinário personagem em São Paulo onde viveu até a sua morte. Por outro lado, os outros dois, também ilustres baianos, vieram a São Paulo para estudar e desenvolver-se intelectualmente por vontade própria, com liberdade e apoio familiar! Rui Barbosa e Castro Alves estudaram na famosa Faculdade de Direito de São Paulo. Pouco antes para Luiz Gama a instituição estudantil recusou seu ingresso pela condição de ser negro em plena escravidão. Anos após, tentaram corrigir o erro, mas já era tarde. Esses três baianos jamais se separaram nos ideais, embora Castro Alves tenha, ainda jovem, se ferido gravemente em acidente com arma de fogo quando cursava o terceiro ano da faculdade, o que motivou sua ida para tratamento no Rio de Janeiro, então capital do Império e, posteriormente, para a fazenda de seu pai na Bahia onde veio a falecer ainda jovem. Mas deixou uma enorme obra poética e fundamental participação em atividades políticas na capital paulista sempre na defesa dos escravos e pugnando pela Abolição. Rui Barbosa, já em São Paulo, tivera intensa atividade política na mesma direção dos outros dois baianos. Tanto em Salvador, como no Rio de Janeiro, celebrizou -se no mesmo sentido como jornalista, político e advogado. Quando do ferimento sofrido por Castro Alves, foi seu amigo Luiz Gama, juntamente com o mulato Rufino de Oliveira, quem o conduziu em uma “marquesa” até a Estação da Luz da antiga estrada de ferro inglesa, com destino ao porto de Santos onde embarcaria em um vapor para o Rio de Janeiro, para nunca mais retornar. Castro Alves, na então distante cidade do Rio de Janeiro, nunca deixou de escrever para seus amigos em São Paulo, recordando com saudade sua mocidade alegre, poética e idealista (cf. ALMEIDA, 1960, p. 190). O que quis o destino ao fazer com que essas três talentosas vidas se cruzassem em São Paulo? Três baianos, origens sociais diferentes, três destinos diferentes, mas todos unidos, indelevelmente, nas mesmas lutas e ideais de liberdade como um todo e, particularmente, pelo fim da escravidão! É verdade que, outras personalidades históricas também atuaram lado a lado com esses três baianos. Unidos pelo mesmo ideal, juntaram-se a estes, Rangel Pestana, Lúcio de Mendonça, Raul Pompeia, André Rebouças, Bernardino de Campos, José Bonifácio Sobrinho, entre tantos outros. Mas a proximidade dos três baianos na causa comum foi um fato marcante. Embora por um período menor de dois anos, um outro personagem abolicionista, Joaquim Nabuco, com eles conviveu intensamente, inclusive com grande atuação na Loja Maçônica América. Joaquim Nabuco que destacou-se nacionalmente, entre outras coisas, na luta pela Abolição, transferiu sua matrícula de estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco para a do Recife ainda no 3º ano, o que o afastou da convivência desse grupo. Rui Barbosa, formado, retornou a Salvador. Dos três, foi Luiz Gama quem permaneceu em São Paulo até a sua morte, em 1882, atuando bravamente como advogado dos escravos, poeta, jornalista combativo e atuante maçom pela causa da liberdade. E tudo isso diante da adversidade de ser negro, ex-escravo que conquistou sua própria alforria, com cultura geral e específica jurídica, embora tenha sido vetado seu ingresso na Faculdade de Direito de São Paulo. Luiz Gama foi único, posto que, nunca se curvou ao preconceito. Também jamais cultivou qualquer espécie de ódio racial no sentido contrário, o que seria uma contradição insanavél. Fez da tribuna do direito e do jornalismo, a forma de combate à escravidão e a quaisquer forma de exploração do homem pelo próprio homem. Para atrair a atenção de escravos, colocava anúncios em jornais oferecendo-se para defesa gratuita desses. Participou da famosa convenção Republicana de Itu de 1873, que se estendeu para a capital paulista, exigiu dos convencionais que a declaração constasse não só o fim da Monarquia, bem como a implantação da República e, também, a abolição da escravatura. Sua voz ecoava rija e com autoridade diante dos convencionais, em sua maioria, fazendeiros e proprietários de escravos. Na maçonaria, precisamente na Loja América em São Paulo (regularizada em 7 de julho de 1869 e filiada ao Grande Oriente do Brasil), Luiz Gama já se encontrava quando foram iniciados Rui Barbosa e Castro Alves (os três baianos mais uma vez), recebeu diversas missões como advogado para impetrar vários habeas corpus em favor de escravos. Luiz Gama filiou-se à maçonaria em 1º de agosto de 1870, e foi elevado a Venerável da sétima e oitava administração, bem como na décima segunda e décima terceira, após 1874. Ao falecer, Luiz Gama tinha libertado mais de mil escravos (cf. BASILE, in: LINHARES, 1990 p. 285) e seu funeral, foi na ocasião, o maior acontecimento da cidade de São Paulo com amplo destaque na imprensa, fechamento do comércio local e acompanhado por uma multidão que, levando-se em conta o crescimento populacional atual, hoje estaria na casa dos milhares de participantes. No dizer de J. Romão da Silva “Luiz Gama foi um fenômeno. O homem que triunfou sobre o destino” (1954, p. 22). No desenvolvimento dessa obra, os pormenores aparecerão gradualmente, com farta e minuciosa pesquisa histórica, ricamente documentada, o que demonstra a grandeza do personagem Luiz Gama para a história do Brasil resgatando, assim, uma lamentável falha da nossa historiografia que não fez a devida justiça a esse maior e singular Advogado dos Escravos! Sumário I Menino vendido como escravo 26 Mistério sobre o pai de Luiz Gama 35 Trajetória do menino escravo 36 Obtenção da alforria 38 Cronologia 48 II Luiz Gama: homem livre na província de São Paulo 56 Luiz Gama e a Convenção Republicana de Itu 60 O ideal da maçonaria na vida de Luiz Gama 77 Relação com personalidades marcantes 85 Discípulo aguerrido 93 III Luiz Gama: o poeta 100 IV Luiz Gama: jornalista 124 Imprensa satírica e política 132 V O advogado dos escravos 154 Luiz Gama e a aplicação da legislação do Império. 181 Habeas corpus: arma jurídica de Luiz Gama 207 Originais inéditos de Habeas corpus por Luiz Gama: seu racícinio jurídico 228 VI Morte de Luiz Gama 312 VII Homenagens póstumas a Luiz Gama 330 História da denominação do nome de rua na cidade de São Paulo 333 Denominações em diversos logradouros públicos 334 Academia Paulista de Letras 335 Ferroviários 336 Herma – Largo do Arouche 337 Busto no Hall do Grande Oriente de São Paulo 337 Imprensa 340 Clube Recreativo 340 Sessão solene e quadro na Faculdade de Direito da USP – Seção Solene 340 Medalha Luiz Gama 342 Homenagem à sua mãe, Luiza Mahin 343 Árvore Genealógica de Luiz Gama 346 Palavras finais 348 Referências 354 Agradecimentos 358 I Menino vendido como escravo O sobrado, situado na rua do Bângalo, antigo nº 2, em Salvador, Bahia, onde nasceu o afro-brasileiro Luiz Gama, em 21 de junho de 1830. Desenho de M. Campos para o livro O precursor do abolicionismo no Brasil, de Sud Menucci. “[Eu] não possuo pergaminhos, porque a inteligência repele diplomas como Deus repele a escravidão”. Luiz Gama Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu na cidade de Salvador, Estado da Bahia, em 21 de junho de 1830 e, segundo ele em carta a um amigo, fora batizado em 1838 na Matriz do Sacramento, na cidade de Itaparica, próxima à referida capital. Seu tataraneto Benemar França, hoje engenheiro em São Paulo, nos informa que o endereço é rua Bângala, nº 2 (atualmente 281), no bairro de Freguesia da Sé, em Salvador, em cuja fachada foi colocada uma placa em sua homenagem. Filho de uma negra africana livre, chamada Luiza Mahin, nascida na região de Costa da Mina, que corresponde atualmente aos Estados de Gana, Togo, Benin e Nigéria, Luiza Mahin era pertencente à nação nagô. Conta a história que esta negra era magra e bonita, com dentes muito alvos e de pele reluzente. Era conhecida pelo gênio irracional e violento, circunspecta, quitandeira, entregando-se ao comércio de vendas de frutas, muito popular em Salvador. Talvez por questões étnicas e raciais, nuncase converteu ao cristianismo, sendo pagã. Era uma revolucionária natural, sempre com objetivo, libertar sua raça dos grilhões da escravidão. Foi aprisionada diversas vezes, sob suspeita de seu envolvimento em movimentos antiescravagistas. Supostamente participou da maior rebelião negra ocorrida no Brasil durante o Segundo Império, a Revolta dos Malês, em 1835. O próprio Luiz Gama descreveu sua mãe como uma mulher altiva, revolucionária, da qual certamente teria herdado o temperamento. Arthur Ramos (1956, p. 52-53), apresenta alguns dados sobre a liderança revolucionária da mãe de Luiz Gama, na Bahia, bem como a sua origem nobre africana. Vejamos: “Nestes movimentos insurrecionais, especialmente no de 1835, destacaram-se algumas figuras legítimas de líderes entre os negros. A história guardou os nomes de Luiza Mahin, de Belchior e Gaspar da Silva Cunha, de Luis Sanim, de Manuel Calafate e Aprígio, de Elesbão do Carmo (Dandará), de Pacífico (Licutan)... Eram todos negros nagôs ou haussas islamizados, que mantinham nas suas casas, também escolas e igrejas maometanas, reuniões frequentes, onde eles falavam em nagô, difundindo os preceitos do culto, ou articulando os movimentos de rebeldia. Luiza Mahin, que se julga ter sido princesa na África, era mãe do poeta negro Luiz Gama, a quem nos referiremos em outro capítulo. Não há documentos precisos a seu respeito. Sabe-se que seus pais eram reis no continente negro. Arrancada violentamente do seu meio e transportada para o Brasil como escrava, Luiza Mahin foi um destacado elemento de conspiração entre os negros oprimidos. Sua casa, na Bahia, tornou-se um dos fortes redutos de chefes da grande revolta de 1835. Ninguém sabe o seu fim. Mas o seu nome permaneceu na história e na lenda como um grande símbolo do valor da mulher negra no Brasil” (RAMOS, 1956, p. 52-53). Toda a pesquisa feita pelos historiadores acerca de Luiza Mahin tem sempre um fundo de verdade e um tanto de ficção. O historiador João José Reis, por exemplo, em sua obra Rebelião escrava no Brasil (2003), discorre sobre esse tema invocando alguns pesquisadores, chamando a atenção para a origem muçulmana da personagem, sua participação na Revolta dos Malês e fazendo, também, uma correta crítica ao posicionamento racista do historiador Pedro Calmon. Diz ele: “O equívoco talvez tenha um nome legendário e um autor involuntário. O nome, Luiza Mahin, o autor, seu filho Luiz Gama. Numa carta autobiográfica atribuída ao poeta e advogado abolicionista, ele revelou que sua mãe era oriunda da Costa da Mina, escrava e depois liberta na Bahia, onde vivia de uma quitanda. Era também ‘pagã que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã’ e, o que mais interessa aqui, ‘foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito’. [...] Se Etienne Brazil não deu nome à sua rainha, Arthur Ramos, por exemplo, afirmaria que ‘Luiza foi um destacado elemento de conspiração entre os negros oprimidos’, acrescentando: ‘Sua casa, na Bahia, tornou-se um dos fortes redutos de chefes da grande revolta de 1835’. Onde Ramos foi buscar essa informação, desconheço. O autor promoveu o personagem descrito pelo filho: a mãe deixava de ser apenas envolvida nas conspirações baianas, para nestas tornar-se ‘destacado elemento’ e promotora de reuniões malês em 1835. Mas embora afirmasse ter sido ela filha de ‘reis no continente negro’, Ramos abstém-se de coroá -la rainha dos rebeldes. Ramos talvez se inspirasse alguma coisa em Pedro Calmon. Esse historiador pintou o retrato mais completo, embora fictício e insuportavelmente preconceituoso, de Luiza Mahin. [...] Entretanto, à revelia de Pedro Calmon, Luiza Mahin se tornaria ‘símbolo do valor da mulher negra no Brasil’, conforme escreveu Arthur Ramos. Para confirmá-lo, em anos recentes ela tem recebido repetidas homenagens do movimento negro brasileiro, sobretudo da ala feminina, por sua suposta atuação destacada na Revolta dos Malês. Por influência da militância negra, ganhou inclusive nome de praça, não na Bahia, mas na Freguesia do Ó, bairro da cidade de São Paulo. É também presença na literatura negra brasileira das últimas décadas, reverenciada, com justiça, como símbolo de luta” (REIS, 2003, p. 301-303). Quando a mãe de Luiz Gama deixou a Bahia, fugindo da perseguição por sua participação na Sabinada (assim denominada porque foi liderada pelo médico e jornalista Francisco Sabino Vieira), não deixou paradeiro. O movimento, que desencadeou a Sabinada, aproveitou-se da reação popular contra o recrutamento militar imposto pelo governo imperial. O estopim deu-se em meio a fuga de Bento Gonçalves, do Forte do Mar, chamado hoje de Forte de São Marcelo. Soube-se que Luiza Mahin fora participar de outras revoltas no Rio de Janeiro, onde jamais dela se ouviu falar. O movimento revolucionário em Salvador, denominado Sabinada, postulava tanto a implantação da República no Brasil, como também, a libertação dos escravos, e contou com a participação de Luiza Mahin. Taunay assim a descreve: Mas a anarquia dos espíritos iria, desde os primeiros dias do novo período regencial, provocar gravíssima explosão, a da famosa Sabinada baiana, insurreição de caráter republicano, cuja cabecilha foi como tanto se sabe o desequilibrado médico Sabino Álvares da Rocha Vieira. Agiu o regente com a maior decisão e presteza. Irrupto a 7 de novembro de 1837, estava inteiramente debelado a 16 de março seguinte este movimento que custou a vida a muitas centenas de pessoas e trouxe à capital baiana longos meses de insuportável anarquia (TAUNAY, 1961, p. 252). O fim do levante da Sabinada, causou grande impacto em São Paulo. Por isso, foi realizada, na data de 5 de abril de 1838, uma sessão extraordinária na Câmara de São Paulo para receber o comunicado do Presidente da Província, de que na cidade de Salvador, se “restabelecera” o império da lei. O presidente paulista conclamou os cidadãos a manifestarem o regozijo iluminando por três dias as fachadas de suas casas. Duas solenes missas Te Deum foram celebradas na Catedral da Sé: uma pela derrota da Sabinada e outra pelo aniversário de ascensão ao trono de D. Pedro I. O historiador João José dos Reis (2003), descreve detalhadamente dois fatos importantes que ocorreram por ocasião das Revoltas dos Malês (1835) e da Sabinada (1837), sendo o primeiro deles, a crueldade das penas impostas aos escravos, e o segundo a impressionante influência pelo efeito produzido no comportamento da sociedade na Bahia pelas ações dos movimento de batuques africanos, relacionados com as revoltas ou quaisquer movimentos de resistência, a ponto dos defensores da escravidão, ficarem temerosos tão logo os sons dos batuques começassem a soar pela cidade. Essas revoltas dos negros na Bahia, cuja população era composta majoritariamente de escravos, acabaram por estabelecer um medo generalizado entre a população branca. Quem bem relata o fato é Flávio dos Santos Gomes (2006, p. 213): “O medo esteve presente o tempo todo em 1838. Autoridades, fazendeiros, lavradores e a população branca em geral temiam as consequencias de um grande levante, ainda mais liderado por africanos. As histórias desse medo e de outros tinham origens próprias. Embora temores relativos às insurreições escravas não tenham se iniciado naquele episódio, a década de 1830 foi marcada por um “terror”. O ano de 1835 e os que imediatamente se seguiram foram decisivos na trajetória de medos, não só no Rio de Janeiro,mas também em outras províncias”. A história não esquece de seus melhores personagens e, no caso de Luiza Mahin, 150 anos após o seu desaparecimento, o prefeito da cidade de São Paulo, Mário Covas, natural da cidade de Santos, tradicionalmente libertária e reconhecido maçom, baixou o decreto nº 20.723, de 6 de março de 1985, pelo qual deu o nome da heroína negra a uma praça na Vila Cardoso, no bairro de Freguesia do Ó, na capital. Mistério sobre o pai de Luiz Gama Luiz Gama jamais revelou o nome de seu pai. Consta que era um fidalgo de origem portuguesade uma das principais famílias baianas, muito rico e, ao mesmo tempo, esbanjador volúvel a ponto de ficar reduzido à pobreza extrema. Sempre que era questionado sobre a origem racial de seu pai, Luiz Gama dizia não poder afirmar ser realmente branco “porque tais afirmativas neste país constituem grave perigo durante a verdade, no que consume a melindrosa presunção das cores humanas” (SUD MENUCCI, 1938, p. 21). Luiz Gama, ao referir-se a seu pai dizia que, nos primeiros tempos, era carinhoso. Todavia, quando contava com somente dez anos de idade, em 1840, seu pai mandou que se vestisse e o conduziu ao porto de Salvador, em companhia de um amigo de nome Luiz Quintella, e vendeu-o como seu escravo, embarcando-o no navio de nome Saraiva, que partiu com destino ao Rio de Janeiro. Após a conversa do pai com o comandante da embarcação, no tombadilho, afastou-se para entrar no bote, deixando Luiz Gama a bordo. Ao ser desembarcado no porto do Rio de Janeiro, em um navio carregado de escravos, destacado com um grupo menor, como se fosse um lote de mercadoria, foi encaminhado a um negociante português de nome Vieira, dono de uma loja de velas na Candelária, esquina com a rua do Sabão. Este comerciante português de baixa estatura, circunspecto e enérgico, trabalhava também com escravos vindos da Bahia para revendê-los por comissão. Mas o destino começava a se fazer caprichoso para Luiz Gama, porque esse comerciante português o levou para a sua casa, por ser ainda um menino, para fazer companhia para o seu filho, um menino também, e algumas filhas já crescidas. Além disso, sua esposa, uma perfeita matrona, era cheia de piedade. Ao adentrar nesse ambiente por volta das 17h, todas as mulheres a ele se afeiçoaram imediatamente, mandaram-no se lavar, vestiram-no, deram- lhe comida e o fizeram dormir em boa cama. Luiz Gama pela vida inteira lembrou-se com carinho dessa boa acolhida. Porém, dias mais tarde, o português Vieira o vendeu a um negociante contrabandista de escravos, o alferes Antônio Pereira Cardoso o mesmo que, em 1870, como fazendeiro do município de Lorena, na província de São Paulo, no momento em que estava para ser preso por ter matado de fome alguns escravos, suicidou-se aos 70 anos de idade com um tiro de pistola. Este algoz comprara Luiz Gama que estava em um lote com mais de 100 escravos, pois seu comércio era de grandes dimensões, trazendo-o para São Paulo por via marítima até o porto de Santos. Trajetória do menino escravo Ao ser desembarcado no porto de Santos, com apenas dez anos de idade e saído de uma infância trágica, descalço, desamparado, faminto, conduzido em meio a um bando de escravos, subiu a serra de Cubatão, por trilhas tortuosas e íngremes, enfrentando mosquitos, feras e intempéries, com destino à cidade de Campinas. Em Campinas e em Jundiaí, vários compradores de escravos para a lavoura rejeitaram Luiz Gama pela simples circunstância de sua origem baiana. Naquela época, ser negro e baiano significava uma temeridade para o senhor de escravos, devido às notícias das constantes revoltas em Salvador; esses negros eram considerados “rebeldes”, o que poderia trazer problemas para o trabalho servil, além do risco de “contaminação” da sociedade escravocrata com ideais libertários. Finalmente, um senhor de provecta idade, Francisco Egydio de Souza Aranha, pai do falecido Marquês de Três Rios, depois de o haver escolhido para a compra, afagou-o dizendo que ele seria um bom pajem para seus pequenos filhos, mas não o queria nem de graça, pois com certeza não seria por acaso que o teriam vendido tão pequeno. Curioso destino esse! Anos após, quando Luiz Gama já era adulto, ouvido e respeitado, esse mesmo senhor o teve como um dos seus amigos mais considerados. Como não foi vendido, Luiz Gama em companhia de outro escravo, de nome José que era sapateiro, foi devolvido para a casa de seu proprietário, o senhor Cardoso, na província de São Paulo. Um sobrado na rua do Comércio, nº 2, próximo à igreja da rua Direita. Ali, Luiz Gama aprendeu os ofícios de copeiro, sapateiro, lavador, engomador e costureiro, mas continuava analfabeto. Dentro de um contexto adverso, o destino de Luiz Gama, em 1847, foi favoravelmente alterado quando, na casa do senhor Cardoso, veio morar um hóspede humanista, o menino de nome Antônio Rodrigues de Araújo, que se tornou advogado e, depois, magistrado de muito valor, que acabou residindo em Mogi Guaçu, no interior da então província de São Paulo. Esse jovem Antônio, de mente avançada e contrário ideologicamente à escravatura, estabeleceu estreita amizade com Luiz Gama e ensinou-lhe as primeiras letras, bem como aritmética e mais alguns conhecimentos humanistas. Obtenção da alforria Luiz Gama, com mente privilegiada e ávido por saber, foi alfabetizado em apenas um ano e, já no ano seguinte, em 1848, secretamente, passou a obter provas irrefutáveis de sua condição de homem livre, argumentando com o fato de seu progenitor ter sido homem livre e sua mãe negra liberta, bem como o irrefutável aspecto na lei de 1831 que, numa penada, tornou ilegal a escravidão no Brasil, ao considerar como pirataria o comércio de africanos. Houve, nesse período, o testemunho de dois episódios ocorridos com Luiz Gama. O sr. Antônio dos Santos Oliveira fez os relatos, ouvidos da boca do próprio pai. Luiz Gama, depois que o amigo lhe ensinara os primeiros rudimentos, fez tão rápidos e surpreendentes progressos que passou, por sua vez, a ensinar os filhos do alferes Cardoso, conseguindo alfabetizá-los com a máxima brevidade. Um dia, já em 1848, Luiz Gama abordou o alferes pedindo que lhe concedesse a sua carta de alforria, em virtude do trabalho que tivera para ensinar os filhos. – Alforria por isso?, escandalizou-se o interpelado. Eu comprei você para que trabalhasse para mim, e você nada mais está fazendo do que cumprir a sua obrigação. – O senhor comprou-me para o trabalho braçal e manual. Não está nas obrigações de um escravo o trabalho intelectual, que é muito mais difícil. Pois bem, nesse caso, vou levar a questão aos tribunais. O senhor bem sabe que eu não sou escravo e que nasci livre. O alferes Cardoso irritou-se e perguntou-lhe se a instrução que ele consentira que recebesse só tinha servido para criar -lhe na alma aquela absurda pretensão e para revoltar-se contra quem sempre o tratava humanamente. Luiz Gama não se deu por vencido. Reconhecia que, no fundo, o senhor era boa criatura e lhe devotava estima, como confessou depois. Mas, mesmo nessa sua primeira mocidade, como o provará mais tarde com toda a atuação de sua vida, o baianinho tinha sede ardente de liberdade. Não permaneceria acorrentado a uma injustiça por meras preocupações sentimentais e não podia aceitar que lhe negassem seu direito legítimo. Fugiu da casa do amo, “depois de obter ardilosa e secretamente provas inconcussas de sua liberdade”. Este fato, é um ponto crucial de sua saga, pois Luiz Gama comprovou cabalmente a sua qualidade de homem livre. Seria preciso não conhecer os antecedentes do alferes Cardoso para admitir a hipótese de que este tivesse cedido a considerações altruísticas, num tempo em que ninguém as usava, e tivesse recuado no seu propósito de reconquistar o moleque. E é o próprio Luiz Gama quem mostra a qualidade de teima do senhor, quando relatou, por que razão suicidou-se o alferes, no ato de o prenderem por haver matado alguns escravos de fome, por terem sido mantidos por muito tempo em cárcere privado. O senhor Antônio dos Santos Oliveira é filho de Pedro Antônio Rodrigues de Oliveira, funcionário que, durante muitos anos, ocupou o cargo de porteiro do fórum de nossa capital, e que foi o primeiro amigo que Luiz Gama conquistou na província de São Paulo. Luiz Gama acabava de chegar do Rio. Encontraram-se os dois meninos, que deviam ter mais ou menos a mesma idade, no Largo da Misericórdia, nascendo entre ambos uma viva simpatia. Ligaram-se em íntima camaradagem, amizade que nunca mais se arrefeceu e que durou até a morte de Luiz Gama, sempre com a mesma força e com amesma lealdade dos primeiros dias. Pedro Antônio teve ocasião de prestar no fórum inúmeros serviços ao amigo, ajudando-o nos seus processos forenses, em defesa da causa negra. O senhor Antônio dos Santos Oliveira que, na sua infância e adolescência, conheceu Luiz Gama e frequentou sua casa, no Brás, publicou em 1904 com o sr. João Rosa da Cruz, a 3ª edição das Trovas burlescas de Getulino. Nesse contexto, depois de sua chegada a São Paulo, alistou-se como soldado da milícia estadual. Isto aos 18 anos de idade. Sud Menucci (1938, p. 19-26), transcreve uma famosa carta que Luiz Gama endereçou a Lúcio de Mendonça em 25 de julho de 1880. Essa carta, na realidade, constitui o mais importante e talvez único documento completo sobre a odisseia do grande tribuno, escrita de próprio punho como se fosse sua autobiografia, e é dever de fidelidade histórica e analítica transcrevê-la por inteiro: “São Paulo, 25 de julho de 1880. Meu caro Lúcio, Recebi o teu cartão com a data de 28 do pretérito. Não me posso negar ao teu pedido, porque antes quero ser acoimado de ridículo, em razão de referir verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelas ocultar, de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes e que sempre eu os trouxe de memória. Nasci na cidade de S. Salvador, capital da Província da Bahia, em um sobrado da rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguesia de Sant’Ana, a 21 de junho de 1830, pelas 7 horas da manhã, e fui batizado, oito anos depois, na Igreja Matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica. Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina, (nagô de nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa. Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que me deram sinais certos, que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma ‘casa de dar fortuna’, em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses ‘amotinados’ fossem mandados por fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais pude alcançar a respeito dela. Nesse ano, 1861, voltando a São Paulo e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe os versos que com esta carta envio-te. Meu pai não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste País constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome. Ele foi rico; e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias (agrupamentos de má índole) e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e, reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luiz Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho Saraiva. Remetido para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu carregado de escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro português, de nome Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da Candelária, canto da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspecto e enérgico, que recebia escravos da Bahia, por comissão. Tinha um filho aperaltado, que estudava em colégio; e creio que três filhas já crescidas, muito bondosas, muito meigas e muito compassivas, principalmente a mais velha. A senhora Vieira era uma perfeita matrona: exemplo de candura e piedade. Tinha eu dez anos. Ela e as filhas afeiçoaram-se de mim imediatamente. Eram cinco horas da tarde quando entrei em sua casa. Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais nova, deram-me de cear e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia, que era mucama da casa. Sempre que me lembro desta boa senhora e de suas filhas vêm-me as lágrimas aos olhos, porque tenho saudades do amor e dos cuidados com que me afagaram por alguns dias. Dali, saí derramando copioso pranto, e também todas elas, sentidas de me verem partir. Oh! Eu tenho lances doloridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires. Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antônio Pereira Cardoso, o mesmo que, há oito ou dez anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de o prenderem por ter morto alguns escravos à fome, em cárcere privado, e já com idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja bala atravessou-lhe o crânio. Este alferes, Antônio Pereira Cardoso, comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta Província. Como já disse, tinha eu apenas dez anos; e, a pé, fiz toda a viagem de Santos até Campinas. Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e por todos repelido, como se repelem coisas ruins, pelo simples fato de ser eu ‘baiano’. Valeu-me a pecha! O último recusante foi o venerando e simpático ancião Francisco Egídio de Souza Aranha, pai do exmo. conde de Três Rios, meu respeitável amigo. Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse: – Hás de ser um bom pajem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste? – Na Bahia, respondi eu. – Baiano? – exclamou admirado o excelente velho. – Nem de graça o quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno. Repelido como ‘refugo’, com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro, voltei para a casa do sr. Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio, nº 2, sobrado, perto da Igreja da Misericórdia. Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar. Em 1847, contava eu 17 anos, quando para a casa do sr. Cardoso veio morar, como hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade de Campinas, onde morava, o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior, hoje doutor em Direito, ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi Guaçu, onde é fazendeiro. Fizemos amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar-me as primeiras letras. Em 1848, sabendo ler e contar alguma coisa, e tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, que, aliás, votava -me a maior estima, e fui assentar praça. Servi até 1854, seis anos, cheguei a cabo de esquadra graduado, e tive baixa de serviço, depois de responder a conselho, por ato de suposta insubordinação, quando me tinha limitado a ameaçar um oficial insolente, que me havia insultado e que soube conter-se. Estive, então, preso 39 dias, de 1º de julho a 9 de agosto. Passava os dias lendo e às noites sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos olhos a imagem de minha querida mãe. Uma noite, eram mais de duas horas, eu dormitava; e em sonho vi que a levavam presa. Pareceu-me ouvi-la distintamente que chamava por mim. Dei um grito, espavoridosaltei da tarimba; os companheiros alvorotaram-se; corri à grade, enfiei a cabeça pelo xadrez... Era solitário e silencioso e longo e lôbrego o corredor da prisão, mal- alumiado pela luz amarelenta de enfumarada lanterna. Voltei para a minha tarimba, narrei a ocorrência aos curiosos colegas; eles narraram-me também fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi. Durante o meu tempo de praça, nas horas vagas fiz -me copista; escrevia para o escritório do escrivão major Benedito Antônio Coelho Neto, que se tornou meu amigo; e que hoje, pelo seu merecimento, desempenha o cargo de oficial-maior da Secretaria do Governo; e, como amanuense, no gabinete do exmo. senhor conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, que aqui exerceu, por muitos anos, com aplausos e admiração do público em geral, altos cargos na administração, polícia e judicatura, e que é catedrático da Faculdade de Direito, fui eu seu ordenança; por meu caráter, por minha atividade e por meu comportamento, conquistei a sua estima e a sua proteção; e as boas lições de letras e de civismo, que conservo com orgulho. Em 1856, depois de haver servido como escrivão perante diversas autoridades policiais, fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde servi até 1868, época em que por ‘turbulento e sedicioso’ fui demitido a ‘bem do serviço público’, pelos conservadores, que então haviam subido ao poder. A portaria de demissão foi lavrada pelo dr. Antônio Manuel dos Reis, meu particular amigo, então secretário da Polícia, e assinada pelo exmo. dr. Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros atos semelhantes, foi nomeado desembargador da Relação da Corte. A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas ideias; e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os reis. Desde que me fiz soldado, comecei a ser homem; porque até os dez anos fui criança; dos dez aos 18, fui soldado. Fiz versos; escrevi para muitos jornais, colaborei em outros literários e políticos, e redigi alguns. Agora chegou ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no Ipiranga, à rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista principiante; eu, como simples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime. Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para ti, que me estimas deveras. Teu Luiz”. Esse documento é considerado a mais preciosa autobiografia do personagem Luiz Gama. Essa carta de Luiz Gama para seu amigo e confessor Lúcio de Mendonça foi a ele encaminhada em 25 de julho de 1880 e, dias após, em 21 de agosto de 1880, mereceu resposta do amigo de São Gonçalo do Sapucaí, no Estado de Minas Gerais. Dada a sua importância, a carta de Lúcio de Mendonça foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo, na comemoração do 13 de maio de 1920 e, posteriormente, quando do centenário de nascimento de Luiz Gama, novamente publicada pelo mesmo periódico, em 21 de junho de 1930, tudo conforme se confere dos fac-símiles na presente obra. Cronologia Para melhor compreensão do fenômeno Luiz Gama (a expressão utilizada mesmo como fenomeiko na filosofia grega) dentro do cenário do século XIX, é preciso conhecer a sua cronologia. Posterior à introdução do escravagismo no Brasil e contemporânea aos grandes movimentos abolicionistas e predecessora das graves consequências após sua morte. Utilizaremos, como referência, a excelente cronologia de Luiz Gama preparada por sua notável biógrafa Lígia Fonseca Ferreira, (2000): 1830 – Nasceu, às 7 horas da manhã do dia 21 de junho, num sobrado da rua do Bângala, na Freguesia de Sant’Ana, em Salvador, o afro-brasileiro Luiz Gonzaga Pinto da Gama. Filho natural de uma quitandeira africana livre, oriunda de Costa da Mina, Luiza Mahin, e de um fidalgo, pertencente a uma tradicional família baiana, de origem portuguesa, cujo nome jamais será revelado. Esse e outros dados relevantes de sua vida foram relatados por Luiz Gama em carta para o amigo Lúcio de Mendonça, autor do primeiro ensaio biográfico sobre o defensor da Abolição e da República no Brasil. [...] 1835 – Eclosão da Revolta dos Malês em Salvador, a mais importante insurreição negra das Américas, ocorrida em contexto urbano e protagonizada por africanos muçulmanos. Luiza Mahin, refratária à doutrina cristã, teria supostamente participado do levante, já que, conforme afirma seu filho, por várias vezes fora presa como suspeita de instigar revoltas escravas. 1837 – Eclosão da Sabinada, na qual teriam se envolvido os pais de Luiz Gama. Luiza Mahin foge de Salvador para o Rio de Janeiro, em virtude das perseguições de que se tornaram vítimas, na Bahia, os africanos turbulentos. [...] 1854 – Julgado por ato de suposta insubordinação e condenado a 39 dias de prisão, o cabo de esquadra Luiz Gama abandona a carreira militar. 1856 – É nomeado amanuense da Secretaria de Polícia de São Paulo, onde permaneceria por mais de 12 anos. Pela segunda vez, busca por sua mãe no Rio de Janeiro. 1858 – Época provável da aproximação entre Luiz Gama e o poeta, professor de Direito, José Bonifácio, ‘o Moço’, um de seus amigos diletos, com o qual manteve afinidades políticas e literárias ao longo da vida. 1859 – Foi publicada a primeira edição das Primeiras trovas burlescas de Getulino, em São Paulo. Nasceu, em 20 de julho, Caio Graco Pinto da Gama, filho de Luiz Gama e da negra Claudina Fortunata Sampaio, com quem viveu maritalmente por mais de dez anos. 1861 – Publicação da segunda edição ‘correcta e augmentada’ das Primeiras trovas burlescas de Getulino, no Rio de Janeiro. Aproveitando-se da ocasião, Luiz Gama efetua a terceira e última tentativa de encontrar Luiza Mahin, naquela cidade. Dali por diante, o ex-escravo autodidata, agora membro da República das Letras, dedicava-se exclusivamente à imprensa, canal mais adequado para sua brilhante, mas sempre polêmica, defesa das ideias liberais, republicanas e abolicionistas. [...] 1867 – Acirram-se os movimentos humanitários e as pressões internacionais para o fim da escravidão no Brasil. A Junta Francesa para Emancipação dos Negros, composta por intelectuais ligados à Maçonaria, encaminha missiva ao governo brasileiro, exortando-o a apressar o processo no Brasil. Obteve do Império a resposta de que se tratava apenas de uma questão de ‘forma e oportunidade’, uma vez encerrado o conflito com o Paraguai. Essa promessa e a Fala do Trono, de maio de 1867, infundiram esperanças vãs nos abolicionistas brasileiros. Encerrou -se em setembro a publicação de o Cabrião. [...] 1869 – Ano de intensa atividade na imprensa, na política e no foro. Luiz Gama firmou-se como figura das mais populares e influentes da cidade de São Paulo. Sob os auspícios da Loja América, os ‘professores’ Luiz Gama e Olímpio da Paixão inauguraram, em junho, uma escola gratuita para crianças e um curso primário noturno para adultos na rua 25 de Março. Ao lado de Rui Barbosa, funda e torna-se redator do Radical Paulistano, órgão do Partido Liberal Radical Paulista. Profere, diante de centenas de pessoas, a primeira Conferência Pública organizada pelo Clube Radical em São Paulo, versando sobre a extinção do poder moderador. Seus artigos no Radical põem a nu a arbitrariedade de advogados e juízes no trato com as ‘causas de liberdade’, ao mesmo tempo em que revelam sua sólida cultura jurídica. [...] 1871 – Promulgação da Lei do Ventre Livre em 28 de setembro. A Loja América cria uma biblioteca popular à rua do Rosário. Luiz Gama tornou-se o primeiro vigilante (vice-presidente) da Loja América. No ano da Comuna de Paris, Luiz Gama foi acusado de ser ‘agente da Internacional’e de fomentar insurreições escravas. O Clube Radical Paulistano passa a se chamar Clube Republicano de São Paulo. [...] 1876 – Colaborou em O Coaracy, tornando-se logo depois proprietário e redator do O Polichinelo, semanário humorístico publicado aos domingos e que circulou de 23 de abril a 31 de dezembro, com ilustrações de Huascar de Vergara. O periódico pretendia preencher ‘lacuna sensível no jornalismo de São Paulo’, trazendo de volta o riso e a autonomia com relação aos partidos políticos. No ‘Programa’, apresentado em versos no primeiro número, reconheceu-se a fibra do autor das Primeiras trovas burlescas: ‘Do programa a razão tendo por data,/Devo agora tratar, sem matinada,/Dos fatos, dos heróis, e dos sucessos,/Que devem figurar nos meus processos,/E de tudo, por alto, dar notícia,/Que eu sou homem com faro de polícia’. Além deste, o jornalista publicou em seu periódico alguns poemas satíricos – ‘Cena parlamentar (nº 2)’, ‘O rei cidadão (nº 6)’, ‘Miscelânea política (nº 10)’, ‘Espiga (nº 11)’, ‘O moralista (nº 16)’ – e um sentimental – ‘A Maria, epístola familiar (nº 19)’. Dom Pedro II visitou a Exposição do Centenário da Independência dos Estados Unidos, no Estado da Filadélfia [EUA]. O fato foi caricaturado no décimo número de O Polichinelo. Publicado no Rio de Janeiro na Revista Ilustrada, de Angelo Agostini. 1877 – Estabeleceu banca de advogados, onde atuou até o final da vida, com Antônio Carlos Manoel José Soares e, mais tarde, Antônio Januário Pinto Ferraz. [...] 1880 – Comício de Luiz Gama e Martinho Prado Júnior, apoiando a Revolta do Vintém no Rio de Janeiro, em janeiro, com a reunião de mais de 100 pessoas no Largo da Sé, apesar de forte temporal. Instado por Lúcio de Mendonça, enviou-lhe em 25 de junho uma carta dando informes autobiográficos. Nela afirmava ter já ‘arrrancado das garras do crime’ mais de 500 escravos. Os jornalistas mulatos José do Patrocínio e Ferreira de Meneses, amigos de Luiz Gama, criaram associações emancipadoras no Rio de Janeiro. Surge a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, presidida por Joaquim Nabuco, que também lançou o ‘Manifesto abolicionista’, amplamente divulgado no País e no exterior, em francês e inglês. 1881 – Lúcio de Mendonça publicou o artigo biográfico “Luiz Gama” no Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1881, de José Maria Lisboa. Lúcio de Mendonça prestou homenagem ao “bom Republicano” cuja saúde, minada pela diabetes, dava como próximo seu fim. Este artigo foi reproduzido em diversos jornais e revistas do País até o final dos anos 30. Luiz Gama foi uma referência na campanha republicana e abolicionista. Fundação da Caixa Emancipadora Luiz Gama em São Paulo, por iniciativa de João Brasil Silvado. (...) Em “Questão Jurídica”, sob aparente análise jurisprudencial, Luiz Gama, mestre em levantar máscaras, demonstrou a forma pela qual o falecido ex-ministro da Justiça, Nabuco de Araújo (pai de Joaquim Nabuco, líder abolicionista em evidência), havia permitido a reescravização ilegal de africanos, ato contraditório com as crenças que o estadista proclamava. (A ‘Questão Jurídica’ foi reproduzida em jornais da Corte e de outras províncias). Na ‘Carta a Ferreira de Meneses’, farto de se defrontar com a Justiça de um País que não dá mostras de caminhar para a Abolição, o advogado negro indignou-se ferozmente com o linchamento de quatro escravos, para ele ‘quatro heróis’, que mataram um fazendeiro. Atribuída a Luiz Gama a frase: ‘Perante o Direito, é justificável o crime de homicídio na pessoa do senhor’. 1882 – Luiz Gama deu mais uma contribuição à construção do imaginário republicano aproximando a imagem de Tiradentes à de Cristo, no artigo ‘À forca, o Cristo da multidão’, publicado na folha comemorativa Tiradentes, em 21 de abril, e, uma semana depois, em A Província de São Paulo. A Gazeta da Tarde, propriedade de José do Patrocínio, publica na edição de 8 de agosto uma representação de Luiz Gama ao imperador, cuja finalidade era ‘implorar providências administrativas’ a fim de regularizar a situação de dez negros alforriados, mas ainda privados de sua liberdade por famigerado senhor de Minas. Reunindo suas últimas energias, Luiz Gama fundou o Centro Abolicionista de São Paulo, com apoio de sua Loja Maçônica. Foram, entre outros, sócios do Centro: Júlio de Castilhos, Alberto Bento e João Brasil Silvado. Em 19 de agosto surgiu o primeiro número de Ça ira, órgão dessa associação, redigido por Raul Pompeia, Alcides Lima e Ernesto Correa. Luiz Gama morre em 24 de agosto. A folha do Centro Abolicionista passou a chamar-se Luiz Gama. Pompeia, que o idolatrava, retratou-o de forma memorável, deixando registro comovente dos últimos dias e horas daquele ser ‘adorável’, que morria ‘muito pobre’, porém como benemérito cidadão. Segundo as crônicas da época, seu funeral foi o maior, jamais visto na cidade de São Paulo. Nele acotovelavam-se negros e brancos, cativos e doutores, gentalha e figurões abolicionistas e senhores de escravos, conservadores e republicanos, brasileiros imigrantes. Durante meses, os jornais paulistanos deram notícia das incontáveis homenagens póstumas, por vezes festivas, que ocorreram por toda a província e pelo País. 1883 – Primeira marcha cívica ao túmulo de Luiz Gama, no Cemitério da Consolação, ato que durou até o final dos anos 1930. Joaquim Nabuco publica O Abolicionismo. Em maio, José do Patrocínio e André Rebouças criam a Confederação Abolicionista no Rio de Janeiro. O ex-promotor e juiz municipal Antônio Bento e seu grupo, os ‘caifases’, tomaram a frente do movimento abolicionista em São Paulo e passaram a organizar fugas de escravos com forte apoio popular (FERREIRA, L., 2000, p. LXXIII -LXXXVII). A carta que Luiz Gama endereçou ao seu amigo Lúcio de Mendonça como verdadeira autobiografia e a bem elaborada cronologia feita pela biógrafa Lígia Fonseca Ferreira, em seu conjunto, dão a ideia da dimensão gigantesca do calvário e da grandeza desse verdadeiro Spártaco brasileiro. Nenhum outro nome pode suplantá-lo no cenário da luta abolicionista, seja nos embates pela imprensa, nas reuniões políticas, no tribunal, na esteira de seus infindáveis processos de habeas corpus para soltura e alforria dos negros escravizados. II Luiz Gama: homem livre na província de São Paulo Claudina Fortunato Sampaio, esposa de Luiz Gama, em casamento oficializado em 1869, após dez anos de nascimento do único filho do casal, Benedicto Graccho Pinto da Gama, nasxido em 20 de julho de 1859. Ilustração de M. Campos, para o livro O precursor do abolicionismo no Brasil, de Sud Menucci. “Evita a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o oceano que se aproxima das costas para corroer os penedos” Luiz Gama Vencida essa primeira e sofrida parte da saga de Luiz Gama, o destino lhe reservou, é bem verdade, com o mérito do seu gênio, uma vida de aprendizado, lutas e vitórias, tendo sempre como farol, a liberdade do cativo, o ideal de justiça, de democracia, de implantação da República e do fim da escravidão. Após ter completado seus 18 anos de idade, iniciou-se uma nova e absolutamente distinta vida para Luiz Gama, num processo contínuo, evolutivo, árduo de lutas, resistências e de aprofundamento no estudo do Direito. A sua vinculação a diversos órgãos de imprensa como jornalista, ativista político em diversas sociedades, algumas secretas, jornalista, crítico, sócio -proprietário de alguns órgãos de imprensa satírica, soma-se ao corajoso trabalho de valente advogado e vibrante tribuno. Autodidata e interessado em se aprimorar intelectualmente, não demorou muito para alcançar contatos pessoais importantes, que lhe abriram as portas para o novo emprego: o serviço público. Passou a exercer, na Secretaria de Polícia, as funções de amanuense, no gabinete de Furtado de Mendonça, considerado por muitos – e pelo próprio Luiz Gama – como o seu “protetor”. Enquanto fazia cópias e registros dos documentos da Secretaria, ele se dedicava, também, aos estudos, especialmente às leis. Com a ajuda de Furtado de Mendonça,obteve o cargo de bibliotecário interino da Faculdade de Direito de São Paulo. Além disso, como funcionário público, Gama foi, por várias vezes, requisitado para compor o corpo de jurados do Tribunal do Júri. Além de garantir sua sobrevivência por meio do emprego público, Luiz Gama se preparou para o mundo jurídico. Ao mesmo tempo, escrevia para periódicos como O Diabo Coxo, que ele próprio criou, O Cabrião, O Polichinelo, O Coaraci e, mais tarde, com Rui Barbosa e Américo de Campos, O Radical Paulistano. Sob pseudônimos, tais como Barrabás e Getulino, lançava pelos jornais, críticas à sociedade escravista e à política do governo monárquico, deixando evidente o seu ideal por uma nação republicana. Em 1869, quando seu filho único Benedicto Graccho, contava com dez anos de idade, Luiz Gama oficializou seu casamento com Claudina Fortunato Sampaio, como ele também negra. Seus padrinhos de casamento na singela cerimônia foram os maçons Antonio Carlos e Furtado de Mendonça, ambos catedráticos da Faculdade de Direito, sendo o primeiro, na ocasião, venerável da Loja América. Seu filho, como veremos adiante, honrou sobremaneira o nome de seu pai, por toda a vida, tornando-se engenheiro eletricista e importante oficial do Exército Brasileiro. Era a boa árvore dando bom fruto! Luiz Gama e a Convenção Republicana de Itu O Manifesto Republicano de 1870, no Rio de Janeiro, subscrito entre outros pelas lideranças de Luiz Gama, Américo de Campos e Bernardino de Campos constituiu-se, por sua força e projeção nacional, numa irreversível marcha em direção à abolição total da escravidão, eis que esses pensadores sustentavam a ideia de que a causa republicana era inseparável da causa abolicionista. A força desse pensamento afinal prevaleceu, como a história demonstrou. Como bem lembrou Santos em sua obra: “A República do Manifesto de 1870 já não é bem aquela que se concretizava nas duas extremas negações de Luiz Gama – ‘a Terra do Cruzeiro sem rei e sem escravos’ – nem tampouco aquela outra de Bernardino de Campos, que, sem a Abolição, seria apenas uma utopia” (SANTOS, J. M. dos, 1942, p. 320). Perdigão Malheiros, consagrado escritor sobre a história jurídico-social da escravidão no Brasil e que faleceu em 1881, portanto antes mesmo da Abolição, também abordou, a um só tempo, o conceito econômico da escravidão e a idiossincrasia da servidão de que falava Étienne de La Boétie em plena Renascença. Vejamos: “O escravo era apenas um instrumento de trabalho, uma máquina; não passível de qualquer educação intelectual e moral, sendo que mesmo da religiosa pouco se cuidava. Todos os direitos lhes eram negados (...) Eram reduzidos à condição de coisa, como irracionais, aos quais eram equiparados, salvas certas exceções. Eram até denominados, mesmo oficialmente, peças, fôlegos vivos, que se mandavam marcar com ferro quente ou por castigo, ou ainda por sinal como gado. Sem consideração alguma na sociedade, perde o escravo até a consciência da dignidade humana, e acaba quase por acreditar que ele não é realmente uma criatura igual aos demais homens livres, que é pouco nais que um irracional. E procede em conformidade desta errada crença, filha necessária da mesma escravidão. Outras vezes o ódio, a vingança o excitam a crueldades. Daí essa luta eterna entre o escravo e o senhor, e conseguintemente com a sociedade; daí a necessidade de medidas excepcionais para resguardarem e protegerem os senhores contra os escravos, para defenderem a sociedade, e também contra os senhores em proteção aos escravos” (MALHEIROS, Perdigão, 1944, p. 27, Tomo II). Entretanto, Édison Carneiro, que efetuou comentário elogioso sobre o livro de Perdigão Malheiros, A Escravidão no Brasil, publicado no Diário de Notícias de 6 de agosto de 1944, e inserto na abertura do Tomo I da edição de 1944 da referida obra, observou que ela, ao seu final, “contém o plano do próprio Perdigão Malheiros para a extinção do elemento servil, pela transformação gradual do trabalhador escravo em trabalhador livre”. Tal concepção é sintomática pois, embora contemporâneo de Luiz Gama que faleceu no ano seguinte, a postura e perspectiva de luta eram bem divergentes, uma vez que este, como devidamente explicitado na presente obra, lutava ardorosamente, pelo fim imediato da escravidão e da própria Monarquia, sem nenhuma concessão de prazo para a propalada transição do trabalho servil para o trabalho livre. Lúcio de Mendonça, praticamente confessor de Luiz Gama, como visto na carta que este lhe encaminhou a 25 de julho de 1880, transcrita na íntegra por sua importância e originalidade documental, 40 anos após, já com o seu amigo e líder abolicionista morto, comenta em brilhante síntese a história do Paladino da Abolição, no famoso artigo “Uma Página Antiga”, publicado em 13 de maio de 1920 no jornal O Estado de S. Paulo: “Recordo-me como testemunha presencial de outra ocasião em que o nobre vulto de Luiz Gama destacou-se a toda luz. Estava reunido em São Paulo, num palácio da rua Miguel Carlos, em 3 de julho de 1872, o primeiro Congresso Republicano da Província, presidido pelo austero cidadão dr. Américo Brasiliense. Era uma assembleia imponente. Verificados os poderes na sessão da véspera, estavam presentes 27 representantes do município – agricultores, advogados, jornalistas, um engenheiro, todos os membros do Congresso, maçons, pela maior parte compenetrados da alta significação do mandato que cumpriam, tinham na sobriedade do discurso e na gravidade do aspecto a circunspeção de um Bernardo Romano. Lidas, discutidas e aprovadas as bases oferecidas pela Convenção de Itu para a constituição do Congresso, e depois de outros trabalhos, foi por alguns representantes submetido ao Congresso, e afinal aprovado, um manifesto à província relativamente à questão do estado servil. No manifesto, em que se atendia mais de conveniências políticas do partido do que à pureza dos seus princípios, anunciava-se que, se tal problema fosse entregue à deliberação dos republicanos, estes resolveriam que cada província da União Brasileira realizaria a reforma de acordo com seus interesses peculiares ‘mais ou menos lentamente’, conforme a maior ou menor facilidade na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre: que, ‘em respeito aos direitos adquiridos’ e para conciliar a propriedade de fato com o princípio da liberdade à reforma as faria sendo por base a indenização e o resgate. Pondo em discussão o manifesto, tomou a palavra Luiz Gama, representante do município de São José dos Campos. Protestou contra as ideias do manifesto, contra as concessões que nele se faziam à opressão e ao crime; propugnava ousadamente pela abolição completa, imediata e condicional do elemento servil. Crescia na tribuna o vulto do orador: o gênio, a princípio frouxo, alargava-se, acentuava-se, emergido e inspirado; estavam quebradas a calma e a serenidade da sessão, os representantes quase todos de pé, mas dominados e mudos, ouviam a palavra fogosa, vingadora e formidável do tribuno negro. Não era já um homem, era um princípio que faltava... digo mal: não era um princípio, era uma paixão absoluta, era a paixão da igualdade que fugiu! Ali estava na tribuna envergonhando os tímidos, verberando os prudentes. Ali estava, na rude explosão da natureza primitiva, o neto da África, o filho de Luiza Mahin! A sua opinião cabia vencida e cairá: mas não houve também ali um coração que se não alvorecesse do entusiasmo pelo defensor dos escravos. Dir-te-ei sempre, meu nobre amigo, que não estás isolado, no partido republicano, na absoluta afirmação da liberdade humana. Também como tu, eu proclamo que não há condições para a reivindicação deste imortal princípio, que não há contra ele nem direitos nem fatos que se respeitem. Pereal mundus, fiat justila! E é ignorar essencialmente a natureza das ‘leis de instituição’, querer que elas respeitem ‘direitos adquiridos’. Não é para Victor Hugo, nem para Castelar que apelamos: é para Savigny, o histórico. Ah! Está, em meia dúzia de pálidos traços, o perfil dogrande homem que se chama Luiz Gama. Filho de uma província que, com razão ou sem ela, não é simpática aos brasileiros do sul: emancipador tenso, violento, inconciliável, numa província fundada de escravos; sem outra família a não ser a que constituiu por si; sem outros elementos que não fossem o seu forte caráter e o seu grande talento; atirado só a todas as vicissitudes do destino, ignorante, pobre, perseguido, vendido como escravo por seu próprio pai, enjeitado pelos próprios compradores de negros, Luiz Gama é hoje em São Paulo um advogado de muito crédito e um cidadão estimadíssimo. É mais do que isso: é um nome de que se fez a democracia brasileira”. Esse é outro importante registro histórico sobre Luiz Gama na luta pela República e também pela Abolição, por isso sua famosa frase: “Terra do Cruzeiro sem rei e sem escravos”. Evaristo de Moraes, que por ter nascido no Rio de Janeiro antes da Abolição e por ter vivenciado como advogado as primeiras décadas da República e, ainda, por ser também um mestiço, aprofundou o estudo dos fatos históricos que antecederam a Lei Áurea. Demonstrou que, entre 1879 e 1880, a campanha abolicionista se desenvolveu ao lado da propaganda republicana, chamando a atenção das conferências populares dos abolicionistas- republicanos Vicente de Sousa, Lopes Trovão, José do Patrocínio, Ubaldino do Amaral e Cyro de Azevedo. E afirmou: “De quem se dizia republicano, supunha-se logo ser, também abolicionista, embora a recíproca nem sempre fosse verdadeira: André Rebouças e Joaquim Nabuco foram abolicionistas da primeira hora, mas eram e permaneceram monarquistas” (Cf. EVARISTO DE MORAES, s.d., p. 99). No que diz respeito ao movimento, em São Paulo, Evaristo de Moraes (p. 99) demonstra a diferença em relação ao Rio de Janeiro: “Em São Paulo, entretanto, nunca se julgara essencial a condição de abolicionista para ser republicano. Isto foi notado e censurado por mais de um monarquista-abolicionista e por alguns republicanos independentes”. Mais adiante: “Desde os primeiros passos para a organização do Partido Republicano em S. Paulo (1872), fez-se questão de não comprometer os novos combatentes com o credo radicalmente abolicionista. Acentuou-se esta tendência na chamada Convenção de Itu, em abril de 1873, e tornou-se declaração expressa de programa político no Congresso, reunido na capital da província, em julho do mesmo ano. Entre os componentes do Congresso, cada qual representante de um município, alguns já então se impunham no cenário da política provincial e posteriormente ocuparam posição relevante no cenário da política geral. Aludimos a Américo Brasiliense, Francisco Glycério, Luiz Gama, Cerqueira César, Campos Salles, Ubaldino do Amaral, Américo de Campos, Azevedo Marques, Jorge de Miranda, Bernardino de Campos, Quirino dos Santos, Martinho Prado Júnior” (Idem, p. 102-103). No entanto, mais adiante, Evaristo de Moraes faz questão de ressalvar a nobre posição de Luiz Gama: “O único congressista que protestou contra esta orientação foi Luiz Gama” (Ibidem, p. 104). O que este autor quis dizer, e que todos já sabem, é que Luiz Gama atrelava sua bandeira de Abolição à República. Durante a Convenção Republicana de Itu, em plena Monarquia, a maioria dos convencionais ricos fazendeiros produtores de café se dispunham somente a discutir a causa republicana, deixando a causa da Abolição para outro momento. Entendiam que as duas bandeiras juntas seriam inviáveis. Luiz Gama recusou-se a participar desse parcial entendimento. Parcial porque, como ficou demonstrado ao longo do tempo, a instalação da República e o fim da Abolição eram perfeitamente interligados. Não se poderia pensar em República com escravidão. Incompatibilidade absoluta de princípios. Sem desertar da luta, quando de duas outras reuniões dos convencionais republicanos na capital de São Paulo, Luiz Gama participou ativamente, e com sua fulminante retórica, mudou o rumo do movimento político, para que a bandeira de luta tivesse, simultaneamente, os dois significados: República e Abolição. No Brasil, era processado a passos largos o agravamento das contradições entre as diversas classes que compunham nosso tecido social, afetando diretamente o envelhecido conservadorismo colonial, sendo a Convenção de Itu um exemplo vivo desse conflito. Havia a justificativa dos conservadores de que dever-se-ia esperar o resultado da iniciativa, já em curso, da mão de obra livre importada da Europa em substituição da mão de obra escrava, preocupados em evitar o colapso da produção. Caio Prado Júnior (1974, p. 209), a respeito, diz: “Em suma, a República, rompendo os quadros conservadores dentro dos quais se mantivera o Império, apesar de todas suas concessões, desencadeava um novo espírito e tom social bem mais de acordo com a fase de prosperidade material em que o País se engajara. Transpunha-se de um salto o hiato que separava certos aspectos de uma superestrutura ideológica anacrônica e o nível das forças produtivas em franca expansão. Ambos agora se acordavam. Inversamente, o novo dominante, que terá quebrado resistências e escrúpulos poderosos até havia pouco, estimulará ativamente a vida econômica do País, despertando-a para iniciativas arrojadas e amplas perspectivas. Nenhum dos freios que a moral e a convenção do Império antepunham ao espírito especulativo e de negócios subsistirá; a ambição do lucro e do enriquecimento consagrar-se-á como um alto valor social. O efeito disto sobre a vida econômica do País não poderá ser esquecido nem subestimado”. Intensa foi a atuação política de Luiz Gama no campo da luta pela instalação do regime republicano no Brasil, atuando como membro na Convenção de Itu, recusou-se a participar da mesma. Na verdade, o Clube Republicano teve origem no Clube Radical por sua transformação em 1870. O Clube Radical fora fundado no Rio de Janeiro em 1868, influenciando dois periódicos, o do Rio de Janeiro, Correio Nacional, e o de São Paulo, Radical Paulistano. No entanto, em 1880, logo após a transformação em Clube Republicano, surgiu o jornal A República, que continha o manifesto do novo partido enfrentando o estamento do Império. Em decorrência de toda essa conjuntura política, é que se resolveu convocar as mais destacadas lideranças políticas para a Convenção de Itu. Como Luiz Gama se inseriu nesse contexto? Responde bem Carvalho (2007, p. 189): “Os republicanos de São Paulo, na maioria fazendeiros, recusaram-se, para a grande irritação e escândalo do abolicionista Luiz Gama, a incluir a Abolição em seu programa, alegando que era assunto dos partidos monárquicos”. Esse mesmo autor, pouco antes, faz sintomática observação que diz bem do ânimo nada abolicionista da maioria dos convencionais, mais interessados na República do que na Abolição, posto que fazendeiros que eram interessados estavam em manter a mão de obra escrava até o seu limite, trazendo a frase: “O liberal Silveira Martins dizia amar mais a Pátria que o negro” (Idem, p. 189). As reuniões, em sua maioria secretas, sucediam-se provocadas pelas maiores lideranças locais, tudo com o objetivo de articular o movimento capaz de derrubar a Monarquia e instalar a República. Um grupo minoritário, contando com a figura de Luiz Gama, associava o Movimento Republicano ao Movimento Abolicionista. Isso lhe custou muitos dissabores, pois as mais proeminentes lideranças representantes dos fazendeiros, pretendiam efetuar um movimento de cada vez, a começar pela República. Registrando algumas dessas reuniões preparatórias, José Maria dos Santos (1942) escreve: “Américo Brasiliense não quis ser insensível às razões do seu amigo. O encontro deles se deu na rua da Imperatriz (hoje 15 de Novembro), logo em seguida às festas de Natal e Ano Bom, no dia 10 ou 12 de janeiro. No dia 14, Brasiliense enviava por um próprio uma carta circular a cada um dos republicanos então presentes em São Paulo, convidando-os para um chá, às 7 horas da noite de 17, em casa de sua mãe, onde se hospedara. Além dos nomes acima indicados, compareceram mais
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