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LETRA FREUDIANA - Ano X - n 9

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Apresentação
Benita LA. Lopes
Nossos Estudos e Transmissão de Psicanálise com Crianças e Adolescentesforam sustentados por Maria Cristina Vidal, inicialmente com NilzaEricson e nesses últimos anos com Cora Vieira e grupos de trabalho
constituídos em torno de temas e questões essenciais à teoria e à prática, que deram
origem ao que se consolidou como Grupo de Trabalho HanS.
Desde 1985, de forma sistemática e contínua, faz-se um percurso que passou
por Melaine Klein, Arminda Aberastury, Winnicott, Françoise Dolto, Maud Manonni,
Rosine e Robert Lefort. Procurou-se marcar de cada um, em seus casos, na sua
clínica, aposição do analista na direção da cura, o objeto em questão e o fim de
análise proposto pela teoria. Evidenciaram-se as contribuições, os impasses, os
paradoxos com todas as articulações, tendo por base Freud e Lacan.
Foi trabalhado o Caso Hans de Freud, que permitiu várias leituras em que se
podem ter, como fio condutor, as questões sobre a função paterna, o objeto fóbico
como significante e o falo como aquele que jamais deixou Hans só com sua mãe,
como comenta Lacan no Seminário IV a respeito do sonho de Hans com a pequena
Matilde: "Não somente sozinho, mas sozinho com..."
Freud fazendo valer em sua direção, no Caso Hans, uma verdadeira decantação
do gozo, o gozo que a fobia fixava, cristalizava e nessa linha restaura o movimento,
o sintoma segue seu rumo até o declínio da fobia. Arruma-se a estrutura. Leitura
fina de Lacan sobre o Caso HanS em seu Seminário sobre as Relações do Objeto.
Em 1987 fez-se um trabalho em torno das teorias sobre o Autismo, revisando-se
diversos teóricos como: Leo Kanner, Margareth Mahler, Francis Tustin, Donald
Meltzer, Bruno Bettelhein, tendo-se sempre presente uma polaridade comapsicose
e a neurose. Trabalhou-se, nessa época, diretamente Lacan no Estádio do Espelho,
no Modelo Ótico e os textos onde Lacan remete a criança ao fantasma da mãe e
atribui a seu sintoma uma resposta ao que há de sintomático na estrutura familiar:
a criança, com o seu sintoma, aponta ao não dito da relação parental. É justamente
o que trata as célebres Notas de Lacan à Jenny Aubry e o Discurso de Fechamento
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9 7
Apresentação
das Jornadas de Psicanálise sobre Psicose Infantil, promovidas por Maud Manonni.
Produziu-se então um trabalho: O Autismo, a ser brevemente publicado.
Em 1988 dedicou-se à Direção da Cura onde foram desenvolvidos conceitos
fundamentais sobre a prática lacaniana como: Entrevistas Preliminares, Estrutura
da Transferência, Manejo da Transferência, Demanda dos Pais e o endereçamento
da criança ao analista, etc. Quando então, em torno dessa discussão, Eduardo Vidal
propõe uma especificidade a ser considerada no trabalho com crianças: O analista
deve tornar-se imprescindível no sentido de que há uma alienação a perder para
que a própria criança possa sustentar seu tratamento.
Nos anos seguintes, com a apresentação de Casos Clínicos, a partir do trabalho
nos grupos, discutiram-se questões específicas a partir das articulações trabalhadas
nos anos anteriores: estrutura, transferência, entrevistas com os pais, etc.
Em 1991 três questões essenciais foram discutidas. Abordou-se primeiro o
Estatuto do Objeto como duas marcações essenciais por Cora Vieira: o lugar que
a criança ocupa no desejo do Outro e a relação da criança com seu próprio gozo,
com seu objeto, quer dizer, tal como teria acesso a ele em seu fantasma. Em seguida,
Maria Cristina Vidal retomou a questão sobre o Brincar e o Brinquedo já trabalhada
anteriormente, que em Lacan o paradigma é o Fort-Da freudiano. Destacou-se
com Lacan, no Seminário XI, que no lúdico, no jogo, no brincar é o real que se
impõe, "brincar como possibilidade de salto ao simbólico", quer dizer, do que se
trata no Fort-Da não é a simbolização da perda da mãe ou da metáfora de uma
perda, mas do que o sujeito deve perder nesse ato de se articular ao significante. O
brincar é ato e o brinquedo, o carretei, será designado na álgebra lacaniana, como
objeto a.
Finalmente, ainda neste mesmo ano, impôs-se a Questão do Fim de Análise tm
Psicanálise com Crianças. Problema crucial trabalhado por Nilza Ericson a partir
do Seminário sobre o Ato Analítico, quando então algumas questões foram
levantadas: haveria travessia do fantasma, conciliação da criança com seu gozo ou
apenas uma decantação e a construção do mito edípico pela criança? Ou somente
se poderia falar de uma separação do lugar que ocupava no fantasma do Outro e
constituir-se como objeto de seu próprio fantasma? Nesse sentido Eduardo Vidal
abordará aspectos essenciais da praxis psicanalítica e focalizará a conjunção e a
disjunção das Formações do Inconsciente com a estrutura do fantasma, marcando
que, justamente um ponto importante na cura com crianças, é poder construir, dar
um tempo para construção do fantasma, se o fantasma é uma resposta à hiância do
campo do Outro. Nesta abordagem está implicado que se produza algo como uma
8 LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9
Apresentação
separação do lugar que a criança ocupava no fantasma do Outro, que se descole do
plano da identificação a esse objeto, que encontre sua causa e a mãe tenha
possibilidade de aceder à verdade de seu desejo.
Neste momento, com este primeiro número de sua revista, o Grupo de Trabalho
Han$ compromete-se a continuar publicando os resultados de sua produção.
LETRA FREUDIANA - Ano X - n» 9
O lugar da criança
no discurso analítico
Maria Cristina Vecino Vidal
Otratamento da criança pode ser abordado na conjunção histórica queprecipitou neste século o lugar da criança no discurso da ciência —pensemos, por exemplo, na pediatria de recente emergência na clínica
médica. A incidência de Freud com a descoberta da sexualidade infantil, até então
repudiada e ignorada, é primordial. Por sua vez, a psicanálise com crianças teve
um percurso particular na história do movimento psicanalítico, pois a princípio o
próprio Freud não considerou inicialmente a aplicação de seu método ao tratamento
com crianças.
Sophie Morguenstern foi a pioneira no caso de mutismo. Sua posição instiga a
pensar a ação do desejo do analista que sustenta a palavra do sujeito ainda quando
ele não consegue falar. Com a utilização do desenho como suporte da palavra e
com o desejo decidido de articular o pequeno sujeito ao campo da linguagem,
Morguenstern inaugura uma insuspeitada região de interrogações e verificações
na psicanálise.
Na década de 1920 há um início de sistematização do saber da clínica com
crianças, em torno de duas posições antagônicas, a de Anna Freud e a de Melaine
Klein. Ambas analistas propunham uma direção da cura específica com a criança,
mas com abordagens teóricas e clínicas bem diferentes.
Anna Freud postula a realização de uma "análise pedagógica" com a criança.
Considera indispensáveis a existência de medidas educativas, o que ela denomina
"adestramento para a análise", uma preparação necessária para a entrada da criança
no dispositivo analítico, onde terá eficácia a operação do analista. Esta abordagem
supõe uma impossibilidade de estabelecimento precoce da transferência, cuja
causa, segundo Anna Freud, se encontraria na relação ainda muito intensa que a
criança mantém com os pais e a família. Dever-se-ia, assim, produzir uma sepa-
ração pais-criança para que o sujeito possa entrar na "neurose de transferência".
LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9 11
O lugar da criança no discurso analítico
Eis aí um paradoxo: o analista produziria essa separação enquanto educador,
subtraindo-se do discurso analítico a partir do qual se sustenta a transferência do
sujeito numa análise.
Melaine Klein, em uma posição radicalmente diferente, destaca uma direção da
cura com a criança dentro do marco da psicanálise. Nesse sentido, trata-se da
primeira psicanalista a considerar a criança enquanto sujeito do inconsciente que
pode ser abordado através de sua atividade espontânea — o brincar: "a criança
expressa suas fantasias, seus desejos e sua experiência atual através do jogo e de
um modo simbólico"1. Essa atividade,incluída na transferência da análise, tem
para Melaine Klein o mesmo valor que a associação livre do paciente adulto. É por
essa via que o pequeno sujeito entra no trabalho analítico. Considera as medidas
tomadas por Anna Freud para adaptar a psicanálise às crianças como um obstáculo
insuperável para o estabelecimento da situação analítica. Para Melaine Klein
orientação pedagógica e análise são radicalmente antinômicas. O processo analí-
tico não se fundamenta no projeto consciente nem no ego do paciente.
A posição destas duas analistas tornara-se uma querela insolúvel a partir da
exposição de suas teorias no Congresso de Insbruck (1927) ante a presença do pai
da psicanálise. A psicanálise com crianças não constituía uma preocupação para
Freud. Apesar da intervenção no caso Hans, esta criança não foi considerada como
o início de uma nova abordagem na psicanálise. Freud resiste a generalizar na
descoberta do universo infantil, o que se revela nas suas palavras introdutórias a
esse caso clínico: "Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uniam
numa só pessoa e, porque nela se combinava o carinho afetivo com o interesse
científico é que se pode, neste único exemplo, aplicar o método numa utilização
para o qual ele próprio não teria se prestado".2
Ernest Jones, na biografia de Freud, se surpreende com o fato de que o "homem
que explorou a mente infantil até um extremo tal como jamais teria sido possível
antes dele, tivesse conservado, no entanto, certa inibição que lhe impediu de
aproximar-se mais ao tema"3. É importante para nossa interrogação partir daquilo
que ele escreve sobre a criança no percurso de sua teorização.
Antes de mais nada, para Freud a criança é uma construção feita a-posteriori a
partir do discurso do analisante. Isso implica um corte com o evolucionismo
biológico da psicologia. A história não é a cronologia. Não há no sujeito um
desenvolvimento linear que o conduza desde o nascimento até a idade adulta. Os
conceitos de sexualidade infantil, complexo de Édipo, narcisismo, enquanto cons-
trução a-posteriori, não têm o caráter de momentos evolutivos senão de estruturas
12 LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
O lugar da criança no discurso analítico
constituintes do sujeito. Freud não precisou da observação da criança para inferir
o inconsciente. O inconsciente está estruturado como uma linguagem e a cons-
trução tem como suporte o retorno de significantes de fixação do sujeito. É a partir
da retroação da demanda no discurso que Freud procede a estabelecer as pulsões
parciais. A ação do tempo lógico, do só-depois, permite escrever algo defi-
nitivamente perdido na origem do sujeito.
O significante criança remete também à origem, na medida que em a causação
dos sintomas são referidos à sexualidade infantil. Freud fez a partir dessa des-
coberta um percurso, desde a procura do trauma sexual real à consideração da
sexualidade como o real traumático inerente à constituição de todo ser falante. Para
abordar esse real, o sujeito constrói o que Freud denominou os "fantasmas
originários" — Urphantasien: cena originária, castração, sedução. "Esses fantas-
mas originários constituem o tesouro das fantasias inconscientes que a análise pode
descobrir em todos os neuróticos e em todos os filhos dos homens". Eles são
organizadores da vida fantasmática e independem das experiências pessoais do
sujeito. A sexualidade da criança está implicada no texto do fantasma.
A criança constitui uma interrogação de todo sujeito enquanto presentifica o
enigma sobre sua própria origem, formulado na pergunta "De onde vêm os bebês?"
Freud fala então do pequeno sujeito, e aí está Hans, confrontado com a cena
primária, montagem para o desejo do Outro encarnado no par parental. Não pode
dar resposta à questão que suscita o nascimento da sexualidade. Carece de signi-
ficantes para dizer ou escrever a ordem do sexual. A ausência de relação sexual na
linguagem é suprida pela construção das teorias sexuais infantis que buscam
circunscrever o real impossível; daí o caráter universal e o valor estruturante da
teoria sexual na constituição do sujeito.
Desde o ponto de vista das "equações inconscientes", Freud destaca a criança
como "DasKleine", "o pequeno", enquanto representante privilegiado na econo-
mia psíquica: o bebê é um objeto separável, intercambiável, segundo a dinâmica
inconsciente, por pênis-fezes-presente-dinheiro. São equações estruturantes em
cujas redes circulam os desejos do sujeito. Freud define a estrutura do inconsciente
pela composição dos elementos materiais relacionáveis e intercambiáveis. A
criança à qual se refere está inserida no sistema simbólico; é um significante a ser
substituído na cadeia. A relação de múltiplas equivalências tem como suporte a
primeira e mais fundamental: bebê = pênis, que se sustentam num mesmo signi-
ficante: "DasKleine", "o pequeno". É a que privilegia a referência ao falo enquanto
LETRA FREUDIANA-Ano X-nQ 9 13
O lugar da criança no discurso analítica
signifícante da falta. O sujeito do inconsciente realiza as cinco equivalências em
cuja produção esteve sempre A mulher, lugar simbólico da falta e ponto de partida
do desejo. O desejo é sempre desejo do Outro e a criança se constitui antes de tudo
como enigma no desejo da mãe. À falta na mulher—o desejo de uma falta—vem
o signifícante "bebê", e na equação, a criança se faz equivalente ao falo faltante.
Constitui nessa relação sua falta-a-ser, pois nunca poderá sê-lo, ou seja, satisfazer
o lugar de falta a qual o Outro o condena. Por esta via, a criança participa do
fantasma materno e está sujeita a todas as capturas imaginárias que se lhe oferecem
para responder à falta do Outro.
Freud, ao abordar o narcisismo, situa o lugar fantasmático da criança no desejo
do Outro: ^His majesty the Baby". Freud toma esta frase como representação
inconsciente da "criança maravilhosa" que existe em todo sujeito e reaparece
renovada nos filhos: "a criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais
realizaram — o menino se tornará um grande homem e um herói em lugar do pai,
e a menina se casará com um príncipe como compensação para sua mãe"4.
A expressão traz à tona, na linguagem, o retorno do fantasma de perfeição e
completude que fundamenta a ilusão de completar-se no Outro. Situa de modo
paradoxal o advento do sujeito em sua dimensão de pura perda. É a nostalgia do
olhar materno, do objeto irremediavelmente perdido, que subjaz ao fascínio de uHis
Majesty the Baby, a imagem, i(a), recobrindo o objeto faltante.
Lacan redimensiona o lugar da criança na psicanálise. Sua teorização possibilita
o questionamento de uma prática freqüentemente atravessada por efeitos ima-
ginários, que acabam na proliferação da técnica como forma de abordá-la. A
afirmação categórica "a psicanálise com criança é psicanálise" testemunha a ética
que coloca a criança no discurso analítico, isto é, deve ser escutada como sujeito
do inconsciente que fala independentemente de sua idade cronológica.
Lacan destaca dois lugares possíveis da criança na economia libidinal que se
presentificam na clínica:
— como sintoma, sendo este o representante do que há de sintomático na
estrutura da família. Através dele fala da verdade enlaçada à trama de
desejos do par parental.
— como fantasma, a criança encarna com seu corpo o objeto a, articulada
ao real do gozo. Freud identificou a criança com "o pequeno", substituto
da falta materna: -cp. Lacan a situa também no real, como objeto de gozo
obturando o acesso possível da mãe à verdade do desejo: a.
14 LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9
O lugar da criança no discurso analítico
A criança entra no dispositivo analítico como sujeito do sintoma, endereçado a
um Outro a quem lhe supõe um saber, o analista. Na transferência possibilita-se o
percurso da alienação ao significante do Outro — o significante do desejo da mãe
que ele sustenta com seu sintoma — à separação de sua posição de objeto no
fantasma materno, que permite o acesso a seu próprio desejo, localizando-se na
estrutura, em relação à falta do desejo do Outro,ao a no campo do Outro. A partir
da torção operada pelo discurso analítico, o a passa a funcionar como causa e
suporte da construção fantasmática do sujeito em análise. É o vetor que orienta
para o momento de concluir uma análise com uma criança.
LETOA FREUDIANA-Ano X-n" 9 15
O togar da criança no discurso analítico
CITAÇÕES
1. Klein, Melaine. El Psicanalisis de Ninos, Cap. II
2. Freud, Sigmund. Análise de uma Fobia de um Menino de 5 Anos, vol. X, p.7
3. Jones, Ernest. Vida e Obra de Sigmund Freud.
4. Freud, Sigmund. Introdução ao Narcisismo, vol. XIV, p. 108.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund
— Sobre Teorias Sexuais das Crianças (1908). Edição Standard Brasileira,
vol. IX, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
— Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914). Edição Standard Brasileira,
vol. XIV, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
— Construções em Análise (1937). Edição Standard Brasileira, vol. XIV,
Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
JONES, Ernest.
— Vida y Obra de S. Freud. Buenos Aires, Editorial Nova, 1960.
KLEIN, Melaine.
— Psicoanalisis de Ninos. Buenos Aires, Ediciones Hormé, 1964.
LACAN, Jacques
— Discurso de Clausura de Ias Jornadas sobre Ia Psicosis en ei Nino; Notas
sobre ei Nino, in El analiticon. Madrid, Correo Paradiso.
16 LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9
A estrutura da transferência
na psicanálise com crianças
Myriam R. Fernández
O trabalho que ora apresentamos se desenvolveu durante três encontros,como parte do seminário de Psicanálise com crianças, que teve como temainicial, a transferência.
Dividimos o assunto em três subtítulos, cujos temas foram apresentados, um a
um, em nossos encontros.
I. O Sujeito em Análise e as Entrevistas Preliminares
na Psicanálise com Crianças
"No início da psicanálise está a transferência. Está lá graças ao psicanalisante",
diz Lacan na Proposição de 9 de outubro de 1967.
Na psicanálise com crianças não é diferente. No início de uma análise com
criança, também está a transferência.
E quem está em análise? Sempre, em análise, está o sujeito do inconsciente,
sujeito dividido e sintomático, cujo nascimento se dá pela entrada na ordem
simbólica da linguagem. Foi o que Freud nos mostrou exemplarmente, em Além
do Princípio do Prazer, com o fort da, o par opositivo de significantes.
Na psicanálise com crianças, não é outro o sujeito que está em análise — é
também o sujeito do inconsciente, sintomático na medida em que fala, representado
por um significante para outro significante. É, pois, o sujeito que pode trabalhar
em análise, e o campo deste trabalho, nós o sabemos, é a transferência. Aliás,
podemos dizer que uma análise é o trabalho da transferência.
Se, entretanto, a transferência está no começo da análise, sabemos que uma
análise e, logo, a transferência, não se iniciam com a chegada do paciente ao
consultório. Há um tempo — tempo que é lógico, na medida em que se trata da
temporalidade do inconsciente—há um tempo para que a transferência se instaure.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9 17
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
Isto acontece também na psicanálise com crianças que é, da mesma forma que com
o adulto, trabalho da transferência. Em se tratando de crianças, porém, há di-
ferenças em relação à análise com adultos e, portanto, em relação à transferência.
Um adulto, bem ou mal, busca análise. Uma criança é levada à análise—a demanda
inicial vem dos pais. Esta diferença é fundamental, inclusive no que se refere a este
tempo prévio à consolidação da transferência.
Falar de tempo prévio, preliminar ao início do trabalho analítico, é falar das
entrevistas preliminares. Em 1971,0 saber do psicanalista, dizia Lacan: "não há
entrada possível em análise sem entrevistas preliminares". Como pensar esta frase
de Lacan e pensá-la também em termos da psicanálise com crianças?
Em primeiro lugar, se é pela via do desejo que um sujeito chega à análise,
sabemos também que é pelo fato de estar sofrendo que ele busca análise. E o que
p faz sofrer, senão seu sintoma? Acontece que este mesmo sintoma que o faz sofrer
é sentido como um corpo estranho, como um sofrimento que lhe é infligido de fora,
por um outro, seja ele quem for. Assim, tal sofrimento poderia ser-lhe também
extirpado por um outro — sempre pequeno outro — que, no caso, seria o analista.
A expectativa é, pois, de uma relação dual, imaginária, deixando-nos perceber
claramente que este sintoma nada tem ainda de analítico, uma vez que o sujeito
não se reconhece no mesmo.
O sintoma a ser escutado em análise é aquele que tem valor de mensagem —
"o sujeito recebe a sua própria mensagem, sob a forma invertida, do campo do
Outro", diz-nos Lacan. Para que um sintoma tenha valor de mensagem a ser
decifrada será preciso, antes de mais nada, que o sujeito nele se reconheça, que
nele se sinta implicado. Só então poderá o sintoma se constituir em verdadeira
demanda que, ao ser dirigida ao campo do Outro, no qual inicialmente se situa o
analista, retornará ao sujeito sob a forma de uma pergunta. O sujeito se questiona,
então, sobre o seu sintoma (Por que faço isso? Por que sinto isso? Sou normal?),
sobre o que ele é (Quem sou eu?), sobre o que o Outro quer — é o Che Vuoi? —
testemunha da divisão do sujeito e de sua alienação fundamental ao desejo do
Outro, na medida em que, ao questionar o desejo do Outro, é sobre o seu próprio
desejo que se interroga.
Este é o momento da demanda de análise, em que o analista é posto no lugar
do sujeito suposto saber, do saber suposto como podendo responder a pergunta do
sujeito. O analista sustenta a função de sujeito suposto saber, embora sabendo que
não tem o saber que lhe é demandado. Não se deixando enganar, sustenta o engano,
possibilitando assim & fixação da transferência. Sustentar o engano, porém, não
18 LETRA FREUDIANA- Ano X-n» 9
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
significa enganar nem se enganar. Logo virá o desengano ... Ao demandar ao
analista que responda, sem obter tal resposta, só resta ao analisante a via da
associação livre, isto é, só lhe resta trabalhar para que se elabore o saber que
responda à pergunta do sujeito. É, já então, o desejo que se põe a caminho ... O
analista é, de certa forma, deslocado deste lugar de sujeito suposto saber, e sua
função será a de causar o trabalho em análise. O sujeito suposto saber—que não
é um nem outro — será o único sujeito em análise, sujeito desse saber suposto a
elaborar, e que permite que a análise aconteça. É o trabalho da transferência que
já está em jogo. Terminou o tempo preliminar.
Vemos, então, que as entrevistas preliminares foram o tempo necessário à
emergência da transferência, e a sua consolidação como campo do trabalho
analítico.
De início disséramos que este tempo é lógico, como toda temporalidade do
inconsciente. Isso significa dizer que o real, o encontro com o real — a tiquê —
está aí neste tempo preliminar, e que o preliminar de uma análise, como diz Eduardo
Vidal, é justamente o encontro com um ponto de tiquê, que é tanto para o analista
como para o paciente. Daí falarmos em emergência da transferência, emergência
de um significante que seja o significante da transferência, a partir do qual pode
começar o trabalho de análise. Algo que emerge é algo que irrompe, algo que não
se sabia e que só depois desta irrupção, num a posteriori simbólico, pode ser
significado. O não se sábia tira o analista do lugar do sujeito suposto saber. O
significante da transferência é o algo que não se sabia. A tiquê estaria, pois, neste
não se sabia.
Nas entrevistas preliminares, portanto, as coisas não se passam de forma simples
e linear como, num primeiro momento, podem parecer. Quando há tiquê, não há
simplicidade—há é a surpresa, o espanto.
Só depois, então, poderemos definir o antes que corresponde às entrevistas
preliminares e defini-lo como lugar de um encontro com o incalculável.
As entrevistas preliminares são, pois, a condição de toda análise, seja com
adultos ou com crianças. Como já dissemos, se a psicanálise é uma só, temos que
considerar as diferençasquando se trata da análise com crianças. Nesta, a demanda
inicial é dos pais. É esta demanda que faz com que nos tragam o filho. Isso vai
supor também a questão da transferência dos pais. Aí estão dois aspectos funda-
mentais — demanda e transferência — que apontam para a importância das
entrevistas preliminares, não só com a criança, mas também com os pais.
LETRA FREUDIANA-Ano X - n 8 9 19
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
De que demanda e de que transferência se trata no que diz respeito aos pais?
Quanto à demanda, não se trata, é claro, da demanda em que o sintoma se
constitui e que, ao se dirigir ao campo do Outro, retorna ao sujeito como pergunta
sobre o seu desejo. Pergunta que, ao ser relançada ao analista e ficando sem
resposta, permitira o surgimento do desejo. Esta é a demanda na qual o desejo
alienado se articula e que, só em análise, pode ser escutada. É a demanda que o
sujeito, adulto ou criança, terá que formular. A demanda dos pais, é, pois, outra
coisa. A questão é escutar de que ordem ela é, já que se trata de uma demanda para
a análise de outro sujeito — o filho.
No que se refere à transferência dos pais, não podemos vê-la como a trans-
ferência que é escrita no materna, no qual o significante da transferência é o agente
da instauração transferenciai e de um primeiro surgimento do sujeito. Esta é
reservada apenas e justamente ao sujeito que surge para a análise e que, no caso,
é revestido pelo corpo da criança. Algo há, porém, de transferência, em se tratando
dos pais, pois, de outra forma, seria praticamente impossível a análise com a
criança. Talvez possamos falar, em relação aos pais, numa transferência afetiva,
mas considerando sempre que afeto, em Lacan, não tem nada a ver com sentimento
e sim com um corpo que é afetado pelo significante. Este significante poderia ser,
num primeiro momento, "psicanálise", depois o nome do analista, em relação ao
qual haverá uma certa suposição de saber, sem, no entanto, haver a instituição do
sujeito suposto saber. No caso dos pais, no que diz respeito à transferência, faltaria
sobretudo o próprio significante da transferência, uma vez que não haveria o sujeito
sintomático, aquele que é representado por seu sintoma enquanto significante e
que, como tal, dirige-se ao analista para ser escutado.
Assim, as entrevistas preliminares com os pais são fundamentais, também no
sentido de que permitem que apareça ou não a transferência afetiva com a
psicanálise, substituindo-se esta por um particular analista qualquer—aquele que
tem um nome que o marca e que poderá vir a ser o analista de seu filho. Seja como
for, a transferência dos pais fica mais como vínculo intersubjetivo e, portanto, no
nível imaginário.
Foi Lacan que atraiu a atenção sobre a importância das entrevistas preliminares,
já um tanto tardiamente, em O saber do psicanalista, no qual faz a teorização sobre
as mesmas. É, pois, na clínica lacaniana que elas adquirem uma importância
específica.
Na clínica kleiniana não há entrevistas preliminares como tempo de instauração
da transferência, o que fica explicado quando M. Klein diz textualmente que, nas
20 LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
crianças, a transferência é imediata. Claro está que se trata de uma transferência
puramente imaginária.
Já Anna Freud considerava a necessidade de um tempo prévio, mas que é de
preparação da criança para a análise. Trata-se, portanto, de um preliminar peda-
gógico.
Mannoni e Dolto falam da importância de um período prévio à análise. Buscam
ver o que há de significativo no discurso dos pais e o lugar que a criança ocupa no
fantasma dos mesmos, principalmente da mãe — o que, aliás, é outra função
importante das entrevistas preliminares com os pais. Ambas, porém, consideram
a criança como um sintoma do conflito dos pais. Acontece que a criança, com seu
sintoma, não é só a expressão do conflito parental. Quanto à transferência, Mannoni
fala na questão da transferência múltipla e Dolto diz textualmente: "a transferência
é a relação imaginária, ao mesmo tempo consciente e inconsciente..."
Vemos, então, que é apenas em Lacan, com a sua clínica do real, que as
entrevistas preliminares têm um lugar teoricamente bem definido. Aliás, há muitas
análises de crianças que ficam apenas no preliminar das entrevistas.
II. A Estrutura da Transferência
Vimos já a importância fundamental das entrevistas preliminares, como tempo
necessário à emergência da transferência e a sua consolidação como campo do
trabalho analítico. Perguntamo-nos agora: afinal, o que é a transferência? Qual a
sua estrutura? É o tema que hoje tomaremos, ainda que de maneira breve, sempre
considerando que a transferência, em termos estruturais, é uma só, seja na análise
com adultos ou na análise com crianças. As diferenças existem, como sabemos,
mas elas se prendem à forma de instauração, de consolidação, de manejo da
transferência e não à sua estrutura.
Quando nos colocamos a pergunta sobre o que é a transferência, de imediato
nos vem uma primeira resposta: a transferência é amor. A sua estrutura é, pois, a
do amor que implica o desejo que se articula na demanda. Vamos porém, devagar...
Ao dizermos que a transferência é amor, nada mais fazemos que nos afirmar,
com Lacan, no campo freudiano. Em Observações sobre o amor transferenciai,
Freud diz textualmente: "A resistência não cria esse amor, encontra-o pronto, à
mão..." E mais adiante, no mesmo texto: "o amor transferenciai é provocado pela
situação analítica".
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9 21
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
Que "a transferência pode se definir como amor" é também o que diz Lacan no
Seminário VIII, onde vamos ouvi-lo dizer ainda: "o problema do amor nos
interessa, na medida em que vai nos permitir entender o que ocorre na transferência,
e diria, até um certo ponto, na causa da transferência". O amor está pois, na causa
da transferência, na causa deste "fenômeno em que estão incluídos juntos o sujeito
e o psicanalista", como coloca também Lacan, em 1964, no Seminário XI. "É —
continua ele—um fenômeno essencial ligado ao desejo como fenômeno nodal do
ser humano e que foi perfeitamente articulado no Banquete, de Platão—um texto
em que se debate sobre o amor". Diz ainda Lacan que "o momento essencial, inicial,
ao qual se deve reportar a questão que temos que nos colocar, da ação do analista,
é aquele em que é dito que Sócrates jamais pretendeu nada saber, senão o que diz
respeito a Eros, quer dizer, o desejo... Platão não pode fazer mais que nos indicar
o lugar da transferência".
Vemos, então, claramente apontado por Lacan que o lugar da transferência é o
amor e que, em um texto em que Platão estabelece um debate sobre o amor, o de
que se trata é também do desejo. "Sócrates pretende não saber nada, salvo saber
reconhecer o que é o amor (o Eros), quer dizer—afirma Lacan—o desejo". Iguala,
assim, o amor ao desejo, na medida em que o percurso de um é o percurso do outro,
na busca de algo que nunca vai se completar. "Na análise—diz Lacan—o sujeito
vai em busca do que tem e que não conhece, o que vai encontrar é isso que lhe
Salta". E ainda: wé nesse tempo, nessa eclosão do amor de transferência que deve-se
ler esta inversão de posição que, desde a busca de um bem, faz a realização do
desejo". Entendamos aqui realização do desejo como "emergência à realidade do
desejo como tal". A pergunta de Sócrates a Agatão é: "pode alguém desejar o que
já tem?"
Temos já agora um pouco mais de clareza quanto ao que significa dizer que a
estrutura da transferência é a do amor e a do desejo, que apontam para a falta e,
portanto, para o objeto. Vejamos, então, qual é afinal, esta estrutura.
Quando Lacan toma o Banquete — um texto de discursos—para aí mostrar a
estrutura do amor de transferência, podemos pensar que não é por acaso: falar de
discurso é falar do simbólico. De saída, pois, Lacan está colocando o amor de
transferência dentro de uma estrutura simbólica e que, como tal, obedeceàs
mesmas leis que regem a linguagem—a metáfora ea metonímia. Estas são também
as leis segundo as quais trabalha o inconsciente, na medida em que é estruturado
como uma linguagem, isto é, formado por significantes que trabalham. A trans-
22 LETOA FREUDIANA-Ano X-n" 9
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
ferência, então, só pode ser transferência de significantes — significantes que
formam o saber não sabido do inconsciente — e nunca de sentimentos.
Dizer, porém, que o amor tem uma estrutura simbólica, não exclui que ele tenha
também uma vertente imaginária e uma outra real. São estas três vertentes do amor
que Lacan aponta na análise que faz do Banquete, no Seminário da Transferência.
Afirmando a estrutura simbólica do amor, diz Lacan no mesmo seminário: "...
do que se trata é que justamente o amor como significante (...) é uma metáfora, na
medida em que a metáfora a aprendemos a articular como substituição ...". É
justamente a metáfora do amor que Lacan nos dá em seguida, ao colocar que "a
significação do amor se produz quando a função do erastés, do amante (podemos
ler — desejante), como sujeito da falta, vem do lugar, se substitui à função do
eromenós que é objeto, objeto amado". Lacan diz ainda que "entre estes dois termos
que constituem em sua essência o amante e o amado, não há nenhuma coincidência
— o que falta a um não é o que está escondido no outro. E aí está todo o problema
do amor". Podemos, então, dizer que do que se trata é da falta, que está tanto no
amante como no amado.
É justamente a função da falta como constitutiva da relação de amor que Lacan
assinala no discurso de Sócrates, quando este pergunta a Agatão: "este amor do
qual falas, é ou não amor de alguma coisa, é tê-lo ou não tê-lo? Pode alguém desejar
o que já tem?" E pouco depois Sócrates dá lugar a Diótima no discurso sobre o
amor.
Diótima, enquanto mulher e, portanto, enquanto lugar da falta, sabe do amor e
nos introduz no mito do nascimento do amor. É pontuando esta passagem que
Lacan vai colocar a sua célebre fórmula: "amar é dar o que não se tem — é dar
uma falta". E continua mais adiante: "o amor não pode ser articulado senão ao
redor dessa falta pelo fato de que, no que deseja, só pode haver falta". Podemos já
aqui pensar na questão do objeto do desejo, enquanto objeto a perdido e que, como
tal, é sempre faltante.
Apesar de estarmos falando da estrutura do amor de transferência como sim-
bólica, o que vai definitivamente confirmá-la como tal, na análise que Sócrates faz
do Banquete, é a presença de três personagens: Agatão, Sócrates e Alcibíades. É
o momento em que Lacan diz: "há que ser três e não apenas dois para amar",
marcando a estrutura ternária da transferência, enquanto relação do sujeito ao
grande Outro. Não se trata, pois, de uma relação dual imaginária de outro a outro.
Aí está presente o grande Outro da linguagem, a partir do qual o sujeito recebe a
sua própria mensagem sob a forma invertida.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9 23
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
É este também o momento em que Lacan compara o lugar de Sócrates ao lugar
do analista, na medida em que, ao ouvir o discurso que Alcibíades lhe dirige,
Sócrates o desvia para Agatão, dizendo: "Tudo o que acabas de dizer de tão
extraordinário falando de mim, é para Agatão que o disseste".
"Estruturalmente — diz Lacan — a intervenção de Sócrates tem todas as
características de uma interpretação". É porque sabe sobre o desejo que Sócrates
pode agir, neste momento, como analista, permitindo que o desejo de Alcibíades
siga seu caminho.
"Há agalmas em Sócrates e isto foi o que provocou o amor de Alcibíades", diz
Lacan no Seminário da Transferência, e no Seminário XI acrescenta: "Alcibíades
vem pedir a Sócrates algo que não sabe o que é, mas que chama de agalma". É,
pois, este agalma que constitui o objeto do desejo de Alcibíades e que Sócrates
sabe que lhe falta, assim como falta a Alcibíades — não lhe pode dar porque nada
tem para dar. "É porque Sócrates sabe que ele não ama".
Não podendo conseguir de Sócrates o objeto de seu desejo, Alcibíades tenta
seduzi-lo, oferecendo-se como objeto amado, como eromenon. Como diz Lacan
no Seminário XI, "amar é essencialmente querer ser amado". É o amor em sua
função de tapeação, mostrando a sua face de resistência, que o analista não pode
desconhecer. E é por não desconhecê-la que se nega a responder a demanda,
permitindo que, da posição de objeto a ser amado, o paciente passe à posição de
amante, isto é, de sujeito desejante.
Não nos esqueçamos, no que diz respeito à criança, que sua posição já é de
agalma — objeto a ser amado — o que tem a ver com o lugar que ela ocupa rio
fantasma da mãe. A substituição se daria, pois, no sentido de que pudesse, desta
posição passiva de objeto no fantasma da mãe, passar a ser, ela mesma, mais livre
para cuidar do seu próprio desejo.
Podemos perceber que a dialética da transferência é também a dialética do desejo
que se articula na demanda, que é da ordem da linguagem. Falar é demandar. A
demanda do sujeito se constitui a partir da demanda do Outro da linguagem, e o
desejo é aquilo pelo qual o sujeito se situa em relação à demanda do Outro (sendo
a mãe o primeiro Outro). A demanda é, pois, condição de desejo. O sujeito está
sujeitado à demanda do Outro e é pela via do desejo que pode sair dessa sujeição.
A única forma, porém, pela qual seu desejo pode surgir é pela não resposta do
Outro à sua demanda.
É aí que surge a dimensão da ação do analista, orientada pelo desejo do analista.
Ao não responder à demanda do sujeito, faz aparecer o desejo, permitindo que,
pela associação livre, se realize o trabalho da transferência. Este trabalho vai ter,
24 LETRA FREUDIANA- Ano X-n» 9
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
então, como causa, o desejo do analista, que deve ser apenas, e nada mais, o de ser
causa do desejo.
III. O Significante da Transferência
Iniciemos agora, relembrando alguns pontos essenciais do que já vimos a
respeito da transferência. Repetimos, então, que uma análise é o trabalho da
transferência e que a função do analista, orientada pelo desejo do analista, é causar
este trabalho.
Vimos que a estrutura da transferência é simbólica, isto é, uma estrutura ternária
enquanto relação do sujeito ao grande Outro da linguagem. Não se trata, pois, de
uma relação intersubjetiva. Ao contrário, como vai dizer Lacan na Proposição de
9 de Outubro de 1967, "a transferência é, em si mesma, uma objeção à inter-
subjetividade". Trata-se, já o sabemos, de uma relação que se estrutura em torno
da falta, uma vez que o objeto é desde sempre perdido. Lembremo-nos de que o
agalma que Alcibíades vem pedir a Sócrates—este misterioso objeto de seu desejo
— Sócrates não lhe pode dar porque lhe falta, assim como falta a Alcibíades;
Sócrates sabe que nada tem para dar. "É porque sabe que ele não ama", afirma
Lacan.
É esta também a posição do analista. Se há algo a respeito de que o analista tem
que saber, este algo é a falta. Não é este, porém,, o saber que lhe é suposto por
aquele que o procura. Como diz Lacan no Seminário VIU, "do analista se vem
buscar a ciência do que se tem de mais íntimo (...). Esta ciência ele é suposto tê-la".
O sujeito, portanto, entra em análise numa posição de engano absoluto, deman-
dando ao analista um saber que este não tem. É o que penso podermos matematizar
com o discurso da histérica ( f- §*) em que o sujeito (S) demanda ao analista, que
ele coloca na posição de significante mestre (Si), um saber (S2) que, na verdade,
é ele mesmo que tem, mas que não sabe que tem (um saber sobre o objeto a falante,
sobre aquilo que ele é no desejo do Outro). Este é o engano que, por algum tempo,
o analista sustenta, mas sem enganar nem deixar-se enganar, possibilitando assim
a fixação da transferência. Como já dissemos, logo porém, virá o desengano, uma
vez que o analista, da sua posição de semblante de objeto a (e aqui é bom escrever
o materna do discurso do analista, §-2 | j ) , só pode respondercom a falta de resposta
à demanda do sujeito, falta esta que permitirá que o desejo se ponha a caminho e
que se elabore o saber que responda à pergunta do sujeito.
Já estamos aqui falando do sujeito suposto saber (Ss S2), que Lacan vem
primeiramente formular em 1964, no Seminário XI, dizendo: "o sujeito suposto
LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9 25
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
saber, na análise, é o analista" e "desde que haja Ss S2 há transferência". Alguns
anos depois, na Proposição de 9 de outubro, continuando sua formulação sobre a
transferência, que desembocará no materna do significante da transferência, Lacan
irá dizer: "O sujeito suposto saber é, para nós, o pivô no qual se articula tudo o que
se relaciona com a transferência".
É importante marcarmos, porém, que dizer que o sujeito suposto saber, na
análise, é o analista, nada tem a ver com o analista enquanto pessoa, nem mesmo
enquanto sujeito, e sim com o analista enquanto função de causa. Tem a ver, pois
com aquilo a que Lacan se refere no Seminário XI, dizendo: "esse ponto pivô, em
torno do qual o movimento gira, é o que eu designo pelo nome de desejo do
analista". Ainda no mesmo seminário, continua Lacan: "Enquanto o analista é
suposto saber, ele é suposto saber também partir ao encontro do desejo in-
consciente. É por isso que eu digo que o desejo é o eixo, o pivô, o cabo, o martelo,
graças ao qual se aplica o elemento-força que há por trás do que se formula primeiro
no discurso do paciente como demanda, isto é, a transferência. O eixo, o ponto
comum desse duplo machado é o desejo do analista, que eu designo aqui como
uma função essencial (...) esse desejo (...) é precisamente um ponto que só é
articulável pela relação de desejo a desejo".
Vemos, assim, que se sujeito suposto saber e desejo do analista estão no mesmo
lugar, neste ponto de articulação de desejo a desejo, então o Ss S2 será o único
sujeito em análise, sujeito desse saber suposto a elaborar. A elaboração desse saber
será o trabalho da análise, isto é, trabalho da transferência, a ser realizado pela via
da associação livre, que supõe que o inconsciente é um saber (S2) — trata-se do
saber não sabido do inconsciente.
É importante, em relação ao inconsciente, poder fazer a distinção entre saber do
inconsciente (S2) e sujeito suposto saber (Ss S2). Se o inconsciente é um saber (S2),
não é, porém, o sujeito suposto saber (Ss S2). Tanto assim que quando Lacan
escreve os discursos, em todos o saber (S2), e o sujeito (S) são escritos como
opostos, são separados. No final da análise isto fica bem claro, pois, se o fim da
análise é também o fim do Ss S2, não é, entretanto, o fim do inconsciente, ou seja,
do saber não sabido (S2). O inconsciente não se esgota.
Estamos, já há algum tempo, falando do sujeito suposto saber, e nos parece que
é hora de nos perguntarmos: sujeito suposto por quem? Não pode ser por outro
sujeito. Como diz Lacan na Proposição—"um sujeito não supõe nada, é suposto"
e "suposto pelo significante que o representa para outro significante".
26 LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
Se o analista tem a hipótese de um saber inconsciente do lado do analisante e,
por isso, o faz falar, o analisante, por sua vez, supõe um saber ao analista. E do
lado do analista, pois que fica o Ss S2. Trata-se, no entanto, de um saber sem sujeito,
na medida em que o único sujeito em análise, voltamos a repetir, será o desse saber
suposto, ainda a elaborar.
Lacan nos dá, então, na sua Proposição, a escritura do "suposto desse sujeito,
colocando — como diz — o saber em seu lugar de adjacência da suposição".
Temos, então, o materna da transferência, que é a escrita do significante da
transferência.
s (Si, S2... Sn)
Sendo:
Sq
S — significante que representa o sujeito
Sq — significante qualquer, frente ao qual o sujeito é represen-
tado sobre a barra
s (Si, S2... Sn) — saber não sabido do inconsciente (S2), formado pela cadeia
de significantes articulados.
Na primeira linha está o significante (S) da transferência que representa o sujeito
para outro significante; neste caso o significante qualquer (Sq). O sujeito é
representado por seu sintoma enquanto significante, que se dirige a um particular
analista qualquer. O analista é, pois, colocado no lugar do significante qualquer
(Sq), mas que, sendo qualquer, supõe uma particularidade do lado do analista e da
análise. O paciente diz: "meu analista".
Na Proposição, Lacan se refere a esta particularidade "no sentido de Aristóteles",
ou seja, da lógica aristotélica que implica a lógica de classe. Se se diz — "meu
analista", "um analista"—é porque há constituída a classe dos analistas.
Nesta primeira linha do materna da transferência, vemos bem precisado o caráter
binário do significante, uma vez que não há um significante sem outro significante.
A respeito da segunda linha, diz Lacan: "sob a barra, o s representa o sujeito,
implicando no parêntese o saber, suposto presente, dos significantes no incons-
ciente, significação que ocupa o lugar do referente ainda latente nesta relação
terceira que o junta ao par significante/significado".
Tentemos ler o que está sendo dito. Em primeiro lugar, o sujeito, para Lacan,
não é uma subjetividade e, pela formulação que faz do sujeito suposto saber,
podemos dizer que o sujeito é só a suposição de trabalho inconsciente. O sujeito é
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9 27
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
escrito no lugar do significado em sua relação ao significante (S) e, enquanto
significado, é representado por seu sintoma endereçado ao analista. No parêntese
temos o saber (S2) suposto presente dos significantes no inconsciente. Esse saber,
na verdade, é suposição do significante primeiro (Si), pois o segundo significante
(S2) não supõe nada.
O saber suposto é a significação que ocupa o lugar do referente ainda latente,
em sua relação terceira que o junta à dupla significante-significado. Teremos que
ver depois que referente é este que, no momento, é ainda apenas latente.
Vejamos, então, na escrita do materna, como fica o saber nessa relação terceira
ao par significante-significado.
s S2 (saber) referente latente (significação)
O saber inconsciente é então uma significação e esta se produz como terceiro
termo entre significante e significado, quando um primeiro significante (Si) se
articula a um segundo significante (S2) que vem dar significação ao primeiro. Por
trás dessa significação está o saber escondido que a produz. O saber inconsciente
se manifesta, então, como significação. É preciso o deciframento para que apareça
como saber e isto se compreende a partir da metáfora. O efeito de significação se
produz por metáfora, em que há a substituição de um significante por outro.
Lembremo-nos da metáfora do amor, em que "a significação do amor se produz
quando a função do erastés, do amante (isto é, desejante), como sujeito da falta,
vem no lugar, substitui-se à função do objeto, objeto amado".
Lacan diz, porém, que "a significação ocupa o lugar do referente ainda latente"
e temos que pensar o que isto quer dizer. É o saber (S2) sob a forma de significação
que ocupa tal lugar.
Já vimos que o momento de entrada em análise, que se dá exatamente pela
irrupção do significante da transferência, é também o momento de um não se sabia
e, portanto, de um encontro com um ponto de tiquê, que é tanto para o analista
como para o paciente. Esse não se sabia, que surge como tiquê, justamente no lugar
onde se produz a significação, é algo que escapa a todo registro que seja da ordem
do significado e da significação, que implicam também o significante — escapa,
portanto, ao simbólico. É algo que estava lá, de forma latente, mas que não se sabia
e que, justamente com o significante da transferência, irrompe também, escapando
ao próprio significante. Trata-se então, da emergência fugaz do objeto a, para o
28 LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
qual aponta todoo trabalho da transferência, mas que ainda não está lá. É o referente
latente, em cujo lugar está o saber sob a forma de significação encobridora.
O sujeito, em análise, dirige-se ao analista, que ele coloca no lugar do sujeito
suposto saber, demandando-lhe um saber que este não tem. Coloca, portanto, o
saber no lugar de objeto de desejo. O objeto está, então, do lado do Outro e,
recoberto pelo saber, sustenta a demanda na transferência. Ao não responder à
demanda, o analista, na sua função de causa, faz aparecer o desejo, permitindo que
se realize o trabalho da transferência, ao mesmo tempo, em que é, de certa forma,
deslocado do lugar de sujeito suposto saber. Ocupando o lugar de objeto causa de
desejo, sai do campo do Outro, permanecendo nele apenas como falta.
Por outro lado, o sujeito em análise, que busca o objeto de seu desejo, objeto
que nada mais é que saber o lugar que ele ocupa no desejo do Outro, esse sujeito,
pela via da associação livre, irá construindo tal saber, até chegar à descoberta final
— a de que, no desejo do Outro, ele é apenas objeto a causa do desejo. Esse é o
momento final de análise em que, do lugar que ocupava de semblante de objeto a
o analista cai definitivamente como resto.
Vemos então que o objeto a esteve aí o tempo todo, ainda que recoberto pelo
saber e que, em torno dele, se faz o trabalho de análise.
Quando se disse a princípio que a análise é o trabalho da transferência, vemos
que isto fica confirmado no final de análise. Foi o amor de transferência que
permitiu que o sujeito, de sua posição de objeto amado, de objeto de desejo do
Outro, passasse finalmente a objeto causa de desejo. E este é todo o trabalho de
uma análise...
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9 29
A estrutura da transferência na psicanálise com crianças
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30 LETRA FREUDIANA- Ano X .n»9
As entrevistas preliminares
na psicanálise com
uma criança
Myriam R. Fernández
Nessa apresentação, vamos focalizar, na prática analítica, as entrevistaspreliminares com os pais e a criança. Quanto ao analisante—a criança —as entrevistas preliminares são, como sabemos, o tempo necessário à
emergência da transferência e a sua condição como campo do trabalho analítico.
O paciente, um menino, esteve em análise por dois anos e meio, quando, então,
o tratamento foi concluído. No caso de uma criança, se não é possível dizer que
houve um final de análise como o formulado logicamente por Lacan no seminário
do Ato Analítico, pode-se, no entanto, afirmar que, naquele momento, essa análise
terminara. Ao iniciá-la, o paciente tinha cerca de cinco anos e oito meses e
anteriormente estivera em tratamento por um ano e meio. Era encoprético. Filho
mais velho de um casal jovem já separado, tinha um irmão mais moço que nascera
quando estava com aproximadamente dois anos e meio. Poucos meses depois
deu-se a separação dos pais. O menino sofrerá algumas perdas praticamente
concomitantes: a saída da ilha onde vivera com os pais (uma espécie de ilha
encantada para ele), o nascimento do irmão (e conseqüentemente perda do lugar
de filho único) e a separação dos pais.
A queixa fundamental dos pais era a encoprese, mas a mãe falava da agres-
sividade do filho e o pai considerava-o manhoso e mimado.
Aí estava, pois, a demanda dos pais com a sua queixa. Demanda que, já sabemos,
é apenas imaginária, diferente daquela que se constitui em análise.
Em termos de transferência possível, nesse momento inicial, havia o signif icante
"psicanálise" e o nome da analista. Teria que aparecer uma certa suposição de saber
que, de certa forma, se apresentou de início, fortificou-se e permaneceu durante
LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9 31
As entrevistas preliminares na psicanálise com uma criança
todo o tratamento e até para além dele. É interessante pensar que, se ao final de
uma análise, cai o sujeito suposto saber, em se tratando do que se pode chamar de
transferência dos pais, permanece a suposição de um certo saber, o que aponta para
o caráter imaginário dessa transferência, diferente também da que se institui em
análise, mas que, como vínculo intersubjetivo, é indispensável à possibilidade do
tratamento de uma criança.
As entrevistas preliminares
Primeira entrevista com os pais (o que escutei de mais significativo no discurso
de ambos):
Pai — falando a respeito da separação do casal, diz duas vezes: "fui eu que me
separei". No decorrer das entrevistas, entretanto, vai aparecer sua difi-
culdade de separação. A tal ponto que, quando o tratamento do filho é
concluído, acha que é cedo para terminar. Aos poucos aparece muita
culpa em relação à separação do casal, a qual relaciona o sintoma do
filho, embora o ligue também ao nascimento do irmão. Dou-me conta
de que essa separação ficou muito mal resolvida, permanecendo o
paciente no meio do "jogo" que havia entre os pais.
Mãe '•—a respeito do sintoma do filho: "acho que agora ele faz mais para me
agredir. Eu me sinto agredida". Conta como se dá a questão do cocô
entre o filho e ela (um verdadeiro jogo de gozo) e diz: "Ele pede para
eu lhe bater, é como se pedisse para apanhar". Mais adiante, afirma:
"Ele não quer que lhe digam — não". Escuto que ela também não quer
que o filho lhe diga — não (um "presente" não pode dizer — não) ...
Veremos adiante porque se fala aqui em "presente".
Conta que o filho, quando bebê, tivera algumas doenças: alergia a
picadas de mosquito e, ao mesmo tempo, sarna e impetigo. Diz que
ficava noites em claro passando a mão no corpo do menino para que
ele não se cocasse (mais tarde sujaria as mãos no cocô dele).
Mãe e pai dizem que na escola o filho parece outra criança. O pai acrescenta:
"sem estar conosco parece outro. É como dizem: são os pais que estragam os
filhos". Penso que a fantasia desse pai seria a de que, com a separação, teria
estragado o filho.
Há muita rivalidade entre os pais, usam de muita ironia um contra o outro,
discordam freqüentemente. A separação não fora aceita pela mãe, que aproveita
32 LETRA FREUDIANA - Ano X - n« 9
As entrevistas preliminares na psicanálise com uma criança
todas as oportunidades para agredir o pai. Este, por sua vez, usa o foto de sustentá-la
para querer que ela fique como babá dos filhos (vamos ver como isto adquire
importância pela própria história dela).
Na segunda entrevista com os pais o que surge de mais significativo é a fantasia
do pai de que o filho, quando vier, talvez não queira entrar na sala sozinho comigo
(não se separar dele, portanto, não se soltar).
Percebo a necessidade de ouvir esses pais separadamente. Antes, porém, devo
ver a criança. Afinal, ambos tinham formulado sua demanda de tratamento para o
filho e havia um sintoma bem enunciado pelos pais — a encoprese.
Faço três entrevistas com a criança. Na primeira vem com o pai e a fantasiadeste
não se realiza, pois o menino entra comigo, desenha, quase não fala, mas fica.
Na segunda entrevista, penso que algo da suposição de um saber e, portanto, da
transferência, começa a se delinear. Faz um desenho, peço-lhe que conte uma
história sobre o mesmo e ele diz: "você já sabe" (refere-se à história que contara
sobre o desenho que fizera na primeira entrevista e que era também com coelhos).
Respondo-lhe que é um desenho novo, pode ser uma história nova e quem sabe é
ele. Falando sobre os coelhos, pergunta-me quanto ao maior deles: "que ano ele
tem?" Não respondo, dizendo-lhe apenas que quem sabe é ele. Faz o mesmo em
relação ao coelho menor, sem obter resposta. Pergunto-lhe quais são os nomes dos
coelhos, ele não fala, mas "escreve". Ainda não sabe escrever, mas faz com clareza
a primeira sílaba do nome do coelho maior — Mi (que é também a sílaba inicial
do nome da analista).
Na terceira entrevista, o que de mais significativo surge em relação à emergência
da transferência, dá-se justamente quando já está saindo. Brinca com a corrente da
porta, tentando fechá-la por fora (para guardar-me lá dentro?). Digo-lhe que não
dá, que fica difícil e que eu fecharei por dentro. Diz então: "mas não fecha a porta".
Escuto isto como um pedido para que eu deixe a porta aberta para que ele possa
voltar a entrar. Respondo-lhe então que a porta estará aberta para ele, quando voltar
da próxima vez.
Depois dessas três entrevistas com a criança, vejo o pai. Diz que faz análise, e
volta a mostrar muita culpa pela separação. Fala na perda de sua mãe, há um ou
dois anos, e na dificuldade de separar-se dela—chora. Pergunta se o filho estaria
doente pela separação dos pais. Separação parece ser algo da ordem do seu
fantasma e mais: o filho doente pela separação.
Faço a seguir umas quatro entrevistas com a mãe. A princípio estava muito
arredia. Percebo que tinha medo de que eu quisesse analisá-la ao invés do filho,
LETRA FREUDIANA-Ano X-n« 9 33
As entrevistas preliminares na psicanálise com uma criança
pois o marido dizia que ela tinha problemas psíquicos e que precisava de análise
(e, de fato, necessitava). Havia uma certa "limpeza de campo" a ser feita, inclusive
para que a "transferência" comigo pudesse aparecer. A situação era um tanto
complicada e não se podia começares cegas o tratamento da criança. Estaria o filho
denunciando com o seu sintoma o que era da mãe?
A partir da terceira entrevista a situação fica mais clara, inclusive para a mãe, a
quem digo que se alguém ali for fazer análise comigo será o filho e não ela. Diz
que já se tratara durante algum tempo. A partir desse momento, pode falar sobre a
sua própria história, na qual aparece um pai muito severo, "durão", que não era
bom marido para sua mãe e que também só lhe permitira fazer o primeiro grau,
obrigando-a, então, a ficar em casa para ajudar a mãe, que trabalhava com ele.
Sentira-se como empregada para os irmãos, principalmente para um deles, que ela
dizia ser o privilegiado — ganhava coisas do pai e pudera estudar (era clara a
rivalidade com esse irmão). "Agora quero me presentear. Quero me dar coisas".
Diz isto com raiva do marido que quer fazê-la de babá dos filhos (e, portanto, de
empregada).
Na fantasia dessa mãe, seria o paciente, primeiro filho, o "presente" que não
tivera do pai? Só que um presente cheio de cocô, onde ela suja as mãos, uma vez
que o menino não se limpa e é ela que tem de fazê-lo, como antes passara a mão
na sarna e no impetigo dele. Além do mais, até o cocô que ela lhe pede ele não dá
— mas se suja (faz nas calças) e ela tem que limpá-lo como uma empregada.
Quanto à criança, parece que está recebendo a demanda que poderá levá-lo à
neurose obsessiva, frente à natureza paradoxal do objeto anal que lhe é demandado
— a mãe pede, mas, quando ele dá, é algo que ela acha nojento. Diante disto, a
dúvida: dou ou não dou? A dona é ela ou sou eu? Ao mesmo tempo, está preso na
relação mal resolvida entre os pais, nesse jogo em que fica como a pedra do meio.
Talvez, com seu sintoma, fale sem saber do desejo de se soltar. Durante as
entrevistas, através das brincadeiras e dos desenhos que faz, percebo que está entre
prender e soltar.
Depois das entrevistas com a mãe, faço uma com o casal e começo a ver
regularmente o menino. Estamos ainda no tempo preliminar das entrevistas. Na
terceira, após esse início regular, surge mais claramente, por meio de uma desenho,
algo da transferência. Faz primeiro um barco preso pela âncora (barcos presos por
uma âncora serão uma constante por longo tempo — é o gozo fixado que não se
move). Através de minhas perguntas, vai contando parte de sua história na ilha em
que vivera com os pais, uma vida paradisíaca, que fora bruscamente interrompida.
34 LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9
As entrevistas preliminares na psicanálise com uma criança
Enquanto fala, desenha um segundo barco que não está preso pela âncora. Leio
esse desenho como: ele está preso (ancorado), mas não está sozinho—há um outro
barco que está com ele. Vejo isto na transferência como a inclusão da analista nas
suas fantasias.
Na entrevista seguinte começa a dirigir o sintoma à analista: arrasta-se pelo chão,
tira a camisa e esfrega-a também no chão, põe-na na boca, empapa-a de saliva.
Suja-se, portanto, como se fizesse cocô nas calças, mas ainda é uma sujeira só dele
que o outro não tem que limpar. Trata-se de uma mostração do sintoma. É como
se estivesse me testando.
Paralelamente, a situação com a mãe está péssima, há brigas terríveis entre os
dois—o "jogo" continua. Começa também a fazer tudo para contrariar a analista.
Passa a só querer entrar acompanhado pela mãe ou pela avó. Vacila na trans-
ferência. Há entrevistas que são interrompidas ainda na sala de espera. Outras vezes
entra na sala com a mãe ou a avó. É um momento bastante difícil. Numa das vezes
em que entra com a mãe, há uma verdadeira mostração do jogo de gozo enlou-
quecido entre eles — é a repetição em ato que denuncio na hora. O "jogo" agora
é o entra não entra. A questão não era tanto com a analista, mas com a mãe: ela
queria que ele entrasse (que desse o cocô), ele não entrava (não dava) — era a sua
forma de se proteger do desejo da mãe. Isto se repete outra vez quando, ao
chegarem, a mãe quer que ele vá ao banheiro e ele não vai — era a encenação do
gozo real com o objeto cocô entre eles. Denuncio a situação novamente, interrompo
e digo que voltem na próxima vez.
Durante esse período tenho entrevistas freqüentes com a mãe porque a questão
está séria.
Quanto ao menino, um dia entra, outro não. Às vezes está na sala comigo, a mãe
na sala de espera, sai correndo para vê-la e não quer mais entrar. Espero mais um
pouco e decido cortar as vindas da mãe e da avó com ele, pedindo que venha com
a empregada. Na primeira vez não entra, mando-o embora da sala de espera. Depois
disso, começa aos poucos a entrar, mas continua as provocações com a analista.
Queixa-se à mãe da falta de brinquedos no consultório. Converso com ele sobre
isto, diz que quer um jogo, não sabe qual, mas acaba se decidindo por um dominó.
A princípio brinca com as pedras sozinho. Pouco depois, passa a pedir à analista
que "jogue" com ele (é importante que o jogo passe a ser com a analista). É tempo
de fixação da transferência, mas outra complicação aparece: a mãe arranja um
namorado e leva-o para casa. O menino então nega-se a vir com a empregada, quer
que a mãe venha e entre na sala. Permito por algum tempo.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n" 9 35
As eatrevistas preliminares na psicanálise com uma criança
Nessa época, tenho duas ou três entrevistas com o pai, que está furioso com a
questão do namorado da mulher estar na casa.
A situação se acalma um pouco. Corto novamente as vindas da mãe com o filho,
que volta a ser trazido pela empregada. Outra vez tenho que mandá-lo embora da
sala de espera, ou porque não quer entrar ou porque quer ficar lá vendo revistas —
mas isto dura pouco. Recomeça a entrar e um dia, de repente, irrompe o significante
da transferência. É realmente uma irrupção que eu nãoesperava (não sabia) que
se daria assim, o paciente também não.
Ele chegara com um embrulho de papel laminado no qual havia quatro san-
duíches de biscoitos cream crackers com requeijão pastoso. Senta-se no diva, abre
o pequeno embrulho e começa a comer seus "sanduíches". Ainda pela sala, senta-se
no diva e, aos poucos, temos o "cocô" espalhado por todos os lados. De vez em
quando olha-me provocativamente. Continuo sentada, sem dar uma única palavra.
Ele também não fala, mas suja e se suja. É claro que sinto um certo mal estar com
tanta sujeira, mas calmamente espero. Quando termina, ele fica me olhando e eu
lhe pergunto: "e agora?" Ao que ele responde: "você limpa". Digo-lhe: "é você
que vai limpar. Quem suja, limpa. Quem se suja, se limpa". Claro está que ele diz
que não vai limpar. Apanho a vassoura e a pá de lixo, ele diz que vai embora, eu
lhe respondo que ele irá sim, mas que antes vai ter que limpar. Proponho ajudá-lo,
segurando a pá, mas a limpeza com a vassoura será dele. O momento é crucial. Por
fim, apanhado de surpresa com a minha decisão e vendo que parecia não haver
outro jeito, ele aceita o acordo e faz, como pode, a limpeza.
Fora algo da ordem da tiquê — encontro com um ponto do real — tanto para
ele como para a analista.
Penso que o fato de a mãe não estar mais ali sustentando aquela relação via cocô
facilitou o deslocamento. O sujeito (s), com o saber não sabido do inconsciente
(Si, S2 ... Sn), representado por seu sintoma enquanto significante (S), pôde se
dirigir ao analista, esse particular significante qualquer (Sq). Temos então o
materna da transferência:
s(Si,S2 . . .Sn)
A partir desse momento é o trabalho da transferência que estará em jogo.
Terminou o tempo preliminar — término que só um pouco depois, já a posteriori,
pôde ser reconhecido como tal.
36 LETRA FREUDIANA- Ano X-n» 9
O estatuto do objeto
na psicanálise
Cora Vieira
"Eu te amo,
Mas, porque inexplicavelmente
Amo em ti algo
mais do que tu -
o objeto a minúsculo
Eu te mutilo".
(Lacan, Seminário XI,
Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise)
Oestatuto do objeto na psicanálise para Lacan tem características bastantedefinidas e particulares.O objeto para ele, não é o objeto dividido em bom e mau de M. Klein, nem
o objeto transicional de Winnicott e nem o objeto perdido que se busca infini-
tamente reencontrar de Freud.
No Seminário A Ética da Psicanálise (Seminário VII) fala de das Ding,
antecedente lógico e teórico do objeto a, definido como um espaço vazio de
representação e constitutivo do objeto. É neste vazio, furo que delimita o in-
consciente, fora de qualquer articulação significante, que Lacan instaura o objeto
a, encarnação de um vazio, causa de desejo. Marcado pelo significante da falta no
Outro, S(A), o objeto a vem funcionar no lugar onde a existência do Outro falha.
O conceito de objeto a vai sendo construído ao longo de sua obra. Em 56/57,
no Seminário As Relações de Objeto e as Estruturas Freudianas (Seminário IV),
diz: "a relação central de objeto é a de falta de objeto". Trabalha neste texto o objeto
do desejo como a falta de objeto, simbolizada pelo falo. Em 57/58, nas Formações
do Inconsciente diz: "não há objeto senão metonímico, o objeto do desejo sendo o
objeto do desejo do Outro e o desejo sendo sempre desejo de outra coisa, mais
precisamente, daquilo que faltava ao objeto perdido primordialmente, na medida
em que Freud nô-lo mostra como estando sempre por ser reencontrado". Ai ainda
LETOA.FRBUDIANA-AnoX-n'^ 37
O estatuto do objeto na psicanálise
trata o objeto como ilusório e procurado infinitamente por um desejo metonímico.
Em 58/59, em O Desejo e sua Interpretação, Lacan aponta para o caráter real do
objeto a, indicando o lugar do objeto no materna do fantasma $Qa, a partir da
estrutura do desejo do sujeito como desejo do Outro. Em 60/61, no Seminário
A Transferência (Seminário VIII), começa a marcar a diferença entre o objeto a
do fantasma e o objeto metonímico.
Porém, é no Seminário A Angústia (Seminário X), em 62/63, onde Lacan vai
teorizar sobre o objeto a como objeto do real. Coloca, que a angústia surge como
sinal de algo que falta, falta da falta, resposta no real evocada pela incidência do
desejo. O desejo do Outro, se endereça ao sujeito e o coloca em questão. A angústia
é o que não engana e surge diante de algo irredutível do real.
Lacan nos fala ainda neste texto de duas faltas: a falta no simbólico, ligada à
castração, ponto onde Freud articula o final de análise; e a falta no real, onde o
sujeito tem que se defrontar com o seu ser, onde o Outro o coloca se defrontando
com a perda de seu ser e é aí que Lacan vai além de Freud. Esta falta no real, o
simbólico não pode remediar, esta falta não se esgota na castração. Apresenta o
seguinte esquema:
onde num primeiro tempo temos um sujeito e um Outro míticos, anteriores à
divisão feita pela barra que cairá sobre os dois, tempo inicial de gozo absoluto.
Num segundo tempo surge a angústia do Outro, apontando para um Outro barrado,
A, com o surgimento da falta; e num terceiro tempo surge a angústia do sujeito, e
este também está barrado, S.
É pois, a queda do objeto, o resto, o resíduo, que está na raiz da angústia. A barra
incide sobre o sujeito e faz cair o objeto num mesmo golpe. O a como testemunha
de um gozo perdido no Outro, marcando que não há relação sexual. Objeto podendo
vir então, a causar o desejo.
Entretanto ponto de angústia e ponto de desejo, nfto coincidem. O ponto de
angústia se articula com a função da falta que está enlaçada à satisfação, e o ponto
de desejo com a função de resto enlaçado à causa de desejo.
Nos diz Lacan no Seminário4 Angústia: "O desejo eu lhes ensinei a localizá-lo,
a ligá-lo à função do corte, a colocá-lo numa certa relação com a função do resto.
38 LETRA FREUDIANA- Ano X-n« 9
O estatuto do objeto na psicanálise
Este resto é o que o sustenta, o que o anima e o que aprendemos a localizar na
função analítica do objeto parcial. Entretanto, a falta à qual está ligada a satisfação
é outra coisa. Esta distância do lugar da falta, em sua relação com o desejo conforme
estruturado pela fantasia, pela vacilação do sujeito em sua relação com o objeto
parcial, esta não-coincidência da falta com a função do desejo em ato, eis aí o que
cria a angústia, e só na angústia encontra-se designada a verdade dessa falta".
A partir da castração temos a marcação de -cp, lugar vazio, lugar da falta, -cp que
dá um lugar, uma imagem à a. -cp que aponta para a falta de objeto causa de desejo,
onde diferentemente do objeto a aceita qualquer vestimenta para cobrir esta falta.
Surge então a miragem do objeto do desejo. Já o objeto a não se reflete, é não
especularizável, algo que a imagem não resolve, inclusão aí do real. É o objeto a
que dá o ponto de basta, um limite, uma não reflexão. Lacan nos indica, num final
de análise, à levar o sujeito a chegar ao mínimo do seu laço social, que é ao objeto.
Por isso, a análise chega à um ponto de um discurso minimal, onde as palavras não
contam, só conta o laço social do sujeito a um objeto que o determina. Não há
relação sexual, a única relação é a relação fantasmática.
A construção fantasmática é então o trabalho da análise, o que possibilita o
sintoma ser escrito de outra forma, onde não há síntese mas sim um ponto finito,
real.
O objeto da pulsão se transmuta em objeto de desejo a partir de que alguma coisa
do fantasma se revela para o sujeito. Com a travessia do fantasma, o sujeito muda
de posição com relação ao objeto, o objeto passa a ser colocado atrás do sujeito,
causando-o, e não mais à frente como algo a ser reencontrado. Aí parece residir a
inovação de Lacan com relação ao final de análise, marcando o limite de Freud.
Para isto, o analista vem a ocupar o lugar de agente, lugar de causa, lugar de
objeto, mais precisamente vem a fazer semblant de objeto a; diferentemente do
que o analista na transferência é chamado a ocupar, que é o lugar de ideal. No lugar
de responder a partir de um saber que possa levar a uma identificação com umideal, deve surgir um analista que responda a partir do ato analítico.
O sujeito encontra a sua verdade a partir de seu fantasma, resta saber como
vamos determiná-la no caso da psicanálise com crianças. Para Freud o final de
análise se resolveria com a reconciliação com o significante Pai, com a castração,
diferentemente de Lacan, para quem o resto, o objeto a e sua posição em relação
ao sujeito no fantasma, é que seria resposta ao final de análise.
Há uma reconstrução de uma história primitiva, que é mítica, portanto uma
verdade que tem uma estrutura de ficção. A história que se reconstrói é fantas-
LETRA FREUDIANA- Ano X-n» 9 39
O estatuto do objeto na psicanálise
mática, há o real que leva o sujeito a tentar montar uma rede com significações que
venham a simbolizar algo. Há um real em causa que aponta e exige um trabalho
de reconstrução. Mas isto não é o mesmo que a construção do fantasma fun-
damental.
Será que o final de análise com crianças poderia ir além de uma certa construção
de mito, abordando o real do sexo, e aí então poderíamos falar em travessia do
fantasma?
Em psicanálise com crianças, temos duas dimensões a serem pensadas com
relação ao objeto. Uma delas é pensar o lugar que a criança ocupa no desejo do
Outro, que pode ser encarnado pela mãe; lemos no texto Duas Notas aJennyAubry:
"... a criança realiza a presença disto que Lacan designa como objeto a no
fantasma...". Como um sujeito vem a realizar um objeto no fantasma do Outro?
Lacan diz que o sujeito como tampa, se fazendo objeto, impossibilita o acesso da
mãe à sua verdade.
E a outra dimensão, que está articulada à primeira, trata de pensar a relação da
criança com seu gozo, com seu objeto, tal como ela tem acesso a ele no seu próprio
fantasma.
40 LETOA FREUDIANA-Ano X-n» 9
O estatuto do objeto na psicanálise
BIBLIOGRAFIA E CITAÇÕES
LACAN.J.
— Seminário IV — As relações de Objeto e as Estruturas Freudianas
(inédito).
— Seminário V —As Formações do Inconsciente (inédito).
— Seminário VII —A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1988.
— Seminário X —Angústia (inédito).
— Seminário XI — Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise,
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979.
— Duas Notas sobre ei Nino (1969) — Intervenciones y Textos 2, Buenos
Aires, Ediciones Manantial, 1988.
MILLOT, C.
— A construção do Objeto (a) —Nobodaddy, a histeria no século, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988.
VIDAUE.
— La Construccion dei Fantasma Fundamental em Freud y Lacan, in Como
se Analisa hoy?, Buenos Aires, Ediciones Manantial, 1984.
LETRA FREUDIANA-Ano X-n» 9 41
Questões sobre o brincar
Maria Cristina Vecino Vidal
Pode-se perguntar o porquê do brincar. E a resposta levaria a assinalar suaimportância, de dois aspectos:
— Enquanto forma privilegiada da expressão infantil. A criança brinca
permanentemente.
— Sua existência mesma implica a constituição do ser como sujeito e sua
inscrição na ordem simbólica e da cultura.
O primeiro aspecto foi relevante na psicanálise de crianças. Na medida em que
a criança brinca, foi preciso criar técnicas como ludoterapias, dramatizações, etc,
para abordar o seu inconsciente. Esta mudança ao nível da técnica levou a uma
mudança na teoria, chegando ao ponto de se desconhecer a paternidade freudiana
que caracteriza a psicanálise como tal.
Desde Freud sabemos que não existem teorias especiais para escutar o discurso
da criança. Ele se refere ao jogo da criança em vários trabalhos, ao compará-lo com
a atividade do poeta (1906), em seu Estudo sobre o Chiste (1905), em Mais além
do princípio do prazer (1920). Sempre é entendido como um discurso onde o
inconsciente produz seus efeitos. Trata-se então, não de criar técnicas, mas de
escutar nesse discurso particular que a criança sustenta, as formações do incons-
ciente.
Do ponto de vista histórico, Hans foi a primeira criança da psicanálise. Paciente
de cinco anos tratado por Freud por intermédio de vários relatos escritos por seu
pai. Freud não vê aqui a possibilidade de surgimento de uma nova especialidade
em psicanálise e menos ainda a necessidade de adaptar seu método com novas
técnicas. Em Hans, a preocupação de Freud é teórica: permite confirmar as teorias
sexuais infantis deduzidas e reconstruídas nas análises dos pacientes adultos. Ao
mesmo tempo, há um aprofundamento da estrutura da fobia como expressão da
impossibilidade de um corte com a mãe, e da complexa relação com a função
paterna e a castração.
LETRA FREUDIANA. Ano X-n« 9 43
Qaestões sobre o brincar
Freud analisa aí um sujeito que se manifesta nos seus desenhos, sonhos, relatos,
jogos. Constitui-se um discurso a decifrar, efeito da articulação inconsciente. Mas
é a partir de Hans que se vislumbra a possibilidade de analisar uma criança.
Neste sentido, pode-se citar os trabalhos de Sophie Morgestern na França. O
valor de sua obra está na exposição de seu método de análise infantil através de
desenhos, método que surgiu a partir do tratamento de um caso de mutismo. Mas
sua verdadeira importância está no fato de que é a primeira psicanalista, após Freud,
a pensar que os desenhos têm uma gramática própria.
Em Viena surgem contemporaneamente Melaine Klein e Anna Freud. Há uma
profunda diferença ente elas, que também se exterioriza na forma com que abordam
a questão do brincar.
Para Melaine Klein, o brincar se transforma no elemento essencial da análise de
crianças, que possibilita a instauração da transferência em análise. O acesso ao seu
inconsciente devia realizar-se através da atividade lúdica que vai pontuando os
diferentes tempos na direção da cura. É abordada enquanto formação do in-
consciente, pois ela é expressão do desejo e da fantasia inconsciente. O brincar se
torna uma tela onde é projetado esse universo fantasmático: fantasmas de destruição
e de ataque se articulam com sentimentos de depressão e culpa. A dialética da
introjeção-projeção é especialmente assinalada na transferência. Marca os momen-
tos da relação da criança com o analista que, para Melaine Klein, correspondem à
primazia de um tipo de fantasia dominante. Há nela uma preocupação em compre-
ender o significado que a criança exterioriza em cada jogo e com cada brinquedo:
"a criança expressa suas fantasias, seus desejos e suas experiências de um modo
simbólico por meio dos brinquedos e jogos. Se desejamos compreender correta-
mente o jogo da criança em relação com a conduta total durante a sessão de análise,
devemos desentranhar o significado de cada símbolo separadamente. O psica-
nalista deve mostrar repetidamente os diferentes significados que pode ter um
simples brinquedo do fragmento de jogo". Há uma predominância do significado
em detrimento da escuta significante.
Que conseqüências produz esta abordagem do brincar em psicanálise? Em
primeiro lugar, o surgimento da noção de técnica com uma força inusitada até
então. Para Freud, a única regra técnica foi a associação livre, decorrente da
sobredeterminação do inconsciente. Freud só pensou na possibilidade de uma
psicanálise na ordem da palavra. A técnica, na obra de Freud, sempre foi subsidiária
da teoria do inconsciente. A partir da abordagem kleiniana existe uma proliferação
do enquadre e da técnica: estabelecem-se as características das interpretações, ir
44 UETOA FREUDIANA-Ano X-n" 9
Questões sobre o brincar
às angústias mais profundas e começar bem no início. Catalogam-se os tipos de
brinquedos, a sala, e até a própria conduta do analista, que teve como efeito a
standarização da psicanálise com crianças. A questão do brincar nesta teoria se
sustenta no desejo do analista. Existe uma demanda à criança para que brinque,
mas esta demanda é o equivalente da demanda de associação livre em toda análise
com o adulto. É o dispositivo encontrado para dirigir a cura. Se a análise continua
é pelo desejo do analista envolvido.
O analista está identificado com uma posição de saber, sustentado na interpre-
tação baseada no simbolismo do jogo. O simbolismo está caracterizado pela
constância na relação entre o símbolo e

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