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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ MÍDIAS E DISCURSOS DO PODER: A LEGITIMAÇÃO DISCURSIVA DO PROCESSO DE ENCARCERAMENTO DA JUVENTUDE POBRE NO BRASIL CURITIBA 2013 MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ MÍDIAS E DISCURSOS DO PODER: A LEGITIMAÇÃO DISCURSIVA DO PROCESSO DE ENCARCERAMENTO DA JUVENTUDE POBRE NO BRASIL Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Direito, Programa de Pós-graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profa. Dra. Katie Silene Cáceres Argüello CURITIBA 2013 TERMO DE APROVAÇÃO MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ MÍDIAS E DISCURSOS DO PODER: A LEGITIMAÇÃO DISCURSIVA DO PROCESSO DE ENCARCERAMENTO DA JUVENTUDE POBRE NO BRASIL Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de doutor no programa de pós-graduação em direito, setor de ciências jurídicas, universidade federal do paraná, pela seguinte banca examinadora: __________________________________________________ Profa. Dra. Katie Silene Cáceres Argüello Orientadora – PPGD/UFPR __________________________________________________ Profa. Dra. Sylvia Debossan Moretzsohn Departamento de Comunicação Social – UFF __________________________________________________ Prof. Dr. Mário Luiz Ramidoff Departamento de Direito - UNICURITIBA __________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes Departamento de Ciências Sociais – UFPR __________________________________________________ Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos Departamento de Direito – UFPR (aposentado) __________________________________________________ Prof. Dr. Maurício Dieter Departamento de Direito – UNICURITIBA (suplente) Curitiba, 18 de dezembro de 2013. AGRADECIMENTOS Uma longa jornada de aproximadamente quatro anos se encerra, e o que mais tenho é a quem agradecer. Primeiramente, aos professores, funcionários e colegas do PPGD, que tanto me ensinaram e auxiliaram nesse período, em especial à minha orientadora, a professora Katie Argüello pelas importantes trocas que pudemos vivenciar enquanto estive em Curitiba. À CAPES, pela concessão da bolsa de doutorado sanduíche e ao professor Massimo Pavarini, por ter gentilmente me recebido na Università di Bologna para a realização desse período de estudos, sem o qual o resultado de minha tese certamente não teria sido o mesmo. À professora Vera Regina Pereira de Andrade, por sempre fazer parte de minha vida, como mestre e como amiga. Devo agradecer especialmente à Silvana, ao Caubi, à Dona Maria (in memoriam) e ao Felipe, que me receberam de coração aberto em Curitiba desde a primeira etapa da seleção de doutorado, e depois tão amorosamente me acolheram como membro da família. A minha vida em Curitiba foi muito mais leve graças à companhia e à atenção de vocês. Agradeço a todos os meus amigos de Santa Maria, com quem sempre pude contar em todos os momentos, especialmente a Clarissa Franzoi Dri, que, além de ombro amigo, foi uma excelente e competentíssima coorientadora informal deste trabalho. À vó Hilda, aos meus familiares, tios, tias, primos, primas, pelo companheirismo ao longo dessa jornada. Ao vô Luiz, à vó Maria e ao vô Sebastião, em memória, por todas as experiências compartilhadas que determinaram a construção do sujeito que sou hoje. Ao Rafael, pelo carinho e compreensão que me dedicou ao longo dos doze anos que estivemos juntos, compartilhando comigo momentos lindos. Ao Lourenço, por me ensinar, desde o seu primeiro dia de vida, a tentar ser uma pessoa melhor. À Cláudia, por ingressar em nossa família como uma verdadeira irmã, cheia de carinho e ternura. À Anita, a coautora de quatro patas deste trabalho, por me cuidar como nenhum ser humano é capaz. Por fim, ao José e à Lourdes, meus pais queridos que me ensinaram desde os meus primeiros passos até as minhas primeiras reflexões críticas sobre a sociedade. O desejo de transformação social e a crença na docência como meio para atingi-la são a lição mais potente que vocês me transmitem. As alternativas não são utopias distantes, mas são parte da vida diária, continuamente inventadas pelos atores sociais. Louk Hulsman RESUMO Partindo de uma perspectiva crítica sobre a ascensão da repressão penal em diversas partes do mundo e, em especial, no Brasil, o trabalho busca investigar como essa tendência se comunica com o surgimento e desenvolvimento do direito da criança e do adolescente no país. O aumento do encarceramento de adolescentes, mesmo após o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente é investigado a partir do discurso legitimador dessa repressão que propicia o incremento das desigualdades sociais. O principal objeto do trabalho é a interação do discurso político com o discurso midiático sobre o ato infracional. A partir da análise dos discursos político e midiático, pretende-se identificar os pontos em comum encontrados, de maneira a traçar as características do discurso hegemônico sobre esse tema. Busca-se, ainda, identificar as interferências entre os dois campos, compreensíveis através de duas principais chaves de análise: a cognição social e a produção da agenda política. O problema de pesquisa pode, então, ser formulado da seguinte maneira: Como interagem os discursos político e midiático sobre o ato infracional e a medida socioeducativa de internação na reprodução do discurso hegemônico e na consequente produção de políticas destinadas à criança e ao adolescente? O marco teórico utilizado é a Criminologia crítica, em um sentido amplo, que permite a utilização de ferramentas teóricas provenientes de outras tradições, como os estudos críticos do discurso, utilizados como referencial teórico-metodológico para a análise do discurso político. A pesquisa desenvolvida foi de tipo qualitativo. O método utilizado foi o da teoria fundamentada nos dados. O trabalho se divide em duas partes, as quais de subdividem em quatro capítulos cada. A primeira parte, juntamente com uma revisão bibliográfica sobre o status jurídico da criança no Brasil, traz a análise do discurso político sobre o adolescente autor de ato infracional, a partir das justificativas de todos os projetos de lei da Câmara dos Deputados propostos entre os anos de 2003 e 2012 com o objetivo de aumentar a repressão aos adolescentes. A segunda parte insere o trabalho no contexto da sociedade midiatizada em que o ato infracional surge como situação problemática a ser tratada social e politicamente. Inicia-se com uma revisão bibliográfica onde consta o estado da arte das pesquisas na interseção mídia, juventude e sistema penal para, a seguir, apresentar os resultados da análise de conteúdo do jornal Folha de S. Paulo, para identificar a representação social exposta por este jornal a respeito do adolescente infracionalizado, do ato infracional e das medidas socioeducativas. O objetivo é o de compreender de que maneira essas representações sociais, contextualizadas no tempo e no espaço, relacionam-se com o discurso político, nas dimensões cognitiva e político-criminal. Após verificar a forte implicação do discurso de senso comum na produção de políticas repressivas aos adolescentes, parte-se para o último capítulo, no qual se propõe, a partir de uma base teórica gramsciana, possibilidades de ação na mudança do senso comum sobre o crime/ ato infracional, o criminalizado /infracionalizado e a punição/ medida. O objetivo final e mais profundo do trabalho é o de buscar, através da percepção de que o discurso constitui as práticas, demonstrar a importância de transformação da palavra,e de construção de um discurso contra- hegemônico sobre as situações socialmente problemáticas envolvendo adolescentes. Sem essa mudança, tampouco as práticas violentas de que se revestem os sistemas penais poderão se modificar. Palavras-chave: Criminologia crítica, discurso político, discurso midiático, ato infracional ABSTRACT From a critical perspective on the rise of law enforcement in various parts of the world, especially in Brazil, in the last twenty years, the study aims to investigate how this trend communicates with the emergence and development of the right of children and adolescents in this country. The increase in the incarceration of teenagers, even after the emergence of the Statute of Children and Adolescent is investigated from the legitimizing discourse of this repression that propitiates the growth of social inequality. The main object of the work is the interaction between political discourse and the media discourse on juvenile criminality. From the analysis of the political and media discourses, the work aims to identify the commonalities found in order to outline the characteristics of the hegemonic discourse on this topic. The aim is also to identify the interference between the both fields, understandable through two main keys of analysis: social cognition and the production of the political agenda. The research problem can then be formulated as follows: How political and media discourses about the offense and the socio-educational measure of deprivation of liberty interact in the reproduction of a hegemonic discourse and the consequent production of policies for children and adolescents? The theoretical framework used is the Critical Criminology, in a broad sense, which allows the use of theoretical tools from other traditions, such as the Critical Discourse Studies used as a theoretical and methodological framework for the analysis of political discourse. The research conducted was qualitative. The method used was the Grounded Theory. The work is divided into two parts. The first part, along with a literature review on the legal status of the child in Brazil, contains the analysis of the political discourse on the adolescent author of offense from the justifications of all bills of the House of Representatives proposed between the years 2003 and 2012 with the objective of increasing repression adolescents. The second part places the work in the context of the mediatized society in which the offense arises as a problematic situation to be dealt with socially and politically. It begins with a literature review which include the state of the art on media, youth and penal system, then present the results of the content analysis of the newspaper Folha de S. Paulo, to identify the social representation exposed by this newspaper about the adolescent criminalized, the offense, and the socio-educational measures. The goal is to understand how these social representations, contextualized in time and space, are related to the political discourse in the cognitive and criminal policy dimensions. After verifying the strong influence of the common sense discourse in producing repressive policies against adolescents, we proceed to the final chapter, which proposes that, from a Gramscian theoretical basis, possibilities for action in changing common sense about crime /offense, criminal and punishment /measure. The ultimate goal and deeper work is to seek, through the perception that discourse is action, to demonstrate the importance of changing the words, and create a counter-hegemonic discourse about problematic situations involving adolescents. Without this shift, neither the violent practices of the penal system can be modified. Keywords: Critical Criminology, political discourse, media discourse, juvenile crime RESUMEN Partiendo de una perspectiva crítica sobre la ascensión de la represión penal en diversas partes del mundo y, en especial, en Brasil, el trabajo busca investigar como esa tendencia se comunica con el surgimiento y desarrollo del derecho del niño y del adolescente en el país. El aumento del encarcelamiento de adolescentes, mismo después del adviento del Estatuto del Niño y del Adolescente es investigado a partir del discurso legitimador de esa represión que propicia el incremento de las desigualdades sociales. El principal objeto del trabajo es la interacción del discurso político con el discurso mediático sobre el acto infraccional. A partir del análisis de los discursos político e mediático, se pretende identificar los puntos en común encontrados, de maniera a trazar las características del discurso hegemónico sobre ese tema. Buscase, aún, identificar las interferencias entre los dos campos, comprensibles a través de dos claves principales de análisis: la cognición social y la producción de la agenda política. El problema de pesquisa puede, entonces, ser formulado de la siguiente manera: ¿Cómo interaccionan los discursos político y mediático sobre el acto infraccional y la medida socioeducativa de internación de adolescentes en la reproducción del discurso hegemónico y en la consecuente producción de políticas destinadas a niños y adolescentes? El marco teórico utilizado es la Criminología crítica, en un sentido amplio, que permite la utilización de herramientas teóricas provenientes de otras tradiciones, como los estudios críticos del discurso, que es el referencial teórico- metodológico para el análisis del discurso político. La investigación desarrollada fue de tipo cualitativo. El método utilizado fue el de la Grounded Theory. La tesis se divide en dos partes, las cuales se subdividen en cuatro capítulos cada. La primera parte, juntamente con una revisión bibliográfica sobre lo status jurídico del niño en Brasil, trae el análisis del discurso político sobre el adolescente autor de acto infraccional, a partir de las justificaciones de todos los proyectos de ley de la Cámara de los Deputados propuestos entre los años de 2003 y 2012 con el objetivo de aumentar la represión a los adolescentes. La segunda parte inserta el trabajo en el contexto de la sociedad mediatizada en que el acto infraccional surge como situación problemática a ser tratada social y políticamente. Empieza con una revisión de la literatura donde sobre la intersección de los media, con la juventud y el sistema penal, para, a seguir, presentar los resultados del análisis de contenido del periódico Folha de S. Paulo, para identificar la representación social expuesta por este periódico respecto al adolescente criminalizado, del acto infraccional y de las medidas socioeducativas. El objetivo es lo de comprender de qué manera esas representaciones sociales, contextualizadas en el tiempo y en el espacio, se relacionan con el discurso político, en las dimensiones cognitiva y político-criminal. Después de verificar la fuerte implicación “de las ideas de todos los días” en la producción de políticas represivas a los adolescentes, se parte para el último capítulo, en el cual se propone, a partir de una base teórica gramsciana, posibilidades de acción en el cambio del discurso sobre el crimen/ acto infraccional, el criminalizado/ infraccionalizado, y la punición/ medida. El objetivo final y más profundo del trabajo es lo de buscar, a través de la percepción de que el discurso constituye las prácticas, demostrar la importancia de la transformación de la palabra, y de la construcción de un discurso contra-hegemónico sobre las situaciones socialmente problemáticas envolviendo adolescentes. Sin ese cambio, tampoco las prácticas violentas de los sistemas penales van a poder cambiarse. Palabras-clave: Criminología crítica, discurso político, discurso mediático, acto infraccional RIASSUNTO Partendo da una prospettiva critica sull'ascensione, negli ultimi anni, di una politica penale austera nelle varie aree della politica brasiliana, questo lavoro investiga come questa tendenza si comunicacon la nascita e lo sviluppo del Diritto del Bambino e dell'Adolescente. L'aumento dell'incarceramento di adolescenti, stesso dopo l'avvento dello Statuto del Bambino e dell'Adolescente è investigato partendo dal discorso che legittima questa repressione e porta all'incremento delle disuguaglianze sociali. Il principale oggetto del lavoro è l'interazione del discorso politico con il discorso mediatico sul reato giovanile. Dall'analisi dei discorsi politico e mediatico si cerca di identificare i punti in comune trovati, in maniera a tracciare le caratteristiche del discorso egemonico su questo tema. Si cerca, ancora, di identificare le interferenze tra i due campi, comprensibili attraverso due principali chiavi d'analisi: la cognizione sociale e la produzione dell'agenda politica. Il problema della ricerca può essere formulato come segue: Come interagono i discorsi politico e mediatico sul reato giovanile e sulla misura socio-educativa di internamento nella riproduzione del discorso egemonico e nella consequente produzione de politiche destinate al bambino e all'adolescente? Il marco teorico utilizzato è quello della Criminologia critica, in un senso ampio, che permette anche l'uso di strumenti teorici provenienti di altre tradizioni, come gli Studi Critici del Discorso, impiegati come referenziale teorico-metodologico per l'analisi del discorso politico. La ricerca è di tipo qualitativo, ed si vale del metodo della Grounded Theory. Il lavoro si divide in due parti, le quali se suddividono in altri quattro capitoli ognuna. La prima parte, insieme ad una revisione della letteratura sullo status giuridico del bambino in Brasile, porta l'analisi del discorso politico sull'adolescente autore di reati, partendo dalle giustificazioni di tutti i progetti di leggi della Camara dei Deputati proposti tra gli anni di 2003 e 2012, con l'obbiettivo di aumentare la repressione agli adolescenti. La seconda parte inserisce il lavoro nel contesto della società mediatizzata, nella quale le infrazioni commesse da giovani emergono come situazioni problematiche che devono essere trattate sociale e politicamente. Si inizia con una revisione della letteratura sull'intercessione media, gioventù e sistema penale per, in seguito, presentare i risultati dell'analisi di contenuto del giornale Folha de S. Paulo, per identificare la rappresentazione sociale esposta da questo periodico rispetto l'adolescente criminalizzato, il reato da lui commesso e le misure socio-educative. L'obbiettivo è quello di comprendere in che maniera le rappresentazioni sociali, contestualizzate nel tempo e nello spazio, hanno un rapporto con il discorso politico, nelle dimensioni cognitive e politico criminali. Dopo di verificare la forte implicazione del discorso di senso comune nella produzione di politiche repressive agli adolescenti, si parte per un ultimo capitolo nel quale si propone, partendo di una base teorica gramsciana, alcune possibilità di azione nel cambio di questa comune percezione sul reato/infrazione minorile, il criminalizzato, e la punizione/misura. L'obbiettivo finale e più profondo del lavoro è quello di cercare, attraverso la percezione di che il discorso costituisce le pratiche, dimostrare l'importanza della trasformazione della parola, e di costruzione di un discorso contro- egemonico sulle situazioni socialmente problematiche coinvolgendo adolescenti. Senza questo cambio, neppure le pratiche violente del sistema penale si potranno trasformare. Parole chiave: Criminologia critica, discorso politico, discorso mediatico, infrazione minorile LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 1 – FREQUÊNCIA DE PROJETOS DE LEI DE ALTERAÇÃO DO ECA (2003-2012) ........................................................................................ 133 GRÁFICO 2 – CATEGORIAS ONDE OS PROJETOS DE LEI FORAM INCLUÍDOS ........................................................................................................... 134 GRÁFICO 3 – POLÍTICA PENAL x POLÍTICA SOCIAL .......................................... 134 GRÁFICO 4 – POLÍTICA x PARTIDOS POLÍTICOS ............................................... 137 GRÁFICO 5 – POLÍTICA PENAL: DISTRIBUIÇÃO ................................................. 139 GRÁFICO 6 – POLÍTICA PENAL x ANO ................................................................ 139 GRÁFICO 7 – POLÍTICA PENAL x PARTIDO ........................................................ 140 GRÁFICO 8 – POLÍTICA PENAL x PERFIL IDEOLÓGICO .................................... 142 GRÁFICO 9 – POLÍTICA PENAL x SITUAÇÃO ...................................................... 144 GRÁFICO 10 – CONSUMO DE MÍDIA PELOS PARLAMENTARES (2013) ........... 285 GRÁFICO 11 – JORNAIS IMPRESSOS MAIS LIDOS PELOS PARLAMENTARES (2013) ................................................................................................. 286 LISTA DE TABELAS TABELA 1 – POLÍTICA PENAL X POLÍTICA SOCIAL ............................................ 134 TABELA 2 – REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO ADOLESCENTE E FUNÇÕES DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO ............................................................... 233 TABELA 3 – DEZ MAIORES JORNAIS IMPRESSOS DO BRASIL (2012) ............. 286 TABELA 4 – NÚMERO DE MATÉRIAS JORNALÍSTICAS ENCONTRADAS NOS PERÍODOS SELECIONADOS PARA A ANÁLISE ............................. 289 TABELA 5 – NÚMERO DE REPORTAGENS SOBRE OS CASOS LIANA E FELIPE E JOÃO HÉLIO SEGUNDO O TEMA PREDOMINANTE E A SEMANA DE PUBLICAÇÃO .............................................................................. 291 TABELA 6 – CHAPÉUS UTILIZADOS NAS MATÉRIAS DE NOVEMBRO DE 2003. ........................................................................................................... 292 TABELA 7 – CASOS QUE GERARAM REPORTAGENS NO JORNAL FOLHA DE S. PAULO NOS PERÍODOS ANALISADOS (NOV-DEZ 2003 e JAN 2004; FEV-ABR 2007; DEZ 2008 e JAN-FEV 2009; FEV-ABR 2012). ........ 303 TABELA 8 – ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NAS MATÉRIAS INFORMATIVAS ........................................ 342 TABELA 9 – ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NAS MATÉRIAS INFORMATIVAS ..................................................... 344 TABELA 10 – ARGUMENTOS CONTRÁRIOS AO AUMENTO DO PRAZO DE INTERNAÇÃO .................................................................................... 347 TABELA 11 – ARGUMENTOS FAVORÁVEIS AO AUMENTO DO PRAZO DE INTERNAÇÃO .................................................................................... 348 LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURA 1 – QUADRO PUBLICADO DURANTE AS INVESTIGAÇÕES ......................299 FIGURA 2 – INFOGRÁFICO APRESENTADO NA MATÉRIA “MENOR PARTICIPA DE 1% DOS HOMICÍDIOS EM SP” .................................................................... 306 FIGURA 3 – INFOGRÁFICO APRESENTADO NA MATÉRIA “JOVENS TROCAM TRÁFICO POR ROUBO NO RIO” ................................................................ .............................................. 309 FIGURA 4 – FOTOGRAFIA CONTIDA NA REPORTAGEM “UNIÃO SÓ LIBERA 4,5% DA VERBA PRA INFRATOR” ..................................................... 314 FIGURA 5 – FOTOGRAFIA CONTIDA NA REPORTAGEM “PARA ALCKMIN, PRESÍDIOS ESTÃO PREPARADOS” ........................................................... 331 FIGURA 6 – FOTOGRAFIA CONTIDA NA REPORTAGEM “UNIDADE É FECHADA NO IMPROVISO” ........................................................................................... 334 FIGURA 7 – FOTOGRAFIA CONTIDA NA REPORTAGEM “FUNDAÇÃO CASA PRECISA SE CUIDAR PARA NÃO VOLTAR A SER FEBEM, DIZ CNJ” .335 LISTA DE SIGLAS ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância CCJ – Comissão de Constituição e Justiça CD – Câmara dos deputados CEDECA – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente CF – Constituição Federal CIDC – Convenção Internacional dos Direitos da Criança CNT – Confederação Nacionaldo Transporte CONFECOM - Conferência Nacional de Comunicação CP – Código Penal CSPCCO – Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado CSSF – Comissão de Seguridade Social e Família DEM – Democratas ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente FUNABEM – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor ILANUD – Instituto Latinoamericano de las Naciones Unidas para la Prevención del Delito y el Tratamiento del Delincuente INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos MNMMR – Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua ONG – Organização Não-governamental ONU – Organização das Nações Unidas PAN – Partido dos Aposentados da Nação PC do B – Partido Comunista do Brasil PCB – Partido Comunista Brasileiro PDS – Partido Democrático Social PDT – Partido Democrático Trabalhista PEC – Proposta de Emenda Constitucional PFL – Partido da Frente Liberal PHS – Partido Humanista da Solidariedade PL – Partido Liberal PL – Projeto de Lei PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro 26 PMN – Partido da Mobilização Nacional PNBEM - Política Nacional de Bem-estar do Menor PP – Partido Progressista PPB – Partido Progressista Brasileiro PPR – Partido Progressista Renovador PPS – Partido Popular Socialista PR – Partido Republicano PRB – Partido Republicano Brasileiro PRONA – Partido da Renovação da Ordem Nacional PRTB – Partido Renovador Trabalhista Brasileiro PSB – Partido Socialista Brasileiro PSC – Partido Social Cristão PSD – Partido Social Democrático PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PSOL – Partido Socialismo e Liberdade PT – Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista Brasileiro PTC – Partido Trabalhista Cristão PV – Partido Verde RDD – Regime Disciplinar Diferenciado RICD – Regimento Interno da Câmara dos Deputados SAM - Serviço de Assistência do Menor SF – Senado Federal SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça TJ-RS – Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul UNICEF – United Nations Children's Fund SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 31 PARTE I – O SABER HEGEMÔNICO SOBRE O ADOLESCENTE E O ATO INFRACIONAL .......................................................................................................... 51 1 EM PERIGO OU PERIGOSA? GÊNESE DO SABER SOBRE A CRIANÇA NO BRASIL ..................................................................................................................... 51 1.1 O surgimento do menor e o controle de crianças e adolescentes do Império à República .............................................................................................................. 51 1.1.1 O Código criminal do Império e o adulto em miniatura ..................................... 52 1.1.2 O surgimento do binômio abandono-infração no Brasil republicano ................ 55 1.1.3 O menor-problema social como interesse prioritário da ditadura militar: gênese da doutrina da situação irregular ............................................................................... 68 1.1.4 Participação e mudança social: a abertura política e a construção coletiva do estatuto da criança e do adolescente ........................................................................ 74 1.2 Uma mudança no discurso legislativo? O ato infracional e as medidas socioeducativas no Estatuto da Criança e do Adolescente ................................ 80 1.2.1 O ato infracional e a medida socioeducativa de internação ............................. 81 1.2.2 Menores e loucos no direito brasileiro .............................................................. 86 1.2.3 Medidas socioeducativas: objetivos declarados e objetivos reais .................. 100 2 O UNIVERSO DAS PROPOSTAS DE ALTERAÇÕES NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: MAIS POLÍTICA PENAL, MENOS POLÍTICA SOCIAL ................................................................................................................... 123 2.1 Os projetos de lei da Câmara dos Deputados .............................................. 125 2.2 Apresentação das variáveis ........................................................................... 127 2.2.1 Variável “categoria” ........................................................................................ 128 2.2.2 Variável “política pública” ............................................................................... 131 2.3 A punição é a resposta: resultados da pesquisa quantitativa .................... 132 2.3.1 Os dois sentidos da política penal em matéria de criança e adolescente ...... 138 2.3.2 Situação dos PLs ........................................................................................... 143 2.3.3 Processos de infracionalização primária na Câmara dos Deputados ............ 145 3 EM DEFESA DA SOCIEDADE: A DESORDEM SOCIAL E A ORIGEM DO MAL NO DISCURSO POLÍTICO SOBRE A INFRACIONALIZAÇÃO ............................. 148 3.1 Discursos sobre a “desordem social”........................................................... 152 28 3.1.1 Está ocorrendo um aumento da criminalidade violenta no Brasil. ................. 152 3.1.2 O aumento da criminalidade gera sensação de insegurança social. ............. 155 3.1.3 O aumento da criminalidade e da insegurança social está estritamente relacionado ao crescimento da criminalidade juvenil. ............................................. 157 3.1.4 A sociedade clama por maior rigor na resposta estatal aos adolescentes autores de atos infracionais. ................................................................................... 164 3.2 Discursos sobre a “origem do mal” .............................................................. 170 3.2.1 O aumento da criminalidade dos jovens é causada pela benevolência do Estatuto da Criança e do Adolescente .................................................................... 170 3.2.2 O envolvimento com o tráfico de drogas e com o crime organizado intensifica a prática de atos infracionais violentos. ..................................................................... 178 4 A criança e o adolescente no discurso político sobre o ato infracional: um jogo de máscaras de tutela, proteção e punição ............................................... 182 4.1 Discursos sobre a “solução salvadora” ....................................................... 182 4.1.1 O aumento do prazo de internação tem o intuito de punir gravemente os adolescentes proporcionalmente ao dano causado. ............................................... 186 4.1.2 O aumento do prazo de internação deverá dissuadir os adolescentes de cometerem atos infracionais ................................................................................... 188 4.1.3 O aumento do prazo de internação vai ao encontro do sentimento da sociedade ............................................................................................................... 195 4.1.4 O aumento do prazo de internação irá garantir a efetiva ressocialização do adolescente ............................................................................................................ 207 4.1.5 O aumento do prazo de internação deverá manter a sociedade segura enquanto os adolescentes perigosos estiverem privados de liberdade .................. 221 4.2 Vítimas, bandidos e doentes mentais: o adolescente autor de ato infracional no discurso dos deputados federais ............................................... 226 PARTE II – O DISCURSO SOBRE O ATO INFRACIONAL NA SOCIEDADE MIDIATIZADA ........................................................................................................ 236 1 MÍDIA, CRIME E JUVENTUDE ...........................................................................238 1.1 O discurso jornalístico sobre o crime ........................................................... 238 1.1.1 A hierarquia de credibilidade e o problema do acesso .................................. 242 1.1.2 A página policial entre credibilidade e sensacionalismo ................................ 249 1.1.3 Representações do crime na mídia ............................................................... 251 1.1.4 Medo e criminalização ................................................................................... 260 1.2 Mídia e construção social do ato infracional ............................................... 272 1.2.1 As crianças como “tragic victims” e “evil monsters” ....................................... 272 29 1.2.2 Os pânicos morais também têm lugar nos países marginais ......................... 280 2 DISCURSO MIDIÁTICO E PODER SIMBÓLICO: A DEMONIZAÇÃO DA JUVENTUDE POBRE ............................................................................................. 284 2.1 O oráculo indesmentível e outras fontes ...................................................... 290 2.1.1 Delegado de polícia: a fonte número um por excelência ................................ 296 2.1.2 A fonte de número três: temas polêmicos e parcialidade das fontes ............. 301 2.2 O ato infracional, o adolescente e a privação de liberdade segundo a Folha de S. Paulo ............................................................................................................. 303 2.2.1 O ato infracional no jornal: “os mais bárbaros ‘crimes’ dos últimos tempos” .. 303 2.2.2 O adolescente no jornal: recuperáveis e irrecuperáveis ................................. 313 2.2.2.1 A construção de um monstro: o caso Champinha ....................................... 320 2.3 A “solução salvadora” na Folha de S. Paulo ................................................ 322 2.3.1 A percepção social das medidas socioeducativas ......................................... 323 2.3.1.1 As instituições de internação ....................................................................... 325 2.3.1.2 Menção a outras medidas socioeducativas ................................................. 336 2.3.2 A política na mídia: propostas de alteração da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente .................................................................... 337 2.3.3 A Folha de S. Paulo e seu empreendimento moral: os editoriais ................... 349 2.3.3.1 Não há soluções mágicas para o problema da violência: os Editoriais da Folha (2003/2004) ................................................................................................... 349 2.3.3.2 Os remédios à mão e seus efeitos instantâneos: os Editoriais da Folha (2007) ...................................................................................................................... 358 3 A RETROALIMENTAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: MÍDIA, POLÍTICA E A DIVISÃO DO TRABALHO NA CONSTRUÇÃO DO SENSO COMUM SOBRE O ATO INFRACIONAL .............................................................................. 367 3.1 Manuais de demonologia e monstros juvenis .............................................. 368 3.1.1 Os empreendedores morais e os claims makers ........................................... 384 3.1.2 Demônios midiatizados .................................................................................. 387 3.2 “The world outside and the pictures in our heads”: mídia e agendamento da política .................................................................................................................... 389 3.2.1 Mas a lei não mudou: análise da tramitação dos projetos .............................. 399 3.2.3 Impacto da mídia no Legislativo: efeitos simbólicos ou concretos? ............... 413 3.3 Efeitos simbólicos: discurso e dominação ................................................... 413 4 A NECESSÁRIA CONSTRUÇÃO DE UM DISCURSO CONTRA-HEGEMÔNICO ................................................................................................................................ 420 30 4.1 Hegemonia e batalha cultural: ferramentas teóricas para a construção de uma contra-hegemonia no discurso criminológico ........................................... 424 4.2 Dois campos de ação na Newsmaking criminology: democratizar a comunicação tradicional; ocupar as novas mídias ........................................... 432 4.2.1 Ocupar a mídia tradicional ............................................................................. 436 4.2.2 Lutar pela democratização da comunicação .................................................. 440 4.2.3 Ocupar as novas mídias ................................................................................ 445 4.3 Os movimentos sociais e a luta pela emancipação social .......................... 453 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 466 APÊNDICE A – Lista dos projetos de lei analisados (PP2) ............................... 516 APÊNDICE B – Lista das reportagens selecionadas ......................................... 536 ANEXO A – Árvore de apensados do PL 2847/2000 .......................................... 542 31 INTRODUÇÃO O que descobrimos pesquisando é a complexidade do mundo. Quando respondemos algumas perguntas, colocamos outras. E não importa o quão bem concebido pensemos que está nosso projeto no começo, sempre há viradas imprevistas ao longo do caminho que nos levam a recolocar nossas posições e a questionar nossos métodos e que nos mostram que não somos tão inteligentes como pensamos1. Não há como compreender a permanência de práticas violentas, segregacionistas e profundamente injustas nas democracias modernas sem estudar os discursos que permeiam o seu exercício e acabam por legitimar o ilegitimável. Várias são as instâncias que eles percorrem. Perpassam o controle social informal e penetram na escola, na Igreja, na família, nos meios de comunicação; nas instâncias formais, estão na voz dos parlamentares e governadores, juízes e promotores. A impermeabilidade desses discursos ao saber acadêmico é sintomática também de que essas práticas cumprem funções preciosas para a manutenção das estruturas de poder. Dentre elas se destaca a expansão do encarceramento de crianças, adolescentes e adultos na maior parte dos países ocidentais, logo em seguida ao impulso desestruturador do sistema penal desenvolvido no âmbito das sociologias inglesa e norte-americana das décadas de 1960 e 19702. A inflação carcerária nos Estados Unidos e em alguns países europeus é um reflexo dessa mudança de direção ocorrida concomitantemente com a queda do Estado de bem-estar social. No Brasil, o encarceramento em massa levou a que, nos últimos vinte anos, o país tenha triplicado o número de presos adultos, e duplicado o número de adolescentes internados. Somam-se a esses dados quantitativos, os qualitativos: os privados de liberdade são homens, negros ou pardos, muito jovens, pobres e com baixa escolaridade. Deve-se referir, contudo, que parte desse expansionismo se volta também contra as mulheres, em especial no seio da lucrativa e sangrenta política de guerra às drogas. Esse processo pode ser identificado historicamente com a ascensão de 1 STRAUSS, Anselm; CORBIN, Juliet. Bases de la investigación cualitativa. Técnicas y procedimientos para desarrollar la teoría fundamentada. Medelín: Universidad de Antioquia, 2002. p. 62. 2 COHEN, Stanley. Visiones del control social: Delitos, castigos y clasificaciones. Barcelona: PPU, 1988. 32 políticas neoliberais, o chamado “capitalismo de barbárie”3. Nos países latino- americanos, as privatizações e as reformas previdenciária e trabalhista buscaram reduzir apequena margem desenvolvida a partir da década de 1930 para o surgimento dos direitos sociais. Os sociólogos que analisam esse contexto, identificam uma reformulação do próprio significado da palavra “segurança”: a segurança, antes vista como a garantia da satisfação dos direitos sociais traduz-se em segurança individual a ser protegida através do combate ao crime efetivo ou potencial4. Nos anos sessenta, quando as políticas sociais do pós-guerra chegavam ao seu ápice, e, simultaneamente, a luta política ocorria no âmbito da busca pela liberação nas mais diversas esferas da vida, jamais se poderia imaginar que duas décadas após se apresentaria a tendência ao fenômeno oposto. “Se os lemas da social democracia do pós-guerra haviam sido controle econômico e emancipação social, a nova política dos fins dos anos oitenta impulsionou um marco bastante diferente de liberdade econômica e controle social”5. Entretanto, o cumprimento de uma função simbólica por parte do direito penal não significa que a adoção de posturas punitivistas não tragam consequências muito reais sobre aqueles que são objeto do controle penal. Prova disso é a situação de superlotação dos presídios em grande parte dos países ocidentais, que passam a não dar conta da quantidade de pessoas que são objeto de controle. Ainda que as condições de vida nessas instituições sejam toleráveis, o que não é o caso das prisões latino-americanas, o crescente encarceramento de jovens não possui qualquer finalidade que não seja a de converterem-nos em matéria-prima para o controle do crime6, e de neutralização, sendo as prisões verdadeiros depósitos de 3 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 101. 4 BAUMAN, Zygmunt.Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 59. Grifos no original. 5 GARLAND, David.La cultura del control: Crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2005. p. 174.Grifos no original. Traduçãolivre do original emespanhol: “Si las consignas de la socialdemocracia de posguerra habían sido control económico y liberación social, la nueva política de los años ochenta impulso un marco bastante diferente de libertad económica y control social”. Garland parte da ideia de que, ainda que as estruturas de controle tenham se modificado, a mudança mais importante se deu na cultura do controle do delito, a qual se formou em torno de três elementos centrais: 1. umwelfarismo penal modificado; 2. uma criminologia do controle; 3. uma forma econômica de raciocínio. ibid. p. 287. 6 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: A caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 33 lixo7 ou campos de concentração de pobres, negros e estrangeiros8. Essa situação de superlotação das prisões e das instituições de internação de adolescentes não parece constituir um óbice a esse crescimento: indesejados podem ser empilhados, pois o seu destino já está traçado e não é a reintegração social9. Hoje, a despeito de a legislação brasileira declarar a prevenção especial positiva como a principal meta da execução penal, a realidade a desmente todos os dias, para confirmar o que não pode ser dito, ao menos não em voz alta: já que não é possível disciplinar, o objetivo da punição é dizimar esses sobrantes que sujam as ruas, corrompem criancinhas, e ameaçam os consumidores. Na realidade da medida “socioeducativa” de internação, também contrariando os preceitos democráticos e emancipatórios do Estatuto da Criança e do Adolescente, a regra nesse sistema vem sendo – como sempre foi, aliás – a antecipação da produção de carreiras criminosas. Ao sair dessas instituições, os adolescentes pouco têm a escolher e muito a desejar. Presas fáceis do sistema de controle penal, o seu destino é a prisão. E da prisão o destino acaba sendo a reprodução da carreira, que terminará, enfim, com a morte. O discurso jurídico aparece aí como uma importante fonte de legitimação dessas práticas que afetam a juventude pobre, por fazer crer que se as injustiças acontecem é porque a lei não foi cumprida. Quando, na verdade, a lei não passa de uma maneira de silenciar, para os que estão de fora, os que berram dentro dos muros. Há outros discursos, porém, que são tão ou mais constitutivos desse poder do que o jurídico. Há vozes ouvidas em todos os lugares, em todos os momentos, por todas as pessoas. E essas vozes falam sobre o sistema penal o tempo todo. Falam sobre crimes, criminosos – adultos e jovens – e penas. São ubíquos. Não é possível estudar o discurso sem tratar sobre os meios de comunicação de massa, nessa sociedade midiatizada. Na interação com a mídia, encontra-se o discurso político. Quem não sabe usar a linguagem da mídia hoje não tem a menor chance de alçar posições destacadas na política. A construção da imagem do político e, portanto, de seu capital simbólico, depende das câmeras de televisão. Daí que a partir da construção 7 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 8 CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: A caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Rio de Janeiro: Forense, 1998. 9 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 34 da insegurança pública como a principal preocupação das pessoas, a postura dos políticos tenda a seguir o mesmo caminho. Na busca por popularidade, o discurso punitivo vem acompanhando políticos dos mais diversos perfis e partidos. Este trabalho tem o objetivo de desvendar esses discursos, trazê-los à tona em sua funcionalidade e perversão. Se o discurso hegemônico produz inimigos públicos e assim legitima as práticas que contrariam os direitos humanos, então é papel da academia a busca pela sua transformação. A mudança social é possível e parte da possibilidade de conhecer o que move essas práticas, buscando desmitificá-las. O discurso produz, o simbólico é real. Sem mudar o discurso, a prática tampouco se desconstitui. A partir da análise do discurso político e do discurso midiático sobre o ato infracional e as medidas socioeducativas, pretende-se identificar os pontos em comum encontrados, de maneira a traçar as características do discurso hegemônico sobre esse tema. Busca-se, ainda, identificar as interferências entre os dois campos, compreensíveis através de duas principais chaves de análise: a cognição social e a produção da agenda política. Se, por um lado, os políticos partem de definições próprias sobre os problemas sociais, suas causas e suas possíveis soluções, na maior parte das situações elas decorrem de uma base comum de conhecimento compartilhado, onde se encontram também repercutidas as estruturas opressoras. Por outro lado, parte da conduta e da compreensão dos políticos sobre os temas urgentes pode provir da agenda midiática, a qual vem encravada de interesses privados ligados ao poder econômico desses órgãos. Entender esses processos de construção das políticas e, sobretudo, de reprodução do discurso hegemônico sobre o crime e o ato infracional é um passo fundamental na elaboração e difusão de um discurso alternativo, contra- hegemônico. O problema de pesquisa pode, então, ser formulado da seguinte maneira: Como interagem os discursos político e midiático sobre o ato infracional e a medida socioeducativa de internação na reprodução do discurso hegemônico e na consequente produção de políticas destinadas à criança e ao adolescente? O marco teórico, que será explicado adiante, é o da criminologia crítica. Contudo, em razão de esse marco teórico não trazer teoria e métodos específicos do discurso, optou-se por trazer ao trabalho a perspectiva dos estudos críticos do discurso (ECD). Trata-se de um campo teóricoe metodológico em perfeita harmonia com o marco teórico da criminologia crítica, especialmente se levada em 35 consideração sua base interacionista e construcionista, aliada à dimensão do poder. Os ECD auxiliam o pesquisador a identificar em estratégias argumentativas realizadas pelos autores de discursos indicações sobre as representações sociais por eles compartilhadas. Os ECD constituem um movimento científico especificamente interessado na formação de teoria e na análise crítica da reprodução discursiva de abuso de poder10. Buscam desvendar as desigualdades sociais, em especial, “o papel do discurso na (re)produção e contestação da dominação”11. A expressão dominação é definida como o exercício de poder social por elites, instituições ou grupos, o que resulta em desigualdade social, incluindo desigualdades políticas, culturais, de classe, étnicas, raciais e de gênero. Tal conceito, apesar de não decorrer exatamente do marco materialista da Criminologia crítica, é com ela perfeitamente compatível, especialmente no sentido ampliado do criticismo latino-americano12. Essas relações discursivas de poder podem aparecer de diversas maneiras, pelo exercício, negação, mitigação ou o encobrimento da dominação. A partir da constatação de diferentes estratégias de manutenção discursiva das relações de poder, os analistas dos ECD querem saber quais estruturas, estratégias ou outras propriedades do texto, da fala, da interação verbal ou eventos comunicativos desempenham um papel nesses modos de reprodução. É possível, assim, examinar através de que estilo, retórica ou significado de textos se busca encobrir as relações de poder13. A opção por trabalhar na linha dos Estudos Críticos do Discurso, não implica em uma pesquisa comprometida com um resultado predeterminado, e por isso, destituída das características necessárias à sua aceitação no meio acadêmico. A opção pela tomada de posição em favor dos grupos oprimidos nas relações de poder implica nas escolhas realizadas no momento da análise. Assim, ao se identificar os discursos político e midiático como produções simbólicas que implicam em grande parte das situações na reprodução ideológica de relações de dominação, buscando-se encontrar justamente através de que recursos essa dominação é 10 Van DIJK, Teun. Discurso e poder. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2012. p. 9. 11 VAN DIJK, Teun A. Principles of critical discourse analysis, London, Discourse & Society, vol. 4(2), 1993. p. 249-283. p. 249.Traduçãolivre do original eminglês: “[m] the role of discourse in the (re)production and challenge of dominance”. 12 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. 13VAN DIJK, Teun A. Principles of criticaldiscourseanalysis, London, Discourse&Society, vol. 4(2), 1993. p. 249-283. p. 249. 36 possibilitada, então a escolha do corpus, das categorias etc. serão determinadas para esse viés. Trata-se, de fato, de uma delimitação que já aparece na elaboração do problema de pesquisa e dos objetivos. O que será encontrado, as próprias categorias criadas, os recursos etc., irão depender da sensibilidade do pesquisador em permitir que os resultados emerjam dos dados. Sabe-se, a partir do marco teórico apresentado, que os temas penais, de maneira geral, estão incrustados de mitos e impregnados de estereótipos, os quais desempenham uma função essencial à manutenção do sistema tal como ele é: dificultar a contestação; facilitar a dominação. É no domínio das mentes, na imaginação sobre o sistema, que reside o maior exercício de poder. E nada melhor do que o discurso, do texto à fala, para garanti-lo. Este trabalho não pretende ser um estudo objetivo sobre uma realidade dada. Trata-se de uma pesquisa comprometida, e parcial, conforme se exige da pesquisa crítica. A realidade é uma construção social e como tal não pode ser conhecida em sua pureza. Cada fenômeno pode ser estudado através de olhares os mais diversos, e é a subjetividade do cientista que optará por um ou por outro, consciente ou inconscientemente. No campo da criminologia, em que com frequência o discurso se traduz em política criminal, a necessidade de tomada de posição do cientista é ainda mais fundamental. Em razão disso, Pavarini observa que a criminologia é uma ciência com vocação partidária14. Também Baratta esclarece que a Criminologia crítica deve ser uma teoria social comprometida com a transformação positiva, emancipadora da realidade social, de modo que o interesse das classes subalternas é o ponto de vista a partir do qual ela se coloca15. Nesse trabalho, a escolha principal é a do paradigma que identifica no discurso um meio de exercício de poder e dominação de uns grupos sobre os outros. É no discurso, percebido de maneira micro no texto e na fala, que se encontra a ponte entre o individual e o social; entre as crenças pessoais do escritor ou orador e as crenças compartilhadas coletivamente16. Para compreender com qual poder estão preocupados os ECD, é necessário 14 PAVARINI, Massimo. Un arte abyecto: ensayo sobre el gobierno de la penalidad. Buenos Aires: Ad- Hoc, 2006. p. 281. 15 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002. p. 158. 16 VAN DIJK, Teun. Political discourse and political cognition. In: CHILTON, Paul A.; SCHÄFFNER, Christina (Eds.). Politics as Text and Talk: Analytical approaches to political discourse. p. 204-236. Amsterdam: Benjamins, 2002. p. 205. 37 notar que não se trata de um poder individual, mas sim, social. “O poder social é baseado no acesso privilegiado aos recursos socialmente valorizados, tais como saúde, renda, posição, status, força, pertencimento a grupo, educação ou conhecimento”17. Ele é compreendido, ainda, como controle sobre o discurso de outros: poucas pessoas podem dizer e escrever o que querem18. O controle envolve a ação e a cognição: “um grupo poderoso pode limitar a liberdade de ação de outros, mas também pode influenciar suas mentes”19. É na cognição que se encontra o meio de controle mais efetivo, promovido pela persuasão, dissimulação ou manipulação, entre outros meios estratégicos para modificar a mente dos outros em relação aos seus próprios interesses20. Ou seja, são foco dos ECD os discursos que legitimam o controle de alguns grupos sobre outros e naturalizam a ordem social, ainda quando permeados por estratégias sutis e cotidianas. As relações de poder pelas quais se interessam os ECD, por outro lado, são aquelas consideradas abusivas, derivadas de brechas de leis, regras e princípios da democracia, igualdade e justiça por aqueles que dominam o poder. Para distinguir, então, formas de poder legítimos e aceitáveis daqueles abusivos, os teóricos dos ECD optaram pelo uso do termo dominação21. No controle do conhecimento compartilhado reside, portanto, a base das relações de dominação. O marco teórico de que parte o trabalho é a Criminologia crítica. Concebida na década de 1970, a Criminologia crítica parte, sobretudo, da perspectiva de que a criminalidade não possui status ontológico ligado a certos comportamentos de indivíduos cujo estudo específico determinará as causas do desvio, mas é, isso sim, uma qualidade atribuída aos mesmos, mediante uma dupla seleção: a criminalização primária - “seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais” – e a criminalização secundária – “seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam 17 VAN DIJK, Teun A. Principles of critical discourse analysis, London, Discourse & Society, vol. 4(2), 1993. p. 249-283. p.254.Traduçãolivre do original eminglês: “Social power is based on privileged access to socially valued resources, such as wealth, income, position, status, force, group membership, education or knowledge”. 18 Van DIJK, Teun. Discurso e poder. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2012 19VAN DIJK, Teun A. Principles of critical discourse analysis, London, Discourse & Society, vol. 4(2), 1993. p. 249-283. p. 254.Traduçãolivre do original eminglês: “[m] a powerful group may limit the freedom of action of others, but also influence their minds”. 20 VAN DIJK, Teun A. Principles of critical discourse analysis, London, Discourse & Society, vol. 4(2), 1993. p. 249-283. p. 254. 21 VAN DIJK, Teun A. Principles of critical discourse analysis, London, Discourse & Society, vol. 4(2), 1993. p. 249-283. p. 254. 38 infrações a normas penalmente sancionadas”22. Ao definir a Criminologia crítica, Baratta observa que é ela “uma direção da sociologia jurídico-penal e da sociologia criminal que se distingue da criminologia tradicional por uma mudança de objeto e de método”23. Mudança essa que teve como precursoras as teorias da reação social, em especial, a teoria do etiquetamento, ou labeling approach. Compreendendo o desvio social como uma construção, resultante das interações sociais, o labeling approach rompe com a criminologia tradicional ao perceber que o crime e o criminoso não são dados pré-constituídos à experiência. Assim, um determinado comportamento, ainda que desviante em relação às normas sociais, somente será assim definido caso haja reação social ao ato24. Fica claro, portanto, que o etiquetamento depende muito mais do grau de tolerância da sociedade diante de determinados comportamentos desviantes do que da sua ocorrência efetiva25. A questão que pouco havia sido desenvolvida até então diz respeito à variável que orienta a seleção dos comportamentos desviantes ou criminosos em relação aos quais há reação social e penal. É o que, na década de 1970 se passou a estudar, primeiramente com a Criminologia radical, nos Estados Unidos, com a Nova criminologia, na Inglaterra26, e, mais adiante, com a Criminologia crítica na Itália27. 22 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002. p. 161. 23BARATTA, Alessandro. Che cosa è la criminologia critica. In: MATA, Victor Sancha (intervista a cura di), Dei delitti e delle pene: Rivista di studi sociali storici e giuridici sulla questione criminale, n. 1, mar. 1991, Bologna, p. 53-81. p. 53. Tradução livre do original em italiano: “è uma direzione della sociologia giuridico-penale e della sociologia criminale che si distingue dalla criminologia “tradizionale” per un cambiamento dell’oggetto e del metodo”. 24 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002. p. 89. 25LEMERT, Edwin M. Social pathology: A systematic approach to the theory of sociopathic behavior. New York: McGraw-Hill Book Company, 1951. 26Sobre a Nova criminologianaInglaterra, cf. TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia critica in Gran Bretagna. Rassegne e prospettive. La questione criminale: Rivista di ricerca e dibatito su devianza e controllo sociale, Bologna, anno I, n. 1, gennaio-aprile 1975, p. 67- 117. Ainda, TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. La nueva criminología: contribución a una teoría social de la conducta desviada. Buenos Aires: Amorrortu, 1990. 27 No Brasil, a Criminologia radical foi primeiramente introduzida pela obra de Cirino dos Santos, o qual esclarece que ela estuda “[m] o papel do Direito como matriz de controle social dos processos de trabalho e das práticas criminosas, empregando as categorias fundamentais da teoria marxista, que o definem como instituição superestrutural de reprodução das relações de produção, promovendo ou embaraçando o desenvolvimento das forças produtivas”. SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 28. Essa visão é, posteriormente, mitigada através da introdução em países europeus. Mosconi explica que o atraso na chegada das teorias críticas sobre o desvio na Itália, em relação à Inglaterra e aos Estados Unidos, se deveu à longa e forte tradição que o positivismo criminológico construiu no país, bem como à questão carcerária vista sob a cultura católica como caritativo-assistencial, além do debate sobre o crime e sobre a pena ter sido realizada muito mais no terreno jurídico-penal, engessando qualquer estudo de verificação 39 A perspectiva italiana da Criminologia crítica foi a que mais se desenvolveu nos países latino-americanos, principalmente em função da atuação de Alessandro Baratta, professor das universidades de Bologna, na Itália, e Saärland, na Alemanha, o qual recebeu durante muitos anos pesquisadores de várias nacionalidades. Sua influência teórica pode ser considerada mais difundida na América Latina do que propriamente na Europa28. A preocupação do estudioso italiano com os fenômenos latino-americanos o fez uma grande referência nessa região29. Como aduz Baratta, a utilização do paradigma do etiquetamento é apenas uma condição necessária, mas não suficiente para qualificar como crítica uma teoria do desvio e da criminalidade30. Para que uma criminologia seja considerada “crítica” a questão dos processos de definição é importante, mas não mais do que outras, como: “Se a qualidade e o status social de desviante e de criminoso são o resultado de processos de definição e de etiquetamento, como é distribuído em uma determinada sociedade o poder de definição? De que maneira são distribuídas as possibilidades de vir etiquetado como desviante, de se ver atribuído o status social de criminoso?”31. Dessa maneira, é possível afirmar que, para o autor, o mínimo denominador comum da perspectiva da Criminologia crítica é a “dimensão da científica de base sociológica. MOSCONI, Giuseppe. Traduzione ed evoluzione della criminologia critica nell’esperienza italiana: questione criminale e diritto penale, Dei delitti e delle pene, anno XX, n. 1, 2 e 3, gennaio-dicembre 2003, p. 7-39. Um importante histórico sobre a Criminologia crítica e suas raízes pode ser conferida em: SWAANINGEN, René van. Critical criminology: visions from Europe. London: Sage, 1997. 28BERGALLI, Roberto. La sociologia giuridico-penale di Alessandro Baratta in Spagna e in America Latina: problemi, equivoci e fallacie. In: MARRA, Realino. Filosofia e sociologia del diritto penale. Torino: Giappichelli, 2006. p. 93-122. Alguns dos nomes que trabalharam com Baratta e desenvolvem suas pesquisas a partir da Criminologia crítica proposta pelo autor são Roberto Bergalli, Lola Aniyar de Castro, Rosa Del Olmo, Eugenio Raúl Zaffaroni, Juarez Cirino dos Santos, Vera Regina Pereira de Andrade, Ana Lucia Sabadell, entre outros. 29 MARTÍNEZ SÁNCHEZ, Mauricio. El sur que amaba El profesor Baratta. Latinoamérica como referente material para construcción de la criminología crítica. Anthropos, edición especial en homenaje a AlessandroBaratta: el pensamiento crítico y la cuestión criminal, n. 204, Barcelona, 2004. p. 120-128. 30BARATTA, Alessandro. Che cosa è la criminologia critica. In: MATA, Victor Sancha (intervista a cura di), Dei delitti e delle pene: Rivista di studi sociali storici e giuridici sulla questione criminale, n. 1, mar. 1991, Bologna, p. 53-81. p. 55. 31 BARATTA, Alessandro. Che cosa è la criminologia critica. In: MATA, Victor Sancha (intervista a cura di), Dei delitti e delle pene: Rivista di studi sociali storici e giuridici sulla questione criminale, n. 1, mar. 1991, Bologna, p. 53-81. p. 55. Tradução livre do original em italiano: “Se la qualitàe lo status sociale di deviante e di criminale sono il risultato di processi di definizione e di etichettamento, come è distribuito in uma determinata società il potere di definizione? In che maniera sono distribuite le possibilità di venire etichettato come deviante, di vedersi attribuito lo stato sociale di criminale?”. 40 definição” aliada à “dimensão do poder”32. Resta claro que a influência das reflexões marxistas esteve presente no desenvolvimento desse pensamento. Porém, é necessário observar que nem Marx e Engels, nem os grandes pensadores marxistas se dedicaram especificamente à questão do crime33. Para o desenvolvimento dessa teoria foi necessário destacar, dentro do pensamento marxista, algumas indicações teóricas e metodológicas. Na opinião de Pavarini, [m] é possível afirmar que com o termo nova criminologia se pode compreender uma pluralidade de iniciativas político-culturais e um conjunto de obras científicas que a partir dos anos setenta nos Estados Unidos, e posteriormente na Inglaterra e em outros países da Europa ocidental, desenvolveram um pouco depois as indicações metodológicas dos teóricos da reação social e do conflito até o ponto de superar criticamente estes enfoques. E na revisão crítica dos resultados aos quais se havia chegado, alguns se orientaram para uma interpretação marxista – certamente não ortodoxa – dos processos de criminalização nos países de capitalismo avançado: estes últimos são reconhecidos – ou mais comumente reconhecem-se – como criminólogos críticos.34 Diante dessa perspectiva macrossociológica sobre a criminalidade, torna-se possível questionar a sobrerrepresentação da população mais pobre nas prisões, nos diferentes países: por detrás da seleção da população criminosa são reencontrados “os mesmos mecanismos de interação, de antagonismo e de poder que dão conta, em uma dada estrutura social, da desigual distribuição de bens e oportunidades entre os indivíduos”35. Daí que não seja possível pensar essa imagem do sistema como um erro, mas sim como uma ideologia, que se torna parte do objeto de uma análise científica do sistema penal: 32 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002. p. 211. 33 Para uma análise sobre a questão penal em O Capital, cf. MELOSSI, Dario. Criminologia e marxismo: alle origini della questione penale nella società de “Il Capitale”. La questione criminale: Rivista di ricerca e dibatito su devianza e controllo sociale, Bologna, anno I, n. 2, maggio-agosto, 1975, p. 319-336. 34 PAVARINI, Massimo. Control y dominación: Teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002. p. 155-156. Grifos no original. Traduçãolivre do original emespanhol: “se puede afirmar que con el términonueva criminología se pueden comprender una pluralidad de iniciativas político-culturales y un conjunto de obras científicas que a partir de los años sesenta en los EU, y posteriormente en Inglaterra y en los otros países de Europa occidental, han desarrollado un poco después las indicaciones metodológicas de los teóricos de la reacción social y del conflicto hasta el punto de superar críticamente estos enfoques. Y en la revisión crítica de los resultados a los que se había llegado, algunos se han orientado hacia una interpretación marxista – ciertamente no ortodoxa – de los procesos de criminalización en los países de capitalismo avanzado: estos últimos son reconocidos – o más comúnmente les gusta reconocerse – como criminólogos críticos”. 35 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002.p. 106. 41 A forma da mediação jurídica das relações de produção e das relações sociais na sociedade capitalista moderna (o direito igual) é ideológica: o funcionamento do direito não serve, com efeito, para produzir a igualdade, mas para reproduzir e manter a desigualdade. O direito contribui para assegurar, reproduzir e mesmo legitimar (esta última é uma função essencial para o mecanismo de reprodução da realidade social) as relações de desigualdade que caracterizam da nossa sociedade, em particular a escala social vertical, isto é, a distribuição diferente dos recursos e do poder, a conseqüência visível do modo de produção capitalista36. Sendo assim, em um sistema de classes, enquanto alguns são contemplados com bens positivos como patrimônio, renda e privilégio, a criminalidade é um bem negativo atribuído a algumas pessoas, através de mecanismos análogos37. Os resultados a que chega a Criminologia crítica são justamente a demonstração de que o princípio da seletividade, já formulado pela teoria do etiquetamento, está orientado conforme a desigualdade social, sendo que as classes inferiores são as efetivamente perseguidas. Assim, “[...] o sistema punitivo se apresenta como um subsistema funcional da produção material e ideológica (legitimação) do sistema social global, isto é, das relações de poder e de propriedade existentes”38. Ao conseguirem impor ao sistema a impunidade às próprias ações criminais, os grupos poderosos da sociedade determinam a perseguição punitiva às infrações praticadas pelos indivíduos mais vulneráveis. Assim, os crimes mais graves, aqueles que causam danos em grande proporção, como os delitos econômicos e ambientais dificilmente são criminalizados39. Isso demonstra, em primeiro lugar, que a seletividade do sistema inicia na criminalização primária, quando são definidos no Legislativo os bens jurídicos que deverão ser protegidos. Daí serem os crimes contra o patrimônio os mais comuns nos ordenamentos jurídicos de países capitalistas, e também de serem pobres os principais clientes do sistema penal. O Parlamento é, então, parte do conjunto de instituições encarregadas de produzir a política criminal, isto é, “o programa do 36 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002. p. 213. 37 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002.. p. 108. 38 BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo. In: ELBERT, Carlos Alberto; BELLOQUI, Laura (orgs.). Criminología y sistema penal: Compilación in memorian. p. 299-333. Buenos Aires: Julio César Faira, 2004. p. 301. Tradução livre do original em espanhol: “[...] el sistema punitivo se presenta como un subsistema funcional de la producción material e ideológica (legitimación) del sistema social global, es decir, de las relaciones de poder y de propiedad existentes, más que como instrumento de tutela de intereses y derechos particulares de los individuos”. 39 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002. 42 Estado para controlar a criminalidade”40. A criminalização secundária, aquela que decorre da atuação das agências executiva e judiciária do sistema penal (polícia, justiça), é ainda mais seletiva. Mesmo quando previstos na lei crimes típicos das classes dominantes, ou mesmo quando praticam delitos comuns, dificilmente pessoas que delas fazem parte são criminalizadas. A constatação da seletividade segundo a desigualdade de classe traz diversas consequências. A principal delas é o descrédito no princípio de igualdade perante a lei. Conforme conclui Andrade, ao invés de assegurar a igualdade e a generalização no exercício da função punitiva, a dogmática penal trouxe para o sistema penal a reprodução da seletividade e da desigualdade percebida na sociedade41. Para Baratta, a partir desses achados, três seriam as ordens de questões que deveriam ser trabalhadas no interior de uma Criminologia crítica:1) as questões relacionadas às condições materiais dos processos subjetivos de definição da criminalidade; 2) as questões relacionadas aos efeitos ou às funções da construção social da criminalidade, ou seja, “aos efeitos ou funções que a sua imagem exerce sobre a sociedade”; 3) questões relativas à definição da negatividade social, de um ponto de vista externo ao sistema penal institucional e à imagem da criminalidade no senso comum, definida, pelo autor como o “referente material” das definições da criminalidade42. No que tange à segunda ordem de questões, mais ligada ao tema deste trabalho, é fundamental a comparação que o autor faz com o “teorema de Thomas”: “situações definidas como reais possuem efeitos reais”, querendo significar que, se uma determinada imagem da realidade é afirmada, esta age efetivamente sobre a estrutura ideológica e material da sociedade. Na atual sociedade midiatizada há uma enorme influência dos processos comunicativos na definição da criminalidade. Sendo assim, “para obter determinados efeitos políticos, para legitimar ou deslegitimar, por exemplo, um sistema político ou um governo, não é necessário 40 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal. Discursos sediciosos: crime, direito, sociedade, ano 7, n. 12, 2º sem. 2002. p. 53-58. p. 53. 41 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. Do controle da violência à violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 311. 42 BARATTA, Alessandro. Che cosa è la criminologia critica. In: MATA, Victor Sancha (intervista a cura di), Dei delitti e delle pene: Rivista di studi sociali storici e giuridici sulla questione criminale, n. 1, mar. 1991, Bologna, p. 53-81. p. 59. 43 influir sobre a realidade, é suficiente agir sobre a sua imagem”43. Uma das características importantes da Criminologia crítica é, portanto de inserir a questão da ideologia penal como momento fundamental da legitimação e reprodução das relações de desigualdade. O respeito aos direitos humanos é um dos requisitos para a adoção de um modelo de mínima intervenção penal, e, ao mesmo tempo, “para a articulação programática no quadro de uma política alternativa do controle social”44. Para criar esse programa, Baratta elencou e desenvolveu na forma de princípios alguns requisitos mínimos de respeito dos direitos humanos na lei penal45. Alguns desses princípios se confundem, inclusive, com muitos dos direitos fundamentais protegidos pelas constituições e convenções internacionais de direitos humanos. Isso demonstra que para alcançar um direito penal mínimo, deve-se iniciar pelo respeito à Constituição. Se para a preservação dos direitos humanos é necessário limitar o jus puniendi, então o caminho prático, como consequência das teorias acima expostas, é justamente o de contração do sistema penal. Essa é a noção que deverá respaldar a análise das políticas criminais que vêm sendo adotadas nos diferentes países ocidentais: em caminho contrário, percebe-se uma exacerbação dos limites de penas e do alcance do sistema penal na sociedade. Todas as práticas que rompem com a lógica punitiva vêm ao encontro do ideal abolicionista que é o fim para o qual se dirigem os criminólogos críticos. A Criminologia crítica, como se pode observar, nasce da análise dos sistemas penais dos países centrais. Entretanto, para se estudar uma realidade específica como a latino-americana e ainda mais especificamente, brasileira, torna-se necessário ressaltar algumas questões. A primeira é a de que essa seletividade não se baseia apenas na classe social: a raça é um dos componentes fundamentais, senão o mais importante quando se trata da América Latina. Como é claramente 43 BARATTA, Alessandro. Che cosa è la criminologia critica. In: MATA, Victor Sancha (intervista a cura di), Dei delitti e delle pene: Rivista di studi sociali storici e giuridici sulla questione criminale, n. 1, mar. 1991, Bologna, p. 53-81. p. 63. Tradução livre do original em italiano: “Per ottenere determinti effetti politici, per legittimare o delegittimare, ad esempio, un sistema politico o un governo, non è necessario influire sulla realtà, è sufficiente agire sulla sua immagine”. 44 BARATTA, Alessandro. Principiosdelderecho penal mínimo. In: ELBERT, Carlos Alberto; BELLOQUI, Laura (orgs.). Criminología y sistema penal: Compilación in memorian. p. 299-333. Buenos Aires: Julio César Faira, 2004. p. 304. Traduçãolivre do original emespanhol: “para su articulación programática en el cuadro de uma política alternativa del control social”. 45 BARATTA, Alessandro. Principios del derecho penal mínimo. In: ELBERT, Carlos Alberto; BELLOQUI, Laura (orgs.). Criminología y sistema penal: Compilación in memorian. p. 299-333. Buenos Aires: Julio César Faira, 2004. 44 concretizado na música Haiti, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, classe e raça são duas questões que remetem a estruturas específicas, mas que se relacionam, se interligam na exclusão social do cotidiano brasileiro, ainda que de maneiras diferentes. O adolescente “quase branco, quase preto de tão pobre” é aquele que se aproxima do “lugar do negro” na sociedade brasileira, uma sociedade cuja hierarquização social é tão forte quanto naturalizada46. Negros e índios, em alguns dos países latino-americanos, formam uma clientela sobrerrepresentada nas prisões e, principalmente, dentre as vítimas dos massacres cotidianos dessa região. Massacres esses que levam Zaffaroni a identificar a operacionalidade real dos sistemas penais latino-americanos como “o genocídio em ato”47. Como observa Andrade, a Criminologia crítica latino-americana vem reiterando que a diferença entre o controle penal do centro e o da margem é uma diferença de especificidade (qualitativa) e dose (quantitativa) de violência48. Disso resulta que a deslegitimação teórica do sistema penal realizada pela Criminologia crítica com base na realidade europeia ocorre pelos próprios fatos na realidade latino-americana. Ademais, a origem desses sistemas penais possui uma história um tanto quanto diversa: inicia-se com a colonização, período no qual se torna necessário justificar a opressão sobre os povos originários da América, bem como sobre os africanos, que passam a ser traficados e escravizados. O discurso que possibilitou tal justificativa foi o biológico, baseado nas teorias evolucionistas, explicando qualquer desconformidade das massas exploradas como “demonstração da barbárie ou da selvageria”49. Ou seja, as teorias sobre a inferioridade racial foram a base do sistema colonialista, e por isso tal categoria deve ser analisada acuradamente no estudo da realidade latino-americana. De fato, em sociedades latino-americanas como a brasileira, com uma secular tradição de maus-tratos, tortura e extermínio (crueldade) como tecnologia punitiva e mecanismo de controle social, os corpos, sobretudo de pobres e mestiços, indígenas e negros (antes das tribos, campos e senzalas, e depois das favelas), das marginalizadas e conflitivas periferias urbanas ou zonas rurais, ainda que jovens e até infantis, nunca saíram de cena como objeto da punição. Ainda, quando a pena é declarada pública- estatal, subterraneamente se perpetua a pena privada, por meio do 46 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 78. 47 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: o sistema penal em questão. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 123. 48 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012. p. 106. 49 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología: Aproximación desde un margen. Bogotá: Temis, 1993. p. 134. Tradução livre
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