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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO RENATA CRISTINA DA SILVA BRINGEL INDÍCIOS DO FEMININO NAS CARTAS NOS JORNAIS DA PARAÍBA NO SÉCULO XIX (1850 a 1886) João Pessoa/PB 2018 2 RENATA CRISTINA DA SILVA BRINGEL INDÍCIOS DO FEMININO NAS CARTAS NOS JORNAIS DA PARAÍBA NO SÉCULO XIX (1850 a 1886) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação, da Universidade Federal da Paraíba, como pré-requisito para obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: História da Educação Orientador: Profº Dr. Severino Bezerra da Silva João Pessoa/PB 2018 3 4 5 A memória do meu pai, que partiu durante essa caminhada. A minha mãe, meu esposo e meu filho que com muito carinho e apoio não mediram esforços para que eu chegasse até esta etapa da minha vida. 6 AGRADECIMENTOS A realização dessa dissertação de mestrado contou com importantes apoios e incentivos, sem os quais não teria se tornado realidade e aos quais estarei eternamente grata. Primeiramente a Deus, pelo dom da vida e por ter me proporcionado chegar até aqui. Ao Professor Doutor Severino Bezerra da Silva, meu orientador, pela confiança, amizade, paciência e ensinamentos, pois, mesmo em meio a tantas demandas, dedicou uma parte de seu tempo para auxiliar-me nessa jornada. Aos professores, Doutor Charliton José dos Santos Machado e Doutor Ramsés Nunes e Silva pela atenção e tempo dispensados na leitura dessa dissertação, e pela colaboração desde a qualificação, contribuindo com suas observações e sugestões, as quais foram de suma importância para os rumos desse trabalho. Aos professores do programa por tudo que me ensinaram e pela amizade. A todo corpo técnico administrativo e demais funcionários do PPGE/CE/UFPB pelas informações e auxilio nos procedimentos burocráticos que se nos apresentam ao longo dos semestres e em especial a Glória Fernandes, por sua sensibilidade, amorosidade, paciência e orientações, minha eterna gratidão. A todos os colegas com quem tive o prazer de compartilhar e construir coletivamente conhecimentos, nas aulas, nos grupos e nos eventos, e que dessa forma colaboraram direta ou indiretamente na produção desse trabalho e em especial as queridas Thais Isidro e Bruna Dornelas com quem pude compartilhar não só as alegrias. A Capes pela bolsa concedida. Aos meus familiares e a todos os que acreditaram mim. 7 "Ontem um menino que brincava me falou. Hoje é a semente do amanhã. Para não ter medo que este tempo vai passar. Não se desespere, nem pare de sonhar. Nunca se entregue, nasça sempre com as manhãs. Deixe a luz do sol brilhar no céu do seu olhar. Fé na vida, fé no homem, fé no que virá. Nós podemos tudo, nós podemos mais. Vamos lá fazer o que será." Gonzaguinha 8 RESUMO O presente trabalho se propõe a analisar os indícios de representações do feminino na instrução pública da Paraíba do Século XIX através das cartas publicadas nos jornais e folhetins da época. Para esse trabalho abordamos brevemente o suporte “jornal” e sua relação com as cartas assim como suas características e configurações. Analisamos seis cartas encontradas nos jornais O Governista Paraibano , O Publicador e O Tempo publicadas no período compreendido entre 1850 e 1886, assim como o contexto social da época através dos outros escritos do jornal buscando também compreender a mentalidade e as representações acerca do gênero feminino nesse período. Para a análise e representação do indício da presença feminina em tal contexto histórico, o conteúdo das epístolas conforme já relatado, utilizamos o suporte teórico oferecido por Roger Chartier através da Nova História Cultural, na perspectiva de novos objetos, fontes e abordagens e para quem “o objeto da história cultural é identificar o modo como em diferentes tempos e espaços uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler” e também por Carlo Ginzburg e a sua proposta de investigação indiciária, para quem poderíamos comparar os fios que compõem esta pesquisa aos fios de um tapete. “A coerência do desenho é verificável percorrendo o tapete com os olhos em várias direções”. Pretendemos aqui, por meio da análise destes escritos e estratégias utilizadas para escrever cartas nos jornais, evidenciar os indícios das representações e práticas sociais femininas na instrução pública no Império na Paraíba. Palavras-chave: Cartas nos jornais, Mulheres, Século XIX, Instrução Pública. 9 ABSTRACT The present work intends to analyze the indications of representations of the feminine in the public instruction of Paraíba of Century XIX through the letters published in the newspapers and serials of the time. For this work we briefly discuss the "newspaper" support and its relationship with the cards as well as their characteristics and configurations. We analyzed six letters found in the periodicals published in the periodical period between 1850 and 1886, as well as the social context of the period through the newspaper's other writings, also seeking to understand the mentality and representations about the feminine gender in this period. period. For the analysis and representation of the clue of the feminine presence in such historical context, the contents of the epistles as already reported, we use the theoretical support offered by Roger Chartier through the New Cultural History, in the perspective of new objects, sources and approaches and for those who " the object of cultural history is to identify how a certain social reality is constructed, thought and given to read in different times and spaces "and also by Carlo Ginzburg and his proposal of investigation, for whom we could compare the wires that compose this search for the threads of a rug. "The coherence of the drawing is verifiable by running the carpet with its eyes in various directions." We intend here, through the analysis of these writings and strategies used to write letters in the newspapers, to evidence the signs of female social representations and practices in public education in the Empire in Paraíba. Keywords: Letters in newspapers, Women, 19th Century, Public Instruction. 10 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Anúncio da Botica Imperial................................................................................39 FIGURA 2 – Anúncio da Pequena Estante de Livros de Antonio Thomaz Carneiro da Cunha........................................................................................................................................40 FIGURA 3 – Índice da sexta edição do Novo Secretário Portuguez.......................................46 FIGURA 4 - Conclusão das Cartas..........................................................................................50 FIGURA 5 - Modelos de cartas de menor ceremonia...............................................................51 FIGURA 6 - Modelos de cartas de menor ceremonia...............................................................51 FIGURA 7 - Instruções sobre como deveriam ser assinadas as cartas.....................................53 FIGURA 8 - 1º jornal oficial do Brasil.....................................................................................59FIGURA 9 – 1ª Página do jornal O Governista Parahybano....................................................61 FIGURA 10 – jornal feminino A Marqueza do Norte..............................................................62 FIGURA 11 – Modelo de carta particular................................................................................71 FIGURA 12 – Carta publicada no jornal Correio Braziliense ou Armazém Literário..........72 FIGURA 13 – Carta publicada em jornal da Paraíba...............................................................72 FIGURA 14 - Carta de Queixas................................................................................................80 FIGURA 15 - Carta de Participação ou Notícia.......................................................................80 FIGURA 16 - Carta de Negócios e Encargos...........................................................................81 FIGURA 17 – Carta de queixas – Jornal O Tempo...................................................................83 FIGURA 18 – Carta de queixas – Jornal O Publicador...........................................................85 FIGURA 19 – Transcrição de Carta encontrada no Jornal O Tempo......................................86 11 ANEXOS ANEXO 1 – Mapa de Relatório Provincial .........................................................................91 ANEXO 2 – Mapa de Relatório Provincial..........................................................................92 ANEXO 3 – Mapa de Relatório Provincial..........................................................................93 12 SUMÁRIO 1 CAPÍTULO INTRODUTÓRIO ......................................................................................... 13 1.1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA CONSTRUÇÃO DO OBJETO: A PRESENÇA FEMININA NA INSTRUÇÃO PÚBLICA NA PARAÍBA DO SÉCULO XIX ATRAVÉS DOS INDÍCIOS ENCONTRADOS NAS CARTAS PUBLICADAS NOS JORNAIS..................................................................................................................................17 2 A ESCRITA EPISTOLAR COMO LUGAR DE MEMÓRIA. ....................................... 27 2.1 MANUAIS EPISTOLARES E A ARTE DE ESCREVER CARTAS NA PROVÍNCIA DA PARAHYBA DO NORTE . .............................................................................................. 31 2.2 PRESENÇA E CIRCULAÇÃO DOS MANUAIS EPISTOLARES NA PROVÍNCIA DA PARAHYBA DO NORTE NO SÉCULO XIX. ................................................................ 38 3 CARTAS E JORNAIS DO SÉCULO XIX ........................................................................ 56 3.1 ESCRITA EPISTOLAR NOS JORNAIS NA PARAÍBA DO OITOCENTOS .......................... 67 4 AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS NAS CARTAS DA INSTRUÇÃO PÚBLICA NA IMPRENSA PERIÓDICA DA PARAÍBA (1850-1886) ............................ 76 4.1 PORQUE E PARA QUE SE ESCREVIAM CARTAS NOS JORNAIS?O QUE NOS DIZ ESSAS ESCRITAS?.................................................................................................................80 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................89 ANEXOS..................................................................................................................................91 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 94 13 1. CAPÍTULO INTRODUTÓRIO Olhar para meu percurso enquanto estudante e profissional me faz refletir sobre nossas escolhas, no meu caso eu nunca soube responder se eu escolhi a educação ou se eu fui escolhida por ela através das alternativas direcionadas e conduzidas muitas vezes pelas circunstancias impostas pela vida, pois por mais que eu tenha tentado percorrer outros caminhos ou feito outras escolhas, inconsciente ou conscientemente em algum momento eu fui de encontro a ela. Minha formação iniciou-se com o magistério, na época apenas com a intenção de otimizar e agregar valor ao colegial (hoje o atual ensino médio), uma vez que eram equivalentes e era conveniente concluir a educação básica com alguma qualificação profissional. Após a conclusão dessa etapa era chegada a hora de escolher uma graduação, e aqui a opção pela educação não foi unanime, passei no vestibular em dois cursos, duas áreas distintas, uma bacharelado e outra licenciatura, direito e letras/literatura, optei pelo curso de letras, pois diante da necessidade de colocação no mercado de trabalho, nessa opção havia a possibilidade de realização no período noturno. Ao final de 2005, quando cursava o segundo ano do curso de letras, passei no concurso público para o magistério das séries iniciais do governo do estado de São Paulo, tomei posse do cargo em janeiro de 2006 e decidi também nesse momento trancar o curso de letras em andamento e iniciar o curso de pedagogia, uma vez que de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – lei 9394/96), os professores não poderiam exercer a atividade do magistério das séries iniciais sem curso superior em pedagogia e também porque esse curso era mais adequado a minha realidade funcional a partir de então. No decorrer de minha caminhada enquanto educadora, embora não muito longa, visto que ingressei na carreira do magistério há apenas 11 anos, tive a oportunidade de olhar de vários ângulos o quadro docente através das diversas experiências que vivenciei nesse sentido. Iniciei atuando na docência nas séries iniciais da rede pública do estado de São Paulo, na perspectiva da “posição confortável” 1 de titular de cargo efetivo no ano de 2006 e permaneci neste posto durante cinco anos, embora tão logo eu tenha me dado conta de que não pode existir comodidade em uma área com tanto a ainda ser alcançado, construído e conquistado de um modo geral. Reconheci que este era um território de lutas e resistências e consciente disso aderi ao movimento tornando-me representante da minha escola sede junto 1 Me refiro aqui a estabilidade funcional proporcionada pelo concurso público e as demais vantagens que acompanham esse modo de inserção no mercado de trabalho como o plano de carreira e os auxílios integrantes da folha de pagamento. 14 ao Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP). Minha inserção nesse meio, a participação ativa nos congressos, reuniões e manifestações, além de me proporcionar vivenciar de forma singular o exercício da cidadania, ajudou-me a ampliar minha concepção a respeito das dificuldades enfrentadas pela educação e pelos professores, embora nesse contexto eu também tenha percebido de modo frustrante a ausência de concepção de cooperação e que há resistência também por parte de profissionais da educação, em reconhecer a importância desse enfrentamento na conquista de direitos. Nesse período tive ainda outras duas experiências na área da educação, uma enquanto voluntária na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) da minha cidade natal, Franca SP, onde pude ter contato com a metodologia de ensino e as políticas públicas de inclusão, atuei em vários setores, colaborava onde havia necessidade, conforme a demanda dos dias em que eu estava lá, auxiliando nas salas de aula, nas oficinas, na secretaria, na administração e nos eventos promovidos para arrecadar fundos para o auxilio do projeto, a outra, enquanto sócia diretora na rede privada em uma instituição de educação infantil, oportunidade ímpar de me aprofundar na legislação educacional, nos parâmetros curriculares e conhecer a fundo os aspectos burocráticos e institucionais da implantação de uma unidade de ensino quandoda criação do Projeto Político Pedagógico e da concretização da instituição. Na Paraíba, onde passei a residir a partir de 2011, atuando em outros contextos tive contato com outra realidade, de um modo geral a mesma encontrada no meu local de origem onde ingressei na carreira do magistério, porém diferente em muitos aspectos, tanto pela minha condição funcional tanto pela forma de acesso, uma vez que aqui os profissionais da educação ainda podem ser contratados 2 , e o são em sua maioria, pela rede pública sem concurso público e há diferenças substanciais referentes a benefícios entre profissionais que exercem a mesma função nesse contexto, o que confesso me deixou “escandalizada”, apesar de minha consciência sobre as dificuldades encontradas nessa área de atuação. O sentimento de injustiça e impotência que a constatação desse fato me causou afastou-me da profissão docente por certo período, mas não da educação. Apesar de minha resistência recebi duas propostas em dois momentos diferentes para atuação no nível superior na rede privada, uma para coordenação de unidade de EAD e outra para coordenação de curso de pós-graduação, 2 Da realidade de onde venho esse fato já fora superado há vários anos, quando eu ingressara na educação em 2006 já não existia mais. Todos os profissionais da educação de minha cidade são concursados, em todas as esferas, professores, diretores, coordenadores, supervisores e professores substitutos também participam obrigatoriamente de processos seletivos de provas e títulos para exercer essa função por períodos determinados. Eu ingenuamente pensara que não pudesse ser de outro modo em outros locais. 15 aceitei ambas e desenvolvi esse trabalho por certo período, um inteiramente administrativo e outro pedagógico, em um nível da educação que eu nunca havia trabalhado antes e que foram certamente de modo positivo grandes desafios. Procurei outras áreas para atuar, porém tudo o que eu fazia de diferente me levava ao lugar de sempre: a educação. Primeiro empreendi na área do turismo e quando me dei conta estava fazendo projetos de aula de campo para as escolas e trabalhando com turismo pedagógico, atuei nesse sentido por quatro anos e foi uma experiência excepcional conceber a educação na perspectiva dos processos de ensino e aprendizagem realizados in loco e da pedagogia por projetos. Nesse período, ainda insistindo em exercer outro ofício ampliei o menu de serviços oferecendo eventos coorporativos em parceria com uma rede de bares e restaurantes e treinamentos coorporativos ao ar livre, e mais uma vez me vi atuante em contextos vinculados a educação quando os trabalhos realizados nesse sentido tinham em sua maioria enquanto parte contratante as escolas com a solicitação de aulas da saudade, confraternizações e organização de capacitações para o corpo docente das instituições que demandavam deslocamentos e atividades ao ar livre. Foi num desses trabalhos que tive despertado meu desejo de retornar ao trabalho docente e encontrei ânimo para aceitar as condições impostas, não de modo passivo e conformado, mas determinada a fazer a minha parte para a construção de uma nova realidade, sentimento este que creio animar a maioria de meus pares nesse ambiente às vezes tão insalubre que é a educação. No inicio do ano de 2014 a Prefeitura Municipal de João Pessoa aderiu aos nossos projetos de aula de campo para os discentes e de treinamento ao ar livre para os docentes do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (PROJOVEM URBANO - PJU), durante esse ano realizamos diversas atividades e estudos in loco com esse público em várias localidades da Paraíba e também de outros estados. O contato com esses jovens e com a proposta deste programa pautada em valores éticos, humanitários e de inclusão reavivou em mim a vontade de aprender, compartilhar e interagir nesse meio, um novo contexto de educação para mim e consequentemente novas concepções, senti uma forte inclinação, eu diria até irresistível, de fazer parte disso, e fiz. No inicio de 2015 fui aprovada no processo seletivo docente para a décima quarta edição do Projovem Urbano para lecionar a disciplina de participação cidadã, o projeto tem duração de 18 meses para cada edição tendo chegado ao final em novembro de 2016 e tendo sido esta a última edição deste programa de acordo com informações da secretaria da educação do município e confirmada através da ausência de novos processos seletivos discentes e docentes. O contato com esses jovens, suas histórias de vida e a oportunidade de vivenciar a situação educacional pública docente e discente no 16 ensino regular 3 colocou-me novamente em posição de refletir sobre a educação e todas as contradições que se apresentaram para mim advindas dela. Situações relacionadas a condições de acesso e permanência, a condições de trabalho, a igualdade de direitos e deveres sempre me inquietaram. Eu nunca as aceitei nem me conformei com aquilo que se coloca para nós acerca disso pela sociedade e pelas políticas públicas destinadas a esse fim, e isso me faz questionar constantemente sobre porque nos encontramos em tais situações, o que nos levou e nos leva a esses resultados. Nesse ponto justifica-se minha inclinação à história de um modo geral e especificamente a história da educação, pois assim como O Anjo da História (BENJAMIN, 1987) sinto-me propensa a olhar para trás apesar do progresso que nos impulsiona sempre, dito de outro modo, sempre busquei compreender a realidade a minha volta buscando por suas origens através da história, pois creio ser essa a única maneira de se ter uma compreensão global dos fatos e é essa compreensão imprescindível para qualquer processo de mudança ou contribuição que se queira realizar nesse sentido. Nesse contexto, ao longo de todas as minhas experiências enquanto profissional ou estudante ou ainda ao observar meus alunos/as, as mulheres estiveram sempre no cerne dessas inquietações e diante disso surgiu a motivação para a referente pesquisa que se deu pelo interesse em compreender os aspectos e contextos nos quais foram constituídas a concepção feminina no ambiente educacional, uma vez que nele estamos inseridos e assim sendo, também construímos e somos construídos, tornando-nos responsáveis pelos seus resultados. A opção pela linha de pesquisa em História da Educação e a predileção pelas cartas nos jornais se deu a partir de nosso contato em meados de 2015 com a obra de GALVÃO & GOTLIB (2000), intitulada Prezado Sr, Prezada Senhora: Estudos sobre Cartas. A partir dessa conexão com esse tipo de texto nos demos conta do quão rico historicamente e enquanto fonte documental é o universo epistolar e o quanto ele tem para nos dizer em muitos aspectos, entre eles, o da instrução pública. Desse modo ao fazer pesquisas sobre esse tema, descobrimos que essa modalidade de escrita também circulou em suportes como os jornais. Aprofundando essas investigações, feitas predominantemente através da ferramenta “internet”, verificamos a existência de um trabalho coordenado pelas professoras Fabiana Sena e Socorro Barbosa, divulgado e disponibilizado através do site “Jornais e Folhetins da Paraíba no século XIX”. Esse trabalho das professoras consistiu em levantar, mapear, digitalizar e disponibilizar as cartas que foram 3 O projeto acontecia dentro das escolas municipais onde compartilhávamos com os profissionais da educação básica regular os espaços e as experiências. 17 publicadas nos jornais Paraíba no século XIX. A partir daí teve inicio o delinear de nosso objeto de pesquisa, conforme detalharemos a seguir. 1.1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA CONSTRUÇÃO DO OBJETO: A PRESENÇA FEMININA NA INSTRUÇÃO PÚBLICA NA PARAÍBA DO SÉCULO XIX ATRAVÉS DOS INDÍCIOS ENCONTRADOS NASCARTAS PUBLICADAS NOS JORNAIS. O presente texto tem por objetivo investigar e discutir sobre as concepções acerca das possíveis representações referentes à presença e participação feminina na instrução pública na Paraíba oitocentista, tendo como objeto e fonte cartas sobre a instrução pública publicadas nos jornais e folhetins da Paraíba no Século XIX, no recorte temporal que compreende o período de 1850 a 1886, pretendemos analisar como a mulher é apresentada nesse contexto e recorte históricos através dos indícios encontrados nesses documentos. Segundo Barros (2005) “o recorte temporal é definido e determinado pelo objeto”, desse modo entendemos ser aquele, a relação de espaço e tempo em que ocorreram os fatos, nesse trabalho determinado pela fonte, as cartas nos jornais e folhetins, as quais aparecem de alguma forma elementos femininos. A escolha de se trabalhar com o gênero feminino partiu como já dito anteriormente, de nossas inquietações acerca de situações e condições das mulheres no contexto educacional e também em virtude de identificarmos que, embora existam várias publicações sobre cartas 4 nos jornais da Paraíba no referido século, nenhum deles aborda especificamente a figura feminina no contexto da instrução pública. Posteriormente tivemos a oportunidade de confirmar esse dado ao realizarmos em parceria com José Roberto de Morais dos Santos 5 , o trabalho de culminância da disciplina Pesquisa em Educação I, ministrado pela professora Maria Lúcia Nunes, onde nos foi proposta a elaboração de artigo sobre o estado da arte e do conhecimento sobre a linha de pesquisa História da Educação do PPGE-CE/UFPB, a partir do ano de sua implantação em 2009 ao ano de 2016 6 , data em que foi realizado o presente estudo. Trabalho similar anterior 7 4 Nos interessa nessa trabalho uma abordagem feminina a partir do dispositivo “cartas” publicadas nos jornais do século XIX e nesse sentido afirmamos que não encontramos outros trabalhos, entretanto não desconsideramos a presença de inúmeros trabalhos na Paraíba referentes a mulher no século XIX no contexto da Instrução Pública. 5 José Roberto Morais dos Santos é mestrando em Educação pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Desenvolve pesquisas relacionadas à História da Educação, com ênfase em estudos relacionados às práticas escolares no ensino confessional. 6 Dados disponíveis na plataforma Sucupira até dezembro de 2016. 7 FARIAS, Rosilene Mariano de. NETO, José Francisco de Melo. RODRIGUES, Janine Marta Coelho. VIRGÍNIO, Maria Helena da Silva. Pesquisa em Educação na Paraíba 30 anos (1977 – 2007). Paraíba: Editora UFPB, 2007. 18 a esse e anterior a criação da linha de pesquisa de História da Educação fora realizado no PPGE-CE/UFPB, em virtude da comemoração dos 30 anos do programa de pós graduação em educação, compreendendo o período de 1977 a 2007, abrangendo todas as linhas de pesquisa existentes no período no referido programa. Para Soares (1989), “estado da arte” ou “estado do conhecimento”, é um tipo de pesquisa que possibilita o mapeamento de produções acadêmicas em termos quantitativos: [...] pesquisas desse tipo é que podem conduzir à plena compreensão do estado atingido pelo conhecimento a respeito de determinado tema – sua amplitude, tendências teóricas, vertentes metodológicas. Essa compreensão do estado do conhecimento sobre um tema, em determinado momento, é necessária no processo de evolução da ciência [...] (SOARES, 1989, p. 3). O “estado da arte” ou “estado do conhecimento” começou a surgir no Brasil por volta dos anos de 1980, tendo subsidiado vários estudos acerca da análise de produções acadêmicas no âmbito nacional. Mas o seu auge foi nos anos de 1984, na área de História da Educação brasileira. Nas palavras de Ferreira (2002), essas pesquisas são: [...] Definidas como de caráter bibliográfico, elas parecem trazer em comum o desafio de mapear e de discutir uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento, tentando responder que aspectos e dimensões vêm sendo destacados e privilegiados em diferentes épocas e lugares, de que formas e em que condições têm sido produzidas certas dissertações de mestrado, teses de doutorado, [...] (FERREIRA, 2002, p. 258) A abordagem dessa temática, acerca do estado da arte, além de fazer um resgate das produções já publicadas, contribuiu para o condensamento de informações existentes numa determinada área. Conforme percebemos nas palavras de Teixeira (2006), “o Estado da Arte” ou “Estado do Conhecimento” caracteriza-se como um levantamento bibliográfico, sistemático, analítico e crítico da produção bibliográfica acadêmica de determinado tema. Podemos aqui mencionar que pesquisadores que se dedicam a produzir sobre o “estado da arte” ou “estado do conhecimento”, tem como principal interesse conhecer a totalidade de produções em determinada área, dessa forma, poder apresentar os resultados tanto em nível quantitativo como qualitativo, e assim desencadear discussões acerca das produções desenvolvidas, pois, [...] essa compreensão do estado de conhecimento sobre um tema, em determinado momento, é necessária no processo de evolução da ciência, afim de que se ordene periodicamente o conjunto de informações e resultados já obtidos, ordenação que permita indicação das possibilidades de integração de diferentes perspectivas, aparentemente autônomas, a identificação de duplicações ou contradições, e a determinação de lacunas e vieses. (SOARES, 1989, p. 3) 19 Movidos pelo interesse de tentar se conhecer o já produzido para depois tentar encontrar respostas para o que ainda não se tem de buscar cada vez mais respostas ao grande número de produções já realizadas de difícil acesso, tentando dessa forma possibilitar a divulgação de respostas não só à sociedade, mas a todos que se dedicam a esse tipo de pesquisa, para que dessa forma possa se ter uma nova ferramenta metodológica, para auxiliar na construção dos temas propostos. Trata-se, portanto, de uma atividade reflexiva e crítica, não devendo se colocar os dados obtidos, sem antes fazer uma reflexão sobre esses dados, relacionando-os com a temática proposta. É nessa interação do texto com o autor, que deve surgir um novo texto, que tenha força para argumentar com o leitor e, assim gerar novas discussões. Com o intuito de se conhecer um pouco mais sobre as produções acadêmicas da Pós-Graduação em Educação no nível de mestrado e doutorado da Universidade Federal da Paraíba- UFPB nos propomos a analisar as produções acadêmicas da linha de História da Educação para tentarmos aqui identificar trabalhos realizados com a temática carta nos jornais e folhetins do século XIX. O cruzamento das informações aqui coletadas se deu através das seguintes fontes: Plataforma Sucupira, Biblioteca Digital da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, e cadastro interno da situação acadêmica dos alunos das turmas 26 até a turma 35. Dessa forma, o acesso a essas informações, não foi tão simples como parece. Seja pela não disponibilidade na Biblioteca online, ou a ausência de informações em outros meios, foi necessário se fazer um cruzamento de todos os meios disponíveis para se chegar ao resultado. Para Sabino (2004, p. 13), “Todos estamos cientes da necessidade de conhecermos experiências anteriores para elaborarmos de maneira mais eficiente o nosso presente. Nortearmo-nos por ações, estudos e análises evitará que incorramos nos erros cometidos por nossos antecessores”. Assim sendo, se fizeram necessárias várias revisões acerca das questões analisadas, devido aos desencontros de informações encontradosnos memoriais do programa, dificultando a análise, e compreensão das dissertações e teses abordadas. 20 GRÁFICO 1- Número de dissertações e teses defendidas: HE/PPGE/UFPB – 2009 a 2016. Fonte: MORAIS; SILVA, 2017, p. 8 Ao todo foram encontradas, conforme indica o gráfico, 69 dissertações e 18 teses. O método utilizado foi à observação dos títulos, recortes temporais e resumos quando disponíveis, destas encontramos apenas um trabalho sobre cartas especificamente, uma dissertação defendida no ano de 2015 por Maria Géssica Romão da Silva intitulada Correspondências de Professores: Representações e Práticas Docentes nos Jornais da Paraíba Imperial (1864-1889), que trata da análise das cartas encontradas nos jornais da Paraíba como discurso das representações das práticas docentes no século XIX. Encontrou-se também um trabalho que trata dos manuais epistolares, defendido em 2015 por Kaline Gonzaga Barboza sob o título Leituras das Regras de Escrita de Cartas: manual epistolar novo secretario portuguez ou código epistolar como dispositivo de formação pedagógica. Em momento posterior a produção acima mencionada e com a intenção de obter maior conhecimento acerca do tema, uma vez que o referido trabalho realizado como culminância de disciplina limitou-se a apenas as produções do PPGE/UFPB, buscamos identificar em outros centros da UFPB produções que utilizaram cartas publicadas nos jornais do século XIX como fonte/objeto de estudo ou trabalhos relacionados a esse universo de escrita, a saber, os manuais epistolares. Interessava-nos nesse intento analisar que tipo de abordagem utilizando cartas foi realizado nos trabalhos existentes, procurando a confirmação de nossa suposição da inexistência de um tratamento relacionado a nossa proposta. Utilizamo- 21 nos da mesma metodologia empregada no levantamento dos trabalhos do PPGE e a partir dessa investigação verificamos a existência de dois trabalhos que utilizaram cartas publicadas nos jornais do século XIX na Paraíba provenientes do Programa de Pós-Graduação em Linguística 8 : A orientação para o outro: relações dialógicas na constituição do discurso escrito de cartas de leitor do século XIX, de Thiago Trindade Matias (2009), que trata especificamente das cartas publicadas nos jornais como objeto de estudo; e o trabalho Topicalização: um estudo histórico sobre a ordem dos constituintes em cartas oficiais da Paraíba dos séculos XVIII e XIX, de Maria Alba Silva Cavalcante (2011). Ainda utilizando os mesmos referenciais de busca: cartas publicadas nos jornais do século XIX, na tentativa de localizar possíveis produções oriundas de outras instituições da Paraíba como a UFCG e a UEPB a pesquisa resultou negativa. Buscamos também por produções no site da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) onde redirecionada ao portal da Revista Brasileira de História da Educação (RBHE) encontramos o artigo Imprensa e instrução pública no império: o modo epistolar nos jornais do Rio de Janeiro e da Paraíba de Fabiana Sena da Silva (2014). No banco de dados dos anais da SBHE encontramos dois artigos sobre esses temática intitulados: Aos leitores dos jornais da Paraíba e do Rio de Janeiro, notícias sobre os liceus no Império e As epístolas nos jornais Paraibanos: o discurso pedagógico no período imperial ambos de Fabiana Sena da Silva (2011). Dando continuidade as investigações no intuito de alcançar o maior número possível de trabalhos relacionados ao tema de nossa pesquisa, por fim, utilizamos a ferramenta de busca google no intento de alcançar resultados mais abrangentes e que por ventura não constassem dos portais navegados a priori, nessa modalidade encontramos outros dois artigos, um artigo publicado na revista teias (Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ) intitulado Representações e práticas docentes nas cartas de queixas da província da Paraíba no Império, de autoria de Maria Géssica Romão da Silva e Fabiana Sena (2017), o outro nos periódicos on line do Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR): Cartas no jornal o governista paraibano (1850): criação da cadeira de desenho no liceu paraibano, de Kaline Gonzaga Barboza e Maria Géssica Romão da Silva (2012). E por fim, encontramos no livro impresso Histórias da Educação na Paraíba: Rememorar e Comemorar (Pinheiro e Cury, 2012) o artigo As cartas sobre Instrução Pública nos jornais paraibanos do Império, também de Fabiana Sena da Silva. 8 SILVA (2015), também fez esse levantamento. 22 Considerando ainda as várias 9 publicações já existentes de tantos autores que deram sua contribuição para a construção desse sentido 10 ao trabalharem com esse tema, ao pesquisar sobre o “estado da arte” ou “estado do conhecimento” expandindo os referentes de busca ao buscar apenas por “cartas e história da educação” descobrimos que autores como Galvão e Gotlib (2000), Gondra (2003), Rizzini (2007), Sena (2011, 2012, 2013, 2014, 2015) e Camargo (2000) entre outros, utilizaram as cartas no jornal como fonte de estudo na História e na Educação. Feito o levantamento dos trabalhos realizados e a constatação da possibilidade de não haver estudo específico sobre as cartas nos jornais e as mulheres 11 na instrução pública na Paraíba do XIX partimos para a busca de indícios documentais que nos tornasse possível à constituição do corpus de nossa pesquisa. Ao pesquisarmos na internet, por meio da ferramenta google, deparamo-nos com uma fonte/acervo, resultado dos trabalhos das professoras Fabiana Sena e Socorro Barbosa, publicado no site 12 Jornais e Folhetins Literários da Paraíba no século XIX. Tal arquivo digital é composto, como o próprio nome diz, por jornais e folhetins, não só da Paraíba, mas de vários estados e períodos históricos, entre esses, inúmeras edições de jornais da Paraíba no século XIX e uma seleção específica com todas as cartas encontradas nesses periódicos, onde encontramos seis 13 (6) cartas (documentos) que comporão a base de nossa análise, onde se encontram informações referentes ao sexo feminino relacionado à instrução pública na Paraíba, publicadas entre os anos de 1850 a 1886. A partir desse referencial: o recorte temporal, partimos em busca de outras informações referentes às mulheres em outras sessões dos jornais, os que portavam as cartas e também outros que circularam no período. Buscamos informações nos anúncios, nos jornais literários e também em outros sites especializados 14 , onde tivemos acesso à legislação educacional da época e aos relatórios de província, com o objetivo de fundamentar e justificar nossas análises e observações acerca do objeto e fonte, uma vez que em nosso entendimento a fonte não responde as coisas imediatamente, ela serve para responder questionamentos específicos, segundo Burke (2004) “os historiadores têm se referido aos seus documentos 9 Selecionamos para este trabalho algumas dentre várias publicações sobre cartas, selecionadas conforme maior afinidade com nosso tema e devido ao tempo relativamente curto para o desenvolvimento deste trabalho. 10 Escrita de Cartas como prática social. 11 Nos interessa nessa pesquisa refletir sobre o feminino através e a partir dos indícios encontrados nas cartas nos jornais. 12 <http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/acervo.html> 13 Esses documentos serão expostos e analisados detalhadamente no capítulo 3. 14 Os sites utilizados para consultar a fonte de pesquisa foram: http://hemerotecadigital.bn.br/ 23 como “fontes”, como se eles estivessem enchendo baldes no riacho da Verdade”. Fontes históricas não são como uma fonte de água onde é possível ir com um balde catarrespostas, as fontes podem ou não responder perguntas, o trabalho do historiador é que as define. Uma vez delimitado e definido nosso objeto, buscaremos entender e responder aos seguintes problemas de pesquisa: como e por quem as mulheres, professoras e alunas eram representadas nas cartas sobre instrução pública nos jornais da Paraíba do Século XIX? Que informações estão implícitas na escrita epistolar 15 praticada e publicada pelos sujeitos da época nos jornais e folhetins da Paraíba oitocentista, dentro do recorte temático e temporal propostos? Implícitas aqui justificado pelo acesso limitado que as mulheres possuíam no século XIX no âmbito social e educacional, e nesse ínterim, dentre as várias ferramentas existentes para se interrogar a evidência documental e na tentativa de superar os filtros interpostos por seus autores e coadunando com a concepção de que o documento nunca é neutro, utilizaremos como referencial teórico, dialogaremos, buscaremos subsídios e fundamentação na perspectiva de Ginszbug (1989), Poderíamos comparar os fios que compõem esta pesquisa aos fios de um tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a compor-se numa trama densa e homogênea. A coerência do desenho é verificável percorrendo o tapete com os olhos em várias direções”. (GINZBURG, 1989, p.170) Para o autor, “uma coisa é analisar pegadas, astros, fezes (animais e humanas), catarros, córneas, pulsações, campos de neve ou cinzas de cigarro; outra é analisar escritas, pinturas ou discursos” (GINZBURG, 1989, p.171). Desse modo, olhando minuciosamente, concentrando-nos nos pormenores buscaremos neste conceito suporte para validar através de indícios e vestígios, possíveis representações acerca de nosso objeto, nos debruçando, para além das cartas sobre a instrução pública, sob outras informações contidas nos jornais, em outras seções e em outras edições do mesmo local e período. Para auxiliar na investida de responder as questões citadas acima e levantadas nessa pesquisa, buscaremos suporte também nos conceitos de representação e práticas de leitura e escrita de Roger Chartier, que serão utilizados para compreender o objeto dessa pesquisa como “[...] instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe uma „imagem‟ capaz de repô-lo em memória e de „pintá-lo‟ tal como é” 15 Significado de escrita epistolar: relativo à maneira de se escrever cartas: estilo, gênero epistolar. Ex. carta de amor = gênero epistolar. Epistolar: 1. Referente à epístola; 2. Que tem forma de cartas ou de um conjunto de cartas. Conteúdo das cartas = escrita epistolar. Carta = mensagem escrita ou impressa que se envia a alguém, a uma empresa ou instituição para comunicar algo. Disponível em: ‹https://dicionariodoaurelio.com/epistolar›. Acesso em: 16 Oct. 2017 24 (CHARTIER, 1991, p. 184). Conforme esse autor, as relações de poder e o modo de se relacionar entre os sujeitos, são afetados e alterados pela informação veiculada no suporte impresso. “Nesse sentido, as cartas sobre a instrução pública, publicadas nos jornais paraibanos oitocentistas serão analisadas como práticas de escritas e objetos de representação de um determinado momento histórico” (Sena, 2014), a partir da compreensão que não existe “[...] prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles” (CHARTIER, 1991, p. 177). Cada fonte exige metodologias específicas de trabalho, nesse sentido nossa pesquisa classifica-se em qualitativa uma vez que lançaremos mão de pesquisa documental e bibliográfica nos valendo do instrumento chamado análise de conteúdo cujo objetivo principal é desvendar os sentidos ocultos e aparentes de um documento, um texto ou qualquer outro mecanismo de comunicação. Técnicas de pesquisa que viabilizam a sistematização da leitura como a análise textual, fichamento, análise temática e análise interpretativa, também serão utilizadas. Segundo Barros (2004), [...] a “metodologia” remete a uma determinada maneira de trabalhar algo, de eleger ou constituir materiais, de extrair algo desses materiais, de se movimentar sistematicamente em torno do tema definido pelo pesquisador. A metodologia vincula-se a ações concretas, dirigidas à resolução de um problema; mais do que ao pensamento, remete à ação. (BARROS, 2004, p.80) Visando atender aos propósitos desta investigação histórica, que tem como objetivo a investigação e a busca por respostas que venham a colaborar com a comunidade acadêmica e com a sociedade, no processo de construção dos conceitos e representações femininas na instrução pública na Paraíba no século XIX, levando ao aprimoramento e ao melhor entendimento do quadro social feminino concebido, produzido e implantado até o presente momento, neste trabalho, três capítulos serão elaborados. O segundo intitulado A escrita epistolar como lugar de memória, abordará o lugar de memória ocupado pela escrita epistolar e todos os recursos que subsidiaram essa escrita ao longo do século XIX a exemplo dos manuais epistolares. Para tanto, recorreremos às considerações de Camargo (2000), em Cartas e Escrita; de Gondra (2003), em Ao correr da pena: reflexões relativas às cartas de professores do século XIX; de Malatian (2009), em O historiador e suas fontes; de Matias (2009), em A orientação para o outro: relações dialógicas na constituição do discurso escrito de cartas de leitor do século XIX; de Medeiros, Mota e Fabiano (2011), em 25 Movimentos argumentativos em cartas de leitores do século XIX; em Roquete (1867), em Novo Secretário Português ou Código Epistolar; em Barboza (2015) em Leituras das Regras de Escrita de Cartas: manual epistolar novo secretario portuguez ou código epistolar como dispositivo de formação pedagógica; e de Machado e Sena (2015), em A escrita de cartas e os manuais epistolares, que também nos dará suporte nesse capítulo para construirmos e expormos nossas considerações acerca do universo da escrita epistolar, suas bases fundamentais e suas configurações as quais permitem sua identificação mesmo quando a carta encontra-se em outros suportes, como nos jornais e folhetins por exemplo. Será abordado também neste capítulo, como essa prática social consagrada através de seu conteúdo, ou seja, a escrita epistolar configura-se em um lugar de memória, na perspectiva de Le Goff (2013) em História & Memória, e esta ligada ao conceito de civilidade recorrente no período, e verificada a ocorrência na Paraíba por meio de anúncios publicados nos jornais 16 que circularam na época. Sobre a civilidade, trabalharemos com Elias (1994), em O Processo Civilizador; e Revel (2009) em História da Vida Privada. No terceiro capítulo, Cartas nos jornais do século XIX, abordaremos de forma introdutória a escrita epistolar nos jornais da Paraíba nesse período, com o intuito de tentar delinear o contexto sócio histórico em que se deu a implantação da imprensa na Paraíba e como o suporte, nesse caso os jornais, nos quais as cartas que pretendemos analisar se encontram, define e modifica a estrutura das cartas se comparadas ao modelo clássico privado, do qual se originou os jornais que antes de receberem este nome e nova estruturação, eram conhecidos como cartas de notícias. Os referenciais e as fontes utilizadas para esse fim são Le Goff (2013), Chartier (1991 e 2002), Rizzini (1998), Galvão & Gotlib (2000), Jornal Gazeta do Rio de Janeiro (1808); Barboza e Silva (2012) , Peixinho (2009), Jornal O Governista Parahybano (1850), Sena (2014), Jornal A Marqueza do Norte (1867), Roquette (1867), Ginzburg (1989). Por fim, no quarto e último capítulo, As Representações Femininas nas Cartas da Instrução Pública na imprensa periódica da Paraíba (1850-1886),analisaremos o conteúdo das seis cartas encontradas nos jornais da Paraíba imperial, utilizando como suporte as demais cartas, anúncios e noticias dos jornais em que foram encontradas, assim como os de outros jornais com o objetivo viabilizar através do cruzamento de informações e da comparação, contextualizar e problematizar as representações concebidas através essas escritas, de modo a entender como essas práticas se traduziram em dado comportamento, além 16 Os jornais onde tais anúncios foram encontrados são: A Regeneração, nos anos de 1861 e 1862 e no jornal O Publicador no ano de 1864. 26 de tentar responder alguns de nossos questionamentos sobre a presença e atuação feminina no espaço da instrução pública na Província da Parahyba do Norte. Nesse capítulo trabalharemos a partir da compreensão de Ginzburg (1989) em o Paradgma Indiciário e de Chartier (1991 e 2002) na concepção do conceito de representação. Obras como as de Faria e Lôbo (2008), em Vozes Femininas no Império; de Almeida (2007), em Por que educar meninas e mulheres; de Jinzenji (2010), em Cultura Impressa e Educação da Mulher no Século XIX; Priori (1997), em História das Mulheres no Brasil e (2014) em História e Conversa de Mulher; de Perrot (2007) em Minha História das Mulheres e (2010) em Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros nos darão subsídios para a compreensão das representações femininas ao longo dos séculos e, sobretudo no XIX. Além dos jornais onde se encontram as seis cartas que compõem o corpus documental desta pesquisa, a saber: o jornal O Tempo, o Jornal O Governista Parahybano e o jornal O Publicador, também foram analisados em busca de informações sobre a mulher no século XIX na instrução pública os demais jornais publicados no período de 1850/1886, recorte temporal dessa pesquisa, encontrados no acervo digital do site jornais e folhetins da Paraíba do século XIX, correspondendo a mais de uma dezena 17 de títulos que constituem inúmeras edições entre jornais e folhetins editados com os mais diversos fins. Cremos que essa pesquisa contribuirá para os estudos da História da Educação na Paraíba, pois para nós, esse estudo revela dados sobre o feminino e os vários assuntos que circulavam no contexto da instrução pública, sendo o nosso objetivo lançar um olhar mais atento a presença feminina 18 nessa conjuntura, para além das referências, notícias ou informes sobre os demais atores escolares como, por exemplo, professores, alunos diretores e inspetores. Assim, essa pesquisa faz-se necessária, pois, por meio dela, perceberemos como e por quem a mulher era representada no contexto da Instrução Pública, por meio da escrita das cartas para os jornais. 17 Estes serão citados e melhor descritos no capítulo 3. 18 Aqui se compreende as professoras, as alunas e demais figuras do gênero feminino que possam vir a aparecer nesse contexto da instrução pública ao longo de nossa pesquisa. 27 2 A ESCRITA EPISTOLAR COMO LUGAR DE MEMÓRIA “Muito podem na verdade as cartas, e não menos que a conversação entre presentes” (J.I.ROQUETE) Não nos é possível, por razões óbvias, interagir com os sujeitos que produziram no século XIX, porém, podemos estabelecer comunicação com os trabalhos realizados por esses agentes através da utilização da linguagem, da forma como foi empregada e dos modos como eles trabalharam com esse recurso, na escrita de cartas, manuais, códigos, anúncios, notícias ou qualquer outro meio. A partir do contato constituído com essas produções é que se constroem as representações, por intermédio de um exercício contínuo de interpretação e reinterpretação. Esse exercício de hermenêutica 19 , segundo GINZBURG (1989) é a peça central do método indiciário, pois através dele seria possível identificar através de “analise do tipo microscópica fenômenos aparentemente negligenciáveis” (GINZBURG, 1989, p. 10). A linguagem é vista como um processo comunicativo, pois reflete as práticas do comportamento humano em determinado tempo da história. Nesse contexto, o uso da linguagem está presente nas diversas ciências existentes. Podemos pensá-la, para efeito dessa pesquisa, na forma escrita e de modo funcional, visto que, esta é uma prática de representação, uma vez que a linguagem sofre transformações que acompanham o desenvolvimento e o progresso social. Na perspectiva de CHARTIER (1991), é também entendida como prática social e, dentro de sua multidisciplinaridade, temos como produto desta linguagem, o lugar de memória, facultada sua aproximação com as manifestações que resultam num ato tanto representativo quanto social. Assim, Pierre Janet “Considera que o ato mnemônico fundamental é o “comportamento narrativo”, que se caracteriza antes de mais nada pela sua função social, pois se trata de comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo” (Florès, 1972, p.12). Aqui intervém a “linguagem, ela própria produto da sociedade” (ibidem). Desse modo, Henri Atlan, estudando os sistemas auto-organizadores, aproxima “linguagens e memórias”[...].(LE GOFF, 2013, p. 389) Considerando que o passado já nos chega, por meio da linguagem, como uma representação, dada à impossibilidade de revivê-lo, configura-se, então, como uma evocação do que está ausente, de uma imagem ou, dito de outro modo, de uma memória. Levando-se, em consideração, contudo, o objeto de nossa proposta – os indícios de representações do 19 Técnica utilizada para interpretar e/ou explicar textos e discursos. 28 feminino nas cartas publicadas nos jornais da Paraíba no século XIX (1850 a 1886) –, somos levados a refletir sobre a escrita epistolar e a questionar dois pontos: como é a escrita nessas cartas? A que memórias elas nos remetem? Pensando no discurso da escrita epistolar como prática social e nas representações como significantes do modo de se agir no mundo, CAMARGO (2000, p.204) declara que, “Ao se rastrear e analisar o ato de escrever vão emergindo modos como histórias de escrita são registradas através da escrita das cartas, da correspondência no seu conjunto, do texto, dos procedimentos”. Temos a concepção, a partir de CHARTIER (1991), que a representação é inseparável da prática, e esta é uma ação no mundo que faz reconhecer o lugar social do indivíduo. Pode-se dizer que a representação, ao articular-se às práticas, implica uma identidade, logo não existe representação dissociada da prática; é o mundo da representação, então, que gera as práticas sociais, objetivando-se em instituições, que tendem a perpetuar a existência dos grupos sociais. Nessa vertente, assim se posiciona Chartier: A relação de representação – entendida como relação entre uma imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga – traça toda a teoria do signo do pensamento clássico [...] Por um lado, são essas modalidades variáveis que permitem discriminar diferentes categorias de signos (certos ou prováveis, naturais ou instituídos, aderentes a ou separados daquilo que é representado, (sic) etc.) e caracterizar o símbolo por sua diferença com outros signos. (CHARTIER, 1991, p.182) O que concebemos e cremos ser a história, as memórias e os documentos são, na verdade, uma representação construída, a partir do ponto de vista de quem vê e pensa determinado objeto ou fato – trata-se de uma perspectiva em que a representação do mundo está ligada à posição social dos indivíduos e construída ao longo do tempo (CHARTIER, 1991). No sentido pragmático, funciona como uma estratégia de classe, mediando suas relações com as demais, resultandoem variadas representações, as quais cada classe elabora a seu modo (LE GOFF, 1996, p.376). Assim temos que, dada à existência de categorias que organizam e constroem a representação da realidade, como uma prática social, sendo as representações sociais características de uma determinada época, é a partir delas que são concebidas e consagradas as memórias que se tornarão posteriormente lugares, documentos e monumentos (idem, ibidem, p.401). Quando pensamos em memória somos remetidos a fatores psicológicos e biológicos, até mesmo o ato de pensar sobre algo estaria inserido neste contexto, e apesar de 29 as memórias serem constituídas a partir desses processos, porém, esclarecemos que nossas reflexões não dizem respeito aos processos mnemônicos em si, mas aquilo que se constitui socialmente a partir delas. A memória foi uma prática muito valorizada por muitos séculos durante a antiguidade, tendo o grego Simônides de Ceos como precursor (YATES, 1976), e a Idade Média, períodos em que as sociedades eram predominantemente orais. Com o intuito de aprimorá-las e conservá-las, várias técnicas de memorização foram criadas ao longo dos anos, e estas, também conhecidas como “arte da memória” 20 , eram usadas como metodologia de ensino no período citado. Segundo LE GOFF (2013) o lugar de memória surgiu de uma das técnicas de memorização, que consistia na associação da memória a um objeto ou a uma ordem de coisas. Para o autor, “enquanto conhecimento do passado [...] a história não teria sido possível se este último não tivesse deixado traços, monumentos, suportes da memória coletiva” (idem, ibiden, p.485). Com a transição ocorrida entre o oral e o escrito (LE GOFF p.390), essa prática sofreu alterações referentes à sua forma e a sua concepção, passando a utilizar como suporte não mais apenas técnicas mnemônicas, mas o que foi denominado de memórias artificiais que são o ato de registrar através da escrita os fatos, os acontecimentos, a história, a memória. Das tábuas de argila, ao papel e a memória RAM dos computadores na atualidade, esta entendida como um apogeu no processo evolutivo das memórias artificiais, várias memórias e representações são criadas a respeito de um mesmo objeto, com a ampliação da capacidade de armazenamento da memória através da prática da escrita, houve também uma drástica mudança nas sociedades. CHARTIER (2009, p.116-117) assevera que “[...] a familiaridade com a escrita progride, dotando as populações de competências culturais que antes constituíam apanágio de uma minoria”. Podemos conceber a memória como um conhecimento que opera a partir das lembranças individuais, isto é, de cada sujeito, mas também de interesses coletivos ou de determinados grupos sociais, ou de quem detém o poder. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações (NORA, 1984: XIX). 20 Conjunto de regras para memorização de palavras e/ou ideias que se constituem em uma técnica de memorização, dos lugares e das imagens, de modo que o orador possa reproduzir de modo eficiente longos discursos (Yates, 1976). 30 Ela carrega valores morais a respeito dos eventos que ela quer lembrar e que podem ir mudando com os anos, conforme os processos evolutivos e tecnológicos e de acordo com os interesses atuais, ou seja, uma construção do passado que serve para atender interesses do presente, pois, é a partir dos questionamentos que fazemos a essas memórias enquanto fontes históricas que elas tomam forma e são delineadas, configuradas e identificadas. Essa reconstrução, o acontecimento rememorado, será expressa em forma de narrativa, pela qual o sujeito constrói um sentido do passado (CHARTIER 1991). A memória é um compartilhamento de lembranças e discursos acerca do passado, um olhar para o passado ancorado nos interesses e visões de mundo do presente, uma vez que depende das perguntas que fazemos a essas memórias, conforme aquilo que nos inquieta, que nos instiga e nos motiva a buscar entendimento e respostas. Nesse sentido, GINZBURG (1989) nos chama a atenção e ressalta a importância dos filtros na nossa leitura, porque nenhum documento é neutro, um documento sempre é fruto da ideologia de quem o produziu. Para Le Goff (2013), podemos classifica-la também como um tipo de fonte histórica, mas que não se configura como a história em si, pois o que entendemos por memória nesse contexto, em linhas gerais seria a junção de certos elementos, como por exemplo: os eventos do passado vividos ou valorizados por interesse; os eventos vividos “por tabela”, aqueles que os sujeitos não viveram, mas estão ligados a eles por conta das suas crenças políticas, religiosas, ideológicas, filosóficas e identitárias, que guardam essas memórias mesmo sem tê-las vivido, o que torna clara a diferença entre memória e lembrança, esta é individual e sobre experiências vivenciadas pelo sujeito, aquela pode ser sobre algo não vivido pelos sujeitos, mas que devido ao seu caráter de compartilhamento coletivo são apropriadas pelas pessoas e passam a fazer parte de suas trajetórias; a personificação da memória através de personagens e indivíduos e por fim, a existência dos lugares de memória, classificados pelo autor como: os lugares topográficos, como os arquivos, as bibliotecas e os museus; lugares monumentais como os cemitérios e arquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionais, como os manuais, as autobiografias ou as associações. (LE GOFF, 2013, p.473) Numa perspectiva indiciária podemos considerar que os lugares de memória são fontes e seus registros base para a investigação histórica. Não queremos dizer com essa afirmação que aquilo que os constitui seja verdade absoluta nem tampouco mentira, mas que pode nos dar suporte servindo de pistas, contribuindo para a construção do sentido que se 31 pretende dar a pesquisa, se partimos do pressuposto que o paradigma indiciário é uma ferramenta que pode ser utilizada para interpretar e interrogar as evidências, sejam elas documentais, narrativas ou físicas (GINZBURG, 1989). A percepção do real não é um processo objetivo e transparente, mas, ao contrário, é determinado por categorias partilhadas por determinado grupo social, as quais permitem entender, classificar e atuar sobre o real. Tais categorias configuram uma instituição social, na medida em que são dados ligados a grupos sociais, os quais buscam atender a interesses específicos. O resultado é que a representação do real, construída pelos diferentes grupos sociais, tende a justificar e a legitimar um determinado lugar social e, ao mesmo tempo, a própria representação. Toda representação social aspira à hegemonia, busca impor-se aos demais grupos, submetendo-os a seus valores e conceitos (CHARTIER, 1988). Para CHARTIER (1991), as representações são expressas por discursos. Temos que a escrita epistolar é classificada como texto, e este se configura em um discurso sobre o contexto. Desse modo, só se torna possível decifrar as representações por meio das articulações do texto com o contexto. Nas palavras de GINZBURG (1989, p.158), para se estabelecer a compreensão não se pode abandonar a ideia de totalidade. Segundo CAMARGO (2000, p. 204), “Na emergência destas histórias, sujeitos que escrevem e lêem cartas deixam suas marcas, que podem indicar pistas para uma leitura da constituição do sujeito da escrita, na escrita”. Desse modo, faz-se necessário, investigar a conjuntura em que a escrita epistolar, no século XIX encontra-se inserida, sobretudona Paraíba, assim como os suportes portadores desse estilo. 2.1 MANUAIS EPISTOLARES E A ARTE DE ESCREVER CARTAS NA PROVÍNCIA DA PARAHYBA DO NORTE A partir da ascensão da Nova História Cultural, tornaram-se possíveis novas concepções, novas fontes e novas releituras no campo da pesquisa em História e História da Educação. Surgiu, assim, uma nova perspectiva nesse campo do saber, relacionada aos temas, abordagens, personagens reais e fontes, expandindo consequentemente as produções e interesse pela área. Com esse advento, as cartas emergiram como fonte documental legítima e fecunda, uma vez que: 32 A história nova [...] substituiu a história [...] fundada essencialmente nos textos, no documento escrito, por uma história baseada na multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos, documentos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos orais, (sic) etc. Uma estatística, uma curva de preços, uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um pólen fóssil, uma ferramenta, um ex-voto são, para a história nova, documentos de primeira ordem. (LE GOFF, 2013, p. 28-29, grifos do original). Diante de tantas possibilidades no campo da historiografia da educação, buscamos, por meio da escrita das cartas, entender a circulação e a representação do objeto tido como cultural. Desse modo, entende-se o reconhecimento da escrita epistolar como lugar de memória. A importância das cartas como fonte documental histórica assim como o papel dos manuais epistolares na construção desse modelo de escrita e prática social, na medida em que as regras e formas exigidas na redação de tais suportes caracterizam e representam práticas culturais de determinado período. A arte de escrever cartas surgiu como uma necessidade, a partir da expansão do espaço e circunstâncias da circulação das epístolas, do ambiente privado para o público e oficial, ou educacional e literário (GALVÃO e GOTLIB, 2000, p.41). De acordo com Machado e Sena (2015, p.51 e 52), “Desde então, o gênero epistolar esteve presente na vida das pessoas anônimas e célebres, seja por cartas de amizade e familiares, no âmbito do privado, ou de ofícios, no público”. Assim sendo, emergiu a preocupação com esse tipo de escrita e a necessidade de se pensá-la, com o objetivo primeiro do estabelecimento de regras comuns. Enquanto gênero literário, ou como atividade reservada de alguns privilegiados, o uso de escrever cartas conheceu notável impulso entre os homens [...]. Expressão de uma maior importância dos laços que se estabeleciam para além da célula familiar; do ideal de civilidade: gênero propício ao melindroso comércio de ideias, ou a confidenciar experiências de encanto, beleza e amor. (GALVÃO e GOTLIB, 2000, p.42) No que concerne à composição da escrita epistolar, os manuais de escrever cartas tiveram importante papel, uma vez que as cartas seguiam um determinado padrão, normas pré-estabelecidas conforme a intenção ou o objetivo a que se destinavam, dentro de moldes determinados pelas regras de civilidade 21 que ditaram um tipo específico de comportamento social praticado por uma comunidade letrada, onde os que dela faziam parte, liam e escreviam cartas. Segundo Machado e Sena (2015, p.52), “[...] os manuais agrupam práticas e ações que fixam modelos amplamente imitados”. A escrita dos manuais tinha por objetivo reunir o 21 “Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo [...]”. (ELIAS, 1994, P.23) 33 conjunto de saberes necessários para a escrita epistolar, a fim de suprir a falta de habilidade exigida para tais produções, de modo a atingir o objetivo máximo da comunicação, pelo uso de expressões adequadas, padronizadas e reconhecidas universalmente – “regulando gestos e hábitos de escrita, os manuais propagaram um modo de escrever à sua época” (idem, ibidem, p.52). Diante de tais constatações, sobre a importância dos manuais no âmago epistolar, eis que surgem para nós algumas questões e inquietações às quais tentaremos responder ao longo do texto, a fim de proporcionar melhor entendimento no que tange a esse suporte de escrita, o manual, que subsidiava a escrita epistolar, objeto de nossa análise. Conforme GINZBURG (1989, p.161), “algumas belas inteligências deste nosso século 22 escreveram e quiseram dar regra para reconhecer o intelecto e a inteligência dos outros com o modo de escrever e da escrita deste ou daquele homem”, o que culminou mais tarde na França na origem da grafologia 23 como a concebemos hoje, em outra passagem de sua obra o autor faz referência ao “Tratado sobre como de uma carta missiva se conhece a natureza e qualidade do escritor, do médico Bolonhês Camillo Baldi” (idem, Ibdem, p.161) como sendo o texto mais antigo que circulou na sobre grafologia, que se tem noticia. Buscaremos, com auxílio dessas escritas, vestígios 24 e informações sobre quem seriam seus supostos leitores e produtores. O que são os manuais, para que servem, como e por quem foram utilizados, por onde circularam, o que eles representam e, sobretudo, quais memórias trazem. “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la (GINZBURG, 1989, p. 177). Partindo de uma abordagem sucinta 25 sobre tais obras, a título de levantamento e contextualização, a historiografia nos traz a informação de que tais obras circularam na Europa a partir do século XVI, com o propósito de dar suporte à escrita protocolar das cartas. Muitos foram os autores que se dedicaram a esse tema nesse período. Machado e Sena (2015) fazem esse levantamento: [...] damos visibilidade aos manuais epistolares escritos/organizados/publicados, entre os séculos XVI e XIX, os quais se encontram disponíveis na internet, tais como Corte na Aldeia (1618), de Francisco Rodrigues Lobo; La Secretaire à la Mode (1650), de Sieur de La Serre; Le Nouveau Secretaire de la Cour (1714), de 22 Século XIX. 23 Estudo geral da escrita e dos sistemas de escrita com o objetivo de obter características da pessoa que escreve. 24 GINZBURG (1989) 25 Não é de interesse da pesquisa a abordagem sobre todos os manuais epistolares que circularam entre os séculos XVI e XIX, uma vez que nosso objetivo é abordar nesse capítulo os que circularam na Província da Parahyba do Norte no século XIX. 34 Monsieur Milleram; O Secretário Portuguez ou methodo de escrever cartas (1801) e o Secretário Portuguez Compediosamente (1823), ambos de Francisco José Freire (Candido Lusitano); Manual del Escribiente, (1831[1835,2 ed.]), de D. Romualdo Peronce; Novo Secretário Portuguez ou Código Epistolar (1860, 3ªed.) e Código do Bom Tom ou Regras da Civilidade e de Bem Viver no século XIX (1845), de J.I.Roquette. (MACHADO; SENA, 2015, p. 47;48) Pela quantidade de manuais epistolares que circularam desde sua origem no século XVI até o século XIX, fica evidente a importância e aceitação que obtiveram junto ao público leitor da época. Enquanto público, para além das correspondências intimas e pessoais, havia naquele período a figura do secretário 26 . A representação deste responde a uma das nossas questões, a referente a “quem” lia e utilizava esses manuais e para que público se destinavam, diante disso fica evidente que os executores dessa função fazia parte do público alvo dessas produções. Ainda no que tange a identidade de seus leitores, partimos em busca de sinais que nos conduzissem a tais sujeitos, aos que possivelmente fizeram uso desses manuais e, sobretudo, dentre esses, evidencias ou vislumbres da presença dofeminino nesse contexto. Dentre os modelos de escrita epistolar, encontra-se em Roquette 27 (1887) algumas amostras, no capitulo seis, que trata das “Cartas Afectuosas, Sentimentaes e de Familia” (p.88), as cartas de “Cícero a sua esposa” (p.89), e também as de “Plinio a Calpurnia, sua mulher” (p.93), demonstram que havia mulheres letradas desde a antiguidade e nos leva a supor que os exemplos femininos utilizados pelo autor em sua obra tinham a intenção de também alcançar 26 A função do Secretário era a escrita da carta protocolar dos nobres, sendo uma importante profissão, sobretudo no século XVIII. Tal função remetia a autoridade no domínio de tais regras. (GALVÃO E GOTLIB, 2000). 27 Padre José Ignácio Roquette foi um homem letrado, nascido em Portugal, considerado pela comunidade acadêmica, em virtude das suas concepções, estudos e intelecto, à frente do seu período histórico, século XIX. [...] Roquette nasceu em uma família abastada na freguesia de Alcabideche portuguesa, no conselho de Cascaes; foi batizado no mês de julho de 1801 [...] Sua vida claustral seria uma vida dedicada aos estudos, por isso antes da sua entrada no convento português, vinculado à ordem franciscana, Santo Antonio do Estoril, na Província de Algarves em 1821, foi habilitado com os estudos de Gramática, Retórica e Filosofia. [...] Sua vida dedicada aos estudos lhe rendeu alguns títulos e passagens por vários conventos portugueses, [...] em 1831, após concurso e oposição pública, tornou-se 'Lente effectivo', período em que desempenhou também a função de Secretário da província, de onde provavelmente tenha resultado seu contato mais próximo e sua maior experiência quanto à escrita de cartas protocolares, servindo de inspiração e material para a escrita do manual epistolar, [...] intitulado de Novo Secretario Portuguez ou Código Epistolar (s/d). Nesse espaço de tempo, também foi, aos 29 anos de idade nomeado Pregador régio da Sancta Egreja Patriarchal, indicação do Cardeal D. Patricio I, através de carta datada de 30 de março de 1830. [...]Com o fim da rebelião, findada após a convenção d‟Evora-monte o padre foi exilar- se em Londres, [...], vindo a atracar em terras britânicas em 10 de agosto de 1834. [...]sai de Londres com destino à França levando consigo o passaporte da legação portuguesa, onde foi acolhido pelo embaixador de Portugal na França, o Exmo. Sr. Visconde de Carreira e, bem como, pelo Arcebispo de Paris, que logo lhe direcionou para uma freguesia do bairro de S. Germano e, pouco tempo depois, obteve sua subsistência. [...]Essa passagem de Roquette pela França torna-se relevante para sua escrita dos Manuais de Civilidade, tendo em vista que ele estava no país referência, no que diz respeito às regras de convivência, provavelmente lhe servindo de influência. (BARBOZA, 2015, p.45) 35 tal público 28 , no entanto, o modelo que utiliza a carta de “Maria Stuart, Rainha da Escócia, a Isabel, Rainha d’Inglaterra” (p.97), mostra-se como uma evidência sobre a que classe social pertencia às mulheres alfabetizadas, que se apropriaram dessas escritas. Não queremos afirmar com isso que todas as rainhas eram letradas, tampouco que apenas as monarcas tinham acesso à leitura e a escrita, mais também as mulheres que faziam parte da elite da época. Excetuando-se o papel social das rainhas e, quando letradas, as práticas de escrita que demandavam de seu poder, com raríssimas exceções, para as demais mulheres, esse espaço era restrito ao lar, as relações intima e familiar, e as de amizade, como é possível observar em outro modelo deste mesmo manual, numa carta de “A Marquesa de Sevigné 29 a sua Filha” (p.98). Representação feminina em carta de Cícero: Cícero a sua mulher. De todas as minhas mágoas nenhuma me atormenta tanto como a doença de nossa querida Tullia; a respeito da qual nada mais te escrevo, porque sei que não tens menor cuidado nella do que eu. Quanto ao que me dizes que desejarás que eu fosse mais perto de ti, vejo que assim devia ser, e já o teria feito, se os obstaculos que a isso se opõem não subsistissem ainda. Espero as cartas de Pomponio, que terás cuidado de me remeter o mais depressa possível. Faze por teres saüde. (ROQUETTE, 1887, p. 89). Representação feminina em carta de Plínio: Plinio a Calpurnia, sua mulher. Dizes-me que minha ausencia te causa grande magoa, e que não tens outra consolação mais que a de ler as minhas obras, e que até muitas vezes as pões ao teu lado em lugar de mim. Mui grato é para mim que tenhas tantas saüdades minhas, e que essa consolação mitigue seu soffrimento. Pela minha parte, leio e relrio tuas cartas, tomo as nas mãos de tempos a tempos com tanto prazer como se fossem chegadas de fresco; porêm com ellas mais se ascende o fogo de minha saüdade. E na verdade qual não deve ser a doçura de teus dizeres, se tanta é a suavidade de suas lettras! Escreve-me pois o mais amiúdo que poderes, posto que seja este um prazer que me atormenta. Tem saüde. (ROQUETTE, 1887, p. 93). 28 Nos referimos as mulheres letradas apenas, visto que este intento não estava ao alcance de todas as mulheres no período citado. 29 As cartas de Madame Sévigné se traduzem num convite a França do século XVII, por meio de seu olhar, impregnado nas 1155 cartas escritas por ela e em sua grande maioria dirigidas a sua filha, após a mesma ter se mudado para uma região distante para acompanhar o marido. A saudade, o amor e o sofrimento foram às motivações de tais escritas que dentro de um contexto, a Europa no século XVII, nos traz informações valiosas que auxiliam na compreensão dos fatos históricos. Nesses documentos ela relata aspectos da vida na corte, expõe as questões de gênero da época por meio de suas inquietações, aborda as questões políticas, psicológicas e culturais além de se corresponder com figuras ilustres e históricas como, por exemplo, o rei Luís XIV (GALVÃO e GOTLIB, 2000). 36 As cartas que o autor utiliza como modelos em seu texto abrangem tempos históricos diferentes, partindo da Antiguidade 30 como se verifica nos exemplos acima citados e alcançando a Idade Moderna 31 , conforme referências abaixo. Essa extensão temporal expressa o quão antiga é a arte epistolar e imprime à obra de Roquette valor histórico, tradição e consequentemente credibilidade, esta desejável e almejada uma vez que “desde cedo viu no comércio do livro uma forma extra de aumentar seus proventos e divulgar seu nome, dando- lhe mais prestígio como nobre e como professor nos seminários eclesiásticos” (BARBOZA, 2015, p. 46). Prosseguindo com os exemplos encontrados na referida obra (ROQUETTE, 1887), temos o fragmento de escrita epistolar elaborada por Maria Stuart após tomar conhecimento de sua sentença de morte. Maria Stuart, Rainha de Escossia, a Isabel, Rainha d‟Inglaterra Senhora, Apesar que deva morrer por um aresto assignado de vosso punho, não penseis que morro vossa inimiga. Pertenço a uma religião que me ensina a sofrer com paciencia todos os males do mundo, como a vossa vos permite de os fazer impunemente. (ROQUETTE, 1887, p. 97). Representação feminina em carta de Madama Sevigné a sua filha Não leves a mal, minha filha, o que eu experimentei ao entrar em casa: que diferença! Que solidão! Que tristeza! O teu quarto, o teu gabinete, o teu retrato! Não encontrar aquella amável pessoa! M. de Grignan comprehende bem o que eu quero dizer e o que eu senti. No dia seguinte, que foi ontem, achei me acordada ás cinco horas; fui buscar Corbinelli para vir aqui com o Padre. Chove Continuamente, e receio que os caminhos da Borgonha estejão intransitaveis. Lemos aqui as máximas que Corbinelli me explica; elle quizera ensinar-me a governar o meu coração; muito ganharia eu na viagem,
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