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CAPÍTULO I O S C O R P O S D Ó C E I S FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, histeria da violência nas prisões. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1986. ^Eis como ainda no inicio do século X V I I se descrevia a figura ideal do soldado. O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho; seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas — essencialmente lutando — as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de uma retórica corporal da honra: , Os sinais para reconhecer os mais idôneos para esse ofício sáo a ati- tude viva e alerta, a cabeça direita, o estômago levantado, os ombros largos, os braços longos, os dedos fortes, o ventre pequeno, as coxas grossas as pernas finas e os pés secos, pois o homem desse tipo não poderia deixar de ser ágil e forte: [tornado lanceiro, o soldado] deverá ao marchar tomar a cadência do passo para ter o máximo de graça e gravidade que for pos- sível, pois a Lança é uma arma honrada e merece ser levada com um porte grave e audaz.1 Segunda metade do século X V I I I : o soldado tornou-se algo que se fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente dis- ponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi «expulso o camponês» e lhe foi dada a «fisionomia de sohlado».1 Os recrutas são habituados a manter a cabeça ereta e alta; a se manter direito sem curvar as costas, a fazer avançar o ventre, a salientar o peito, e encolher o dorso; e a fim de que se habituem, essa posição lhes será dada apoiando-os contra um muro, de maneira que os calcanhares, a batata da perna, os ombros e a cintura encostem nele, assim como as costas das mãos, virando os braços para fora, sem afastá-los do corpo. . . ser-lhes-á igualmente ensinado a nunca fixar os olhos na terra, mas a olhar com ousadia aqueles diante de quem eles passam.. . a ficar imóveis esperando o comando, sem mexer a cabeça, as mãos nem os pés . . . enfim a marchar com passo firme, com o joelho e a perna esticados, a ponta baixa e para f o r a . . . ' ^Houve^durante a época clássica, fuma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder.1' Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo — / ao corpo que se mar.i- pula^sc_modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam/O grande livro do Homem-máquina 125 foi escrito simultaneamente em dois registros: no anàtomo-meta- físico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e /que os médicos, os filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou \ corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de /explicação: corpo útil, corpo inteligível. E entretanto, de um ao outro, pontos de cruzamento. «O Homem-màquina» de La Mettrie. é ao mesmo tempo juma redução materialista da alma_e uma teoria ^ "geral do adestramento, no centro dosjjuais reina a noção. de_«dQÇ2- /fidade» que une ao corpo analisével o corpo manipulável. Ê dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ^ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso das pequenas máquinas, dos regi- mentos bem treinados e dos longos exercícios. Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo?/ Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de invéstimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições 'ou obrigações. 11 Muitas,coisas entretanto são novas nessas técnicas. A escala, jgm_primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade jndis- sociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica —_ movimentos,, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objetor em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a_ única cerimônia que realmente importa é a do exercício/A moda- lidade enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade- utilidade, são o que. podemos chamar as «disciplinas». Muitos pro-' cessos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominaçàfly Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa 126 relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação constante, global, maciça, não analítica, 1 ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu «capricho». Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do traba- lho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do ascetismo e das «disciplinas» de tipo monástico, que têm por função realizarx renúncias mais do que aumentos de utilidade e que, se implicam em obediência a outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo.^b momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento _de_suas ..habilidades, nem tam- pouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto^mais obediente quanto e mais útíire~invêrsamentey^Forma-se então uma política das coer- ções^qüe são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação cal- culada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esqua- drinha, o desarticula e o recompõev^Uma «anatomia política», que é também igualmente uma «mecâúica do poder», está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e 'exercitados, corpos «dóceis».//A disciplina aumenta as forças do -corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas "2orças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela" "dissocia o poder do corpoj faz dele por um lado uma «aptidão», uma «capacidade» que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência .que poderia resultar disso, e faz dela uma relaçao de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabeleceno corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.^ A «invenção» dessa nova anatomia política não deve ser enten- dida como uma descoberta súbita.^Mas como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de loca- lizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral. Encontramo-los em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; invcs- ' liram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos, reestruturaram a organização militar. Circularam às vezes 127 muito rápido de um ponto a outro (entre o _ exército e as escolag_ técnicas ou og_coléeios e liceus), às vezes lentamente e de maneira mall~discreta (müitari_zacão_insidiosa das grandes oficinas) cada vez, ou quase, impuseram-se para responder a exigências de con- juntura: aqui uma inovação industrial, lâ a recrudescência de certas doenças epidêmicas, acolá a invenção do fuzil ou as vitórias da Prússia. O que não impede que se inscrevam, no total, nas trans- formações gerais e essenciais que necessariamente serão determinadas. { y//Não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares, no que podem ter cada uma de singular. Mas de loca- lizar apenas uma série de exemplos algumas das técnicas essenciais" que/ de_uma a outra, se generalizaram mais facilmente^Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes intimas, mas que têm sua. impor- tância: porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova «microfísica» do poder; e porque não cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro/^Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época contemporânea. Descrevê-los implicará : na demora sobre o detalhe e na atenção às minúcias: sob as míni- I mas figuras, procurar não um sentido, mas uma precaução; reco- locá-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de uma tática. Astúcias, não tanto da grande razão que trabalha até durante o sono e dá um sentido ao insignificante, quanto da atenta «malevolência» que de tudo se alimenta. A disci- plina é uma anatomia política do detalhe. Para advertir os impacientes, lembremos o marechal de Saxe: Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos taca- nhos, entretanto esta parte é essencial, porque ela é o fundamento, e é impossível levantar qualquer edifício ou estabelecer qualquer método sem ter os princípios. Não basta ter o gosto pela arquitetura. Ê preciso conhecer a arte de talhar pedras. * Dessa «arte de talhar pedras» haveria uma longa história a ser escrita — história da racionalização utilitária do detalhe na con- tabilidade moral e no controle político. A era clássica não a inau- gurou; ela a acelerou, mudou sua escala, deu-lhe instrumentos pre- cisos, e talvez tenha encontrado alguns ecos para ela no cálculo do infinitamente pequeno ou na descrição das características mais -tênues dos seres naturais. Em todo caso, o «detalhe» era já há muito tempo uma categoria da teologia e do ascetismo: todo detalhe é importante, pois aos olhos de Deus nenhuma imensidão é maior que um detalhe, e nada há tão pequeno que não seja querido por uma dessas vontades singulares. Nessa grande tradição da emi- 128 nência do detalhe viriam se localizar, sem dificuldade, todas as meticulosidades da educação cristã, da pedagogia escolar ou militar, de todas as formas, finalmente, de treinamento. Para o homem dis- ciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum detalhe é indi- ferente, mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que aí encontra o poder que quer apanhá-lo. Característico, esse hino às «pequenas coisas» e à sua eterna importância, cantado por Jean- Baptiste de La Salle, em seu Tratado sobre as Obrigações dos Irmãos das Escolas Cristãs. A mística do cotidiano aí se associa à disciplina do minúsculo. Como é perigoso negligenciar as pequenas coisas. Ê um pensamento bem consolador para uma alma como a minha, pouco indicada para as grandes ações, pensar que a fidelidade às pequenas coisas pode, por um progresso insensível, elevar-nos à mais eminente santidade: porque as pequenas coisas nos dispõem às grandes . . . Pequenas coisas, meu Deus, infelizmente dirá alguém, que podemos fazer de grande para Vós, criaturas fracas e mortais que somos. Pequenas coisas: se as grandes se apresentas- sem, praticá-las-íamos? Não as creriamos acima de nossas forças? Pequenas coisas: e se Deus as aceita e quer recebê-las como grandes? Pequenas coisas; acaso já nc experimentamos? acaso as julgamos pela experiência? Pequenas coisas; somos então culpados, se vendo-as como tais, as recusa- mos? Pequenas coisas; são elas entretanto que, com o tempo, formaram grandes santos! Sim, pequenas coisas; mas grandes móveis, grandes senti- mentos, grande fervor, grande ardor, e em conseqüência grandes méritos, grandes tesouros, grandes recompensas." ^A._minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um con- teúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse ^ _ 9 - m calculo místico do ínfimo e do infinito/E uma História do Detalhe no século XVIII, colocada sob o signo de Jean-Baptiste de La Salle, esbarrando em Leibniz e Buffon, passando por Frederico II, atraves- sando a pedagogia, a medicina, a tática militar e a economia, deveria chegar ao homem que sonhara, no fim do século, ser um novo Newton, não mais aquele das imensidões do céu ou das massas pla- netárias, mas dos «pequenos corpos», dos pequenos movimentos, das pequenas ações; ao homem que respondeu a Monge («Só havia um mundo a ser descoberto»): Que ouvi eu? Mas o mundo dos detalhes, quem jamais pensou neste ou naquele? Desde meus quinze anos, eu acreditava nele. Cuidei disso então, e essa lembrança vive em mim, como uma idéia fixa que nunca me abandonará. . . Esse outro mundo é o mais importante de todos os que me orgulhei de descobrir: de pensar nisso, dói-me a alma." Ele não o descobriu; mas sabemos que empreendeu organizá-lo, e quis distribuir em torno de si um dispositivo de poder que lhe permitisse perceber até o menor acontecimento do Estado que gover- nava; pretendia, com a rigorosa disciplina que fazia reinar, «abraçar o conjunto dessa vasta máquina sem que lhe pudesse escapar o mínimo detalhe».' 129 Uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização dos homens, sobem através da era clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um corpo de processos e de saber, de des- crições, de receitas e dados. E desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno.' A ARTE DAS DISTRIBUIÇÕES Í K disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indi- víduos no espaço. Para isso, utiliza diversas técnicas. 1) A_disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos oa_Qutros e fechado em si mesmo. Local protegido da monotonia disciplinar. Houve o grande «encarcera- mento» dos vagabundos e dos miseráveis; .houve outros mais dis- cretos, mas insidiosos e eficientes. Colégios: o modelo do convento se impõe pouco a pouco; o inter- nato aparece como o regime de educação senão o mais freqüente, pelo menos o mais perfeito; torna-se obrigatório em Louis-le-Grand quando, depois da partida dos jesuítas, fez-se um colégio-modelo. *Quartéis: é preciso fixar o exército, essa massa vagabunda; impedir a pilhagem e as violências; acalmar os habitantes que supor- tam mal as tropas de passagem; evitar os conflitos com as autori- dades civis; fazer cessar as deserções; controlar as despesas. A ordenação de 1719 prescreve a construção de várias centenas de quartéis, imitando os já organizados no sul do país; o encarcera- ra ento neles será estrito: O conjunto será fechado e cercado por uma muralha de dez pés de altura que rodeará os ditos pavilhões, a trinta pés de distância de todos os lados — e isto para manter as tropas em ordem e em disciplina e que o oficial esteja em condições de responder por ela.10 Em 1745, havia quartéis em 320 cidades aproximadamente; e estimava-se mais ou menos em 200.000 homens a capacidade total dos quartéis em 1775." Ao lado das oficinas espalhadas criam-se também grandes espaços para as indústrias, homogêneos e bem deli- mitados: as manufaturas reunidas primeiro, depois as fábricas, na segunda metade do século XVIII (as forjas da Chaussade ocupam toda a península de Medina, entre Nièvre e Loire; para instalar a fábrica de Indret em 1777, Wilkinson, à custa de aterros e diques, cria uma ilha no Loire; Toufait constrói Le Creusot no vale de La Charbonnière que ele remodela e instala na própria fábrica alo- jamentos operários); é uma mudança de escala, é também um novo tipo de controle. A fábrica parece claramente um convento, uma fortaleza, uma cidade fechada; o guardião «só abrirá as portas à 130 intrada dos operários, e depois que houver soado o sino que anun- cia o reinicio do trabalho»; quinze minutos depois, ninguém mais terá o direito de entrar; no fim do dia, os chefes de oficina devem entregar as chaves ao guarda suíço da fábrica que então abre as portas, - / p porque, à medida que se concentram as forças de pro- dução, o importante é tirar delas o máximo de vantagens e neutra- lizar seus inconvenientes (roubos, interrupção do trabalho, agita- ções e ccabalas»); de proteger os materiais e ferramentas e de dominar as forças de trabalho^ l A ordem e a policia que se deve manter exigem que todos os operá- rios sejam reunidos sob o mesmo teto, a fim de que aquele dos sócios que está encarregado da direção da fábrica possa prevenir e remediar os abusos que poderiam se introduzir entre os operários e impedir desde o início que progridam.u 2) Mas o principio de cclausura» não é constante, nem indis- pensável, jiem suficiente nos aparelhos_disciplinares. Estes trabalham o espaçç>_ de.juaoeira muito mais flexível e mais fina. E em primeiro lugar segundp_o_princípio da localização imediata ou do quadricula£ mento. Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações cole- tivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir. É preciso anular os efeitos das jepartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indi- víduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encon- trar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedi- mento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico. E ainda aí ela encontra um velho procedimento arquitetural e religioso: a cela dos conventos. Mesmo se os compartimentos que ele atribui se tornam puramente ideais, o espaço das disciplinas b isemprej no__fundor. .celular. Solidão necessária do corpo e da alma, dizia um certo ascetismo: eles devem, ao menos por momentos, se defrontar a sós com a tentação e talvez com a severidade de Deus. O sono é a imagem da morte, o dormitório é a imagem do sepulcro . . . embora os dormitórios sejam comuns, os leitos entretanto estão arrumados de tal modo e se fecham tão exatamente por meio de cortinas que as moças podem se levantar e se deitar sem se verem.14 Mas isso ainda não passa de uma forma muito tosca. 3)_A regra das localizações funcionais> vai_pouco a pouco, nas instituições disciplinares, codificar um espaço que a arquitetura 131 |deixavageralmente livre e pronto para vários usos. Lugares deter- ?minadoüTse definem para satisfazer não EÓ & necesgidadè~dê~vigiar7 ?5e -romper as comunicações perigosas, mas também de criar um Vespaço útil. O processo aparece claramente nos hospitais, principal- mente nos hospitais militares e marítimos. Na França, parece que Rochefort serviu de experiência e de modelo. Um porto, e um porto militar, é, com circuitos de mercadorias, de homens alistados por bem ou à força, de marinheiros embarcando e desembarcando, de doenças e de epidemias, um lugar de deserção, de contrabando, de contágio: encruzilhada de misturas perigosas, cruzamento de cir- culações proibidas. O hospital marítimo deve então cuidar, mas por isso mesmo, deve ser um filtro, um dispositivo que afixa e quadricula; tem que realizar uma apropriação sobre toda essa mobi- lidade e esse formigar humano, decompondo a confusão da ilegali- dade e do mal. A vigilância médica das doenças e dos contágios é aí solidária de toda uma série de outros controles: militar sobre os desertores, fiscal sobre as mercadorias, administrativo sobre os remé- dios, as rações, os desaparecimentos, as curas, as mortes, as simu- lações. Donde a necessidade de distribuir e dividir o espaço com rigor. As primeiras medidas tomadas em Rochefort se referiam às coisas mais que aos homens, às mercadorias preciosas mais que aos doentes/As distribuições da vigilância fiscal e econômica prece- jdem as técnicas de observação médica: localização dos medicamen- tos em caixas fechadas, registro de sua utilização; um pouco mais tarde, é estabelecido um sistema para verificar o número real de doentes, sua identidade, as unidades de onde procedem; depois regu- lamentam-se suas idas e vindas, são obrigados a ficar em suas salas; a cada leito é preso o nome de quem se encontra nele; todo indivíduo tratado é inscrito num registro que o médico deve consultar durante a visita; mais tarde virão o isolamento dos contagiosos, os leitos separados. Pouco a pouco um espaço administrativo e político se articula em espaço terapêutico; tende a individualizar os corpos, as doenças, os sintomas, as vidas e as mprtes; constitui um quadro real de singularidades justapostas e cuidadosamente distintas. Nasce da disciplina um espaço útil do ponto de vista méd i co^ 7 / N as fábricas que aparecem no fim do século XVIII, o princípio do quadriculamento individualizante se complica. Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolá-los e localizá-los; mas também articular essa distribuição sobre um aparelho de pro- dução que tem suas exigências próprias/^fi preciso ligar a distribui- ção dos corpos, a arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas formas de atividade na distribuição dos «postos^A esse princípio obedece a manufatura de Oberkampf em Jouy /E la se compõe de uma série de oficinas especificadas segundo cada grande tipo de operações: para os impressores, os encaixadores, os colo- ristas, as pinceladoras, os gravadores, os tintureiros. O maior dos 132 edifícios, construído em 1791, por Toussaint Barré, tem cento e dez metros de comprimento e três andares. O lérreo é reservado, essencialmente, à impressão em bloco; contém 132 mesas dispostas em duas fileiras ao longo da sala com 88 janelas: cada impressor trabalha a uma mesa, com seu «puxador», encarregado de preparar e espalhar as tintas. Ao todo 264 pessoas. Na extremidade de cada mesa, uma espécie de cabide sobre o qual o operário coloca para secar a tela que ele acabou de imprimir.15 Percorrendo-seo corre- dor central da oficina, é possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo geral e individual; constatar a presença, a aplicação do ope- rário, a qualidade de seu trabalho; comparar os operários entre si, classificá-los segundo sua habilidade e rapidez; acompanhar os sucessivos estágios da fabricação. Todas essas seriações formam um quadriculado permanente: as confusões se desfazem"; a produção se divide e o processo de trabalho se articula por um lado segundo suas fases, estágios ou operações elementares, e por outro, segundo os indivíduos que o efetuam, os corpos singulares que a ele são apli- cados: cada variável dessa força — vigor, rapidez, habilidade, constância — pode ser observada, portanto caracterizada, apreciada, contabilizada e transmitida a quem é o agente particular dela. Assim afixada de maneira perfeitamente legível a toda série dos corpos singulares, a força de trabalho pode ser analisada em unidades indi- viduais. Sob a divisão do processo de produção, ao mesmo tempo • que ela, encontramos, no nascimento da grande indústria, a decom- - posição individualizante da força de trabalho; as repartições do espaço disciplinar muitas vezes efetuaram uma e outra./ \ //4)_Na .disciplina, ..QS elementos são intercambiáveis, pois cada_ um se define pelo lugar que. ocupa na série, e pela distância que o separa dos_outros. A unidade não é portanto nem o território (unidade de dominação^, nem o local (unidade de residência), mas *a posição na /i/a: o lugar^que alguém ocupa numa classificação, 'o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte dêHispor em fila, e da técnica para a transfor- mação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localiza- ção que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede ide relações. ^Vejamos o exemplo da «classe». Nos colégios dos jesuítas, encon- trava-se ainda uma organização ao mesmo tempo binária e maciça: as classes, que podiam ter até duzentos ou trezentos alunos, eram divididas em grupos de dez; cada um desses grupos, com seu decurião, era colocado em um campo, o romano ou o cartaginês; a cada decúria correspondia uma decúria adversa. A forma geral era a da guerra e da rivalidade; o trabalho, o aprendizado, a classificação eram feitos sob a forma de justa, pela defrontação dos dois exércitos; a participação de cada aluno entrava nesse duelo geral; ele asse- 133 gurava, por seu lado, a vitória ou as derrotas de um campo; e os alunos determinavafti um lugar que correspondia à função de cada um e a seu valor de combatente no grupo unitário de sua decúria. " Podemos notar aliás que essa comédia romana permitia associar aos exercícios binàrios da rivalidade uma disposição espacial inspirada na legião, com suas fileiras, hierarquia e vigilância piramidal. Não esquecer que de um modo geral o modelo romano, na época das Luzes, desempenhou um duplo papel; em seu aspecto republicano, era a própria instituição da liberdade; em seu aspecto militar, era o esquema ideal da disciplina. A Roma do século XVIII e da Revolução é a do Senado e da legião, do Fórum e dos campos mili- tares. Até o Império, a referência romana veiculou, de maneira ambígua, o ideal jurídico çla cidadania e a técnica dos processos dis- ciplinares. Em todo caso, o que havia de estritamente disciplinar na fábula antiga permanentemente representada nos colégios jesuítas superou o que havia de justa e de guerra em mímica^Pouco a pouco — mas principalmente depois de 1762 — o espaço escolar se desdo- bra ; a classe torna-se homogênea, ela agora só se compõe de ele- mentos individuais que vêm se colocar uns ao lado dos.outços.sQb os olhares do.meatre^Ã.jordenação_por fileiras, no século XVIII,.começa_ a definir a_grande forma de repartição dos indivíduos. na__ordem _escolar: filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova; ..colo- cação que elpjçbtém de. semana,em semana, de mês em mês, de ano, em ano; alinhamento das classes de idade umas depois das outras; sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas , segundg uma or9em de dificuldade, crescente. E nesse conjunto de alinha- mentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desem- penhos, seu comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele] se desloca o tempo todo numa série de casas; umas ideais, que marcam umaliierarquia do saber ou das capacidades, outras devendo" traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa. repartição de valores ou dos méritos. Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem _ uns aos outros, num espaço escondido., por intervalos alinhados^ organização de um espaço serial foi uma das grandes modi- ficações técnicas do ensino elementar. Permitiu ultrapassar o sis- tema tradicional (um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem vigilância o grupo confuso dos que estão esperando). Determinando lugares individuais, tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar. J.-B. de La Salle imaginava uma classe onde a distribuição espacial pudesse realizar ao mesmo tempo toda uma série ds distinções: segundo o nível de avanço dos alunos, segundo o valor de cada um, segundo seu temperamento melhor ou pior, segundo sua maior ou menor apli- cação, segundo sua limpeza, e segundo a fortuna dos pais.rfentão, a sala de aula formaria um grande quadro único, com entradas múl- tiplas, sob o olhar cuidadosamente «classificador» do professor: Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos os escolares de todas as classes, de maneira que todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os escolares das lições mais adiantadas serão colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem das lições avançando para o meio da sa la . . . Cada um dos alunos terá seu lugar marcado e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e o consentimento do inspetor das escolas. [Será preciso fazer com que] aqueles cujos pais são negligentes e têm piolhos fiquem separados dos que são limpos e não os têm; que um escolar leviano e distraído seja colocado entre dois bem comportados e ajuizados, que o libertino ou fique sozinho ou entre dois piedosos.M Às disciplinas, organizando as «celas», os «lugares» e as «filei- ras» criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, fun- cionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permi- Item a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem liga- ções operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois pro- jetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierar- quias./Â primeira das grandes operações da disciplina _é__£nlão_a constituição de «quadros vivos» aue trarisformãm~ãs multidões con- fusas, inúteis ou perigosas_em multiplicidades organizadasT~X~~cons- tituição de «quadros» foi um dos grandes problemas da tecnologia científica, política e econômica do século XVIII ; arrumar jardins de plantas e de animais, e construir ao mesmo tempo classificações racionais dos seres vivos; observar, controlar, regularizar a circula- ção das mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro eco- nômico, que possa valer como princípio de enriquecimento; inspe- cionar ios homens, constatar sua presença e sua ausência, e cons- tituir vim registro geral e permanente das forças armadas; repar- tir os doentes, dividir com cuidado o espaço hospitalar e fazer uma classificação sistemática das doenças:outras tantas operações con- juntas em que os dois constituintes — distribuição e análise, con- trole e inteligibilidade — são solidários/,0 quadro, no século XVIII, é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber. Trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma «ordemj^Como o chefe militar de que falava o naturalista Guibert, o medico, o economista fica cego pela imensidão, atordoado pela mult idão. . . as inúmeras combina- ções que resultam da multiplicidade dos objetos, tantas atenções reunidas constituem um peso acima de suas forças. A ciência da guerra moderna. 135 ao se aperfeiçoar, ao se aproximar dos verdadeiros princípios, poderia se tornar mais simples e menos difícil; [os exércitos] com táticas simples, análogas, flexíveis a todos os movimentos . . . seriam mais fáceis de mexer e de conduzir. u Tática, ordenamento espacial dos homens; taxinomia, espaço disciplinar dos seres naturais; quadro econômico, movimento regula- mentado das riquezas. Mas o quadro não tem a mesma função nesses diversos regis- tros. Na ordem da economia, permite a medida das quantidades e a análise dos movimentos. Sob a forma da taxinomia, tem por fun- ção caracterizar (e em conseqüência reduzir as singularidades indi- viduais) e congtituir classes (portanto excluir as considerações de número). Ma^Éob a forma de repartição disciplinar, a colocação em /quadro tem por função, ao contrário, tratar a multiplicidade por si 'mesma, distribuí-la e dela tirar o maior número possível de efeitosy Enquanto a taxinomia natural se situa sobre o eixo que vai do caráter à categoria, a tática disciplinar se situa sobre o eixo que liga o singular e o múltiplo./Ela permite ao mesmo tempo a caracteri- zação do indivíduo como indivíduo, e a colocação em ordem de uma , multiplicidade dada. Ela é a condição primeira para o controle e o uso de um conjunto de elementos distintos: a base par?, uma micro- física de um poder que poderíamos chamar «celular».^ O CONTROLE DA ATIVIDADE 1) O horário: é uma velha herança. As comunidades monás- ticas haviam sem dúvida sugerido seu modelo estrito. Ele se difun- diria rapidamente. Seus três grandes processos — estabelecer as cesuras, obrigar a ocupações determinadas, regulamentar os ciclos de repetição — muito cedo foram encontrados nos colégios, nas oficinas, nos hospitais. Dentro dos antigos esquemas, as novas disciplinas não tiveram dificuldade para se abrigar; as casas de educação e os estabelecimentos de assistência prolongavam a vida e a regularidade dos conventos de que muitas vezes eram anexos. O rigor do tempo industrial guardou durante muito tempo uma postura religiosa; no século XVII, o regulamento das grandes manufaturas precisava os exercícios que deviam escandir o tra- balho: Todas as pessoas . . . , chegando a seu ofício de manhã, antes de traba* lhar começarão lavando as mãos, oferecerão seu trabalho a Deus, farão o sinal da cruz e começarão a trabalhar" ; mas ainda no século XIX, quando se quiser utilizar populações rurais na indústria, será necessário apelar a congregações, para acos- tumá-las ao trabalho em oficinas; os operários são enquadrados em «fábricas-conventos». A grande disciplina militar formou-se, nos 136 exércitos protestantes de Maurício de Orange e de Gustavo Adolfo, através de uma rítmica do tempo escandida pelos exercícios de piedade; a vida no exército deve ter, dizia Boussanelle bem mais tarde, algumas «das perfeições do próprio claustro»." Durante séculos, as ordens religiosas foram mestras de disciplina: eram os especialistas do tempo, grandes técnicos do ritmo e das atividades regulares. Mas esses processos de regularização temporal que elas herdam as disciplinas os modificam. Afinando-os primeiro. Começa-se a contar por quartos de hora, minutos e segundos. No exército, é claro: Guibert mandou proceder sistematicamente a cronometragens (de tiro de que Vauban tivera a idéia.y^Jas escolas elementares, a divisão do tempo torna-se cada vez mais esmiuçante; as atividades «ão cercadas o mais possível por ordens a que se tem que responder imediatamente^ À uiuma pancada do relógio, um aluno baterá o sino, e ao primeiro toque, todos os alunos se poião de. joelhos, com os braços cruzados e os olhos baixos. Terminada a oração, o professor dará um sinal para os alunos se levantarem, um segundo para saudarem Cristo, e o terceiro para se sentarem. "// No começo do século XIX, serão propostos para a escola"mútua horários como o seguinte: 8,45 entrada do monitor, 8,52 chamada do monitor, 8,56 entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira lousa, 9,08 fim do ditado, 9,12 segunda lousa, etc.u A extensão progressiva dos assalariados acarreta por seu lado um quadriculamento cerrado do tempo: Se acontecer que os operários cheguem mais tarde que um quarto de hora depois que tocar a campainha. . . aquele companheiro que for cha- mado durante o trabalho e que perder mais de . c inco minutos . . . ; aquele que não estiver em seu trabalho na hora prec isa . . . u /Mas procura-se também garantir a qualidade do tempo empre- gado: controle ininterrupto, preszão dos fiscais, anulação de tudo o que possa perturbar e distrair; trata-se de constituir um tempo integralmente útil: Ê expressamente proibido durante o trabalho divertir os companheiros com gestos ou de outra maneira, fazer qualquer brincadeira, comer, dormir, contar histórias e comédias**; [e mesmo durante a interrupção para a refeição], nãu será permitido contar histórias, aventuras ou outras con- versaçõeá que distraiam os operários de seu trabalho; é expressamente proibido a qualquer operário, e sob qualquer pretexto que seja, introduzir vinho na fábrica e beber nas of ic inas." O tempo medido e pago deve ser também um tempo sem impu- reza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício. 'A exatidão e a aplicação são, com a regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar. Mas não é isso o mais novo. Outros modos de proceder são mais característicos das disciplinas. 137 2) A elaboração temporal do ato: vejamos duas maneiras de • controlar a marcha de uma tropa. Começo do século XVII : Acostumar os soldados, a marchar por fila ou em batalhão, a marchar^ na cadência do tambor. E para isso, começar com o pé direito a f im d e y que toda a tropa esteja levantando o mesmo pé ao mesmo tempo. ™ Metade do século XVIII, quatro tipos de passo: O comprimento do pequeno passo será de um pé, o do passo comum, do passo dobrado e do passo de estrada de dois pés, medidos ao todo de um calcanhar ao outro; quanto à duração, a do pequeno passo e do passo comum serão de um segundo, durante o qual se farão dois passos dobrados; a duração do passo de estrada será de um pouco mais de um segundo. 0 passo oblíquo será feito no mesmo espaço de um segundo; terá no máximo 18 polegadas de um calcanhar ao o u t r o . . . O passo comum será executado mantendo-se a cabeça alta e o corpo direito, conservando-se o equilíbrio sucessivamente sobre uma única perna, e levando a outra à frente, a perna esticada, a ponta do pé um pouco voltada para fora e baixa para aflorar sem afetação o terreno sobre o qual se deve marchar e colo- car o pé na terra, de maneira que cada parte se apóie ao mesmo tempo sem bater contra a t e r r a . " / / Entre essas duas prescrições, um novo conjunto de obrigações é imposto, outro grau de precisão na decomposição dos gestos e dos movimentos, outra maneira de ajustar o corpo a imperativos temporais. O que é definido pela ordenação de 1766 não é um horário — um quadro geral para uma atividade; é mais que um ritmo coletivo e obrigatório, imposto do exterior; é um «programa»; ele realiza a elaboração do próprio ato; controla do interior seu desenrolar e suas fases. Passamos de uma forma de injunção que media ouescandia os gestos a uma trama que os obriga e sustenta ao longo de todo 1 o seu encadeamento. Define-se uma espécie de esquema anátomo- ] cronológico do comportamento, yfô _ato é decomposto em seus ele- mentos; é definida a posição do corpo, dos membros, das articula- ções; "para cada movimento é determinada uma direção, uma ampli- tude, "uma duração; e prescrita sua ordem de sucessão. O tempo penetrfc. o corpo, e com ele_todos os controles minuciosos do poder. 3)' Donde o corpo e o gesto postos em correlação: o controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e de M rapidez. No bom emprego dO—Cfirpo, que permite um bom emprego 'do tempo, nada deve ficar ocioso-ou inútil: tudo deve ser chamado 'ia_formar o suporte do .ato requerido. Um corpo bem disciplinado iforma o contexto de realização do minimo gesto. Üma boa caligrafia, "pôr exemplo, supõe uma ginástica — uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta do pé à extremidade do indi- cador//Deve-se manter o corpo direito, um pouco voltado e solto do lado esquerdo, e algo inclinado para a frente, de maneira que, estando o cotovelo pousado na 138 mesa, o queixo possa ser apoiado na mão, a menos que o alcance da vista não o permita; a perna esquerda deve f icar um pouco mais avançada que a direita, sob a mesa. Deve-se deixar uma distância de dois dedos entre o corpo e a mesa; pois não só se escreve com mais rapidez, mas nada é mais nocivo à saúde que contrair o hábito de apoiar o estômago contra a mesa; a parte do braço esquerdo, do cotovelo até à mão, deve ser colocada sobre a mesa. O braço direito deve estar afastado do corpo cerca de três dedos, e sair aproximadamente cinco dedos da mesa, sobre a qual deve apoiar ligeiramente. O mestre ensinará aos escolares a postura que estes devem manter ao escrever, e a corrigirá seja por sinal seja de outra maneira, quando dela se afastarem.M ( Üm corpõjiisciplinado é a base de um gesto eficiente. / fá)^A articulação corpo-objeto; a disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que manipula. Ela_ estabelece cuidadosa engrenagem entre um e .Qutro. - ** • '• ' -• ———————— —•— — Leve a arma à frente. Em três tempos. Levanta-se o fuzil com a mão direita, aproximando-o do corpo para mantê-lo perpendicularmente em frente ao joelho direito, a ponta do cano à altura do olho, apanhando-o batendo com a mão esquerda, o braço esticado colado ao corpo à altura do cinturão. No segundo, traz-se o fuzil com a mão esquerda diante de si, o cano para dentro entre os dois olhos, a prumo, a mão direita o apanha pelo punho, com o braço esticado, o guarda-mato apoiado sobre o primeiro dedo, a mão esquerda à altura da alça de mira, o polegar estendido ao longo do cano contra a sole i ra No terceiro, a mão esquerda deixa o fuzil e cai ao longo da coxa, a mão direita o eleva, com o fecho para fora e em frente ao peito, com o braço direito meio esticado, o cotovelo colado ao corpo, o polegar estendido contra o fecho, apoiado ao primeiro parafuso, o cão apoiado sobre o primeiro dedo, o cano a prumo. n / Temos aí um exemplo do que se poderia chamar a codificação instrumental do corpo. Consiste em uma decomposição do gesto global em duas séries paralelas: a dos elementos do corpo que serão postos em jogo (mão direita, mão esquerda, diversos dedos da \ mão, joelho, olho, cotovelo et.), a dos elementos do objeto mani- pulado (cano, alça de mira, cão, parafuso, etc.); coloca-os depoia em correlação uns com os outros segundo um certo número de gestos simples (apoiar, dobrar); finalmente fixa a ordem canônica., em que cada uma dessas correlações ocupa um lugar determinado^ A esta sintaxe forçada é que os teóricos militares do século XVIII chamavam «manobra». A receita tradicional dá lugar a prescrições explícitas e coercitivas. Sobre toda a superfície de contato entre o corpo e o objeto que o manipula, o poder vem se introduzir, amarra-os um ao outro. Constitui um complexo corpo-arma, corpo-instrumento, corpo-máquina. Estamos inteiramente longe daquelas formas de sujeição que só pediam ao corpo sinais ou produtos, formas de expressão ou o resultado de um trabalho. A regulamentação imposta pelo poder é ao mesmo tempo a lei de construção da operação. E assim aparece esse caráter do poder disciplinar: tem uma função menos de retirada que de síntese, menos de extorsão do produto que de laço coercitivo com o aparelho de produção. ( / / 5 ) A utilização exaustiva: o princípio que estava subjacente ao Horário em sua forma tradicional era essencialmente negativo; 139 princípio da não-ociosidade; é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago pelos homens; o horário devia conjurar o perigo de^ deperdiçar tempo — erro morãT^e desonestidade econô- mica. Já/a disciplina organiza uma economia positiva; colocado prin- cipio de uma utilização teoricamente sempre crescente do tempo.;. mais exaustão que emprego; importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis// O que significa que se deve procurar intensificar o uso do mínimo instante, como se o tempo, em seu próprio fracionamento, fosse ines- gotável; ou como se, pelo menos, por uma organização interna cada vez mais detalhada, se pudesse tender para um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência. E a essa técnica mesma que era usada nos famosos regulamentos da infan- taria prussiana que a Europa inteira imitou depois das vitórias de Frederico I I " : quanto mais se decompõe o tempo, quanto mais se multiplicam suas subdivisões, quanto melhor o desarticulamos desdobrando seus elementos internos sob um olhar que os controla, mais então pode-se acelerar uma operação, ou pelo menos regulá-la segundo um rendimento ótimo de velocidade; daí essa regulamen- tação do tempo da ação que foi tão importante no exército e que devia sê-lo para toda a tecnologia da atividade humana: o regula- mento prussiano de 1743 previa 6 tempos para pôr a arma ao pé, 4 para estendê-la, 13 para colocá-la ao contrário sobre o ombro, etc. Por outros meios, a escola mútua também foi disposta como um aparelho para intensificar a utilização do tempo; sua organização permitia desviar o caráter linear e sucessivo do ensino do mestre; regulava o contraponto de operações feitas, ao mesmo tempo, por diversos grupos de alunos sob a direção dos monitores e dos adjun- tos, de maneira que cada instante que passava era povoado de ati- vidades múltiplas, mas ordenadas; e por outro lado o ritmo imposto por sinais, apitos, comandos impunha a todos normas temporais que deviam ao mesmo tempo acelerar o processo de aprendizagem e ensinar a rapidez como uma virtude. \ f \ única finalidade dessas ordens é . . . acostumar as crianças a executar rapidamente e bem as mesmas operações, diminuir tanto quanto possível pela celeridade a perda de tempo acarretada pela passagem de uma ope- ração a outra. **ft Ora, através dessa técnica de sujeição, um novo objeto vai-se compondo e lentamente substituindo o corpo mecânico — o corpo composto de sólidos e comandado por movimentos, cuja imagem tanto povoara os sonhos dos que buscavam a perfeição disciplinar. Esse novo objeto é o corpo natural, portador de forças e sede de algo du ável; é o corpo suscetível de operações especificadas, que têm sua ordem, seu tempo, suas condições internas, seus elementos cons- tituintes/O corpo, tornando-se alvo de novos mecanismos do poder, oferece-se a novas formas de saber. Cori>o do exercício mais que da 140 física especulativa; corpo manipulado pela autoridade mais que atravessado pelos espíritos animais; corpo do treinamento útil e não da mecânica racional, mas no qual, por essa mesma razão, se anunciará um certo número de exigências de natureza e de limitações fun-c i o n a i s ^ ele que Guibert descobre na crítica que faz das manobras excessivamente artificiais. No exercício que lhe é imposto e ao qual resiste, o corpo desenha suas correlações essenciais e rejeita espon- taneamente o incompatível: Entremos na maior parte de nossas escolas de exercício, veremos todos aqueles infelizes soldados em atitudes coagidas e forçadas, veremos todos os seus músculos em contração, sua circulação sangüínea interrompida. . . Estudemos a intenção da natureza e a construção do corpo humano, e encon- traremos a posição e a compostura que ela prescreve claramente que se deve dar ao soldado. A cabeça deve ficar direita, solta dos ombros, perpen- dicularmente colocada entre eles. Não deve ficar voltada nem & esquerda nem & direita, porque, considerando a correspondência que existe entre as vértebras do pescoço e a omoplata a que estão ligadas, nenhuma delas pode agir circularmente sem arrastar de leve do mesmo lado em que ela age uma das ramilicações do ombro, e não estando mais o corpo colocado direito, o soldado não pode mais marchar reto para frente nem servir de ponto de alinhamento Como o osso da anca indicado pela Ordenação como sendo o ponto contra o qual se deve apoiar o bico da coronha não está igualmente situado em todos os homens, o fuzil para alguns deve ser levado mais & direita, para outros mais & esquerda. Pela mesma razão de desigualdade de estrutura, o guarda-mato pode estar mais ou menos apertado contra o corpo, dependendo de ter um homem a parte externa do ombro mais ou menos carnuda, e t c . " Vimos como os processos da repartição disciplinar tinham seu lugar entre as técnicas contemporâneas de classificação e de enqua- dramento, e como eles aí introduziam o problema específico dos indi- víduos e da multiplicidade. Do mesmo modo//os controles discipli- nares da atividade encontram lugar em todas as pesquisas, teóricas ou práticas, sobre a máquina natural dos corpos; mas elas come- çaram a descobrir nisso processos específicos; o comportamento e suas exigências orgânicas vão pouco a pouco substituir a simples física do movimento. O corpo, do qual se requer que seja dócil até em suas mínimas operações, opõe e mostra as condições dc funcio- namento próprias a um organismo. O poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e «celular», mas também natural e «orgânica». A ORGANIZAÇÃO DAS GÊNESES Em 1667, o edito que criava a fábrica dos Gobelins previa a organização de uma escola. Sessenta crianças bolsistas deviam ser escolhidas pelo superintendente dos prédios reais, confiados durante certo tempo a um mestre que devia realizar «sua educação e ins- trução», depois colocados para aprendizagem junto aos d.versos mestres tapeceiros da manufatura (e;tes recebiam por isso uma 141 indenização retirada da bolsa dos alunos); depois de seis anos de aprendizagem, quatro anos de serviço e uma prova qualificatória, tinham direito de «erguer e manter loja» em qualquer cidade do reino. Encontramos aí as características próprias da aprendizagem corporativa: relação de dependência ao mesmo tempo individual e total quanto ao mestre; duração estatutária da formação que se conclui com uma prova qualificatória, mas que não se decompõe segundo um programa preciso; troca total entre o mestre que deve dar seu saber e o aprendiz que deve trazer seus serviços, sua ajuda e muitas vezes uma retribuição. A forma da domesticidade se mis- tura a uma transferência de conhecimento." Em 1737, um edito organiza uma escola de desenho para os aprendizes dos Gobelins; ela não se destina a substituir a formação com os mestres operá- rios, mas a completá-la. Ora, ela implica numa organização do tempo totalmente diversa. Duas horas por dia, menos aos domingos e festas, os alunos se reúnem na escola. É feita a chamada segundo uma lista afixada à parede; anotam-se as ausências num registro. A escola é dividida em três classes. A primeira para os que não têm nenhuma noção de desenho; mandam-nos copiar modelos, mais difíceis ou menos difíceis, segundo as aptidões de cada um. A se- gunda «para os que já têm alguns princípios» ou que passaram pela primeira classe; devem reproduzir quadros «à primeira vista e sem tomar-lhes o traço», mas considerando só o desenho. Na ter- ceira classe, aprendem as cores, fazem pastel, iniciam-se na teoria e na prática do tingimento. Regularmente, os alunos fazem deveres individuais; cada um desses exercícios, marcado com o nome do autor e a data da execução, é depositado nas mãos do professor; os melhores são recompensados; reunidos no fim do ano e compa- rados entre eles, permitem estabelecer os progressos, o valor atual, o lugar relativo de cada aluno; determinam-se então os que podem passar para a classe superior. Um livro geral mantido pelos pro- fessores e seus adjuntos deve registrar dia por dia o comporta- mento dos alunos e tudo o que se passa na escola; é periodicamente submetido a um inspetor.31 i f/K escola dos Gobelins é apenas o exemplo de um fenômeno * 'importante: o desenvolvimento, na época clássica, de uma nova .técnica para a apropriação do tempo _das._existências__singu lares; para reger as relações do tempo, dos corpos e das forças; para realizar uma acumulação da duração; e para inverter em lucro ou em utilidade sempre aumentados o movimento do tempo que ^passa. Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em Icada um deles, em seus corpos, em suas forças ou capacidades, e I de uma maneira que seja susceptível de utilização e de controle? Como organizar durações rentáveis? As disciplinas, que analisam 4 o _espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser também compreendidas como aparelhos para adicionar e capitalizar 142 to tfimpa E isto por quatro processos, que a organização militar Mostra com toda a clareza. L V / l9)l| Dividi^ a duração èm segmentos, sucessivos ou paralelos, dos ^quais cada um deve chegar a um termo específico.IlPor exemplo: isolar o tempo de formação e o período da prática; não misturar a instrução dos recrutas e o exercício dos veteranos; abrir escolas militares distintas do serviço armado (em 1764, criação da Escola de Paris, em 1776 criação das doze escolas de província); recrutar os soldados profissionais desde muito jovens, tomar crianças, «fazê- los adotar pela pátria, prepará-los em escolas particulares» " ; ensinar sucessivamente a postura, depois a marcha, depois o manejo das /armas, depois o tirojf e só passar a uma atividade se a anterior ^estiver completamente adquirida:^ «É um dos erros principais mos- t r a r a um soldado todos os exercícios ao mesmo tempo» " ; enfim decompor o tempo em seqüências, separadas e ajustadas. / 2 9 ) ^Organizar essas seqüências segundo um esquema analítico I— sucessão de elementos tão simples quanto possível, combinando-se " segundo uma complexidade crescente^O que supõe que a instrução ' abandone o princípio da repetição analógica. No século XVI, o / exercício militar consistia principalmente em uma pantomima de todo ou de parte do combate, e em fazer crescer globalmente a habi- lidade ou a força do soldado. - No século XVIII a instrução do «manual» segue o princípio do «elementar» e não mais do «exem- plar»: gestos simples — posição dos dedos, flexão da perna, movi- mento dos braços — que são no máximo os componentes de base para os comportamentos úteis, e que além disso efetuam um trei- namento geral da força, da habilidade, da docilidade. • h ' ) Finalizar esses segmentos temporais, fixar-lhes um termo marcado por uma prova, que tem a tríplice função de indicar se • o indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que sua apren- dizagem está em conformidade com a dos outros, e diferenciar as \ capacidades de cada indivíduo./Quando os sargentos, cabos, et<4. encarregados de instruir os outros, acharem que puseram alguém em con- dições de passar à primeira classe, eles o apresentarão primeiro aos ofi- ciais da companhiaque o examinarão com atenção; se ainda não o acharem suficientemente treinado, recusarão admiti-lo; se ao contrário o homem apresentado lhes parecer em condições de ser recebido, os ditos oficiais o proporão eles mesmos ao comandante do regimento, que verá se o julga a propósito, e fará os oficiais majores o examinarem. As faltas mais leves bastarão para recusá-lo, e ninguém poderá passar da segunda classe para a primeira sem ter feito esse primeiro exame. / 4 9 ) Estabelecer séries de séries; prescrever a cada um, de acordo com seu nível, sua antigüidade, seu posto, os exercícios que lhe convém; os exercícios comuns têm um papel diferenciador e cada diferença comporta exercícios específicos. Ao termo de cada série, começam outras, formam uma ramificação e se subdividem por sua 143 vez. De maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal, que define especificamente seu nível ou sua categoria./ Polifonia disciplinar dos exercícios: Os soldados da segunda classe serão treinados todas as manhãs pelos sargentos, cabos, anspeçadas, soldados de primeira c lasse . . . Os solaados de primeira classe serão treinados todos os domingos pelo chefe da esquadra . . . ; os cabos e os anspeçadas todas as terças-feiras & tarde pelos sargentos de sua companhia, e estes, aos 2, 12 e 22 de cada mês também a tarde pelos oficiais majores . " Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática pedagógica — especializando o tempo de formação e destacando-o do tempo adulto, do tempo do ofício adquirido; organizando diversos estágios separados uns dos outros por provas graduadas; determi- nando programas, que devem desenrolar-se cada um durante uma determinada fase, e que comportam exercícios de dificuldade cres- cente; qualificando os indivíduos de acordo com a maneira como percorreram essas séries. O tempo «iniciático» da formação tradi- cional (tempo global, controlado só pelo mestre, sancionado por uma única prova) foi substituído pelo tempo disciplinar com suas séries múltiplas e progressivas. Forma-se toda uma pedagogia ana- lítica, muito minuciosa (decompõe até aos mais simple3 elementos a matéria de ensino, hierarquiza no maior número possível de graus cada fase do progresso) e também muito precoce em sua história (antecipa largamente as análises genéticas dos ideólogos dos quais ^aparece como o modelo técnico). Demia, bem no começo do sé- culo XVIII, queria que o aprendizado da leitura fosse dividido em sete níveis: o primeiro para os que aprendem a conhecer as letras, o segundo para os que aprendem a soletrar, o terceiro para os que aprendem a juntar as sílabas, para formar palavras, o quarto para os que lêem o latim por frase ou de pontuação em pontuação, o quinto para os que começam a ler <o francês, o sexto para os mais capazes na leitura, o sétimo para os que lêem os manuscritos. Mas, caso os alunojs fossem numerosos, seria necessário introduzir ainda subdivisões; a» primeira classe devia comportar quatro grupos: um para os que aprendem as «letras simples»; outro para os que apren- dem as letras misturadas; um terceiro para os que aprendem as letras abreviadas (Ã, ê . . . ) ; um último para os que aprendem as letras duplas (ff , ss, tt, st). A segunda classe seria dividida em três grupos: para os que «contam alto cada letra antes de soletrar a sílaba D. O., DO»; para os «que soletram as sílabas mais difíceis, como bant, brand, spinx, etc.»." Cada patamar na combinatória dos elementos deve-se inserir numa grande série temporal, que é ao mesmo tempo uma marcha natural do espírito e um código para os processos educativos. //A colocação em «série» das atividades sucessivas permite todo um investimento da duração pelo poder: possibilidade de um con- 144 trole detalhado e de uma intervenção pontual (de diferenciação. l 'dé3õ^^oJ_d^aatigo^jdfi^liminasaoji^_c^da momento do tempo; Npogsibilidade de caracterizar, portanto de utilizar" os indivíduos de ^acordo com,^_jiíye]_,qu£_têm .jQaa.,SS]:ies _ que_percorrem; possibili-, >cladede aeiimulaiLJ?-_tfimBCL_e __a .atividade, de encontrá-los totali-_ (zados e utilizáveis, num resultado último, que é a capacidade final ."de um individuo^Recolhe-se a dispersão temporal para lucrar com fisso e conserva-se o domínio de uma duração que escapa. O poder fse articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e I garante sua utilização,// / / O s procedimentos disciplinares revelam um tempo linear cujos momentos se integram uns nos outros, e que se orienta para um ponto terminal e estável. Em suma, um tempo «evolutivov&ra, é preciso lembrar que no mesmo momento as técnicas administrativas e econômicas de controle manifestavam um tempo social de tipo serial, orientado e cumulativo: descoberta de uma - evolução em ^termos de «progresso»^As técnicas disciplinares, por sua vez, fazem emergir séries individuais: descoberta de uma evolução em termos de ct;ênese»//Progresso~3as sociedades," gênese dos indivíduos, essas "Huas grandes «descobertas» do século XVIII, são talvez correlatas das novas técnicas de poder e, mais precisamente, de uma nova maneira de gerir o tempo e torná-lo útil, por recorte segmentar, por seriação, por síntese e totalização^/üma macro e uma microfísica do poder permitiram, não certamente a invenção da história (já há um bom tempo ela não precisava mais ser inventada), mas a inte- gração de ma dimensão temporal, unitária, cumulativa no exercício dos controles e na prática das dominações//A historicidade «evolu- tiva», assim como se constitui então — é tão profundamente que ainda hoje é para muitos uma evidência — está ligada a um modo de funcionamento do poder, da mesma forma que a «histo- ria-rememoração» das crônicas, das genealogias, das proezas, dos reinos e dos atps esteve muito tempo ligada a uma outra modali- dade do podeç/Com as novas técnicas de sujeição, a «dinâmica» das evoluções contínuas tende a substituir a «dinástica» dos aconteci- mentos solene^// Em todo caso, o pequeno continuum temporal da individuali- dade-gênese parece ser mesmo, como a individualidade-célula ou a individualidade-organismo, um efeito e um objeto da disciplina. E no centro dessa seriação do tempo, encontramos um procedimento que é, para ela, o que era a colocação em «quadro» para a repartição dos indivíduos ou o recorte celular: ou ainda, o que era a «manobra» para a economia das atividades e o controle orgânico.,/0 ppnto em apreço é o «exercício», a técnica pela qual se impõe aos corpos "tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes, mas sempre gra- duadas. Dirigindo o comportamento para um estado terminal, o exer- cício permite uma perpétua caracterização do indivíduo seja em rela- 145 | ção a esse termo, seja em relação aos outros indivíduosL seja em_ relação a umjtipo de percurso. Assim, realiza, na forma da conti- (nuidade e da coerção, um crescimento, uma observação, uma qua- lificação. Antes de tomar essa forma estritamente disciplinar,o exercício teve uma longa história: é encontrado nas praticas milita- res, religiosas, universitárias — às vezes ritual de iniciação, cerimõ; ma preparatória, ensaio teatral, prova^Sua organização linear, con- tinuamente- progressiva, seu desenrolar genético ao longo do tempo têm, pelo menos no exército e na escola, introdução tardia. E sem dúvida de origem religiosa. Em todo caso, a idéia de um «programa» escolar que acompanharia a criança até o termo de sua educação e que implicaria de ano em ano, de mês em mês, em exercícios de complexidade crescente, apareceu primeiro, parece, num grupo reli- gioso, os Irmãos da Vida Comum. ** Fortemente inspirados por Ruys- broeck e na mística renana, transpuseram à educação uma parte das técnicas espirituais — e não só à educação dos clérigos, mas à dos magistrados e comerciantes: o tema da perfeição, em direção à qual o mestre exemplar conduz, torna-se entre eles o de um aperfeiçoamento autoritário dos alunos pelo professor; os exercí-cios cada vez mais rigorosos propostos pela vida ascética tornam-se tarefas de complexidade crescente que marcam a aquisição progres- siva do saber e do bom comportamento; o esforço de toda a comu- nidade para a salvação torna-se o concurso coletivo e permanente dos indivíduos que se classificam uns em relação aos outros. Foram talvez processos de vida e de salvação comunitárias o primeiro núcleo de métodos destinados a produzir aptidões individualmente caracteri- zadas mas coletivamente úteis. ** Sob sua forma mística ou ascética, o exercício era uma maneira de ordenar o tempo aqui de baixo para a . conquista da salvação./Vai pouco a pouco, na história do Ocidente, inverter o sentido guardando algumas características: serve para eco-_ ^nomizar o tempo da vida, para acumulá-lo de uma maneira útil, e para„ exercer o poder sobre os homens por meio do tempo assim arrumado,, O exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da duração, não culmina num mundo alem; mas tende para uma sujeição que nunca terminou de se completará A COMPOSIÇÃO DAS FORÇAS «Comecemos destruindo o antigo preconceito segundo o qual pensava- se aumentar a força de uma tropa aumentando-lhe a profundidade. Todas as leis fisicas sobre o movimento tornam-se quimeras quando queremos adaptá-las à tática. m Desde o fim do século XVII, o problema técnico da infantaria foi de libertar-se do modelo físico da massa. Armada de lanças e mosquetões — lentos, imprecisos, que não permitiam ajustar um alvo e mirar — uma tropa era usada ou como um projétil, ou como um 146 muro ou uma fortaleza: «a temível infantaria do exército da Espa- nha»; a repartição dos soldados nessa massa era feita principal- mente segundo sua antigüidade e valentia; no centro, encarregados de fazer peso e volume, de dar densidade ao corpo, os mais novatos; na frente, nos ângulos ou pelos lados, os soldados mais corajosos ou reputados os mais hábeis. Passou-se no decorrer da época clás- sica a um jogo de articulações minuciosas. A unidade — regimento, batalhão, seção, mais tarde «divisão» 47 — torna-se uma espécie de máquina de peças múltiplas que se deslocam em relação umas às outras para chegar a uma configuração e obter um resultado espe- cífico. As razões dessa mudança ̂ Algumas são econômicas: tornar útil cada indivíduo e j^entável a formação, a manutencãoJ_jí_annar. mento das tropas; dar a cada soldado, unidade preciosa, um máximo de eficiência. Mas essas razões econômicas só puderam se tornar determinantes a partir de uma transformação técnica: a invenção do fuzü4*: mais preciso, mais rápido que o mosquete, valorizava a habi- lidade do soldado; mais capaz de atingir um alvo determinado, permitia explorar a potência de fogo ao nível individual; e inver- samente fazia de cada soldado um alvo possível, exigindo pela mesma razão maior mobilidade; e assim ocasionava o desapareci- mento de uma técnica das massas em proveito de uma arte que dis- tribuía as unidades e os homens ao longo de linhas extensas, relati- vamente flexíveis e móveis.yDaí a necessidade de encontrar uma prática calculada das localizações individuais e coletivas, dos dçslo-, camentos de grupos ou de _elementos isolados, das mudanças de posição, depascagem de uma disposição a outra; enfim7 3e inven- tar uma maquinaria cujo princípio na0.j5.eja mais a massa móvel Õu imóvel, mas uma geometria de segmentos diyisívejs cuja unidade de base é o soldado móvel com seu fuzil" ; e acima do próprio sol- dado, os gestos mínimos, os tempos^ejementares de ação,_os frag- mentos de espaços ocupados ou percorridos.^ Mesmos problemas ao se constituir uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares que a ; compõem: f Que o dia de trabalho combinado adquira essa produtividade superior multiplicando a potência mecânica do trabalho, estendendo sua ação no espaço ou diminuindo o campo de produção em relação à sua escala, mobilizando nos momentos criticos grandes quantidades de trabalho. . . a força específica do dia combinado, é uma força social do trabalho ou uma força do trabalho social. Nasce da própria cooperação." Surge assim uma exigência nova a que a disciplina tem que atender: construir uma máquina cujo efeito será elevado ao máximo pela articulação combinada das peças elementares de que ela se compõe. A disciplina não é mais simplesmente uma arte de repar- tir os corpos, de extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças para obter um aparelho eficiente^ Essa exigência se traduz de várias maneiras. 147 O corpo singular torna-se um elemento, que se pode colocar, I mover, articular com outros. Sua coragem ou força não Eão mais as variáveis principais que o definem; mas o lugar que ele ocupa, o intervalo que cobre, a regularidade, a .boa ordem segundo as quais opera seus .deslocamentos. O homem de tropa é antes de tudo um fragmento de espaço móvel, antes de ser uma coragem ou uma honray^Caracterização do soldado por Guibert: Quando está sob as armas, ocupa dois pés em seu maior diâmetro, ou seja, tomando-o de um extremo ao outro, e cerca de um pé em sua maior espessura, tomada do peito aos ombros, a que se deve acrescentar um pé de intervalo real entre ele e o homem seguinte; o que dá dois pés em todos os sentidos por soldado e indica que uma tropa de infantaria em batalha ocupa, seja numa frente seja em profundidade, tantos passos quantas filas t e m . " /Redução funcional do corpo^ilas também inserção desse corpo- segmento em todo um conjunto com o qual se articula. O soldado cujo corpo foi treinado para funcionar peça por peça para opera- ções determinadas deve por sua vez formar elemento num meca- nismo de outro nivel. Os soldados serão instruídos um a um, depois dois a dois, depois em maior número . . . Será observado para o manejo das armas, quando os soldados tiverem sido instruídos separadamente, íazê-los cxecuta-io dois a ÜOIS, e faze-los trocar ue lugar alternadamente para que o da esquerda aprenda a se regular pelo da direita. 11 O corpo se constitui como peça de uma máquina multisseg- mentar. f l ) São também peças as várias séries cronológicas que a dis- ciplina deve combinar para formar um tempo composto. O tempo de uns deve-se ajustar ao tempo de outros de maneira que se possa extrair a máxima quantidade de forças de cada um e combiná-la !num resultado ótimo/Servan sonhava assim com um aparelho mili- tar que cobriria todo o território da nação e em que cada um estaria ocupado sem interrupção mas de maneira diferente segundo o segmento evolutivo, a seqüência genética em que se encontrasse. A vida militar começaria na mais tenra idade, quando se ensinaria às crianças, em «moradas militares», o ofício das armas; ela ter- minaria nessas mesmas moradas, quando os veteranos, até seu último dia, ensinariam as crianças, mandariam os recrutas fazer manobras, presidiriam aos exercícios dos soldados, os fiscalizariam quando executassem obras de interesse público, e enfim fariam rei- nar a ordem no país, enquanto a tropa se batia nas fronteiras. Não há um só momento da vida de que não se possa extrair forças, desde que se saiba diferençá-lo e combiná-lo com outros. Da mesma maneira nas grandes oficinas apela-se para as crianças e os velhos; pois eles têm certas capacidades elementares para as quais não é necessário utilizar operários que têm várias outras aptidões; além 148 disso constituem mão-de-obra barata; enfim, se trabalham, não são dependentes de ninguém: A humanidade laboriosa, dizia um recebedor de impostos a respeito de uma empresa de Angers, pode encontrar nessa manufatura, da idade de dez anos até à velhice, recursos contra a ociosidade e a miséria que é conseqüência desta.u /Mas é sem dúvida no ensino primário que esse ajustamento 'das cronologias diferentes será mais sutil.j^o século XVII até a introdução, no começo do XIX, do método Lancaster, o mecanismo complexo da escola mútua se construirá uma engrenagemdepois da outra: confiaram-se primeiro aos alunos mais velhos tarefas de simples fiscalização, depois de controle do trabalho, em seguida, de ensino; e então no fim das contas, todo o tempo de todos os alunos estava ocupado seja ensinando seja aprendendo. A escola torna-se um aparelho de aprender onde cada aluno, cada nível e cada momento, se estão combinados como deye ser, são permanentemente utilizados no processo geral de ensino/Um dos grandes partidários da escola mútua dá a medida desse progresso: Numa escola de 360 crianças, o professor que quisesse instruir cada aluno por sua vez durante uma sessão de três horas só poderia dar meio , minuto a cada um. Pelo novo método, todos os 360 alunos escrevem, lêem ou contam durante duas horas e meia cada u m . u '3) Essa combinação cuidadosamente medida das forças exige um' sistema preciso de comando. Toda a atividade do indivíduo dis- ciplinar deve ser repartida e sustentada por injunções cuja eficiên- cia repousa na brevidade e na clareza; a ordem não tem que ser explicada, nem mesmo formulada; é necessário e suficiente que pro- yvoque o comportamento descjado./Do mestre de disciplina àquele 1 que lhe é sujeito, a relação é de sinalização: o que importa não é compreender a injunção, mas perceber o sinal, reagir logo a ele, de acordo com um código mais ou menos artificial estabelecido previamente.^Colocar os corpos num pequeno mundo de sinais a cada um dos quais está ligada uma resposta obrigatória e só uma: técnica do treinamento que exclui despoticamente em tudo a menor representação, e o menor mur- múrio; o soldado disciplinado começa a obedecer ao que quer que lhe seja ordenado; sua obediência é pronta e cega; a aparência de indocili- dade, o menor atraso seria um cr ime . " O treinamento dos escolares deve ser feito da mesma maneira; poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais — sinos, palmas, gestos, simples olhar do mestre, ou ainda aquele pequeno aparelho de madeira que os Irmãos das Escolas Cristãs usavam; era chamado por exce- lência o «Sinal» e devia significar em sua brevidade maquinai ao mesmo tempo a técnica do comando e a moral da obediência. 149 O primeiro e principal uso do sinal é atrair de uma só vez todos os olhares dos escolares para o mestre e fazê-los ficar atentos ao que ele lhes quer comunicar. Assim, toda vez que este quiser chamar a atenção das crianças e fazer parar qualquer exercício, baterá uma vez. Um bom escolar, toda vez que ouvir o ruído do sinal pensará* ouvir a voz do mestre ou antes a voz de Deus mesmo que o chame pelo nome. Entrará então nos sentimentos do jovem Samuel, dizendo com ele no fundo de sua alma: Senhor, eis-me aqui. O aluno deverá aprender o código dos sinais e atender automa- ticamente a cada um deles. Feita a oração, o mestre dará uma pancada de sinal, olhando a criança que quer mandar ler, lhe fará sinal de começar. Para fazer parar, o que está lendo, dará uma pancada de sinal . . . Para fazer sinal ao que está lendo de se corrigir, quando pronunciou mal uma letra, uma sílaba ou uma palavra, dará duas pancadas sucessivamente e seguidas. Se após se ter corrigido, ele não recomeça na palavra que, pronunciou mal, porque leu várias depois dela, o mestre dará três pancadas sucessivamente uma em seguida da outra para lhe fazer sinal de recuar de algumas palavras e continuará a fazer esse sinal, até o escolar chegar à sílaba ou à palavra que pronunciou mal. M A escola mútua levará ainda mais longe esse controle dos com- portamentos pelo sistema dos sinais a que se tem que reagir ime- diatamente. Até as ordens verbais devem funcionar como sinalização: *;. Entrem ^em seus bancos. A palavra Entrem, as crianças colocam com ruído a mão direita sobre a mesa e ao mesmo tempo passam a perna para dentro do banco; às palavras em seus bancos, eles passam a outra perna e se sentam diante das lousas. . . Pegar-lousas, à palavra pegar, as crianças levam a mão direita ao barbante que serve para suspender a lousa ao prego que está diante deles, e com a esquerda pegam a lousa pelo meio; à. palavra lousas, eles a soltam e a colocam sobre a mesa." f / E m resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos> corpos aue controla, quatro tipos de individualidade, ou antes uma ^Individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo tjogo da repartição espacial), e orgânica (pela codificação das ati- JVidades), é erenética (pela acumulação do tempoJf é combinatória ^peía composição das forças). E para tanto, utiliza quatro grandes1 tèá nicas: constrói... quadros; ^prescreve., manobras;... impõe ^exercícios; ên?im, para realizar a combinação .daa_Í9.rfias, organiza «táticas». r X ' tát ica, arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar. / N esse saber, os teóricos do século XVIII viam o fundamento geral de toda a prática militar, desde o controle e o exercício dos corpos individuais, até à utilização das forças específicas às multiplici- dades mais complexas. Arquitetura, anatomia, mecânica, economia do corpo disciplinar; aos olhos da maior parte dos militares, a tática não passa de um ramo da vasta ciência da guerra; aos meus, ela é a base dessa ciência; ela é a própria ciência, pois ensina a constituir as tropas, a ordená-las, a mo- 150 vê-las, a mandá-las combater; pois só ela pode completar o número e manejar a multidão; ela incluirá enfim o conhecimento dos homens, das armas, das tensões, das circunstâncias, pois são todos esses conheci- mentos reunidos que devem determinar esses movimentos.1" [Ou ainda]: Esse termo ( tát i ca ) . . . dá a idéia da posição respectiva dos homens que compõem uma tropa, das diversas tropas que compõem um exército, de seus movimentos e ações, das relações que têm entre s i . " É possível que a guerra como estratégia seja a continuação da política. Mas nãg_sfi_4eye esquecer q u e a «política» foi concebida como a continuação senão exata e diretamente da_guerra, pelo menos do modelo militar como meio fundamental para prevenir o distúrbio civil. A política, como técnica da paz e da ordem internas, procurou pôr em funcionamento o dispositivo do exército perfeito, da massa disciplinada, da tropa dócil e útil, do regimento no acam- >amento e nos campos, na manobra e no exercício. Nos grandes Cstados do século XVIII, o exército garante a paz civil sem dúvida >orque é uma força real, uma espada sempre ameaçadora, mas tam- >ém porque é uma técnica e um saber que podem projetar seu esquema lobre o corpo social. Se há uma série guerra-política que passa pela jstratégia, há uma série exército-política que passa pela tática. Ê a istratégia que permite compreender a guerra como uma maneira de :onduzir a guerra entre os Estados; é a tática que permite compreen- ler o exército como um princípio para manter a ausência de guerra ia sociedade civil. A era clássica viu nascer a grande estratégia política e militar segundo a qual as nações defrontam suas forças econômicas e demográficas; mas viu nascer também a minuciosa tática militar e política pela qual se exerce nos Estados o controle dos corpos e das forças individuais. «O» militar — a instituição militar, o personagem do militar, a ciência militar, tão diferentes do que caracterizava antes o «homem de guerra» — se especifica, durante esse período, no ponto de junção entre a guerra e os ruídos da batalha por um lado, a ordem e o silêncio obediente da paz por outro.,/0 sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século XVIII ; mas hà^também um sonho militar da sociedade; sua referência funda- mental era não ao estado de natureza, mas às engrenagens cuida- dosamente subordinadas de uma máquina, não ao
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