Buscar

O advogado dos escravos - Nelson Camara

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 250 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 250 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 250 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Nelson Câmara
3ª
EDIÇÃO
O advogado
dos escravos
Luiz Gama
MULTICULTURAL
O advogado
dos escravos
Luiz Gama
Nelson Câmara
Apoio
MULTICULTURAL
São Paulo – 2016
3ª
EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA 
O advogado
dos escravos
Luiz Gama
Copyright © 2010, 2016 by Nelson Câmara
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem a expressa
autorização do autor.
Diretor editorial
Décio Nascimento Guimarães
Editor da obra
José Augusto Altran
Diretora adjunta 
Milena Ferreira Hygino Nunes
Coordenadora científica Giséle Pessin
Design
Fernando Dias
Capa
Montagem de ilustração de Luiz Gama, em bico de pena por Angelo Agostini e trecho de quadro
“Recife, capital de Pernambuco”, em meados da década de 1820, por Johann Moritz Rugendas.
Assistente editorial Samara Moço Azevedo
Revisão 
Ariadne Patriota Bomfim
Apoio à Pesquisa Histórica/Imagens de Arquivo José Augusto Altran
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C172a Câmara, Nelson
3. ed. rev. ampl. O advogado dos escravos : Luiz Gama / Nelson Câmara. -- 3. ed. rev. ampl. – Campos
dos Goytacazes, RJ : Brasil Multicultural, 2016. Incluir paginação p. 360
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-5635-018-3
1. GAMA, LUIZ GONZAGA PINTO DA, 1830-1882 2. 
ABOLICIONISTA 3. NEGROS – BRASIL I. Câmara, Nelson II. Título
CDD 921
Instituto Brasil Multicultural de Educação e Pesquisa - IBRAMEP Av. Alberto Torres, 229 - Sala 1101
- Centro Campos dos Goytacazes - RJ
MULTICULTURAL
28035-580 - Tel: (22) 2030-7746 
E-mail: contato@brasilmulticultural.com.br
“Eu disse, uma vez, que a escravidão nacional nunca havia produzido um
Terêncio, um Epitecto, ou sequer, um Spártaco. Há, agora, uma exceção a
fazer: a escravidão, entre nós, produziu Luiz Gama, que teve muito de
Terêncio, de Epitecto e de Spártaco”.
SILVIO ROMERO (1851-1914) História da literatura brasileira ed. 2003, p.
447.
Dedico esse livro às leais companheiras em longa jornada de trabalho
profissional, Leni (Diolene Monscofsque Dourado), Dora (Maria Dores Silva
Pereira) e Raquel (Fiuza de Almeida).
Dedico também às minha irmãs Marilza, Marlene e Izabel, pelos laços de
família.
Uma menção especial para meu amigo, cunhado e médico Paulo Eduardo
Rangel, estudioso e sempre interessado nos problemas sociais.
Dedico, finalmente, a todos aqueles, advogados ou não, que conduzem sua
vida na defesa dos necessitados e da solidariedade social.
Prefácio a primeira edição
O
negro libertador dos negros
Nelson Câmara, advogado e mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade
de Direito da USP, dedica-se, também, a produzir um relato consistente e
isento de nossa História. Graças à busca de fontes legitimadoras das
informações que coletou acerca do fato mais marcante da vida brasileira até o
final do século XIX, ou seja, a escravidão. Esta narrativa não torna o
historiador Nelson Câmara um observador distante, mero relator objetivo e
frio dos fatos. Assume o papel de denunciante das mazelas de nossa História
e de promotor das figuras que enfrentaram com denodo e risco, por suas
convicções humanitárias, a defesa dos escravos e a abolição da escravidão. Já
dedicou Nelson Câmara em livro anterior intitulado Escravidão nunca mais!,
um denso capítulo à figura de Luiz Gama, o negro mais importante do século
XIX, o autodidata que foi jornalista, poeta e advogado militante, dedicado,
com inúmeros sacrifícios, a defender a liberdade dos escravos indevidamente
escravizados em afronta à lei ou criminalmente acusados em vingativa
perseguição.
O livro que agora vem a lume, em sua terceira edição, além de destacar a
multifacetada personalidade de Luiz Gama, reúne as virtudes de poeta
sensível à capacidade da ironia mais fina na edição de jornais satíricos e de
crítica política, dedica-se então, a fixar a vertente mais marcante da vida do
biografado: a coragem e
Nelson Câmara
a mais desabrida combatividade na defesa dos negros, esgrimindo
argumentos criativos de forma ferina, nos autos e na própria imprensa, ao
comentar a parcialidade e o descaso das decisões judiciais. Se a vida de Luiz
Gama é um romance que aconteceu, pode-se dizer que sua existência é uma
história que traz todos os ingredientes de um herói: filho de mulher negra
forra, lutadora e de temperamento forte, que desapareceu após a Revolução
da Sabinada na Bahia e foi, por seu pai branco, vendido como escravo e
enviado ao Rio de Janeiro.
Lutou pela própria liberdade, afirma-se, depois de muito esforço em diversos
misteres, como jornalista, e encontrou a sua marca no destino: ser advogado,
mesmo sendo rejeitado pela Academia do Largo de São Francisco. O seu
escritório no Largo da Sé passou a ser ponto de encontro dos estudantes da
Academia que o rechaçara, bem como de professores, como José Bonifácio, o
Moço, além da presença constante de líderes do movimento republicano e da
Loja Maçônica América. Sua luta incansável como advogado dos escravos
constituiu grande exemplo para os jovens Raul Pompeia, Américo de
Campos, Américo Brasiliense, Joaquim Nabuco e os baianos Rui Barbosa e
Castro Alves.
Esta é a faceta de Luiz Gama que o eterniza: O advogado dos escravos, título
da obra importante como documento que traz à tona, a prova do labor
contínuo de Nelson Câmara, fruto de intensa pesquisa nos Arquivos do
Tribunal de Justiça de São Paulo. O mais curioso e historicamente
fundamental, consiste na transcrição de dezenas de petições e processos nos
quais se verifica a sabedoria e a versatilidade de quem advogava em favor
dos desvalidos contra o peso dos interesses econômicos e contra o
preconceito de muitos juízes formados na mentalidade escravagista da época.
Este livro de Nelson Câmara passa a ser de consulta obrigatória para os
estudiosos da escravidão e da
O advogado dos escravos
Luiz Gama
vida judiciária brasileira, hino ao heroísmo de um negro que lutou em favor
da Justiça contra a violência da submissão dos homens de sua cor, vítimas de
todos os abusos e desumanidades. As partituras deste hino estão editadas nas
diversas páginas em que se reproduzem e se transcrevem as afiadas petições
deste espadachim do justo em uma terra de pessoas conscientemente
insensíveis ao sofrimento e exploração dos negros. O nosso herói, como se
poderá ver, venceu muitas vezes a indiferença e o comodismo para presentear
aos seus patrocinados a esperada liberdade. O livro de Nelson Câmara traz o
travo amargo da memória de nossa terra injusta mas, ao mesmo tempo,
reconforta pelo exemplo edificante do biografado, cujas petições podem ser
lidas para auferir ânimo na luta contra todas as injustiças que ainda nos
assolam.
Miguel Reale Júnior
Apresentação
Ler um livro sempre é uma experiência fascinante e revigorante. O
conhecimento obtido é uma dádiva que entretém a mente, mas também
abastece o coração. Os livros abrem os horizontes para as ideias brilhantes),
sem prescindir das benesses de dar asas à imaginação. Ao mesmo tempo, a
literatura de caráter histórico-documental descortina as pegadas de grandes
homens e mulheres do passado, inclusive daqueles que caminharam em terras
áridas. A história documental de Luiz Gama nutre o intelecto, revitaliza o
coração e desvenda os passos percorridos por um homem que, guardadas as
devidas proporções, foi uma voz que clamava no deserto (cf. Bíblia Sagrada,
Mateus 3.3). Essa voz solitária ainda se faz ouvir, reverberando em nossa
sociedade com brados de equidade, liberdade, tolerância, compreensão e
complacência.
Entrementes, os dias de Luiz Gama não podem receber uma comparação mais
apropriada do que tempos vividos em hostil deserto. Sobretudo, quando sua
história é compreendida sob as agruras da escravatura brasileira. A
escravidão, pois produziu aridez social, política e especialmente humanitária.
Sob o sol escaldante da impiedade e sofrendo de insaciável sede por justiça, o
povo negro foi subjugado e submetido aos mais terríveis escárnios e castigos
físicos e psicológicos. O curso da vida de escravo era apontado por
gargalheiras e chibatas. Atitudes hediondas e vis que, de fato, macularam a
naçãobrasileira com o sangue de mártires. À semelhança de outros
momentos históricos, havia quem soubesse se aproveitar da dor e do
sofrimento alheio para obter benefício próprio, todavia, havia também quem
fosse uma voz para os que foram feitos mudos à força. Em um tempo que até
mesmo o choro e gemido não eram abafados, Luiz Gama foi o paladino
moderno de milhões de negros, tornando-se o mais célebre advogado dos
escravos brasileiros.
As habilidades como poeta, jornalista e advogado são belamente relatadas
nesse documentário histórico que foi reunido em forma de livro. Por
semelhante modo, o caráter de Luiz Gama é indelevelmente imiscuído com
sua capacidade intelectual. O texto realça as mais diversas qualidades desse
porta-voz da nação dos negros esquecidos pelas leis brasileiras. Ademais,
mesmo seus poemas revelam a sensibilidade e o olhar típico de um artista,
sem imergir na ingenuidade e na alienação. Como jornalista, sua postura
crítica de cunho social e político vem acompanhada de um tom satírico,
reafirmando a desenvoltura de Luiz Gama dominar e espargir os mais
elevados saberes de sua época. A tudo isso, por fim, agrega-se o incansável
esforço para fazer cumprir a lei do Império em favor da libertação dos
escravos.
Com efeito, Luiz Gama não nutria um círculo de amizades, colaboradores e
defensores da causa abolicionista sem razão para tanto. Foi por sua
comprovada competência jurídica, literária e argumentativa que Rui Barbosa
e Castro Alves permaneceram ao seu lado. Da mesma forma, outros ícones
brasileiros reverenciaram a figura de Luiz Gama, como Silvio Romero, Raul
Pompeia, Rangel Pestana, André Rebouças, Lúcio de Mendonça, José
Bonifácio Sobrinho e Bernardino de Campos, homens que contribuíram para
a causa abolicionista.
Destarte, as ações inspiradoras de Luiz Gama, sua incessante busca por
justiça e liberdade, bem como sua capacidade
Nelson Câmara
de dialogar esbanjando conhecimento de causa, destacam que a sociedade
brasileira pode alçar uma condição mais elevada de empatia e alteridade
quando apoiada em ideias que superaram os meros interesses particulares. De
fato, Luiz Gama liberalmente advogava em favor dos negros pobres e
excluídos em prejuízo próprio. A advocacia, os poemas e o jornalismo o
fizeram entesourar bens e fomentar um império particular. Luiz Gama não
angariou cargos políticos ou se deixou tomar pelas garras do poder. Ele não
pode ser acusado de enriquecer às custas dos sofrimentos dos outros. Ao
contrário, como outros que vieram antes e depois dele, seu anseio de
transformação social e política foi regado pelo altruísmo, atitude que deveria
inspirar de forma decisiva ações atuais. A história de Luiz Gama nos faz
compreender que os sonhos de liberdade e justiça se tornam pesadelos sociais
quando não procedem de abnegação e desprendimento.
Quando a voz que clama no deserto visa benefício próprio e transforma a
causa alheia em ponto de alavanca para empreitadas particulares, a sociedade
está fadada a alimentar suas próprias aberrações.
Uma voz clamou no deserto da sociedade escravagista brasileira. Um brado
justo, porém, benevolente. Nesse ponto, há um viés de comparação com outro
personagem que protestou em um deserto e tempo diferentes, a saber, na
Judéia do primeiro século da era cristã. Ambos buscavam justiça para o seu
povo. Luiz Gama reivindicou a justiça para os negros. João Batista é o
personagem bíblico que reclamou por justiça para o povo de Deus. No final
das contas, os dois deixaram suas pegadas numa terra árida e diante da
situação mais improvável; pois, como deixar pegadas na areia? Luiz Gama
abriu caminhos no deserto para que pudéssemos vislumbrar uma sociedade
mais equânime, benevolente e humanitária. Tais atitudes para nós
O advogado dos escravos
Luiz Gama
da Universidade Presbiteriana Mackenzie indicam uma verossimilhança com
a figura de João Batista, que também anunciou e protestou contra a maldade
ao ser a voz do deserto, antecedendo Jesus Cristo.
Portanto, descortinar os erros humanos em favor de uma sociedade imparcial,
tolerante e destituída de preconceitos raciais é um alvo que obtém seu
cumprimento pleno na Pessoa e Obra de Jesus Cristo. Afinal, de modo
consciente ou não Luiz Gama adotou posturas e valores, bem como obteve
ganhos que encontram sua plena consecução na sociedade celestial que Cristo
Jesus oferece a todos que o amam e o servem, mesmo neste mundo que tantas
vezes tem insistido em permanecer na aridez do deserto.
A obra que ora apresentamos em sua terceira edição, narrada pela pena do
professor Dr. Nelson Câmara, presidente da Academia Mackenzista de Letras
– AML, fruto de uma rigorosa e profunda pesquisa sobre os caminhos
percorridos por Luiz Gama, nos deixando diante de um personagem
exemplar, singular por suas ações em prol da dignidade e liberdade humana.
Rev. Dr. Davi Charles Gomes
Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Dr. Benedito Guimarães Aguiar Neto Reitor da Universidade Presbiteriana
Mackenzie,
Presb. Dr. José Inácio Ramos
Presidente do Instituto Presbiteriano Mackenzie.
Introdução
“De verre pour gémir, d’airaim pour résister” – “De vidro para gemer, de
bronze para resistir” – foi com essa significativa expressão invocatória do
poeta da “Legenda dos Séculos” (Victor Hugo – no poema Les Chants du
crépuscule), que Rui Barbosa referiu-se ao seu saudoso amigo Luiz Gama,
quando da Conferência sobre o Abolicionismo por ele proferida no Rio de
Janeiro a 18 de maio de 1911, no discurso de posse no Instituto dos
Advogados. Afirmou ter sido uma rara fortuna da sua vida ter cultivado
intimamente a amizade de Luiz Gama, “em lutas que nunca esquecerei”.
Disse mais: [...] que Luiz Gama era um coração de anjo com uma alma de
“harpa eólia de todos os sofrimentos da opressão”, além de ser, também, um
espírito genial com uma torrente de eloquência, de dialética e de graça, uma
abnegação de apóstolo com uma personalidade de granito aureolado de luz e
“povoado pelas abelhas do Himeto” [...] (in: BARBOSA, s.d., p. 197). A
menção de Rui Barbosa merece ser lida por inteiro:
“Para não nomear vivos, lembrarei apenas Luiz Gama... (aplausos repetidos).
Uma das raras fortunas de minha vida é a de ter cultivado intimamente sua
amizade, em lutas que nunca esquecerei. Um coração de anjo, uma alma que
era a harpa eólia de todos os sofrimentos da opressão; um espírito genial;
uma torrente de eloquência, de dialética e de graça; um caráter adamantino,
cidadão para a Roma antiga, inaclimável no Baixo Império; uma abnegação
de apóstolo: personalidade de granito, aureolado de luz e povoado pelas
abelhas do Himeto (aplausos). Se eu houvesse de escrever-lhe o epitáfio, iria
pedir este ao poeta da Legenda dos Séculos: De verre pour gémir, d’airaim
pour résister” (BARBOSA, RUI. s.d., p. 197).
Passados vinte anos da Abolição, esse foi o testemunho de Rui Barbosa ao
seu amigo e ídolo Luiz Gama. Como esquecer e não valorizar aquele que foi
seu mote em São Paulo durante sua juventude acadêmica na Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, bem como na loja Maçônica América e na
redação do Jornal Radical, em lutas memoráveis?
Os baianos Castro Alves, “o poeta dos escravos”, e Rui Barbosa, ambos
residentes na então denominada “República dos baianos” na rua da Glória,
hoje próximo à praça João Mendes Júnior, no centro da cidade de São Paulo,
desde logo passaram a frequentar o escritório de Luiz Gama na Travessa da
Sé, nº 4.
A história caprichosamente estabeleceu as contradições de origem entre eles
para vincular eternamente os três personagens ao mesmo ideário, com
condições diferentes de manifestação e luta de cada um.
Rui Barbosa e Castro Alves eram de família e classe social tradicional da
sociedade baiana, com progenitores intelectualizados e cada um recebendo,
na origem, educação aprimorada. Luiz Gama, ao contrário, era filho de uma
negra africana liberta e fruto de uma união com um fidalgo de origem
portuguesa, que acabou pelo desatino de sua vida desregrada a vender seu
próprio filho como escravo aos dez anos de idade. Apartir daí, iniciou-se a
saga desse extraordinário personagem em São Paulo onde viveu até a sua
morte. Por outro lado, os outros dois, também ilustres baianos, vieram a São
Paulo para estudar e desenvolver-se intelectualmente por vontade própria,
com liberdade e apoio familiar!
Rui Barbosa e Castro Alves estudaram na famosa Faculdade de Direito de
São Paulo. Pouco antes para Luiz Gama a instituição estudantil recusou seu
ingresso pela condição de ser negro em plena escravidão. Anos após,
tentaram corrigir o erro, mas já era tarde.
Esses três baianos jamais se separaram nos ideais, embora Castro Alves
tenha, ainda jovem, se ferido gravemente em acidente com arma de fogo
quando cursava o terceiro ano da faculdade, o que motivou sua ida para
tratamento no Rio de Janeiro, então capital do Império e, posteriormente, para
a fazenda de seu pai na Bahia onde veio a falecer ainda jovem. Mas deixou
uma enorme obra poética e fundamental participação em atividades políticas
na capital paulista sempre na defesa dos escravos e pugnando pela Abolição.
Rui Barbosa, já em São Paulo, tivera intensa atividade política na mesma
direção dos outros dois baianos. Tanto em Salvador, como no Rio de Janeiro,
celebrizou
-se no mesmo sentido como jornalista, político e advogado.
Quando do ferimento sofrido por Castro Alves, foi seu amigo Luiz Gama,
juntamente com o mulato Rufino de Oliveira, quem o conduziu em uma
“marquesa” até a Estação da Luz da antiga estrada de ferro inglesa, com
destino ao porto de Santos onde embarcaria em um vapor para o Rio de
Janeiro, para nunca mais retornar. Castro Alves, na então distante cidade do
Rio de Janeiro, nunca deixou de escrever para seus amigos em São Paulo,
recordando com saudade sua mocidade alegre, poética e idealista (cf.
ALMEIDA, 1960, p. 190).
O que quis o destino ao fazer com que essas três talentosas vidas se
cruzassem em São Paulo? Três baianos, origens sociais diferentes, três
destinos diferentes, mas todos unidos, indelevelmente, nas mesmas lutas e
ideais de liberdade como um todo e, particularmente, pelo fim da escravidão!
É verdade que, outras personalidades históricas também atuaram lado a lado
com esses três baianos. Unidos pelo mesmo ideal, juntaram-se a estes, Rangel
Pestana, Lúcio de Mendonça, Raul Pompeia, André Rebouças, Bernardino de
Campos, José Bonifácio Sobrinho, entre tantos outros. Mas a proximidade
dos três baianos na causa comum foi um fato marcante. Embora por um
período menor de dois anos, um outro personagem abolicionista, Joaquim
Nabuco, com eles conviveu intensamente, inclusive com grande atuação na
Loja Maçônica América. Joaquim Nabuco que destacou-se nacionalmente,
entre outras coisas, na luta pela Abolição, transferiu sua matrícula de
estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco para a do
Recife ainda no 3º ano, o que o afastou da convivência desse grupo. Rui
Barbosa, formado, retornou a Salvador.
Dos três, foi Luiz Gama quem permaneceu em São Paulo até a sua morte, em
1882, atuando bravamente como advogado dos escravos, poeta, jornalista
combativo e atuante maçom pela causa da liberdade. E tudo isso diante da
adversidade de ser negro, ex-escravo que conquistou sua própria alforria,
com cultura geral e específica jurídica, embora tenha sido vetado seu ingresso
na Faculdade de Direito de São Paulo. Luiz Gama foi único, posto que, nunca
se curvou ao preconceito. Também jamais cultivou qualquer espécie de ódio
racial no sentido contrário, o que seria uma contradição insanavél. Fez da
tribuna do direito e do jornalismo, a forma de combate à escravidão e a
quaisquer forma de exploração do homem pelo próprio homem. Para atrair a
atenção de escravos, colocava anúncios em jornais oferecendo-se para defesa
gratuita desses.
Participou da famosa convenção Republicana de Itu de 1873, que se estendeu
para a capital paulista, exigiu dos convencionais que a declaração constasse
não só o fim da Monarquia, bem como a implantação da República e,
também, a abolição da escravatura. Sua voz ecoava rija e com autoridade
diante dos convencionais, em sua maioria, fazendeiros e proprietários de
escravos.
Na maçonaria, precisamente na Loja América em São Paulo (regularizada em
7 de julho de 1869 e filiada ao Grande Oriente do Brasil), Luiz Gama já se
encontrava quando foram iniciados Rui Barbosa e Castro Alves (os três
baianos mais uma vez), recebeu diversas missões como advogado para
impetrar vários habeas corpus em favor de escravos. Luiz Gama filiou-se à
maçonaria em 1º de agosto de 1870, e foi elevado a Venerável da sétima e
oitava administração, bem como na décima segunda e décima terceira, após
1874.
Ao falecer, Luiz Gama tinha libertado mais de mil escravos (cf. BASILE, in:
LINHARES, 1990 p. 285) e seu funeral, foi na ocasião, o maior
acontecimento da cidade de São Paulo com amplo destaque na imprensa,
fechamento do comércio local e acompanhado por uma multidão que,
levando-se em conta o crescimento populacional atual, hoje estaria na casa
dos milhares de participantes.
No dizer de J. Romão da Silva “Luiz Gama foi um fenômeno. O homem que
triunfou sobre o destino” (1954, p. 22).
No desenvolvimento dessa obra, os pormenores aparecerão gradualmente,
com farta e minuciosa pesquisa histórica, ricamente documentada, o que
demonstra a grandeza do personagem Luiz Gama para a história do Brasil
resgatando, assim, uma lamentável falha da nossa historiografia que não fez a
devida justiça a esse maior e singular Advogado dos Escravos!
Sumário
I
Menino vendido como escravo 26
Mistério sobre o pai de Luiz Gama 35
Trajetória do menino escravo 36
Obtenção da alforria 38
Cronologia 48
II
Luiz Gama: homem livre na província de São Paulo 56
Luiz Gama e a Convenção Republicana de Itu 60
O ideal da maçonaria na vida de Luiz Gama 77
Relação com personalidades marcantes 85
Discípulo aguerrido 93
III
Luiz Gama: o poeta 100
IV
Luiz Gama: jornalista 124 Imprensa satírica e política 132
V
O advogado dos escravos 154
Luiz Gama e a aplicação da legislação do Império. 181
Habeas corpus: arma jurídica de Luiz Gama 207
Originais inéditos de Habeas corpus por Luiz Gama: seu racícinio jurídico
228
VI
Morte de Luiz Gama 312
VII
Homenagens póstumas a Luiz Gama 330
História da denominação do nome de rua na 
cidade de São Paulo 333
Denominações em diversos logradouros públicos 334
Academia Paulista de Letras 335
Ferroviários 336
Herma – Largo do Arouche 337
Busto no Hall do Grande Oriente de São Paulo 337
Imprensa 340
Clube Recreativo 340
Sessão solene e quadro na Faculdade de Direito 
da USP – Seção Solene 340
Medalha Luiz Gama 342
Homenagem à sua mãe, Luiza Mahin 343
Árvore Genealógica de Luiz Gama 346
Palavras finais 348
Referências 354
Agradecimentos 358
I Menino vendido como escravo
O sobrado, situado na rua do Bângalo, antigo nº 2, em Salvador, Bahia, onde nasceu o afro-brasileiro
Luiz Gama, em 21 de junho de 1830. Desenho de M. Campos para o livro O precursor do
abolicionismo no Brasil, de Sud Menucci.
“[Eu] não possuo pergaminhos, porque a inteligência repele diplomas como
Deus repele a escravidão”.
Luiz Gama
Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu na cidade de Salvador, Estado da Bahia,
em 21 de junho de 1830 e, segundo ele em carta a um amigo, fora batizado
em 1838 na Matriz do Sacramento, na cidade de Itaparica, próxima à referida
capital. Seu tataraneto Benemar França, hoje engenheiro em São Paulo, nos
informa que o endereço é rua Bângala, nº 2 (atualmente 281), no bairro de
Freguesia da Sé, em Salvador, em cuja fachada foi colocada uma placa em
sua homenagem.
Filho de uma negra africana livre, chamada Luiza Mahin, nascida na região
de Costa da Mina, que corresponde atualmente aos Estados de Gana, Togo,
Benin e Nigéria, Luiza Mahin era pertencente à nação nagô. Conta a história
que esta negra era magra e bonita, com dentes muito alvos e de pele
reluzente. Era conhecida pelo gênio irracional e violento, circunspecta,
quitandeira, entregando-se ao comércio de vendas de frutas, muito popular
em Salvador. Talvez por questões étnicas e raciais, nuncase converteu ao
cristianismo, sendo pagã. Era uma revolucionária natural, sempre com
objetivo, libertar sua raça dos grilhões da escravidão. Foi aprisionada
diversas vezes, sob suspeita de seu envolvimento em movimentos
antiescravagistas. Supostamente participou da maior rebelião negra ocorrida
no Brasil durante o Segundo Império, a Revolta dos Malês, em 1835.
O próprio Luiz Gama descreveu sua mãe como uma mulher altiva,
revolucionária, da qual certamente teria herdado o temperamento.
Arthur Ramos (1956, p. 52-53), apresenta alguns dados sobre a liderança
revolucionária da mãe de Luiz Gama, na Bahia, bem como a sua origem
nobre africana. Vejamos:
“Nestes movimentos insurrecionais, especialmente no de 1835, destacaram-se
algumas figuras legítimas de líderes entre os negros. A história guardou os
nomes de Luiza Mahin, de Belchior e Gaspar da Silva Cunha, de Luis Sanim,
de Manuel Calafate e Aprígio, de Elesbão do Carmo (Dandará), de Pacífico
(Licutan)... Eram todos negros nagôs ou haussas islamizados, que mantinham
nas suas casas, também escolas e igrejas maometanas, reuniões frequentes,
onde eles falavam em nagô, difundindo os preceitos do culto, ou articulando
os movimentos de rebeldia.
Luiza Mahin, que se julga ter sido princesa na África, era mãe do poeta negro
Luiz Gama, a quem nos referiremos em outro capítulo. Não há documentos
precisos a seu respeito. Sabe-se que seus pais eram reis no continente negro.
Arrancada violentamente do seu meio e transportada para o Brasil como
escrava, Luiza Mahin foi um destacado elemento de conspiração entre os
negros oprimidos. Sua casa, na Bahia, tornou-se um dos fortes redutos de
chefes da grande revolta de 1835.
Ninguém sabe o seu fim. Mas o seu nome permaneceu na história e na lenda
como um grande símbolo do valor da mulher negra no Brasil” (RAMOS,
1956, p. 52-53).
Toda a pesquisa feita pelos historiadores acerca de Luiza Mahin tem sempre
um fundo de verdade e um tanto de ficção. O historiador João José Reis, por
exemplo, em sua obra Rebelião escrava no Brasil (2003), discorre sobre esse
tema invocando alguns pesquisadores, chamando a atenção para a origem
muçulmana da personagem, sua participação na Revolta dos Malês e fazendo,
também, uma correta crítica ao posicionamento racista do historiador Pedro
Calmon. Diz ele:
“O equívoco talvez tenha um nome legendário e um autor involuntário. O
nome, Luiza Mahin, o autor, seu filho Luiz Gama. Numa carta autobiográfica
atribuída ao poeta e advogado abolicionista, ele revelou que sua mãe era
oriunda da Costa da Mina, escrava e depois liberta na Bahia, onde vivia de
uma quitanda. Era também ‘pagã que sempre recusou o batismo e a doutrina
cristã’ e, o que mais interessa aqui, ‘foi presa como suspeita de envolver-se
em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito’. [...]
Se Etienne Brazil não deu nome à sua rainha, Arthur Ramos, por exemplo,
afirmaria que ‘Luiza foi um destacado elemento de conspiração entre os
negros oprimidos’, acrescentando: ‘Sua casa, na Bahia, tornou-se um dos
fortes redutos de chefes da grande revolta de 1835’. Onde Ramos foi buscar
essa informação, desconheço. O autor promoveu o personagem descrito pelo
filho: a mãe deixava de ser apenas envolvida nas conspirações baianas, para
nestas tornar-se ‘destacado elemento’ e promotora de reuniões malês em
1835. Mas embora afirmasse ter sido ela filha de ‘reis no continente negro’,
Ramos abstém-se de coroá
-la rainha dos rebeldes.
Ramos talvez se inspirasse alguma coisa em Pedro Calmon. Esse historiador
pintou o retrato mais completo, embora fictício e insuportavelmente
preconceituoso, de Luiza Mahin. [...]
Entretanto, à revelia de Pedro Calmon, Luiza Mahin se tornaria ‘símbolo do
valor da mulher negra no Brasil’, conforme escreveu Arthur Ramos. Para
confirmá-lo, em anos recentes ela tem recebido repetidas homenagens do
movimento negro brasileiro, sobretudo da ala feminina, por sua suposta
atuação destacada na Revolta dos Malês. Por influência da militância negra,
ganhou inclusive nome de praça, não na Bahia, mas na Freguesia do Ó, bairro
da cidade de São Paulo. É também presença na literatura negra brasileira das
últimas décadas, reverenciada, com justiça, como símbolo de luta” (REIS,
2003, p. 301-303).
Quando a mãe de Luiz Gama deixou a Bahia, fugindo da perseguição por sua
participação na Sabinada (assim denominada porque foi liderada pelo médico
e jornalista Francisco Sabino Vieira), não deixou paradeiro. O movimento,
que desencadeou a Sabinada, aproveitou-se da reação popular contra o
recrutamento militar imposto pelo governo imperial. O estopim deu-se em
meio a fuga de Bento Gonçalves, do Forte do Mar, chamado hoje de Forte de
São Marcelo.
Soube-se que Luiza Mahin fora participar de outras revoltas no Rio de
Janeiro, onde jamais dela se ouviu falar. O movimento revolucionário em
Salvador, denominado Sabinada, postulava tanto a implantação da República
no Brasil, como também, a libertação dos escravos, e contou com a
participação de Luiza Mahin.
Taunay assim a descreve:
Mas a anarquia dos espíritos iria, desde os primeiros dias do novo período
regencial, provocar gravíssima explosão, a da famosa Sabinada baiana,
insurreição de caráter republicano, cuja cabecilha foi como tanto se sabe o
desequilibrado médico Sabino Álvares da Rocha Vieira.
Agiu o regente com a maior decisão e presteza. Irrupto a 7 de novembro de
1837, estava inteiramente debelado a 16 de março seguinte este movimento
que custou a vida a muitas centenas de pessoas e trouxe à capital baiana
longos meses de insuportável anarquia (TAUNAY, 1961, p. 252).
O fim do levante da Sabinada, causou grande impacto em São Paulo. Por
isso, foi realizada, na data de 5 de abril de 1838, uma sessão extraordinária na
Câmara de São Paulo para receber o comunicado do Presidente da Província,
de que na cidade de Salvador, se “restabelecera” o império da lei. O
presidente paulista conclamou os cidadãos a manifestarem o regozijo
iluminando por três dias as fachadas de suas casas. Duas solenes missas Te
Deum foram celebradas na Catedral da Sé: uma pela derrota da Sabinada e
outra pelo aniversário de ascensão ao trono de D. Pedro I.
O historiador João José dos Reis (2003), descreve detalhadamente dois fatos
importantes que ocorreram por ocasião das Revoltas dos Malês (1835) e da
Sabinada (1837), sendo o primeiro deles, a crueldade das penas impostas aos
escravos, e o segundo a impressionante influência pelo efeito produzido no
comportamento da sociedade na Bahia pelas ações dos movimento de
batuques africanos, relacionados com as revoltas ou quaisquer movimentos
de resistência, a ponto dos defensores da escravidão, ficarem temerosos tão
logo os sons dos batuques começassem a soar pela cidade.
Essas revoltas dos negros na Bahia, cuja população era composta
majoritariamente de escravos, acabaram por estabelecer um medo
generalizado entre a população branca. Quem bem relata o fato é Flávio dos
Santos Gomes (2006, p. 213):
“O medo esteve presente o tempo todo em 1838. Autoridades, fazendeiros,
lavradores e a população branca em geral temiam as consequencias de um
grande levante, ainda mais liderado por africanos. As histórias desse medo e
de outros tinham origens próprias. Embora temores relativos às insurreições
escravas não tenham se iniciado naquele episódio, a década de 1830 foi
marcada por um “terror”. O ano de 1835 e os que imediatamente se seguiram
foram decisivos na trajetória de medos, não só no Rio de Janeiro,mas também
em outras províncias”.
A história não esquece de seus melhores personagens e, no caso de Luiza
Mahin, 150 anos após o seu desaparecimento, o prefeito da cidade de São
Paulo, Mário Covas, natural da cidade de Santos, tradicionalmente libertária e
reconhecido maçom, baixou o decreto nº 20.723, de 6 de março de 1985, pelo
qual deu o nome da heroína negra a uma praça na Vila Cardoso, no bairro de
Freguesia do Ó, na capital.
Mistério sobre o pai de Luiz Gama
Luiz Gama jamais revelou o nome de seu pai. Consta que era um fidalgo de
origem portuguesade uma das principais famílias baianas, muito rico e, ao
mesmo tempo, esbanjador volúvel a ponto de ficar reduzido à pobreza
extrema. Sempre que era questionado sobre a origem racial de seu pai, Luiz
Gama dizia não poder afirmar ser realmente branco “porque tais afirmativas
neste país constituem grave perigo durante a verdade, no que consume a
melindrosa presunção das cores humanas” (SUD MENUCCI, 1938, p. 21).
Luiz Gama, ao referir-se a seu pai dizia que, nos primeiros tempos, era
carinhoso. Todavia, quando contava com somente dez anos de idade, em
1840, seu pai mandou que se vestisse e o conduziu ao porto de Salvador, em
companhia de um amigo de nome Luiz Quintella, e vendeu-o como seu
escravo, embarcando-o no navio de nome Saraiva, que partiu com destino ao
Rio de Janeiro. Após a conversa do pai com o comandante da embarcação, no
tombadilho, afastou-se para entrar no bote, deixando Luiz Gama a bordo.
Ao ser desembarcado no porto do Rio de Janeiro, em um navio carregado de
escravos, destacado com um grupo menor, como se fosse um lote de
mercadoria, foi encaminhado a um negociante português de nome Vieira,
dono de uma loja de velas na Candelária, esquina com a rua do Sabão. Este
comerciante português de baixa estatura, circunspecto e enérgico, trabalhava
também com escravos vindos da Bahia para revendê-los por comissão.
Mas o destino começava a se fazer caprichoso para Luiz Gama, porque esse
comerciante português o levou para a sua casa, por ser ainda um menino, para
fazer companhia para o seu filho, um menino também, e algumas filhas já
crescidas. Além disso, sua esposa, uma perfeita matrona, era cheia de
piedade. Ao adentrar nesse ambiente por volta das 17h, todas as mulheres a
ele se afeiçoaram imediatamente, mandaram-no se lavar, vestiram-no, deram-
lhe comida e o fizeram dormir em boa cama. Luiz Gama pela vida inteira
lembrou-se com carinho dessa boa acolhida.
Porém, dias mais tarde, o português Vieira o vendeu a um negociante
contrabandista de escravos, o alferes Antônio Pereira Cardoso o mesmo que,
em 1870, como fazendeiro do município de Lorena, na província de São
Paulo, no momento em que estava para ser preso por ter matado de fome
alguns escravos, suicidou-se aos 70 anos de idade com um tiro de pistola.
Este algoz comprara Luiz Gama que estava em um lote com mais de 100
escravos, pois seu comércio era de grandes dimensões, trazendo-o para São
Paulo por via marítima até o porto de Santos.
Trajetória do menino escravo
Ao ser desembarcado no porto de Santos, com apenas dez anos de idade e
saído de uma infância trágica, descalço, desamparado, faminto, conduzido em
meio a um bando de escravos, subiu a serra de Cubatão, por trilhas tortuosas
e íngremes, enfrentando mosquitos, feras e intempéries, com destino à cidade
de Campinas.
Em Campinas e em Jundiaí, vários compradores de escravos para a lavoura
rejeitaram Luiz Gama pela simples circunstância de sua origem baiana.
Naquela época, ser negro e baiano significava uma temeridade para o senhor
de escravos, devido às notícias das constantes revoltas em Salvador; esses
negros eram considerados “rebeldes”, o que poderia trazer problemas para o
trabalho servil, além do risco de “contaminação” da sociedade escravocrata
com ideais libertários.
Finalmente, um senhor de provecta idade, Francisco Egydio de Souza
Aranha, pai do falecido Marquês de Três Rios, depois de o haver escolhido
para a compra, afagou-o dizendo que ele seria um bom pajem para seus
pequenos filhos, mas não o queria nem de graça, pois com certeza não seria
por acaso que o teriam vendido tão pequeno. Curioso destino esse! Anos
após, quando Luiz Gama já era adulto, ouvido e respeitado, esse mesmo
senhor o teve como um dos seus amigos mais considerados.
Como não foi vendido, Luiz Gama em companhia de outro escravo, de nome
José que era sapateiro, foi devolvido para a casa de seu proprietário, o senhor
Cardoso, na província de São Paulo. Um sobrado na rua do Comércio, nº 2,
próximo à igreja da rua Direita. Ali, Luiz Gama aprendeu os ofícios de
copeiro, sapateiro, lavador, engomador e costureiro, mas continuava
analfabeto.
Dentro de um contexto adverso, o destino de Luiz Gama, em 1847, foi
favoravelmente alterado quando, na casa do senhor Cardoso, veio morar um
hóspede humanista, o menino de nome Antônio Rodrigues de Araújo, que se
tornou advogado e, depois, magistrado de muito valor, que acabou residindo
em Mogi Guaçu, no interior da então província de São Paulo. Esse jovem
Antônio, de mente avançada e contrário ideologicamente à escravatura,
estabeleceu estreita amizade com Luiz Gama e ensinou-lhe as primeiras
letras, bem como aritmética e mais alguns conhecimentos humanistas.
Obtenção da alforria
Luiz Gama, com mente privilegiada e ávido por saber, foi alfabetizado em
apenas um ano e, já no ano seguinte, em 1848, secretamente, passou a obter
provas irrefutáveis de sua condição de homem livre, argumentando com o
fato de seu progenitor ter sido homem livre e sua mãe negra liberta, bem
como o irrefutável aspecto na lei de 1831 que, numa penada, tornou ilegal a
escravidão no Brasil, ao considerar como pirataria o comércio de africanos.
Houve, nesse período, o testemunho de dois episódios ocorridos com Luiz
Gama. O sr. Antônio dos Santos Oliveira fez os relatos, ouvidos da boca do
próprio pai. Luiz Gama, depois que o amigo lhe ensinara os primeiros
rudimentos, fez tão rápidos e surpreendentes progressos que passou, por sua
vez, a ensinar os filhos do alferes Cardoso, conseguindo alfabetizá-los com a
máxima brevidade. Um dia, já em 1848, Luiz Gama abordou o alferes
pedindo que lhe concedesse a sua carta de alforria, em virtude do trabalho
que tivera para ensinar os filhos.
– Alforria por isso?, escandalizou-se o interpelado. Eu comprei você para que
trabalhasse para mim, e você nada mais está fazendo do que cumprir a sua
obrigação.
– O senhor comprou-me para o trabalho braçal e manual. Não está nas
obrigações de um escravo o trabalho intelectual, que é muito mais difícil.
Pois bem, nesse caso, vou levar a questão aos tribunais. O senhor bem sabe
que eu não sou escravo e que nasci livre.
O alferes Cardoso irritou-se e perguntou-lhe se a instrução que ele consentira
que recebesse só tinha servido para criar
-lhe na alma aquela absurda pretensão e para revoltar-se contra quem sempre
o tratava humanamente.
Luiz Gama não se deu por vencido. Reconhecia que, no fundo, o senhor era
boa criatura e lhe devotava estima, como confessou depois. Mas, mesmo
nessa sua primeira mocidade, como o provará mais tarde com toda a atuação
de sua vida, o baianinho tinha sede ardente de liberdade. Não permaneceria
acorrentado a uma injustiça por meras preocupações sentimentais e não podia
aceitar que lhe negassem seu direito legítimo.
Fugiu da casa do amo, “depois de obter ardilosa e secretamente provas
inconcussas de sua liberdade”.
Este fato, é um ponto crucial de sua saga, pois Luiz Gama comprovou
cabalmente a sua qualidade de homem livre. Seria preciso não conhecer os
antecedentes do alferes Cardoso para admitir a hipótese de que este tivesse
cedido a considerações altruísticas, num tempo em que ninguém as usava, e
tivesse recuado no seu propósito de reconquistar o moleque. E é o próprio
Luiz Gama quem mostra a qualidade de teima do senhor, quando relatou, por
que razão suicidou-se o alferes, no ato de o prenderem por haver matado
alguns escravos de fome, por terem sido mantidos por muito tempo em
cárcere privado.
O senhor Antônio dos Santos Oliveira é filho de Pedro Antônio Rodrigues de
Oliveira, funcionário que, durante muitos anos, ocupou o cargo de porteiro do
fórum de nossa capital, e que foi o primeiro amigo que Luiz Gama
conquistou na província de São Paulo. Luiz Gama acabava de chegar do Rio.
Encontraram-se os dois meninos, que deviam ter mais ou menos a mesma
idade, no Largo da Misericórdia, nascendo entre ambos uma viva simpatia.
Ligaram-se em íntima camaradagem, amizade que nunca mais se arrefeceu e
que durou até a morte de Luiz Gama, sempre com a mesma força e com amesma lealdade dos primeiros dias. Pedro Antônio teve ocasião de prestar no
fórum inúmeros serviços ao amigo, ajudando-o nos seus processos forenses,
em defesa da causa negra.
O senhor Antônio dos Santos Oliveira que, na sua infância e adolescência,
conheceu Luiz Gama e frequentou sua casa, no Brás, publicou em 1904 com
o sr. João Rosa da Cruz, a 3ª edição das Trovas burlescas de Getulino. Nesse
contexto, depois de sua chegada a São Paulo, alistou-se como soldado da
milícia estadual. Isto aos 18 anos de idade.
Sud Menucci (1938, p. 19-26), transcreve uma famosa carta que Luiz Gama
endereçou a Lúcio de Mendonça em 25 de julho de 1880. Essa carta, na
realidade, constitui o mais importante e talvez único documento completo
sobre a odisseia do grande tribuno, escrita de próprio punho como se fosse
sua autobiografia, e é dever de fidelidade histórica e analítica transcrevê-la
por inteiro:
“São Paulo, 25 de julho de 1880. Meu caro Lúcio,
Recebi o teu cartão com a data de 28 do pretérito. Não me posso negar ao teu
pedido, porque antes quero ser acoimado de ridículo, em razão de referir
verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelas ocultar,
de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes e que sempre eu os
trouxe de memória.
Nasci na cidade de S. Salvador, capital da Província da Bahia, em um
sobrado da rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado
direito de quem parte do adro da Palma, na Freguesia de Sant’Ana, a 21 de
junho de 1830, pelas 7 horas da manhã, e fui batizado, oito anos depois, na
Igreja Matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.
Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina, (nagô de
nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a
doutrina cristã.
Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto
e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva,
geniosa, insofrida e vingativa.
Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez,
na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições
de escravos, que não tiveram efeito.
Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na
Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847,
em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube,
por uns pretos minas que conheciam-na e que me deram sinais certos, que
ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma ‘casa de dar fortuna’,
em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros
desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses ‘amotinados’
fossem mandados por fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava
rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores.
Nada mais pude alcançar a respeito dela. Nesse ano, 1861, voltando a São
Paulo e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe
os versos que com esta carta envio-te.
Meu pai não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste País
constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa
presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais
famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória
uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome.
Ele foi rico; e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus
braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e
da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito
melhor de baralho, amava as súcias (agrupamentos de má índole) e os
divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e,
reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de
Luiz Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos
proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um
sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo
do patacho Saraiva.
Remetido para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu
carregado de escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro
português, de nome Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da Candelária,
canto da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspecto e
enérgico, que recebia escravos da Bahia, por comissão. Tinha um filho
aperaltado, que estudava em colégio; e creio que três filhas já crescidas,
muito bondosas, muito meigas e muito compassivas, principalmente a mais
velha. A senhora Vieira era uma perfeita matrona: exemplo de candura e
piedade. Tinha eu dez anos. Ela e as filhas afeiçoaram-se de mim
imediatamente. Eram cinco horas da tarde quando entrei em sua casa.
Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais nova,
deram-me de cear e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia,
que era mucama da casa.
Sempre que me lembro desta boa senhora e de suas filhas vêm-me as
lágrimas aos olhos, porque tenho saudades do amor e dos cuidados com que
me afagaram por alguns dias.
Dali, saí derramando copioso pranto, e também todas elas, sentidas de me
verem partir.
Oh! Eu tenho lances doloridos em minha vida, que valem mais do que as
lendas sentidas da vida amargurada dos mártires.
Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e
contrabandista alferes Antônio Pereira Cardoso, o mesmo que, há oito ou dez
anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de o
prenderem por ter morto alguns escravos à fome, em cárcere privado, e já
com idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja
bala atravessou-lhe o crânio.
Este alferes, Antônio Pereira Cardoso, comprou-me em um lote de cento e
tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender
nesta Província.
Como já disse, tinha eu apenas dez anos; e, a pé, fiz toda a viagem de Santos
até Campinas.
Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas;
e por todos repelido, como se repelem coisas ruins, pelo simples fato de ser
eu ‘baiano’.
Valeu-me a pecha!
O último recusante foi o venerando e simpático ancião Francisco Egídio de
Souza Aranha, pai do exmo. conde de Três Rios, meu respeitável amigo.
Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse: – Hás de ser um bom
pajem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste? – Na Bahia, respondi
eu. – Baiano? – exclamou admirado o excelente velho. – Nem de graça o
quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno.
Repelido como ‘refugo’, com outro escravo da Bahia, de nome José,
sapateiro, voltei para a casa do sr. Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio,
nº 2, sobrado, perto da Igreja da Misericórdia.
Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar.
Em 1847, contava eu 17 anos, quando para a casa do sr. Cardoso veio morar,
como hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade de
Campinas, onde morava, o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior, hoje
doutor em Direito, ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi
Guaçu, onde é fazendeiro.
Fizemos amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar-me as
primeiras letras.
Em 1848, sabendo ler e contar alguma coisa, e tendo obtido ardilosa e
secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da
casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, que, aliás, votava
-me a maior estima, e fui assentar praça. Servi até 1854, seis anos, cheguei a
cabo de esquadra graduado, e tive baixa de serviço, depois de responder a
conselho, por ato de suposta insubordinação, quando me tinha limitado a
ameaçar um oficial insolente, que me havia insultado e que soube conter-se.
Estive, então, preso 39 dias, de 1º de julho a 9 de agosto. Passava os dias
lendo e às noites sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos olhos a
imagem de minha querida mãe. Uma noite, eram mais de duas horas, eu
dormitava; e em sonho vi que a levavam presa. Pareceu-me ouvi-la
distintamente que chamava por mim.
Dei um grito, espavoridosaltei da tarimba; os companheiros alvorotaram-se;
corri à grade, enfiei a cabeça pelo xadrez...
Era solitário e silencioso e longo e lôbrego o corredor da prisão, mal-
alumiado pela luz amarelenta de enfumarada lanterna.
Voltei para a minha tarimba, narrei a ocorrência aos curiosos colegas; eles
narraram-me também fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi.
Durante o meu tempo de praça, nas horas vagas fiz
-me copista; escrevia para o escritório do escrivão major Benedito Antônio
Coelho Neto, que se tornou meu amigo; e que hoje, pelo seu merecimento,
desempenha o cargo de oficial-maior da Secretaria do Governo; e, como
amanuense, no gabinete do exmo. senhor conselheiro Francisco Maria de
Souza Furtado de Mendonça, que aqui exerceu, por muitos anos, com
aplausos e admiração do público em geral, altos cargos na administração,
polícia e judicatura, e que é catedrático da Faculdade de Direito, fui eu seu
ordenança; por meu caráter, por minha atividade e por meu comportamento,
conquistei a sua estima e a sua proteção; e as boas lições de letras e de
civismo, que conservo com orgulho.
Em 1856, depois de haver servido como escrivão perante diversas
autoridades policiais, fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde
servi até 1868, época em que por ‘turbulento e sedicioso’ fui demitido a ‘bem
do serviço público’, pelos conservadores, que então haviam subido ao poder.
A portaria de demissão foi lavrada pelo dr. Antônio Manuel dos Reis, meu
particular amigo, então secretário da Polícia, e assinada pelo exmo. dr.
Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros atos semelhantes, foi
nomeado desembargador da Relação da Corte.
A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa
e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas ideias; e promover
processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar
licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque
detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os reis.
Desde que me fiz soldado, comecei a ser homem; porque até os dez anos fui
criança; dos dez aos 18, fui soldado.
Fiz versos; escrevi para muitos jornais, colaborei em outros literários e
políticos, e redigi alguns.
Agora chegou ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no
Ipiranga, à rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista
principiante; eu, como simples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e
para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os
pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número
superior a 500, tenho arrancado às garras do crime.
Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para
ti, que me estimas deveras.
Teu Luiz”.
Esse documento é considerado a mais preciosa autobiografia do personagem
Luiz Gama. Essa carta de Luiz Gama para seu amigo e confessor Lúcio de
Mendonça foi a ele encaminhada em 25 de julho de 1880 e, dias após, em 21
de agosto de 1880, mereceu resposta do amigo de São Gonçalo do Sapucaí,
no Estado de Minas Gerais. Dada a sua importância, a carta de Lúcio de
Mendonça foi publicada no jornal O Estado de S. Paulo, na comemoração do
13 de maio de 1920 e, posteriormente, quando do centenário de nascimento
de Luiz Gama, novamente publicada pelo mesmo periódico, em 21 de junho
de 1930, tudo conforme se confere dos fac-símiles na presente obra.
Cronologia
Para melhor compreensão do fenômeno Luiz Gama (a expressão utilizada
mesmo como fenomeiko na filosofia grega) dentro do cenário do século XIX,
é preciso conhecer a sua cronologia. Posterior à introdução do escravagismo
no Brasil e contemporânea aos grandes movimentos abolicionistas e
predecessora das graves consequências após sua morte. Utilizaremos, como
referência, a excelente cronologia de Luiz Gama preparada por sua notável
biógrafa Lígia Fonseca Ferreira, (2000):
1830 – Nasceu, às 7 horas da manhã do dia 21 de junho, num sobrado da rua
do Bângala, na Freguesia de Sant’Ana, em Salvador, o afro-brasileiro Luiz
Gonzaga Pinto da Gama. Filho natural de uma quitandeira africana livre,
oriunda de Costa da Mina, Luiza Mahin, e de um fidalgo, pertencente a uma
tradicional família baiana, de origem portuguesa, cujo nome jamais será
revelado. Esse e outros dados relevantes de sua vida foram relatados por Luiz
Gama em carta para o amigo Lúcio de Mendonça, autor do primeiro ensaio
biográfico sobre o defensor da Abolição e da República no Brasil. [...]
1835 – Eclosão da Revolta dos Malês em Salvador, a mais importante
insurreição negra das Américas, ocorrida em contexto urbano e protagonizada
por africanos muçulmanos. Luiza Mahin, refratária à doutrina cristã, teria
supostamente participado do levante, já que, conforme afirma seu filho, por
várias vezes fora presa como suspeita de instigar revoltas escravas.
1837 – Eclosão da Sabinada, na qual teriam se envolvido os pais de Luiz
Gama. Luiza Mahin foge de Salvador para o Rio de Janeiro, em virtude das
perseguições de que se tornaram vítimas, na Bahia, os africanos turbulentos.
[...]
1854 – Julgado por ato de suposta insubordinação e condenado a 39 dias de
prisão, o cabo de esquadra Luiz Gama abandona a carreira militar.
1856 – É nomeado amanuense da Secretaria de Polícia de São Paulo, onde
permaneceria por mais de 
12 anos. Pela segunda vez, busca por sua mãe no Rio de Janeiro.
1858 – Época provável da aproximação entre Luiz Gama e o poeta, professor
de Direito, José Bonifácio, ‘o Moço’, um de seus amigos diletos, com o qual
manteve afinidades políticas e literárias ao longo da vida.
1859 – Foi publicada a primeira edição das Primeiras trovas burlescas de
Getulino, em São Paulo. Nasceu, em 20 de julho, Caio Graco Pinto da Gama,
filho de Luiz Gama e da negra Claudina Fortunata Sampaio, com quem viveu
maritalmente por mais de dez anos.
1861 – Publicação da segunda edição ‘correcta e augmentada’ das Primeiras
trovas burlescas de Getulino, no Rio de Janeiro. Aproveitando-se da ocasião,
Luiz Gama efetua a terceira e última tentativa de encontrar Luiza Mahin,
naquela cidade. Dali por diante, o ex-escravo autodidata, agora membro da
República das Letras, dedicava-se exclusivamente à imprensa, canal mais
adequado para sua brilhante, mas sempre polêmica, defesa das ideias liberais,
republicanas e abolicionistas. [...]
1867 – Acirram-se os movimentos humanitários e as pressões internacionais
para o fim da escravidão no Brasil. A Junta Francesa para Emancipação dos
Negros, composta por intelectuais ligados à Maçonaria, encaminha missiva
ao governo brasileiro, exortando-o a apressar o processo no Brasil. Obteve do
Império a resposta de que se tratava apenas de uma questão de ‘forma e
oportunidade’, uma vez encerrado o conflito com o Paraguai. Essa promessa
e a Fala do Trono, de maio de 1867, infundiram esperanças vãs nos
abolicionistas brasileiros. Encerrou
-se em setembro a publicação de o Cabrião. [...]
1869 – Ano de intensa atividade na imprensa, na política e no foro. Luiz
Gama firmou-se como figura das mais populares e influentes da cidade de
São Paulo. Sob os auspícios da Loja América, os ‘professores’ Luiz Gama e
Olímpio da Paixão inauguraram, em junho, uma escola gratuita para crianças
e um curso primário noturno para adultos na rua 25 de Março. Ao lado de Rui
Barbosa, funda e torna-se redator do Radical Paulistano, órgão do Partido
Liberal Radical Paulista. Profere, diante de centenas de pessoas, a primeira
Conferência Pública organizada pelo Clube Radical em São Paulo, versando
sobre a extinção do poder moderador. Seus artigos no Radical põem a nu a
arbitrariedade de advogados e juízes no trato com as ‘causas de liberdade’, ao
mesmo tempo em que revelam sua sólida cultura jurídica. [...]
1871 – Promulgação da Lei do Ventre Livre em 28 de setembro. A Loja
América cria uma biblioteca popular à rua do Rosário. Luiz Gama tornou-se
o primeiro vigilante (vice-presidente) da Loja América. No ano da Comuna
de Paris, Luiz Gama foi acusado de ser ‘agente da Internacional’e de
fomentar insurreições escravas. O Clube Radical Paulistano passa a se
chamar Clube Republicano de São Paulo. [...]
1876 – Colaborou em O Coaracy, tornando-se logo depois proprietário e
redator do O Polichinelo, semanário humorístico publicado aos domingos e
que circulou de 23 de abril a 31 de dezembro, com ilustrações de Huascar de
Vergara. O periódico pretendia preencher ‘lacuna sensível no jornalismo de
São Paulo’, trazendo de volta o riso e a autonomia com relação aos partidos
políticos. No ‘Programa’, apresentado em versos no primeiro número,
reconheceu-se a fibra do autor das Primeiras trovas burlescas: ‘Do programa
a razão tendo por data,/Devo agora tratar, sem matinada,/Dos fatos, dos
heróis, e dos sucessos,/Que devem figurar nos meus processos,/E de tudo, por
alto, dar notícia,/Que eu sou homem com faro de polícia’. Além deste, o
jornalista publicou em seu periódico alguns poemas satíricos – ‘Cena
parlamentar (nº 2)’, ‘O rei cidadão (nº 6)’, ‘Miscelânea política (nº 10)’,
‘Espiga (nº 11)’, ‘O moralista (nº 16)’ – e um sentimental – ‘A Maria,
epístola familiar (nº 19)’. Dom Pedro II visitou a Exposição do Centenário da
Independência dos Estados Unidos, no Estado da Filadélfia [EUA]. O fato foi
caricaturado no décimo número de O Polichinelo. Publicado no Rio de
Janeiro na Revista Ilustrada, de Angelo Agostini.
1877 – Estabeleceu banca de advogados, onde atuou até o final da vida, com
Antônio Carlos Manoel José Soares e, mais tarde, Antônio Januário Pinto
Ferraz. [...]
1880 – Comício de Luiz Gama e Martinho Prado Júnior, apoiando a Revolta
do Vintém no Rio de Janeiro, em janeiro, com a reunião de mais de 100
pessoas no Largo da Sé, apesar de forte temporal. Instado por Lúcio de
Mendonça, enviou-lhe em 25 de junho uma carta dando informes
autobiográficos. Nela afirmava ter já ‘arrrancado das garras do crime’ mais
de 500 escravos. Os jornalistas mulatos José do Patrocínio e Ferreira de
Meneses, amigos de Luiz Gama, criaram associações emancipadoras no Rio
de Janeiro. Surge a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, presidida por
Joaquim Nabuco, que também lançou o ‘Manifesto abolicionista’,
amplamente divulgado no País e no exterior, em francês e inglês.
1881 – Lúcio de Mendonça publicou o artigo biográfico “Luiz Gama” no
Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1881, de José Maria
Lisboa. Lúcio de Mendonça prestou homenagem ao “bom Republicano” cuja
saúde, minada pela diabetes, dava como próximo seu fim. Este artigo foi
reproduzido em diversos jornais e revistas do País até o final dos anos 30.
Luiz Gama foi uma referência na campanha republicana e abolicionista.
Fundação da Caixa Emancipadora Luiz Gama em São Paulo, por iniciativa de
João Brasil Silvado. (...) Em “Questão Jurídica”, sob aparente análise
jurisprudencial, Luiz Gama, mestre em levantar máscaras, demonstrou a
forma pela qual o falecido ex-ministro da Justiça, Nabuco de Araújo (pai de
Joaquim Nabuco, líder abolicionista em evidência), havia permitido a
reescravização ilegal de africanos, ato contraditório com as crenças que o
estadista proclamava. (A ‘Questão Jurídica’ foi reproduzida em jornais da
Corte e de outras províncias). Na ‘Carta a Ferreira de Meneses’, farto de se
defrontar com a Justiça de um País que não dá mostras de caminhar para a
Abolição, o advogado negro indignou-se ferozmente com o linchamento de
quatro escravos, para ele ‘quatro heróis’, que mataram um fazendeiro.
Atribuída a Luiz Gama a frase: ‘Perante o Direito, é justificável o crime de
homicídio na pessoa do senhor’.
1882 – Luiz Gama deu mais uma contribuição à construção do imaginário
republicano aproximando a imagem de Tiradentes à de Cristo, no artigo ‘À
forca, o Cristo da multidão’, publicado na folha comemorativa Tiradentes,
em 21 de abril, e, uma semana depois, em A Província de São Paulo. A
Gazeta da Tarde, propriedade de José do Patrocínio, publica na edição de 8
de agosto uma representação de Luiz Gama ao imperador, cuja finalidade era
‘implorar providências administrativas’ a fim de regularizar a situação de dez
negros alforriados, mas ainda privados de sua liberdade por famigerado
senhor de Minas. Reunindo suas últimas energias, Luiz Gama fundou o
Centro Abolicionista de São Paulo, com apoio de sua Loja Maçônica.
Foram, entre outros, sócios do Centro: Júlio de Castilhos, Alberto Bento e
João Brasil Silvado. Em 19 de agosto surgiu o primeiro número de Ça ira,
órgão dessa associação, redigido por Raul Pompeia, Alcides Lima e Ernesto
Correa. Luiz Gama morre em 24 de agosto. A folha do Centro Abolicionista
passou a chamar-se Luiz Gama. Pompeia, que o idolatrava, retratou-o de
forma memorável, deixando registro comovente dos últimos dias e horas
daquele ser ‘adorável’, que morria ‘muito pobre’, porém como benemérito
cidadão. Segundo as crônicas da época, seu funeral foi o maior, jamais visto
na cidade de São Paulo. Nele acotovelavam-se negros e brancos, cativos e
doutores, gentalha e figurões abolicionistas e senhores de escravos,
conservadores e republicanos, brasileiros imigrantes. Durante meses, os
jornais paulistanos deram notícia das incontáveis homenagens póstumas, por
vezes festivas, que ocorreram por toda a província e pelo País.
1883 – Primeira marcha cívica ao túmulo de Luiz Gama, no Cemitério da
Consolação, ato que durou até o final dos anos 1930. Joaquim Nabuco
publica O Abolicionismo. Em maio, José do Patrocínio e André Rebouças
criam a Confederação Abolicionista no Rio de Janeiro. O ex-promotor e juiz
municipal Antônio Bento e seu grupo, os ‘caifases’, tomaram a frente do
movimento abolicionista em São Paulo e passaram a organizar fugas de
escravos com forte apoio popular (FERREIRA, L., 2000, p. LXXIII
-LXXXVII).
A carta que Luiz Gama endereçou ao seu amigo Lúcio de
Mendonça como verdadeira autobiografia e a bem elaborada cronologia feita
pela biógrafa Lígia Fonseca Ferreira, em seu conjunto, dão a ideia da
dimensão gigantesca do calvário e da grandeza desse verdadeiro Spártaco
brasileiro.
Nenhum outro nome pode suplantá-lo no cenário da luta abolicionista, seja
nos embates pela imprensa, nas reuniões políticas, no tribunal, na esteira de
seus infindáveis processos de habeas corpus para soltura e alforria dos negros
escravizados.
II Luiz Gama: homem livre na província de São Paulo
Claudina Fortunato Sampaio, esposa de Luiz Gama, em casamento oficializado em 1869, após dez anos
de nascimento do único filho do casal, Benedicto Graccho Pinto da Gama, nasxido em 20 de julho de
1859. Ilustração de M. Campos, para o livro O precursor do abolicionismo no Brasil, de Sud Menucci.
“Evita a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o oceano
que se aproxima das costas para corroer os penedos”
Luiz Gama
Vencida essa primeira e sofrida parte da saga de Luiz Gama, o destino lhe
reservou, é bem verdade, com o mérito do seu gênio, uma vida de
aprendizado, lutas e vitórias, tendo sempre como farol, a liberdade do cativo,
o ideal de justiça, de democracia, de implantação da República e do fim da
escravidão.
Após ter completado seus 18 anos de idade, iniciou-se uma nova e
absolutamente distinta vida para Luiz Gama, num processo contínuo,
evolutivo, árduo de lutas, resistências e de aprofundamento no estudo do
Direito. A sua vinculação a diversos órgãos de imprensa como jornalista,
ativista político em diversas sociedades, algumas secretas, jornalista, crítico,
sócio
-proprietário de alguns órgãos de imprensa satírica, soma-se ao corajoso
trabalho de valente advogado e vibrante tribuno.
Autodidata e interessado em se aprimorar intelectualmente, não demorou
muito para alcançar contatos pessoais importantes, que lhe abriram as portas
para o novo emprego: o serviço público. Passou a exercer, na Secretaria de
Polícia, as funções de amanuense, no gabinete de Furtado de Mendonça,
considerado por muitos – e pelo próprio Luiz Gama – como o seu “protetor”.
Enquanto fazia cópias e registros dos documentos da Secretaria, ele se
dedicava, também, aos estudos, especialmente às leis.
Com a ajuda de Furtado de Mendonça,obteve o cargo de bibliotecário
interino da Faculdade de Direito de São Paulo. Além disso, como funcionário
público, Gama foi, por várias vezes, requisitado para compor o corpo de
jurados do Tribunal do Júri.
Além de garantir sua sobrevivência por meio do emprego público, Luiz
Gama se preparou para o mundo jurídico. Ao mesmo tempo, escrevia para
periódicos como O Diabo Coxo, que ele próprio criou, O Cabrião, O
Polichinelo, O Coaraci e, mais tarde, com Rui Barbosa e Américo de
Campos, O Radical Paulistano. Sob pseudônimos, tais como Barrabás e
Getulino, lançava pelos jornais, críticas à sociedade escravista e à política do
governo monárquico, deixando evidente o seu ideal por uma nação
republicana.
Em 1869, quando seu filho único Benedicto Graccho, contava com dez anos
de idade, Luiz Gama oficializou seu casamento com Claudina Fortunato
Sampaio, como ele também negra. Seus padrinhos de casamento na singela
cerimônia foram os maçons Antonio Carlos e Furtado de Mendonça, ambos
catedráticos da Faculdade de Direito, sendo o primeiro, na ocasião, venerável
da Loja América. Seu filho, como veremos adiante, honrou sobremaneira o
nome de seu pai, por toda a vida, tornando-se engenheiro eletricista e
importante oficial do Exército Brasileiro. Era a boa árvore dando bom fruto!
Luiz Gama e a Convenção Republicana de Itu
O Manifesto Republicano de 1870, no Rio de Janeiro, subscrito entre outros
pelas lideranças de Luiz Gama, Américo de Campos e Bernardino de Campos
constituiu-se, por sua força e projeção nacional, numa irreversível marcha em
direção à abolição total da escravidão, eis que esses pensadores sustentavam
a ideia de que a causa republicana era inseparável da causa abolicionista. A
força desse pensamento afinal prevaleceu, como a história demonstrou. 
Como bem lembrou Santos em sua obra:
“A República do Manifesto de 1870 já não é bem aquela que se concretizava
nas duas extremas negações de Luiz Gama – ‘a Terra do Cruzeiro sem rei e
sem escravos’ – nem tampouco aquela outra de Bernardino de Campos, que,
sem a Abolição, seria apenas uma utopia” (SANTOS, J. M. dos, 1942, p.
320).
Perdigão Malheiros, consagrado escritor sobre a história jurídico-social da
escravidão no Brasil e que faleceu em 1881, portanto antes mesmo da
Abolição, também abordou, a um só tempo, o conceito econômico da
escravidão e a idiossincrasia da servidão de que falava Étienne de La Boétie
em plena Renascença. Vejamos:
“O escravo era apenas um instrumento de trabalho, uma máquina; não
passível de qualquer educação intelectual e moral, sendo que mesmo da
religiosa pouco se cuidava.
Todos os direitos lhes eram negados (...) Eram reduzidos à condição de coisa,
como irracionais, aos quais eram equiparados, salvas certas exceções. Eram
até denominados, mesmo oficialmente, peças, fôlegos vivos, que se
mandavam marcar com ferro quente ou por castigo, ou ainda por sinal como
gado.
Sem consideração alguma na sociedade, perde o escravo até a consciência da
dignidade humana, e acaba quase por acreditar que ele não é realmente uma
criatura igual aos demais homens livres, que é pouco nais que um irracional.
E procede em conformidade desta errada crença, filha necessária da mesma
escravidão. Outras vezes o ódio, a vingança o excitam a crueldades.
Daí essa luta eterna entre o escravo e o senhor, e conseguintemente com a
sociedade; daí a necessidade de medidas excepcionais para resguardarem e
protegerem os senhores contra os escravos, para defenderem a sociedade, e
também contra os senhores em proteção aos escravos” (MALHEIROS,
Perdigão, 1944, p. 27, Tomo II).
Entretanto, Édison Carneiro, que efetuou comentário elogioso sobre o livro
de Perdigão Malheiros, A Escravidão no Brasil, publicado no Diário de
Notícias de 6 de agosto de 1944, e inserto na abertura do Tomo I da edição de
1944 da referida obra, observou que ela, ao seu final, “contém o plano do
próprio Perdigão Malheiros para a extinção do elemento servil, pela
transformação gradual do trabalhador escravo em trabalhador livre”. Tal
concepção é sintomática pois, embora contemporâneo de Luiz Gama que
faleceu no ano seguinte, a postura e perspectiva de luta eram bem
divergentes, uma vez que este, como devidamente explicitado na presente
obra, lutava ardorosamente, pelo fim imediato da escravidão e da própria
Monarquia, sem nenhuma concessão de prazo para a propalada transição do
trabalho servil para o trabalho livre.
Lúcio de Mendonça, praticamente confessor de Luiz Gama, como visto na
carta que este lhe encaminhou a 25 de julho de 1880, transcrita na íntegra por
sua importância e originalidade documental, 40 anos após, já com o seu
amigo e líder abolicionista morto, comenta em brilhante síntese a história do
Paladino da Abolição, no famoso artigo “Uma Página Antiga”, publicado em
13 de maio de 1920 no jornal O Estado de S. Paulo: “Recordo-me como
testemunha presencial de outra ocasião em que o nobre vulto de Luiz Gama
destacou-se a toda luz.
Estava reunido em São Paulo, num palácio da rua Miguel Carlos, em 3 de
julho de 1872, o primeiro Congresso Republicano da Província, presidido
pelo austero cidadão dr. Américo Brasiliense.
Era uma assembleia imponente. Verificados os poderes na sessão da véspera,
estavam presentes 27 representantes do município – agricultores, advogados,
jornalistas, um engenheiro, todos os membros do Congresso, maçons, pela
maior parte compenetrados da alta significação do mandato que cumpriam,
tinham na sobriedade do discurso e na gravidade do aspecto a circunspeção
de um Bernardo Romano. Lidas, discutidas e aprovadas as bases oferecidas
pela Convenção de Itu para a constituição do Congresso, e depois de outros
trabalhos, foi por alguns representantes submetido ao Congresso, e afinal
aprovado, um manifesto à província relativamente à questão do estado servil.
No manifesto, em que se atendia mais de conveniências políticas do partido
do que à pureza dos seus princípios, anunciava-se que, se tal problema fosse
entregue à deliberação dos republicanos, estes resolveriam que cada província
da União Brasileira realizaria a reforma de acordo com seus interesses
peculiares ‘mais ou menos lentamente’, conforme a maior ou menor
facilidade na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre: que, ‘em
respeito aos direitos adquiridos’ e para conciliar a propriedade de fato com o
princípio da liberdade à reforma as faria sendo por base a indenização e o
resgate.
Pondo em discussão o manifesto, tomou a palavra Luiz Gama, representante
do município de São José dos Campos.
Protestou contra as ideias do manifesto, contra as concessões que nele se
faziam à opressão e ao crime; propugnava ousadamente pela abolição
completa, imediata e condicional do elemento servil.
Crescia na tribuna o vulto do orador: o gênio, a princípio frouxo, alargava-se,
acentuava-se, emergido e inspirado; estavam quebradas a calma e a
serenidade da sessão, os representantes quase todos de pé, mas dominados e
mudos, ouviam a palavra fogosa, vingadora e formidável do tribuno negro.
Não era já um homem, era um princípio que faltava... digo mal: não era um
princípio, era uma paixão absoluta, era a paixão da igualdade que fugiu!
Ali estava na tribuna envergonhando os tímidos, verberando os prudentes. Ali
estava, na rude explosão da natureza primitiva, o neto da África, o filho de
Luiza Mahin!
A sua opinião cabia vencida e cairá: mas não houve também ali um coração
que se não alvorecesse do entusiasmo pelo defensor dos escravos.
Dir-te-ei sempre, meu nobre amigo, que não estás isolado, no partido
republicano, na absoluta afirmação da liberdade humana. Também como tu,
eu proclamo que não há condições para a reivindicação deste imortal
princípio, que não há contra ele nem direitos nem fatos que se respeitem.
Pereal mundus, fiat justila! E é ignorar essencialmente a natureza das ‘leis de
instituição’, querer que elas respeitem ‘direitos adquiridos’. Não é para Victor
Hugo, nem para Castelar que apelamos: é para Savigny, o histórico.
Ah! Está, em meia dúzia de pálidos traços, o perfil dogrande homem que se
chama Luiz Gama.
Filho de uma província que, com razão ou sem ela, não é simpática aos
brasileiros do sul: emancipador tenso, violento, inconciliável, numa província
fundada de escravos; sem outra família a não ser a que constituiu por si; sem
outros elementos que não fossem o seu forte caráter e o seu grande talento;
atirado só a todas as vicissitudes do destino, ignorante, pobre, perseguido,
vendido como escravo por seu próprio pai, enjeitado pelos próprios
compradores de negros, Luiz Gama é hoje em São Paulo um advogado de
muito crédito e um cidadão estimadíssimo. É mais do que isso: é um nome de
que se fez a democracia brasileira”.
Esse é outro importante registro histórico sobre Luiz Gama na luta pela
República e também pela Abolição, por isso sua famosa frase: “Terra do
Cruzeiro sem rei e sem escravos”.
Evaristo de Moraes, que por ter nascido no Rio de Janeiro antes da Abolição
e por ter vivenciado como advogado as primeiras décadas da República e,
ainda, por ser também um mestiço, aprofundou o estudo dos fatos históricos
que antecederam a Lei Áurea. Demonstrou que, entre 1879 e 1880, a
campanha abolicionista se desenvolveu ao lado da propaganda republicana,
chamando a atenção das conferências populares dos abolicionistas-
republicanos Vicente de Sousa, Lopes Trovão, José do Patrocínio, Ubaldino
do Amaral e Cyro de Azevedo. E afirmou: “De quem se dizia republicano,
supunha-se logo ser, também abolicionista, embora a recíproca nem sempre
fosse verdadeira: André Rebouças e Joaquim Nabuco foram abolicionistas da
primeira hora, mas eram e permaneceram monarquistas” (Cf. EVARISTO
DE MORAES, s.d., p. 99).
No que diz respeito ao movimento, em São Paulo, Evaristo de Moraes (p. 99)
demonstra a diferença em relação ao Rio de Janeiro:
“Em São Paulo, entretanto, nunca se julgara essencial a condição de
abolicionista para ser republicano. Isto foi notado e censurado por mais de
um monarquista-abolicionista e por alguns republicanos independentes”.
Mais adiante:
“Desde os primeiros passos para a organização do Partido Republicano em S.
Paulo (1872), fez-se questão de não comprometer os novos combatentes com
o credo radicalmente abolicionista. Acentuou-se esta tendência na chamada
Convenção de Itu, em abril de 1873, e tornou-se declaração expressa de
programa político no Congresso, reunido na capital da província, em julho do
mesmo ano. Entre os componentes do Congresso, cada qual representante de
um município, alguns já então se impunham no cenário da política provincial
e posteriormente ocuparam posição relevante no cenário da política geral.
Aludimos a Américo Brasiliense, Francisco Glycério, Luiz Gama, Cerqueira
César, Campos Salles, Ubaldino do Amaral, Américo de Campos, Azevedo
Marques, Jorge de Miranda, Bernardino de Campos, Quirino dos Santos,
Martinho Prado Júnior” (Idem, p. 102-103).
No entanto, mais adiante, Evaristo de Moraes faz questão de ressalvar a
nobre posição de Luiz Gama: “O único congressista que protestou contra esta
orientação foi Luiz Gama” (Ibidem, p. 104). O que este autor quis dizer, e
que todos já sabem, é que Luiz Gama atrelava sua bandeira de Abolição à
República.
Durante a Convenção Republicana de Itu, em plena Monarquia, a maioria dos
convencionais ricos fazendeiros produtores de café se dispunham somente a
discutir a causa republicana, deixando a causa da Abolição para outro
momento. Entendiam que as duas bandeiras juntas seriam inviáveis. Luiz
Gama recusou-se a participar desse parcial entendimento. Parcial porque,
como ficou demonstrado ao longo do tempo, a instalação da República e o
fim da Abolição eram perfeitamente interligados. Não se poderia pensar em
República com escravidão. Incompatibilidade absoluta de princípios.
Sem desertar da luta, quando de duas outras reuniões dos convencionais
republicanos na capital de São Paulo, Luiz Gama participou ativamente, e
com sua fulminante retórica, mudou o rumo do movimento político, para que
a bandeira de luta tivesse, simultaneamente, os dois significados: República e
Abolição.
No Brasil, era processado a passos largos o agravamento das contradições
entre as diversas classes que compunham nosso tecido social, afetando
diretamente o envelhecido conservadorismo colonial, sendo a Convenção de
Itu um exemplo vivo desse conflito. Havia a justificativa dos conservadores
de que dever-se-ia esperar o resultado da iniciativa, já em curso, da mão de
obra livre importada da Europa em substituição da mão de obra escrava,
preocupados em evitar o colapso da produção.
Caio Prado Júnior (1974, p. 209), a respeito, diz:
“Em suma, a República, rompendo os quadros conservadores dentro dos
quais se mantivera o Império, apesar de todas suas concessões, desencadeava
um novo espírito e tom social bem mais de acordo com a fase de
prosperidade material em que o País se engajara.
Transpunha-se de um salto o hiato que separava certos aspectos de uma
superestrutura ideológica anacrônica e o nível das forças produtivas em
franca expansão. Ambos agora se acordavam. Inversamente, o novo
dominante, que terá quebrado resistências e escrúpulos poderosos até havia
pouco, estimulará ativamente a vida econômica do País, despertando-a para
iniciativas arrojadas e amplas perspectivas. Nenhum dos freios que a moral e
a convenção do Império antepunham ao espírito especulativo e de negócios
subsistirá; a ambição do lucro e do enriquecimento consagrar-se-á como um
alto valor social. O efeito disto sobre a vida econômica do País não poderá
ser esquecido nem subestimado”.
Intensa foi a atuação política de Luiz Gama no campo da luta pela instalação
do regime republicano no Brasil, atuando como membro na Convenção de
Itu, recusou-se a participar da mesma.
Na verdade, o Clube Republicano teve origem no Clube Radical por sua
transformação em 1870. O Clube Radical fora fundado no Rio de Janeiro em
1868, influenciando dois periódicos, o do Rio de Janeiro, Correio Nacional, e
o de São Paulo, Radical Paulistano. No entanto, em 1880, logo após a
transformação em Clube Republicano, surgiu o jornal A República, que
continha o manifesto do novo partido enfrentando o estamento do Império.
Em decorrência de toda essa conjuntura política, é que se resolveu convocar
as mais destacadas lideranças políticas para a Convenção de Itu. Como Luiz
Gama se inseriu nesse contexto? Responde bem Carvalho (2007, p. 189):
“Os republicanos de São Paulo, na maioria fazendeiros, recusaram-se, para a
grande irritação e escândalo do abolicionista Luiz Gama, a incluir a Abolição
em seu programa, alegando que era assunto dos partidos monárquicos”.
Esse mesmo autor, pouco antes, faz sintomática observação que diz bem do
ânimo nada abolicionista da maioria dos convencionais, mais interessados na
República do que na Abolição, posto que fazendeiros que eram interessados
estavam em manter a mão de obra escrava até o seu limite, trazendo a frase:
“O liberal Silveira Martins dizia amar mais a Pátria que o negro” (Idem, p.
189).
As reuniões, em sua maioria secretas, sucediam-se provocadas pelas maiores
lideranças locais, tudo com o objetivo de articular o movimento capaz de
derrubar a Monarquia e instalar a República. Um grupo minoritário, contando
com a figura de Luiz Gama, associava o Movimento Republicano ao
Movimento Abolicionista. Isso lhe custou muitos dissabores, pois as mais
proeminentes lideranças representantes dos fazendeiros, pretendiam efetuar
um movimento de cada vez, a começar pela República. Registrando algumas
dessas reuniões preparatórias, José Maria dos Santos (1942) escreve:
“Américo Brasiliense não quis ser insensível às razões do seu amigo. O
encontro deles se deu na rua da Imperatriz (hoje 15 de Novembro), logo em
seguida às festas de Natal e Ano Bom, no dia 10 ou 12 de janeiro. No dia 14,
Brasiliense enviava por um próprio uma carta circular a cada um dos
republicanos então presentes em São Paulo, convidando-os para um chá, às 7
horas da noite de 17, em casa de sua mãe, onde se hospedara.
Além dos nomes acima indicados, compareceram mais

Continue navegando