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Imperios_do_Divino_na_Amazonia

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Prévia do material em texto

Manuel J. Gandra 
 
 
 
 
O IMPÉRIO DO DIVINO 
na Amazónia 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Mafra – Rio de Janeiro 
2017
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Editores: Instituto Mukharajj Brasilan & Centro Ernesto Soares de Iconografia e 
Simbólica-Cesdies 
Est. da Grota Funda, 2440 – Guaratiba 
Rio de Janeiro/RJ – CEP 22785-330 
Tel.: +5521 9399-0997 
Email: secretaria.imub@gmail.com 
Site: www.imub.org 
 
Título: O IMPÉRIO DO DIVINO NA AMAZÓNIA 
Autor: Manuel J. Gandra 
Coordenação Editorial: Loryel Rocha [loryel@brasilan.com.br] 
Projeto Gráfico: Diogo Gandra 
Design da Capa: Diogo Gandra 
 
Copyright: ©Manuel J. Gandra/Instituto Mukharajj Edições 
Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada por escrito, do autor ou 
 do Instituto Mukharajj Brasilan, no todo ou em parte, por quaisquer que sejam os 
meios, constitui violação das leis em vigor. 
 
Fale com o Autor: manueljgandra@gmail.com 
 
1ª Edição Luso-Brasileira: Junho de 2017 – 102 exemplares, todos numerados e 
assinados pelo autor; e-book.- impresso a pedido. 
 
3 
 
 
 
 
ÍNDICE 
 
 
7 
O Império do Divino Espírito Santo 
63 
Impérios do Divino – Cronologia 
115 
O Império do Divino na Amazónia 
119 
Amapá 
191 
Amazonas 
205 
Maranhão 
319 
Mato Grosso 
337 
Pará 
363 
Rondónia 
389 
Tocantins 
419 
Contributo para uma Bibliografia dos 
Impérios do Divino Espírito Santo 
Continente – Açores – Madeira – Brasil - USA 
459 
Índice de verbetes 
 
4 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Acrónimos e siglas 
 
ACTomar: Arquivo Concelhio de Tomar 
AHU: Arquivo Histórico Ultramarino 
ANTT: Arquivo Nacional da Torre do Tombo 
Boletim: Boletim da Junta da Província do Ribatejo, n. 1 (1937-1940) 
BN: Biblioteca Nacional 
ER: Francisco Câncio, Etnografia Ribatejana: notas de um ribatejano, v. 1, 
Lisboa, 1956 
IAdS: Gustavo de Matos Sequeira, Inventário Artístico de Portugal: Distrito 
de Santarém, Lisboa, 1949 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“A religiosidade portuguesa, do mesmo modo que a galega […] há que ir 
buscá-la sob as formas regulares e canónicas da religião oficial. 
Sob ela palpita e vive ainda um certo naturalismo que tem muito de pagão e 
não pouco de panteísta” 
 
MIGUEL DE UNAMUNO 
(Por tierras de Portugal y España) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O IMPÉRIO 
DO DIVINO ESPÍRITO SANTO 
 
 
9 
 
 
 
 
 
I 
 
 
 
 
“[...] tem de haver um entendimento sobre a lugar e a sua história, 
coisa que Portugal recusa há cinco séculos”. 
 
FRANCISCO PALMA DIAS 
(Artes e Letras, n. 19, Jun. 2009) 
 
 
 
O Paracleto ou Espírito Santo é uma entidade etérea e inefável, 
celebrada conjuntamente por judeus e por cristãos, cinquenta dias 
depois da Páscoa, na festa dos Tabernáculos e do Pentecostes, 
respectivamente 1. 
Entre cristãos esta solenidade tem oitava privilegiada e 
inaugura um período novo no ano eclesiástico, prolongando-se 
durante 24 semanas, até ao primeiro Domingo do Advento 
(obrigatoriamente entre 27 de Novembro e 3 de Dezembro). 
O Pentecostes também é denominado Páscoa Rosada, 
comemorando a descida do Fogo do Consolador, ou Paracleto, sobre 
 
1 Também o Islamismo se preocupa desde os seus primórdios com a eminência da Hora 
(o Fim dos Tempos), isto porque a profetologia islâmica reproduz nos seus traços gerais 
a Cristologia Ebionita, paraclética, herdada da comunidade judaico-cristã primitiva. A 
transposição da profetologia do Paracleto (Fâraqlit) não é sensível ao nível das 
concepções adoptadas pelo Islão sunita, sob a sua forma exterior. Porém, ela influencia 
os teósofos místicos, a metafísica do Sufismo e, particularmente, a teosofia shi'ita, 
autêntica religião do Consolador (Ver Evangelho de Barnabé), da qual a Igreja paulina 
se afastou, centrando-se nos temas do pecado original e da respectiva redenção pelo 
sacrifício cruento (Theologia crucis). Cf. Henri Corbin, L'idée du Paraclet en 
philosophie iranienne, in En Islam Iranien, v. 2, liv. VIII, cap. III. Mahomed († 632) 
autodenomina-se Mestre da Hora, embora não fixe qualquer data precisa para o evento, 
proclamando apenas que "a ordem de Deus se manifesta" (Ata amr Allah). 
Posteriormente, outros haviam de encarregar-se dos cálculos epilogísticos. 
10 
 
os Discípulos, consoante a narrativa dos Actos dos Apóstolos (II, 1-4). 
Depois da Ascensão aqueles regressaram ao Cenáculo e ali esperaram 
em oração, durante 9 dias, a realização da promessa de Jesus. No 
décimo dia, seriam 9 horas da manhã: 
 
“[...] de repente veio do Céu um estrondo como de vento que 
assoprava com ímpeto e encheu toda a casa onde estavam assentados. 
E lhes apareceram, repartidas, umas como línguas de fogo, que 
repousaram sobre cada um deles. E foram todos cheios do Espírito 
Santo, e começaram a falar em várias línguas, conforme o Espírito 
Santo lhes concedia que falassem”. 
 
 
 
Pentecostes da capela do Senado de Guimarães 
11 
 
 
A iconografia portuguesa deste episódio da História Sagrada 
esteve, invariavelmente, ao serviço da causa do Império do Divino 
Espírito Santo, motivo por que se trata de um tema muito comum, 
nomeadamente em capelas e altares da invocação do Paracleto. 
O culto do Divino Espírito Santo sob a forma de Império é 
expressão própria e exclusiva do mundo lusíada (nos Açores e no 
Brasil 2 conserva ainda a fidelidade às origens) não tendo qualquer 
similitude com as devoções homónimas que existem por todo o 
restante orbe católico. 
Isso mesmo concluíria Jaime Cortesão, uma vez na posse dos 
resultados de um inquérito realizado por sua iniciativa em Espanha, 
onde se não acha o mínimo vestígio da devoção do Império, nem 
sequer no território aragonês, de onde era natural a Rainha Santa 
Isabel, sua mais que improvável “inventora”, como creio ter já 
demonstrado em outra ocasião 3. 
Incapazes de penetrar a semântica genuína dos Impérios do 
Divino, a devoção mais autenticamente pneumatológica da cultura 
lusíada, autores houve que os advogaram susceptíveis de: 
 
- enraízar em cultos pagãos em louvor de Ceres 4, de Júpiter 
Pluvius 5, ou, simplesmente, de cultos politeístas 6; 
- estar relacionados com “cerimónias contra a peste” 7; 
 
2 A propósito da popularidade do Império do Divino Espírito Santo no Brasil, na década 
de 1820, convém recordar que José Bonifácio preferiu o título de Imperador ao de Rei, 
porque era “mais amado pelo povo”. Cf. Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore 
Brasileiro, Rio de Janeiro, 1962. Com efeito, a Festa e o Regime político iniciaram 
juntos um novo tempo, as barracas do Império do Divino diante do Paço Imperial. 
3 Cf. Alenquer, in Nova Águia, n. 3 (1º semestre de 2009), p. 140-151. 
4 Cf. José Diniz da Graça Motta e Moura, Memória Histórica da notavel Villa de Nisa, v. 
1, p. 58: “imperfeita imitação das festas e sacrifícios que os romanos anualmente faziam 
a Ceres, filha de Saturno e Cibele, deuses da agricultura [...]”. Salete da Ponte reata esta 
opinião no artigo A Simbólica de Festividades no Ciclo dos Tempos, in Boletim Cultural 
Da Câmara Municipal de Tomar, n. 21 (Out. 1997), p. 13-26. 
5 Cf. Luís Ribeiro, Os Festejos do Espírito Santo, in Almanaque dos Açores – 1934, 
Angra do Heroísmo, 1933, p. 72-76. 
6 Cf. Teófilo Braga, Cantos Populares do Arquipélago Açoriano, v. 2, p. 202. O 
argumento do culto do Império enquanto sobrevivência do gentilismo foi um dos mais 
invocados pelas autoridades eclesiásticas para proibir e suprimir os festejos. 
7 Cf. Teófilo Braga, O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, v. 2, 
Lisboa, 1885, p. 284. 
12 
 
- concitar a “protecção divina contra pragas e malinas”, 
mediante actos devocionais e práticas caritativas 8; 
 
 
 
Natal muçulmano em Tripoli (Líbia), onde tabuleiros idênticos aos de Tomar são 
ofertados como ex-votos (Domenica del Corriere, n. 20, 17 Jul. 1966) 
 
 
- proceder do cerimonial do “bispo-inocente” 9; 
- ser uma herança das confrarias francesasdo Espírito Santo 10. 
 
8 Cf. Michel Giacometti, Cancioneiro Popular Português, Lisboa, 1981, p. 39. 
9 Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, Coimbra, 1910-1922, 4 vols. 
Ver, especificamente, v. 1, p. 252 e v. 3, p. 556-557. A festividade do Bispo inocente 
celebrada a 28 de Dezembro, véspera dos Santos Inocentes, ainda se realizava na Sé de 
Lisboa, com grande pompa, em pleno século XVII. Ver Mário Martins, O Bispo Menino, 
o Rito de Salisbúria e a Capela Real Portuguesa, in Didaskalia, n. 2 (1972), p. 183-192. 
10 As confrarias francesas do Espírito Santo apenas promoviam a assistência na doença 
e na morte, assim como os bodos, omitindo, porém, o cerimonial da coroação. Cf. P. 
Duparc, Les Confréries du Saint Esprit et communautés d’habitants au Moyen Âge, in 
Révue d’Histoire du Droit Français et Étranger, v. 3 (1958), p. 349-367 e v. 4 (1958), p. 
555-585. 
13 
 
- ter origem judaica 11. 
- ser expediente, destinado a apaziguar o vulcanismo, 
recorrendo a procissões e orações 12; 
 
* * * 
 
O Auto do Império encena de forma simbólica o advento da 
Terceira Idade do Mundo, de acordo com uma tese do abade 
cisterciense Joaquim de Fiore, propalada pelos meios joaquimitas, e 
segundo a qual a história da humanidade percorreria três Tempos, 
desde a Criação até ao Fim do Mundo, vividos cada um deles sob a 
influência de uma das três pessoas da Trindade (lema da tripeça 13). 
 
 
O lema da tripeça, conforme a doutrina de Joaquim de Fiore 
no seu Comentário ao Apocalipse 
 
11 Cf. Correio da Manhã (11 Jun. 1991). Com mais razão se poderia dizer de origem 
muçulmana a Festa dos Tabuleiros de Tomar, atendendo à similitude formal dos ex-
votos reproduzidos na foto publicada supra! 
12 Tese perfilhada por César das Neves e pelo sociológo Caetano Valadão Serpa, que 
deixa sem explicação o enraizamento dos Impérios na Madeira e no Brasil, por exemplo, 
onde, consabidamente, inexiste vulcanismo! No Congresso do Espírito Santo de 
Alenquer (2016), Fernanda Enes subscreveu a mesma paralaxe, estribada na falsa 
assunção de que o Império do Divino foi uma criação açoriana. Com efeito, o culto do 
Divino Espírito Santo teve origem em Portugal continental (muitíssimo antes da 
“descoberta” do arquipélago açoriano), de onde havia de se difundir para todo o mundo 
lusíada. Ora, sendo a liturgia do Império do Divino fundada num símbolo teológico-
filosófico (joaquimita) e, salvo ligeiras variações tópicas, constante e universal, que 
particularidades do rito se baseiam no medo-pânico originado no vulcanismo? 
13 Sobre este tópico, ver Fernando Pessoa, Prefácio a Quinto Império de Augusto 
Ferreira Gomes, Lisboa, 1934 e Manuel J. Gandra, A. A. Carvalho Monteiro: 
imaginário e legado, Mafra, 2014, p. 184-190. 
14 
 
 
Assim, se a lei mosaica fora específica da Idade do Pai e a lei 
evangélica da do Filho, a futura lei do Evangelho Eterno sê-lo-ia da do 
Espírito Santo 14. 
 
 
 
 
Abbade Joaquim – Floreceo no Século XII 
A sua escatologia da História foi de tal modo influente em Portugal 
que continuava a ter cultores no século XIX, como testemunha 
a presente litografia, datável de c. 1810 
 
14 Cf. Manuel J. Gandra, Joaquim de Fiore, Joaquimismo e Esperança Sebástica, 
Lisboa, 1999. 
15 
 
 
 
Encontro de Abraão com Melquisedeque, rei de Salém 
Tábua do pintor Gregório Lopes, pertencente ao retábulo da capela-mor da igreja de São 
João Baptista de Tomar. Melquisedeque oferece o pão e o vinho da comunhão ao 
patriarca Abraão, tal qual Jesus fará aos discípulos na Última Ceia. Em segundo plano, 
semi-encobertos pela figura enigmática de Melquisedeque, o Nesi Shalom (Príncipe da 
Paz) dos essénios, descobrem-se as figuras que encarnam as três grandes confissões do 
Livro: um judeu, um muçulmano e um cristão. Assim propagandeada, a missão 
ecuménica, mais apropriadamente o Evangelho Português, que a Ordem de Cristo 
herdou do Templo torna-se indiscutível. 
 
16 
 
O esgotamento da segunda Idade ou do Filho prenunciaria o 
início do Tempo do Divino Paracleto, era da confraternização 
universal de cujo advento os portugueses se fizeram arautos, 
disseminando pelas novas latitudes tais expectativas milenaristas, 
porém nem sempre da forma mais ortodoxa e conforme aos dogmas 
romanos. 
Esse o móbil da perseguição de que os festejos passaram a ser 
alvo a partir do século XVI, nunca o carácter pagão então invocado 
pela hierarquia eclesiástica e mais tarde pela etno-antropologia (hoje 
pela sociologia) arregimentada para mascarar os autênticos motivos. 
Se necessário fosse angariar testemunhos para ilustrar o 
carácter heterodoxo da piedade popular subjacente aos festejos em 
louvor do Paracleto, bastaria evocar: 
 
- uma passagem do Orto do Esposo, apelando a um regresso às 
fontes e à genuinidade do ideal cristão: “[…] pois Jesus Cristo e os seus 
apóstolos não nos ensinaram arte de lógica, nem o enganamento vão 
das palavras, mas deram-nos ciência limpa e pura […]” 15; 
 
- ou uma xácara da ilha do Corvo (Açores): 
 
“Ascendeu o Espírito Santo 
Sua Santa monarquia, 
Desceu do Céu à terra 
Com prazer e alegria. 
No ar, como pomba branca, 
Coroada a Virgem Maria, 
Com treze chamas de fogo 
Todas ardentes, ardia. 
Com seus doze Apóstolos 
Para a sua Companhia, 
Entraram a pregar 
Por aquela heresia 
Pela vontade de Deus 
Tudo se lhe convertia”. 
 
 
 
15 Orto do Esposo, , fl. 34v-35r. Cf. edição crítica de B. Maler, Rio de Janeiro, 1965. 
17 
 
* * * 
 
Cada um dos aludidos períodos históricos, encarnando 
personalidade própria, consubstanciaria diferentes formas religiosas, 
sucessivamente manifestadas de Oriente para Ocidente. 
A sede da Igreja do Pai fora Jerusalém, a do Filho, Roma. 
A Terra Santa vindoura onde situá-la? 
Camões chamou Nova Roma a Lisboa. De Mafra se diz que pelo 
menos durante um dia há-de ser Roma. 
 
 
 
Alenquer: o convento de São Francisco no topo da “eminência para 
a parte Sul” e a igreja do Espírito Santo junto ao rio 
 
 
Seja como for, os iniciados na doutrina dos espirituais 
franciscanos identificavam-na com Alenquer. 
Segundo eles essa era a povoação portuguesa que maior 
similitude tirava de Jerusalém, a qual constitui no círculo judaico-
18 
 
cristão-islâmico o modelo paradigmático da Cidade Santa, o pólo 
teofânico, por excelência (i. e., da revelação divina) 16. 
Creio ter sido o franciscano Frei Manuel da Esperança 17 quem 
primeiro enfatizou por escrito o que já então seria uma assunção 
geralmente admitida: 
 
“[...] o nosso convento [fundado, em 1222, pela infanta Dona 
Sancha (filha de Dom Sancho I)] hoje, está posto sobre uma eminência 
para a parte do Sul, senhoreando o castelo, que lhe responde do Norte, 
e com estas aparências ajudadas da vizinhança do rio, profundidade 
do vale, correspondência dos montes e outras coisas notáveis, tiveram 
alguns motivo para se persuadirem que Alenquer se assemelhava 
muito à Santa Cidade de Jerusalém e que o Monte Sião no nosso 
convento estava representado”. 
 
Este terá sido, no meu entender, o argumento que mais influiu 
no imaginário dos eruditos seiscentistas para creditarem Alenquer - 
curiosamente vizinha da localidade e santuário de Meca – enquanto 
capital da religião nacional do Paracleto. 
Persistem, efectivamente, inúmeras interrogações sobre as 
circunstâncias da instituição dos Impérios do Divino, quase 
consensualmente atribuída (por uma tradição erudita, sem qualquer 
confirmação documental!) à Rainha Santa Isabel (1269?-1336), 
justamente em Alenquer. 
De facto, foram autores seiscentistas, maioritariamente 
eclesiásticos, os primeiros a reivindicar a invenção dos Impérios do 
Divino para a Rainha Santa, já então beatificada (em 1516, pelo Papa 
Leão X) e canonizada (desde o ano de 1625,apesar de a canonização 
só haver sido formalizada por Bento XIV, no século XVIII, com 
algumas imprecisões) 18: 
 
16 De facto, a cidade portuguesa que replica Jerusalém nos mais ínfimos pormenores é 
Tomar, concebida pelo grão-mestre Gualdim Pais para sede espiritual da nona Província 
da Ordem do Templo. Cf. Manuel J. Gandra, O Projecto Templário e o Evangelho 
Português, Mafra, 2014, cap. VIII, p. 239-277. 
17 História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de São Francisco da Província de 
Portugal, Lisboa, 1656, 1ª parte, cap. 10, p. 67. 
18 Sem embargo de a hagiografia oficial (à semelhança dos testamentos de 1314, 1327 e 
1328) de Santa Isabel ser omissa no que concerne ao Império do Divino, inúmeros 
autores haviam de adoptar o ponto de vista de tais eruditos. Um dos mais eminentes e 
nado em Tomar foi Leitão Gaspar da Fonseca. Cf. Padre José Pereira Baião, Portugal 
19 
 
Brás de Araújo de Valadares 19: 
 
“[...] E tanto que a dita obra [igreja do Espírito Santo] foi 
acabada e posta em sua perfeição logo os Senhores Rei e Rainha antes 
que se partissem da dita vila, estando um dia ouvindo missa na dita 
casa, a missa [...] acabada os ditos Senhores Rei e Rainha [sic] 
passaram cavaleiros escudeiros contra boa gente [sic] que aí estava 
moradores da dita vila e termo e lhe recomendaram a dita casa, os 
quais lhe disseram que lho tinham em grande mente, dizendo que pois 
a Deus provera a dita casa ali para fazer que por tal milagre [da 
revelação dos alicerces] como a todos era notório e manifesto que eles 
lhe prometiam pelo que pertencia a Deus principalmente e por eles 
Senhores tão afincadamente recomendaram, por ser tanto serviço de 
Deus, Honra da dita vila, que eles a guardariam e proveriam em tal 
forma que por fim do mundo ela fosse sempre em sua perfeição 
melhorada e não piorada e os ditos Rei e Rainha disseram que lho 
tinham em serviço e logo os ditos cavaleiros, escudeiros e homens 
bons e a maior parte dos moradores da dita vila e termo, que aí eram 
presentes, se ajustaram e ordenaram entre si uma confraria em louvor 
e honra do dito Senhor Santo Espírito, dotando cada um do que Deus 
dera, aquilo que se atreveram para se dizerem em missas em a dita 
casa pelo seu dia e em todos os dias do ano e em outros alguns dias 
pela semana. 
E se disse um honrado voto pelo seu dia fazendo de tudo um 
compromisso da regra e maneira que se havia de fazer e manter para 
sempre a dita feita, o qual compromisso feito e examinado o fizeram 
logo a saber [a]os ditos Rei e Rainha de que os ditos senhores foram 
muito ledos e lhe deram para ele grande ajuda, para comprarem [...] e 
outras coisas muitas para a dita festa necessárias, e que se começasse 
logo [1321!] a fazer, ordenando que para a dita festa ser mais 
perfeitamente obrada, que à sexta-feira se corressem touros que se 
 
Glorioso, e Ilustrado com a vida e virtudes das Bemaventuradas Rainhas Santas 
Sancha, Teresa, Mafalda, Isabel e Joana, Lisboa Ocidental, 1727, § 30-33. 
19 Escrivão em Alenquer. Legou-nos um Livro de Registos de Privilégios (1654 a 1672), 
contendo, além de outros documentos: “Principio e fundamento da Casa do Spiritto 
Sancto na Villa de Alamquer, dado pela Raynha Sancta Izabel molher del Rey Dom 
Deniz no anno de 1321, a qual falesseu no anno de 1333 ha 4 dias de Julho em Estremos 
dia quarta frª como consta tudo de hua certidão e papeis antiguos autênticos que estão 
no Cartório da dicta Sancta Caza e Na da Camarª desta ditta Vila […]”, e ainda dois 
milagres que aconteceram “na Casa do Espírito Santo”, etc. 
20 
 
chamasse Sexta-feira das carnes em cada um ano, com que se 
desenfadassem [...] e que as matassem [...] e que em tal guisa os 
esfolassem e esportelassem que com aquela noite e Sábado [...] fosse 
aquela carne toda cozida, para se pôr em um paiol, a par do outro paiol 
do pão que é ordenado para o dito voto [i. e., bodo], o qual pão e carne 
se há-de comer ao Sábado véspera por clérigos e frades, quando [...] 
com a procissão da Candeia, que é ordenado vir ao Sábado a Santa 
Maria de Triana a qual havia de ser grande que estivesse um homem 
digno um cabo dela no mosteiro de São Francisco da dita vila e viesse 
ao longo pelas ruas da dita vila e saísse pela Porta do Carvalho e viesse 
o outro cabo dentro [d]a igreja de Santa Maria de Triana ao altar. 
Onde estivesse acesa assim em São Francisco como em Santa Maria 
onde ao altar mor é ordenado estar um homem nu com seus pasmos 
[i. e., panos] e com sua candeia nos braços em maneira de bandeira 
assim como vem na procissão e por no dito altar donde há-de haver 
continuadamente todo ano as missas e todas as horas, a qual candeia 
acabada de apanhar fosse na jornada acesa [...]. Santo Espírito com 
todas as cruzes da igreja e mosteiro a benzer todo o dito pão e carne, 
para se dar ao dia seguinte no dito voto [i. e, bodo] e marcaram as 
vésperas do dito Senhor Santo Espírito como entram outras coisas mui 
boas para a dita festa, como lhe melhor parecer as quais são postas e 
escritas no dito compromisso e acordaram e ordenaram que quando aí 
não houvesse imperadores prometidos por sua devoção, que então 
elegessem outros da dita vila e termo, dos mais abastados e 
pertencentes que os fossem e isto seja feito com conselho dos mais dos 
ditos confrades por a dita festa se não desfazer, e cumprimento de seu 
efeito e os outros irmãos os ajudarão e contribuirão cada um aquilo 
que honestamente puderem segundo sua faculdade” 20. 
 
Dom Rodrigo da Cunha (1577-1643), em 1642 21: 
 
20 Cf. Principio e fundamento […]. 
21 Eminente prelado e um dos mais estrénuos defensores das prerrogativas e da 
autonomia portuguesas durante a monarquia dual. Foi aluno dos jesuítas em Lisboa, 
tornando-se, em 1600, pensionista no real colégio de S. Paulo de Coimbra. Doutorou-se 
em Direito canónico, tendo ocupado as mitras de Coimbra (1616), Porto (1619), Braga 
(1627) e Lisboa (1635). De 1635 até 1639, havia de permanecer em Madrid, exercendo as 
funções de Conselheiro de Estado, após o que regressou a Portugal, sendo recebido 
apoteoticamente em Lisboa e concorrendo decisivamente para a Restauração de 1640. 
No dia 1 de Dezembro, querendo demonstrar a inequívoca adesão à causa, saiu em 
procissão, de cruz alçada, percorrendo as principais artérias de Lisboa, em consequência 
21 
 
“Ela [Dona Isabel] e el Rei Dom Dinis, seu marido, foram os 
autores da festa que se chama do Espírito Santo, cuja solenidade foi 
tão célebre por todo o reino, e mais nos maiores e mais populosos 
lugares dele, como ouvimos contar aos antigos. A que hoje dura em 
Alenquer tinha a mesma celebridade pelo reino, isto é eleger-se e 
constituir-se Imperador, que na primeira oitava do Espírito Santo, 
com majestade real, assistisse aos ofícios divinos, andasse na 
procissão, condecorasse com sua presença as mesas, honrasse as 
festas e invenções com que o povo procurava alegrar-se. Aqui em 
Alenquer se celebra ainda esta acção que chamam do Império, com 
grande aparato, levam três coroas e uma delas que foi da Rainha Santa 
Isabel. Servem pessoas nobres e de qualidade ao Imperador que está 
em trono debaixo de docel, onde se assenta depois de haver oferecido 
junto do altar uma daquelas coroas na mão do sacerdote que diz a 
missa. E mandaram estes senhores Reis que assistindo o Príncipe 
herdeiro do Reino nesta ocasião em Alenquer, ele fosse o que levasse a 
coroa da igreja do Espírito Santo à do mosteiro de São Francisco, onde 
se dá princípio à festa cuja parte principal é que no sábado, véspera de 
Pentecostes se cerca com uma coroa, ou rolo de cera benta, tudo o que 
há na vila, começando do mosteiro de São Francisco, até à igreja do 
Espírito Santo, assistindo toda ela em procissão, no que viram já por 
vezes milagrosos efeitos, porque fazendoesta cerimónia em tempo de 
grande peste, foi Deus servido acabar-se o mal, e tornasse a 
serenidade” 22. 
 
Frei Manuel da Esperança (1586?-1670), em 1656 23: 
 
“Do Império na Festa do Espírito Santo [...]: A muitas coisas 
notáveis, em que teve boa parte a Rainha Santa Isabel, fez lugar a 
velhice desta casa. Uma é a solenidade do Império, da qual ela e seu 
 
do que seria nomeado governador do reino, enquanto D. João IV não chegou de Vila 
Viçosa. Testemunhou o auto de juramento do monarca, celebrado a 15 de Dezembro, 
tendo sido o primeiro a ratificar o juramento dos Três Estados ao soberano e a seu filho, 
D. Teodósio (28 de Janeiro de 1641). 
22 História Eclesiástica da igreja de Lisboa, Lisboa, 1642, parte 2, cap. 27, p. 122r-122v. 
23 Religioso e cronista franciscano. Desempenhou diversos cargos na sua Ordem, a 
saber: guardião no Colégio de S. Boaventura (Coimbra) e dos conventos de S. Francisco 
do Porto e de Santarém, secretário do comissário geral Frei Martinho do Rosário, 
vigário paroquial e três vezes ministro provincial. Deve-se-lhe a edificação do convento 
seráfico de Tomar, do adro do convento do Porto e o claustro do de Telheiras. 
22 
 
marido, para celebrar a festa do Espírito Santo foram os inventores 
primeiros. E porque a seu exemplo o mesmo império se usa em muitas 
partes [...]” 24. 
 
Frei Francisco Brandão (1601-1680), em 1672 25: 
 
“Por ser Senhora de Sintra, e destes Paços a Rainha Santa 
Isabel, havia de admitir dentro deles o celebrar-se a Festa do Espírito 
Santo, que na vila de Alenquer, que também era sua instituiu com 
boda, e cerimónia de Imperador, como se usa […]” 26. 
 
D. Fernando Correia de Lacerda (1628-1685), em 1680 27: 
 
“Depois de haver edificado em Alenquer uma igreja ao Espírito 
Santo no primeiro ano em que se fez a solenidade da Coroação do 
Imperador, e com todo o luzimento, não só chamou a nobreza para 
tomar parte neste Império que ela tão piedosamente acabava de erigir, 
mas também convocou pessoas de diversas hierarquias. Tanto que o 
ornato da igreja esteve posto em sua perfeição, se disse nela, com 
assistência dos reis e da corte, uma missa oficiada com toda a 
solenidade, e acabado o sacrossanto sacrifício, chamando os reis a 
nobreza mais qualificada e parte da boa gente da vila e seus contornos, 
que tinha assistido naquele religioso acto, lhes encomendou aquela 
casa, o que eles tiveram por grande honra; e agradecidos às reais 
recomendações, porque os reis, quando põem encargos com rogos, 
faziam mercês com os rogos, lhes responderam que eles prometiam, 
que por serviço de Deus e de Sua Alteza tratariam da conservação 
daquela casa. Estimaram os reis esta piedosa promessa da nobreza e 
do povo em que o povo igualou a generosidade da nobreza. 
Ajuntaram-se as pessoas a quem os reis tinham encomendado a igreja 
 
24 História Seráfica, Lisboa, 1656, liv. 1, p. 132-133. 
25 Monge cisterciense, doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra e geral da sua 
congregação, qualificador do Santo Ofício, examinador das Três Ordens Militares, 
cronista-mor do Reino, etc. 
26 Sexta Parte da Monarquia Lusitana, Lisboa, 1672, p. 185. 
27 Prelado, graduado em Cânones na Universidade de Coimbra. Inquisidor em Évora e 
Lisboa, deputado do Conselho Geral do Santo Ofício e comissário da Bula de Cruzada. 
Bispo de Porto, nomeado por D. Pedro II e confirmado por Clemente X (17.7.1673). No 
ano de 1683, sentindo-se doente, seria absolvido das obrigações pastorais, retirando-se 
para o convento da Serra do Pilar e, posteriormente, para Lisboa, onde faleceu. 
23 
 
e erigiram uma confraria em louvor do Espírito Santo a que fizeram 
liberais devoções” 28. 
 
“Dia da Ressurreição de Cristo Senhor Nosso vai acompanhado 
de toda a Nobreza e Povo da vila, à Igreja de São Francisco dela, o 
homem que há-de fazer a figura de Imperador com dois que fazem a 
de Reis, e três pajens que lhe levam diante outras tantas coroas, uma 
das quais deixou a Rainha Santa para aquele acto. E tanto que chegam 
ao altar, se oferecem nele as coroas a Deus, e um religioso, vestido nas 
vestes sacerdotais, as põe na cabeça do Imperador e dos Reis, e nesta 
forma vão com majestoso séquito acompanhar a alegre procissão, que 
naquela manhã florida se faz a Cristo Senhor Nosso ressuscitado, 
naquele religioso convento. Na mesma tarde sai da miraculosa igreja 
do Espírito Santo o Imperador, diante do qual precedem festins, e 
trombetas, e dois pajens, um com a Coroa da Majestade, e outro com o 
estoque da Justiça, e vai ao mesmo convento onde torna a ser coroado, 
e depois de se distribuírem ramalhetes pelas pessoas Nobres do 
acompanhamento, dançavam eles com algumas donzelas, que a título 
de Damas, acompanham ao Imperador, às quais se dava parte do dote 
para seu casamento. Acabada esta função, torna o Imperador, com a 
mesma Majestade, à igreja do Espírito Santo, e oferecendo a Coroa no 
Altar, a torna a receber das mãos de um Sacerdote e se assenta em um 
trono debaixo de um dossel, onde os Nobres o festejam com tanta 
reverência, como se não fosse fingida a Majestade, e nesta forma 
continua o Império todos os domingos seguintes, até o dia de Espírito 
Santo, em cuja véspera sai o Imperador do mesmo convento, com toda 
a pompa, e com ele um homem, que leva duas madeixas de cera benta 
na mão, uma ponta das quais fica ardendo no altar da mesma igreja, e 
o mais saindo a procissão dela passando pela Porta do Carvalho, se vai 
estendendo pelas ruas até chegar ao altar da igreja de Nossa Senhora 
de Triana, onde se enrola, e se põe nela, para arder por todo o discurso 
do ano. Acabado o acto, vai a procissão com todas as Cruzes das 
igrejas, e dos Conventos à Santa Casa do Espírito Santo, e nela benzem 
os sacerdotes o pão, e a carne, que ao outro dia se há-de comer em um 
bodo; o que tudo se ordenou por instrução da Santa Rainha; e con-
siderando o Império, e a candeia, se é lícito ajuizar as alheias acções, 
 
28 Cf. Historia da Vida, Morte, e Milagres, Canonização, e Trasladação de Santa Isabel 
Sexta Rainha de Portugal (1680), p. 191-193. 
 
24 
 
principalmente estas que são misteriosas, não podemos deixar de 
entender que aquela candeia põe a Santa Rainha todos os anos ao 
Espírito Santo, para que Deus, havendo um só pastor e um só 
rebanho, estabeleça, em cumprimento da sua promessa, na coroa 
portuguesa, o império universal do mundo” 29. 
 
Padre Manuel Fernandes (1614-1693), em 1690 30: 
 
“[...]. E entre outras devoções que naquele tempo se ordenaram, a 
Rainha Santa introduziu um modo que chamam Impérios ou Bodos 
gerais em que nas terras menos populosas se convida ou elege um 
homem que se chama Imperador do Espírito Santo, com mordomos; e 
na festa de Pentecostes instituiu um bodo com abundância de pão, 
bolos, carne e outras coisas comestíveis [...]” 31. 
 
Já as raras fontes documentais conhecidas anteriores a 
seiscentos permitem constatar, sem contradição, que a albergaria 
alenquerence dedicada ao Paracleto remontava ao tempo de D. 
Sancha, filha de D. Sancho I e Senhora de Alenquer (c. 1180-1229), a 
qual instituíra no Paço Real um albergue destinado a enfermos pobres 
e peregrinos. Conhece-se também uma carta, de 18 de Setembro de 
1279, da Rainha D. Beatriz (viúva de D. Afonso III) a tomá-la “em sua 
guarda e defesa” 32. 
Seja como for, D. Isabel de Aragão havia de demonstrar uma 
profunda dedicação àquela instituição, patrocinando, no ano de 1321, 
o primeiro compromisso da confraria que, doravante, havia de tutelá-
la 33, dotando-a generosamente de inúmeros privilégios e promovendo 
 
29 Idem, ibidem, p. 194-196. Neste trecho reivindica para a sua hagiografada a 
instituição das festas do Império, em Alenquer, estabelecendo (pela primeiravez, de 
forma explícita e iniludível) um nexo entre as ditas cerimónias e a tradição nacional do 
Quinto Império. 
30 Professou na Companhia de Jesus no ano de 1631. Professor de Teologia Moral, 
Retórica e Filosofia, foi Reitor dos Colégios do Faial, Santarém e ainda do noviciado de 
Lisboa. Confessor de D. Pedro II, desempenhou também o cargo de deputado da Junta 
dos Três Estados. Autor de Alma Instruída na Doutrina e Vida Cristã, em cujo segundo 
volume (Lisboa, 1690, t. 2, p. 911-916) dedica umas quantas páginas aos festejos do 
Império, mencionando, expressamente (p. 914), a instituição deles pela Rainha Santa 
Isabel 
31 Alma Instruída na Doutrina e Vida Cristã, v. 2, Lisboa, 1690, p. 914. 
32 ANTT: Chancelaria D. Afonso V, liv. 1, fl. III. 
33 Luciano Ribeiro, Alenquer – Subsídios para a sua História, Lisboa, 1936, p. 133. 
25 
 
a reedificação da respectiva igreja, tendo contígua a albergaria, no 
exacto local onde se erguiam as casas do seu Paço. 
Atente-se no teor de um dos mais antigos textos hagiográficos, 
relatando a Lenda da Rainha D. Isabel chamada a Sancta molher 
d’el-Rei Dom Denis a qual fundou a Casa do Spirito Sancto da vila 
d’Alenquer, atribuído a Damião de Góis (1502-1574), historiador, 
humanista e confrade da Confraria do Espírito Santo de Alenquer, 
com a qual mantinha relações muito estreitas, porquanto os 
mordomos e o capelão dela testemunhariam a seu favor no processo 
contra si instaurado pelo Santo Ofício (1571) 34. Nele, Damião de Góis 
é categórico, ao creditar à consorte de D. Dinis apenas e só a fundação 
da igreja e hospital (“Casa e Hospital”) do Espírito Santo: 
 
“[…] e na qual vila esta bem-aventurada Rainha fundou a Casa 
do Espírito Santo, de que as Rainhas deste reino de então a ca foram 
sempre muito devotas (fl. 2r). E porque esta ordem pela obrigação que 
dos tais encargos lhe compete é quase como herança da sua coroa, 
Vossa Alteza [fl. 2v] deve sempre ter especial cuidado do serviço e 
tutela da dita Casa e Hospital porque se o assim não fizer facilmente se 
poderiam pelo tempo perder o bom modo e governo que no tratar das 
coisas dela se deve ter […]. [fl. 7r] No qual tempo a dita Senhora por 
sua devoção e como se diz por revelação divina no lugar onde Deus tal 
milagre por ela fizera fundou esta Casa da invocação do Espírito Santo 
de Alenquer, com logo nela ordenar confrades e bodo pelo modo e 
costume que se até o presente dia tem. Para o qual bodo logo ela e el-
Rei Dom Dinis seu marido deram guado e fizeram doações para o 
entretimento e despesas da dita Casa […]. No fundar desta Casa do 
Espírito Santo, como se acha por memória e antiga escritura se diz que 
vindo a Rainha com sua gente e oficiais para abrir os alicerces que os 
 
34 Cf. Raul Rego, O Processo de Damião de Góis na Inquisição, Lisboa, 1971, p. 184. 
Enquanto seu tio, Bastião de Macedo (cerca de 1570), foi provedor da Confraria do 
Espírito Santo de Alenquer, Damião de Góis ofereceu à igreja da instituição diverso 
património, arrolado na Lembrança de algumas coisas que mandei e dei a igrejas deste 
Reino desde o ano de mil quinhentos e vinte e seis a esta parte (documento autógrafo, 
datado de 16 de Fevereiro de 1572, integrado no processo inquisitorial): órgãos de som; 
duas sobrepelizes de pano de linho; três balandraus de pano vermelho para serviço de 
missa de três homens; uma mesa grande de mármore para se partir a carne dos touros 
que se distribuía no bodo de Domingo de Pentecostes; uns bordos de madeira de fora, 
para fazer bancos para se pôr o pão do dito bodo; uns bordos para se fazer uma charola 
para o órgão da igreja, etc. 
26 
 
achou milagrosamente demarcados do tamanho e grandor que a [fl. 
7v] igreja é e começados a cavar. […]. Item mais se acha que fazendo-
se aa dita obra que passava uma moça com um molho de rosas na mão 
por a par do dito lugar onde a Rainha estava com suas donzelas vendo 
como trabalhavam e que uma das ditas donzelas pediu as rosas À 
moça e as deu à Rainha. A qual Senhora partindo-se da obra deu a 
cada um dos oficiais uma das ditas rosas as quais eles puseram a par 
de seus fatos, e à tarde querendo-se ir para casa tomando cada um a 
rosa que lhe fora dada se lhe converteram em dobras, do que 
espantados o foram logo dizer à Rainha […]” 35. 
 
* * * 
 
A Rainha Santa tem servido de pretexto para a validação de um 
sem número de incongruências e paralaxes 36, porquanto acha-se 
apurado como indubitável que: 
- A corte de Aragão, nomeadamente a de Jaime II, irmão de 
Dona Isabel, não manteve ligações com franciscanos espirituais ou 
fraticelli; 
- D. Isabel não foi a fundadora do convento de Santa Clara, em 
Coimbra; 
- O físico Arnalte, supostamente Arnaldo de Vilanueva (1235-
1311), com o qual a Rainha teria trocado correspondência e com quem 
planeava avistar-se em Santiago de Compostela, não podia ser o 
franciscano milenarista, pois este falecera em 1311, data muito 
anterior à da alegada correspondência. 
 
Até o Milagre das Rosas, porventura a única lenda da Rainha 
Santa que alcançou difusão nacional, não consta da biografia anónima 
 
35 BN: IL. 223, fl. 2r-2v e 7r-7v. Cf. Teresa Andrade e Sousa, Lenda da Rainha D. Isabel: 
códice iluminado da B. N., in Revista da Biblioteca Nacional, s. 2, v. 2 (1), (1987), p. 43 
e 46. 
36 Cf. Padre Jacinto Monteiro, Os Franciscanos e o Culto do Espírito Santo nos Açores: 
a influência da Rainha Santa Isabel e a Visão Portuguesa Tradicional, in União, a. 1 
(n. 9, Angra do Heroísmo, 13 Mar. 1998): Diálogos – Suplemento de Cultura, Arte e 
Ciência; Os Franciscanos e o Culto do Espírito Santo nos Açores: os franciscanos 
espirituais e a Figura da Rainha Santa (idem, n. 10, 30 Abr. 1998); Os Franciscanos e 
o Culto do Espírito Santo nos açores: a suposta influência herética na Corte da Rainha 
Santa Isabel (idem, n. 11, 29 Mai. 1998); Os Franciscanos e o Culto do Espírito Santo 
nos Açores: um resumo para Estudo Crítico da sua génese e implantação (idem, n. 12, 
3 Jun. 1998). 
27 
 
de D. Isabel, redigida no séc. XIV, ocorrendo apenas num retábulo de 
pintura, quatrocentista, do Museu Nacional d’Art de Catalunya 37 e 
muito brevemente, na Crónica da Ordem dos Frades Menores 38 de 
Frei Marcos de Lisboa, naquilo que constitui um dos mais remotos 
registos hagiográficos impressos do episódio. 
O que a maioria daqueles que se referem ao miraculoso evento 
desconhece é que são dois (e não apenas um!) os Milagres das Rosas 
creditados a Santa Isabel: 
 
- o primeiro, mais divulgado, ao qual se reporta a generalidade 
das alusões literárias, artísticas, etc., consistiu na transformação de 
dinheiro em rosas e di-lo a tradição realizado em Coimbra, enquanto a 
Rainha acompanhava as obras que decorriam no convento de Santa 
Clara-a-Velha; 
- o segundo terá ocorrido em Alenquer, durante as obras de 
edificação da igreja do Espírito Santo, sendo descrito como a 
transformação de rosas em moedas de ouro. 
 
D. Fernando Correia de Lacerda narra o episódio que teve 
Alenquer por cenário, nos seguintes termos: 
 
“Detiveram-se os Reis alguns dias na Vila de Leiria, e passaram 
à de Alenquer, e como Deus fala aos seus servos em sonhos, uma noite 
em que o sono não fugia dos olhos da Santa Rainha, sendo que muitas 
vezes o faziam fugir as vigílias, sonhou, que seria obra muito agradável 
ao Senhor fazer naquela Vila uma igreja dedicada ao Espírito Santo, na 
qual se celebrasse o Sacrossanto Sacrifício da Missa, e ainda que o 
tempo a que acordou do sono não era de todo dia claro, como era 
costumada a louvar a Deus, como Estrela Matutina, se vestiu e foi 
ouvir Missa; tanto que a ouviu se foi ao rossio da Vila, que o Rio umas 
vezes inunda, outras prateia, e mandando chamar os juízes daquele 
Povo, lhes ordenou, que mandassem quatro pedreiros, e seis trabalha-
dores, porque queria que se abrissem uns alicerces naquele sítio, tanto 
que os juízes foram fazera diligência, se pôs a Santa Rainha em oração 
no mesmo lugar, porque como aquelas acções eram inspiradas por 
Deus, não reparava em que fossem vistas no mundo, e vindo os 
Oficiais, e trabalhadores, se levantou, e foi para onde determinava 
 
37 MNAC: inv. 64044. 
38 Volume 2, Lisboa, 1562, fl. 197. 
28 
 
abrir os alicerces e chegando ao sítio destinado, os achou abertos, e 
desenhados, vendo a Santa Rainha tão impensado sucesso, não sem 
consideração de que era superior prodígio, perguntou aos juízes, se os 
tinham mandado abrir naquela forma, ou deles tinham alguma 
notícia, e os juízes lhe responderam, que nem eles nem outra pessoa 
alguma havia dado princípio a aquela obra, antes passando por aquele 
sítio no princípio da noite antecedente, não tinha aquela parte 
diferença alguma do outro campo, ouvindo a Santa Rainha este 
desengano, reconheceu o favor, e pondo-se outra vez em oração, deu, 
com muitas lágrimas de ternura, graças a Deus da maravilha... Ainda 
que parecia, que não necessitava de mais firmeza a fábrica, a que Deus 
tinha feito a milagrosa planta, como os alicerces da igreja estavam só 
delineados à flor da terra, mandou a Santa Rainha, que na forma da 
delineação, se pusessem de maior altura, e depois de assistir na obra 
por algum espaço do dia, despedindo-se dos oficiais, lhes disse, que 
trabalhassem com cuidado, porque lhes havia de pagar o jornal com 
vantagens, chegando ao Paço deu conta a El-Rei do sucesso, de que ele 
recebeu grande gosto [...]. 
Tanto que a Santa Rainha acabou de jantar como aquela obra 
era santa, veio assistir a ela a tarde toda, e passando por aquele sítio, 
ao declinar do dia, uma moça com um molho de rosas nas mãos, disse 
a Santa Rainha a uma Dama sua, que lhas pedisse da sua parte, 
obedeceu a Dama ao preceito, a moça ao rogo, e passando as rosas da 
segunda mão às da Santa Rainha, ficaram elas da melhor sorte, e com 
o melhor preço [...]. 
Chegado o tempo da Santa Rainha se voltar para o Paço, deu a 
cada um dos oficiais, e trabalhadores sua rosa, dizendo-lhes que com 
elas lhes pagava o dia, e rindo-se eles, cuidando que era graça, as 
aceitaram com grande cortesia, admirando tanta urbanidade em 
majestade tão venerada, e para continuar o trabalho, guardou cada um 
a sua em lugar distinto, posto o Sol, depois de se ausentar a Santa 
Rainha, tomando cada qual os vestidos, para se recolherem a suas 
casas, e querendo levar as flores, para testemunhas de que a Santa 
Rainha lhes fizera aquelas mercês, quando as buscaram, acharam 
dobras, e duvidando que fossem verdadeiras tão lucrosas 
transformações; para se tirarem de dúvidas determinaram ir buscar a 
Santa Rainha, a qual acharam ainda pela rua, e lhe disseram, que sua 
Alteza lhes mandara pôr dobras em lugar de rosas, que eles não 
tinham merecido tão liberal paga, e estavam certos da satisfação; 
29 
 
ouvindo a Santa Rainha o sucesso daquela mudança, conheceu que era 
prodígio do Céu, porque com outros semelhantes, tinha a divina 
grandeza, honrado a sua humildade, e pondo os olhos na terra e 
coração no Céu, deu muitas graças ao Senhor [...]. 
Quando os oficiais deram conta à Santa Rainha, do sucesso que 
os tinha em dúvida, lhe não deu ela alguma resposta, e chamando um 
deles à parte, lhe perguntou outra vez pelo acontecimento, e ele lhe 
tornou a referir a verdade, e tanto que se certificou do milagre, os 
chamou a todos, e lhes impôs o segredo, dizendo-lhes que se 
aproveitassem do dinheiro [...]” 39. 
 
 
 
 
Santa Isabel e o Milagre das Rosas em Alenquer (c. 1670-1680), óleo sobre tela 
(80 x 120 mm) do pintor Bento Coelho (matriz de Salvaterra de Magos) 
 
39 Historia da Vida, Morte, e Milagres, Canonisação, e fundação de Sancta Isabel Sexta 
Rainha de Portugal, 1680, p. 185-189. Ver também versão consignada no Livro de 
Registros de Brás Araújo de Valadares. Numa composição de Homenagem da Academia 
dos Singulares (1670), o poeta Serrão de Castro havia de satirizar este episódio 
iconografado por Bento Coelho: “Assim que sua virtude / a pedra é de que usa / e com 
ela fez de rosas / dinheiro, sem liga alguma. / Também a vós [Bento Coelho] esta pedra 
/ parece que não se oculta / pois fazeis de terra cinzas / ouro fino e prata pura”. Cf. Luís 
de Moura Sobral (coord.), Bento Coelho e a cultura do seu tempo, Lisboa, 1998, p. 286-
288. 
30 
 
 
 
Milagre das Rosas de Alenquer (1692) António Gomes e Domingos Nunes 
Painel do terceiro retábulo lateral do lado da Epístola da igreja de Santa Clara-a-Nova 
31 
 
 
 
Milagre das Rosas de Alenquer (óleo sobre tela) 
Painel central do retábulo do coro alto da igreja de Santa Clara-a-Nova 
32 
 
Não obstante o segundo Milagre das Rosas 40 ser aquele que se 
acha directamente relacionado com o culto o Império do Espírito 
Santo (até porque outrora o Pentecostes era denominado Páscoa das 
Rosas…!), havia de ser suplantado pela primeira versão, actualmente 
dramatizada em inúmeras festividades do Império na América do 
Norte e, por contágio, nas de algumas das ilhas açorianas. 
 
 
* * * 
 
Álvaro Rodrigues de Azevedo adianta, baseado numa escritura 
que existiu na Câmara de Alenquer, o ano de 1272, enquanto Jaime 
Cortesão, adoptando sugestão de Frei Manuel da Esperança e tendo à 
vista documentos do Arquivo desse município, afirma ter sido o 
convento de São Francisco o palco da primeira realização de um 
Império do Divino, em 1323 41. 
Alguns autores têm optado, em alternativa a Alenquer, pela 
Sala dos Infantes do Paço da Vila de Sintra sem, contudo, 
especificarem a ocasião do evento 42. 
Porém, já no Compromisso da Confraria do Espírito Santo de 
Benavente 43, o mais antigo que se conhece (coevo da fundação da 
igreja do Espírito Santo dessa localidade que presumivelmente se 
verificou no primeiro quartel do séc. XIII), se alude à festividade do 
Império, o que induz a supor a sua concretização aí anteriormente a 
1272 44: 
 
40 Iconografado num óleo, anterior a 1670, desaparecido, da Capela Real do Paço da 
Ribeira e num outro, sobre tela, de Bento Coelho pertencente ao acervo da matriz de 
Salvaterra de Magos. Cf. Luís de Moura Sobral, Bento Coelho (1620-1708) e a Cultura 
do seu tempo, Lisboa, 1998, p. 286, n. 34. No coro-alto de Santa Clara-a-Nova (3º 
retábulo lateral do lado da Epístola), acha-se um terceiro óleo figurando o episódio em 
apreço, entalhado por António Gomes e Domingos Nunes. Cf. Nelson Correia, A Talha, 
in Monumentos, n. 18 (Mar. 2003), p. 65-73 e Ana Rita Carvalho, Imagens seiscentistas 
da Rainha Santa Isabel, in Invenire, n. 12 (Jan.-Jun. 2016), p. 44-47. 
41 Os Factores democráticos na formação de Portugal, Lisboa, 1966, p. 195-197; ver 
também Memórias Paroquiais, v. 2, n. 46, p. 320 
42 Cf. Frei Francisco Brandão, Monarquia Lusitana, sexta parte, cap. 42 e Figanière, 
Memórias das Rainhas de Portugal, p. 213. 
43 Houve nesta localidade Irmandade do Espírito Santo em data anterior a 1237, 
conforme documentação editada por Rui de Azevedo, Benavente: Estudo Histórico-
Descritivo, Lisboa, 1926, p. 81-110; 117-120; 279-280. 
44 António Brásio: “Não há documentos de instituição da confraria do Espírito Santo de 
Benavente, nem da feitura de seus estatutos. Se a data de uma verba, segundo a qual, D. 
33 
 
“[…]. Assim que nós sobreditos, desejando de cumprir estas 
coisas instituímos das próprias fazendas em o ano uma vez um convite 
[i. e., um bodo] aos pobres por dia do Espírito Santo, digo, pobres em 
Cristo, o qual Cristo é apascentado em os pobres, aos quais todos os 
confrades cautelosamente terão e a nenhum ofenderão e com 
diligência em vestiduras farpadas e bem aparelhadas, as quais cada 
um dos confrades acerca de si terão para ministrar, tirando os clérigos, 
as quais coisas, procuradas [e juntas], os clérigos com sobrepelizes e 
os leigos com as vestiduras farpadas [roupas rôtas = pobrezaevangélica] 45 devem de discorrer pelas igrejas cantando com 
 
Plagia mandava cantar anualmente uma missa por uma herdade que legara à Confraria 
do Espírito Santo da mesma vila, é do mês de Agosto de 1272, da era de César, que 
corresponde a 1234 da era cristã, sabido é que nesta data já existia em Benavente a dita 
confraria sem que se saiba desde quando”. 
45 A Pobreza Evangélica foi o tema crucial da disputa entre espirituais e conventuais. De 
acordo com S. Boaventura, a pobreza mais não é que a forma de imperfeição exterior 
que a perfeição exclusiva de Cristo assumira; por esse motivo devia a sua relativa 
perfeição à graça de Jesus mais do que ao seu valor intrínseco. Na prática ambos os 
grupos concordavam que a pobreza constituía um antídoto contra a cupidez, fonte de 
todo o mal. Porém, os espirituais consideravam que só o usus pauper, i. e., a prática 
efectiva da pobreza absoluta, constituía sinal de pobreza evangélica, não passando tudo 
o resto de transgressão a esse ideal. A adesão ou recusa do usus pauper tornar-se-ia 
sinónimo de lealdade ou oposição ao exemplo de renúncia ao mundo por parte de S. 
Francisco, reverenciado corno um quase émulo de Cristo e indigitado guia da renovação 
espiritual e fundador da nova era a que tal santificação conduziria. A veemência das 
posições dos fraticelli introduziria um tom apocalíptico no debate, uma vez que 
entendiam a aspiração aos bens e conhecimentos mundanos, como marca do Anticristo. 
Por seu turno, Pedro Juan Olivi, único espiritual que advogara a obediência aos 
superiores da Ordem e da hierarquia da Igreja, encarava a pobreza evangélica corno um 
estado de perfeição interior, directamente proporcional à caridade como fonte de todo o 
bem. Assim, quanto maior a renúncia ao mundo, tanto maior a caridade subjacente a 
essa renúncia. Donde a fortuna dos beguinos ou begardos, até em Portugal. Álvaro Pais 
trataria o problema da pobreza teórica de Cristo e dos franciscanos no De Planctu 
Ecclesiae (v. 2, art. 55-57, fl. 173a), apropriando-se frequentemente, ad litteram e sem 
indicar a fonte, do Tractatus de paupertate Christi et Apostolorum do franciscano Frei 
Bonagracia de Bérgamo (Cf. Archivum Franciscanum Historicum, v. 22, 1929, p. 315-
316 e 322; Alejandro Amaro, Fr. Álvaro Pelagio, su vida, sus obras, su posición 
respecto de la cuéstion de la pobreza teórica, en la Orden Franciscana, bajo Juan 
XXII, 1316-1334, in Archivo lberoamericano, Madrid, 1916). Sobre a Pobreza 
Evangélica, ver Tratado de Confissom (1489 [Lisboa, 1973, p. 98-99 e 231]): "[...]. É 
esse mesmo o estado das religiões. Porque estes nunca são fartos nem contentes por 
muito que hajam, case têm um cálice queriam outro e se têm dois queriam quatro, e se 
quatro oito, e assim subir de um em outro, e das vestimentas isso mesmo, e das cruzes e 
dos outros ornamentos que fossem tantos e tão nobres que em toda a terra não fossem 
achados outros tais. E assim dos hábitos e das câmaras muito bem pintadas e das coisas 
34 
 
pandeiros e compãs [trombetas?] bem soantes [juntamente assim 
como o diz David] louvando ao Senhor, e distribuindo aquelas esmolas 
aquele dia e com muito prazer e alegria, porque em verdade ao tal 
dador ama Deus. Mais instituímos que se algum confrade adoecer, os 
confrades o visitarão por cada sua noite, procurando de o visitar e 
assim os mordomos com suas próprias pessoas de vigiar até serem 
certos de sua saúde. 
E se morrer mui honradamente, com candeias acesas o corpo 
leve à igreja e o guarde até ser sepultado, e quando aquele corpo 
sepultarem todos os confrades com cada um sua candeia acesa na mão 
farão celebrar uma missa pela sua alma e de todos os fiéis de Deus 
cantada e oferecerão cada um seu dinheiro, e depois que haja sido 
sepultado os mordomos tomem as candeias e os dinheiros e deem a 
uma parte [que for do seu agrado] ao capelão que disser a missa e ao 
altar, e a outra ponham em o seu tesouro para comprar as coisas 
necessárias. E aos 30 dias farão cantar [por sua alma] outra missa 
como a de cima com suas candeias [acesas] nas mãos e dinheiros para 
oferecer. E se algum confrade for caminho e adoecer todos os 
confrades mandem por ele, e isto até jornada de um dia, e se morrer o 
mesmo farão. Os confrades sempre terão em seu tesouro incenso, 
pano de linho, candeias, vestidos e todo o necessário [pranchas de 
cortiça para envolver o corpo do defunto] para enterrar os mortos. Se 
algum confrade ao seu confrade algumas injúrias disser ou lhe chamar 
 
necessárias desta vida fossem a tão nobres que não pudessem ser achadas outras tais. E 
isso mesmo os mosteiros mui pintados e mui grandes. Assim como Deus morasse nas 
altezas grandes dos mosteiros ou nas pinturas das paredes e não morasse nas almas 
limpas dos pecados, porque tanto fazemos por estas coisas, ca já não avondaria para 
servir Deus nas igrejas feitas simplesmente; assim como são as outras que são simples; 
assim como mandava São Francisco a seus freires que houvessem casas de pedra e de 
lodo em que morassem. E que não andassem depos las pinturas da parede mais que 
andassem em pos o espírito e tão grandes são os haveres que despendem em fazer estas 
obras dos mosteiros que bem avondariam em comer e beber e em vestir a todos os 
pobres da terra e por azo de fazerem aquestas coisas com grande cobiça nunca lhes 
minguam obras e é azo de pedirem esmolas e ainda que as areias do mar fossem ouro 
não abastaria tanta é a sua cobiça para cumprir estas coisas. [...]. E por isto a cobiça em 
todos os estados do mundo é senhora e rainha esta é aquela pela qual são feitas e 
obradas todas as malícias do mundo. Esta obrou e fez cisma na igreja de Deus e a 
mantém [...]". Cf. E. Randolph Daniel, Spirituality and Poverty: Angelo de Clareno and 
Ubertino da Casale, in Medievalia et Humanística, nova série, n. 4 (1973), p. 89-93; M. 
D. Lambert, Franciscan Poverty, the Doctrine of the Absolute Poverty of Christ and the 
Apostles in the Franciscan Order (1200-1323), Londres, 1961. 
 
35 
 
tredo [imbecil, sodomita ou esterco] ou alguma coisa falsa disser, este 
entre no capítulo e seja açoitado com três açoites em camisa, e então 
jure sobre esta carta [aliás: sobre esta cruz e carta] que por ira disse 
aquilo e não por feito que lhe vise, e pague meia libra de cera para a 
confraria. E se o ferir com mão cerrada ou aberta entre no capítulo e 
seja açoitado com seis açoites e dê à confraria uma libra de cera. E se 
algum confrade a outro confrade ferir com espada, lança, cutelo seja 
deitado da confraternidade. Se algum confrade sem sua culpa em 
alguma pobreza vier ou em algum cativeiro cair ou todas as coisas lhe 
arderem, todos os confrades do débito de caridade seus [aliás: seis] 
dinheiros lhe contribuam. Se alguma viúva ou pobre [aliás: viúva 
pobre] entre nós estiver ao qual lhe haja caído sua casa ou que a sua 
vinha não possa corrigir por pobreza todos os confrades trabalhem 
nela e a sua casa lhe ergam. E nenhum confrade ao outro confrade 
presuma trazer em Juízo nem em outro lugar ainda que seja contra 
parente ou estranho, porque quanto aí perder tudo lhe há-de pagar e 
também pagará meia libra de cera à confraria. Se algum dos nossos 
confrades com algum homem razões houver ou contenda que não seja 
dos da confraria, todos os confrades sejam por parte do nosso 
confrade. E se algum confrade com outro confrade algumas razões ou 
contenda tiver ou houver, venha diante dos nossos juízes e eles os 
concertem. Se algum confrade recusar ao juízo dos nossos juízes e o 
não quiser receber seja deitado da confraria [...]. 
Assim que todos os irmãos, assim como é escrito acima, 
vestidos devemos honradamente levar os pobres defuntos à[s] 
igreja[s], assim como qualquer confrade nosso, e estar com candeias 
acesas atéque seja sepultado e pela alma dele oferecer cada um seu 
dinheiro dos quais aos nossos mordomos queiram que sejam aquelas 
coisas que se aí despenderem restauradas, incenso, panos e outras 
coisas [aliás: e pela alma dele [defunto pobre] cada um entregar aos 
nossos mordomos seus dinheiros, com os quais se possam repor o 
incenso, panos e outras coisas que aí se despenderem]. Determinamos 
mais que em aqueles tempos em que soem fazer prantos sobre os 
mortos, a saber, quando o corpo da casa é levado à igreja e depois que 
é sepultado os confrades cantem e saltem [aliás: salmodiem?] porque 
por isto o pranto das mulheres seja minguado e também o pranto dos 
homens” 46. 
 
46 Tradução em linguagem, realizada cerca de 1544, do compromisso original (decerto 
anterior a 1272), em latim. Cf. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Benavente: estudo 
36 
 
Em 1623, ainda era organizada nos seguintes moldes a 
festividade do Império, promovida pela confraria do Espírito Santo de 
Benavente: 
 
“A festa do Espírito Santo que é o fundamento desta Santa Casa 
[da Misericórdia] se costumou sempre fazer e obrar com muita 
pontualidade, e acharam que sempre se usou na maneira seguinte: que 
se ordenassem umas charamelas ou trombetas as quais cantariam as 
vésperas e aos touros que comumente sempre se costumaram haver e 
ao dia do Espírito Santo a missa e no mesmo dia das duas horas da 
tarde sairá o provedor e capelão e os Irmãos do ano com a folia e 
charamelas; e o irmão que for mordomo da tal festa levará o guião do 
Espírito Santo e o companheiro a coroa em um prato de prata; e assim 
andarão por a vila por as casas provocando deem esmolas à casa de 
touros e do mais como sempre foi costume, e se mata um boi que se dá 
aos pobres e aos ministros da casa. 
Ao outro dia primeira oitava se ordenarão doze moças bem 
trajadas e vestidas, as quais levarão em seus tabuleiros as esmolas de 
trigo que são dez alqueires com cada uma sua vela na mão; e assim 
duas mulheres para levarem a oferta de vinho que são dois almudes; e 
com cada uma sua vela; e assim dois homens que levam dois carneiros 
com suas velas também, que é a oferta que achamos que sempre se 
deu aos padres da Igreja por a missa que naquele dia se diz na Igreja 
matriz por a alma de Pero Urzela e de Sancha Fernandes sua mulher 47 
e de Maria Anes […]. 
À primeira oitava pela manhã o provedor com os Irmãos, 
levando a folia e as charamelas, irão por todas as casas aonde 
estiverem as moças apartadas e as levarão e ajuntarão, e ao sair de 
cada uma das ditas moças de casa se lhe tocarão as charamelas e assim 
se ajuntarão e levarão até à casa do mordomo; da qual tornarão as 
ditas moças com os tabuleiros na cabeça com o trigo da esmola; e as 
mulheres com o vinho; e os homens com os dois carneiros. Irão 
caminhando até à Misericórdia com uma cruz, indo diante a folia e as 
 
histórico-descritivo (obra póstuma continuada e editada por Rui de Azevedo), Lisboa, 
1926 p. 81-83; Rui Pinto de Azevedo, O Compromisso da Confraria do Espírito Santo 
de Benavente, in Lusitânia Sacra, v. 6 (1963). 
47 Evidente lapso, porquanto, consoante verba do Compromisso, a mulher de Pero 
Urzela não foi Sancha Fernandes, mas Maria Pires. Aquela foi a doadora dos 
ornamentos. 
37 
 
charamela tangendo com muito prazer; e os Irmãos do ano irão de 
uma e outra parte afastando a gente. 
Da casa da Misericórdia aonde entrarão com esta oferta dando 
uma volta ao derredor da casa e se tornarão a sair com a cruz da casa e 
da Igreja em procissão com grande prazer e alegria, caminhando para 
a Igreja matriz, aonde se há-de dizer e sempre costumou dizer a missa 
a qual será de canto de órgão e solene; e a oferta se oferecerá o dito 
trigo, indo cada moça com o seu tabuleiro à cabeça e na mão esquerda 
a sua vela acesa, e assim irá ao sacerdote e beijando se volverá para a 
sacristia, e nesta mesma ordem irão as do vinho e os dos carneiros. 
Acabada a missa por a qual se dá de esmolas aos padres, além 
da oferta de trigo, vinho e carneiros, trezentos reis se irão os três 
padres revestidos assim como estiverem à missa com as ditas cruzes e 
dez irmãos com suas tochas, assim como estiverem à missa e irão ao 
adro desta vila e dirão um responso ao pé da torre aonde está a campã 
e logo dirão outro ao canto da Igreja da parte leste; e logo dirão outro 
que é o último à porta da Igreja aonde está outra campã; e acabados se 
tangerão as charamelas e os foliões com muito prazer e alegria porque 
assim achamos ser costume antigo, e por tradição se dizer sempre que 
a instituidora desta festa, Maria Anes, era grande bailadeira e que 
assim mandou que tal dia se bailasse sobre sua cova” 48. 
 
O mesmo ritual, ou similar, poderá ter ocorrido em outros 
pontos do território nacional, onde consabidamente existiram 
confrarias e hospitais sob a tutela do Divino Paráclito, anteriores aos 
de Alenquer, promovidos ou inspirados por franciscanos de tendência 
espiritual. Os mesmos que secundando o proselitismo de Santa Isabel 
(que só pisou solo nacional no ano de 1288!) lograriam levá-la a 
patrocinar e, porventura, institucionalizar em Alenquer, na segunda 
década do séc. XIV, tais festejos com um aparato nunca antes visto, o 
 
48 Cf. Lembranças dos costumes desta Sancta Caza da Misericórdia, n. 13ºa 17º, 
tomadas em Mesa de 11 de Junho de 1623 (Livro de Registo das Provisões e Sentenças 
de Sua Majestade, etc., 1622-1779, fl. 48-51),no tempo do provedor Belchior Leitão 
Correia. No tombo da matriz (fl. 119v-122), sob o título Capela de Maria Anes, da 
maneira que se há-de fazer a festa, acha-se uma cópia da descrição da festividade do 
Império, feita em 1708 por Frei António Antunes Machado, beneficiado na matriz e 
então escrivão da Misericórdia. Foi tal a popularidade de Maria Anes que o Auto do 
Império de Benavente ficou conhecido pela “festa de Maria Anes”, designação que ainda 
conservava em 1731. Cf. Livro de Registo das Provisões…, fl. 72-73. 
38 
 
que terá contribuído para radicar a tradição segundo a qual sob a sua 
égide e a de Dom Dinis se haviam originado. 
Não será excessivo recordar que também Mário Martins põe 
“sérias dúvidas” à invenção “da solenidade do Império”, pela Rainha 
Santa e por Dom Dinis 49, opinião igualmente partilhada pelo 
investigador gaulês Daniel-Francis Laurentiaux 50. 
Em suma, de duas coisas distintas muitos exegetas têm feito 
uma insustentável: sendo indiscutível que D. Isabel protegeu e dotou 
generosamente a Irmandade do Espírito Santo de Alenquer, carece já 
de qualquer fundamento documental coevo plausível (porquanto a 
ideia é posterior à canonização da rainha, em 1625!), a sua creditação 
enquanto introdutora da devoção do Império em Portugal! 
De tão concitado por supostas autoridades na matéria 
(avalizadas em fontes, cuja letra atraiçoaram), passou a condicionar, 
hodiernamente, a forma como umas quantas comunidades, 
maioritariamente da diáspora portuguesa nos Estados Unidos da 
América do Norte, bem como algumas insulares açorianas, 
contaminadas por aquelas, ritualizam os festejos do Divino. 
 
 
 
 
 
 
 
 
49 Teatro Sagrado na Idade Média, in Brotéria, v. 50, n. 2 (Fev. 1950), p. 148. 
50 Também Álvaro Rodrigues de Azevedo – Rui de Azevedo, após constatarem a 
omissão, nos três testamentos da Rainha Santa (19.4.1314; 12.3.1328; 5.7.1336), de 
quaisquer referências, quer à igreja do Espírito Santo, quer ao Império de Alenquer, 
não hesitariam em afirmar que “a rainha Isabel foi estranha a isso tudo”. Cf. 
Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Lisboa, 1926, p. 280. 
39 
 
 
 
II 
 
 
“E a cidade é fundada em quadro, e tão comprida como larga: 
e mediu ele a Cidade com a cana de ouro [...]. 
E o seu comprimento e asua altura e a sua largura são iguais”. 
 
APOCALIPSE, XXI, 16 
 
 
A principal cerimónia da Função, Folia, ou Império, consistia, 
salvo ligeiras variantes regionais, na coroação com três coroas, uma 
imperial e duas reais, do Menino Imperador assessorado por dois Reis 
– por vezes figurados por um homem maduro e por outro idoso -, na 
razão das Idades do Espírito Santo, do Filho e do Pai, 
respectivamente. 
O Menino, símbolo da humanidade espiritualmente renovada e 
religada às verdades fundamentais da pobreza evangélica do amor 
fraterno, empunhava o ceptro, com que tocando na testa dos fiéis se 
significava a bênção do Divino. 
Após ter recebido as homenagens do Povo e das autoridades 
civis e eclesiásticas procedia à libertação de um, ou de vários presos, 
concluindo os festejos com um vodo, ou bodo 51, servido a todos, 
independentemente da sua condição social e credo, e constituído por 
um repasto, regra geral, confeccionado com a carne de bois 
previamente corridos, pão, vinho e arroz-doce 52. 
Num dado momento, ainda nebuloso, o vocábulo Império ter-
se-á tornado sinónimo de Teatro do Divino, expressão que havia de 
ser adoptada para designar o palco onde, anualmente, se encena o 
Auto do Império, como prelúdio da Nova Ordem Mundial, cujo 
advento na Terra se antevê como prefiguração de uma hierofania de 
âmbito cósmico. 
 
51 Corruptela do latim voto, compromisso de partilha de um dom, por natureza, gratuito. 
Por amplificação semântica, ou sinédoque, o vodo foi transformado no bodo,evocativo 
do acto de comer, apesar de não ser o feminino de boda (do hebraico abodah), repasto 
oferecido pelos noivos aos convidados para o seu casamento. 
52 Cf. Manuel J. Gandra, Sabores, Cheiros e Comeres do Divino (no prelo). 
40 
 
 
 
 
 
 
Império do Penedo (Sintra), O Imperador distribuindo alimento 
(Açores, 1907), Folia da Fajãzinha (Flores, Açores) 
41 
 
 
 
Libertação do preso no Império da Baía (séc. XIX) 
 
 
No Teatro do Divino tomava assento, no domingo de 
Pentecostes, o Imperador, com a respectiva corte, logo após a 
cerimónia da coroação. Nele era armado um altar, decorado com 
colchas de tear, onde era depositada a coroa Imperial, destinando-se, 
igualmente, à recepção das inúmeras oferendas dos devotos. Até ao 
anoitecer, o povo permanecia no terreiro adjacente, festejando o 
Divino, mediante a recriação de elaborados enredos sacro-profanos 
por intermédio dos quais se divertia, divulgando, concomitantemente, 
a mensagem do Evangelho Eterno, nem sempre tolerada quer pelo 
trono, quer pelo altar, conforme denotam as sucessivas invectivas e 
proibições de que foi alvo a devoção 53 que, disse-o Jaime Cortesão, 
explica boa parte da História de Portugal. 
 
 
53 Ver Manuel J. Gandra, Colectânea das principais censuras e leis contra os Impérios 
do Divino Espírito Santo, in Newsletter do Centro Ernesto Soares de Iconografia e 
Simbólica, n. 16 (6 a 8 Jun. 2003). 
42 
 
Faria e Sousa corrobora-o, pelo menos, no que concerne à 
expansão marítima, quando admite: 
 
“[…] las [naves] llevo Dios, a quien ellos obedecen, i no a otro poder, o 
ingenio alguno, i que no ay duda que soplo en aquellas velas el viento 
del Espirito Santo, como lo pondera nuestro grande Juan de Barros en 
el capitulo segundo del libro quarto de la Década primera. I quien 
duda, que esse entendio nuestro gran Poeta quando introduxo […] a 
Venus por su protectora, siendo ella una Diosa que conforme a las 
misteriosas fabulas es assistida, i aun engendrada de palomas […]” 54. 
 
Não obstante me sejam familiares inúmeros registos 
minuciosos do Auto do Império no território continental 55, prefiro, na 
presente circunstância, evocar o testemunho de um insular, o padre 
Joaquim Chaves Cabral, acerca da função do Divino na ilha açoriana 
de Santa Maria e do papel do Teatro no respectivo contexto: 
 
“Durante o trajecto até ao Teatro a folia à frente, a uma certa 
distância, canta a sua cantilena, o clero e os músicos cantam o Te-
Deum e a filarmónica o Hino do Espírito Santo. Noutros tempos, 
quando os costumes o toleravam, um grupo especial de cantadores 
cantava a alvorada dirigida por um trovador com acompanhamento de 
violas e rabeca. Era um conjunto de vozes e sons característicos. 
Chegado o cortejo ao Teatro, sobe o menino acompanhado do 
Trinchante, e, voltado aquele para o público, de coroa na cabeça, é 
entoado pelos cantores o Te-ergo e levantado pelos foliões um viva ao 
Espírito Santo, acompanhado pelo tambor e que é entusiasticamente 
correspondido pelo povo. A coroa é posta sobre a mesa e o pároco 
acompanhado do seu ajudante sobe para benzer o provimento da mesa 
[grande pão, chamado pão da mesa, de um alqueire, ou mais, de uma 
rosca de três quartos, de uma bandeja de pequeníssimos pães, 
chamados brindeiros bentos e de um frasco de vinho]. 
Quase sempre o primeiro provimento da mesa é conduzido ao 
Teatro pelo Imperador e pessoas de sua família, outras vezes por 
pessoas estranhas que os oferecem em cumprimento de promessas. A 
massa deste pão é mal temperada, no geral, e só se aproveita bem em 
torra. 
 
54 Cf. Comentário a Os Lusíadas, v. 1, 1639, p. 103-104. 
55 Cf. Manuel J. Gandra, Dicionário do Milénio Lusíada, v. 1, Lisboa, 2003. 
43 
 
Começa agora o trinchante a sua árdua e honrosa tarefa da 
distribuição das Flores do Espírito Santo [pedaço de pão ou rosca] 
com que vai entretendo o povo em volta do Teatro. [...] Logo que o 
Trinchante começa a distribuição, aglomera-se o povo em volta do 
Teatro, especialmente a rapaziada que grita de mão no ar: Senhor 
Trinchante um bocadinho de pão de mesa. [...]. E assim continua até 
ao fim do dia. Todo o movimento do Império está no Teatro e na 
copeira” 56. 
 
Com efeito, “todo o movimento do Império está no Teatro e na 
Copeira”, isto é, respectivamente, no palanque destinado à coroação e 
entronização do Imperador e na despensa-refeitório, onde o Divino, 
por seu intermédio, providencia a abundância alimentar à 
comunidade. 
 
 
 
 
Panelões em cobre, do trem de cozinha do bodo do Império 
de Alcabideche (Cascais) 
 
 
56 Cf. Festas do Espírito Santo na Ilha de Santa Maria, in Arquivo dos Açores, v. 14 
(1921). 
44 
 
 
 
 
Prato de bodo (Biscoitos, Terceira, Açores) e Cangirão para vinho (Império do 
Outeiro, Angra do Heroísmo, Terceira) 
 
 
 
 
Tijela de sopa de Esmola do Espírito Santo 
(Império da Fonte do Bastardo, Terceira) 
 
 
 
45 
 
 
 
 
 
 
Bodos em S. Miguel (1907) e Angra do Heroísmo (Terceira, Açores), nos 
inícios do século XX 
46 
 
 
 
Arneiro (Alenquer) e São Martinho do Campo (Santo Tirso): capelas do 
Espírito Santo com seus alpendres 
 
 
 
Capela (Sardoal) e Teatro (S. Miguel, Açores) do Divino Espírito Santo 
 
 
Em Portugal, o alpendre ou telheiro, muito vulgar nas ermidas 
e capelas do Espírito Santo 57, por vezes precedido por escadaria 
 
57 Na região de Alenquer subsistem vários exemplos. 
47 
 
(elevado, portanto, relativamente ao piso circundante) 58, assumia a 
função consignada nos Açores ao Teatro. O carácter de galilé que 
assumia nesses casos estaria, evidentemente, relacionado com o 
significado desta: antecâmara da Terra Santa (Galileia), espaço de 
transição entre o mundo profano e a ordem sagrada. 
 
 
 
Capela do Divino Espírito Santo do Fundão (Castelo Branco) 
 
 
No arquipélago dos Açores o Império começou por ser um 
simples estrado, palanque, varanda, pavilhão ou telheiro móvel, em 
madeira, erguido no adro da igreja, apoiado sobre colunas, coberto 
com colmo, faia ou giesta e ornamentado com colchas (vulgo 
arramada). 
 
 
58 Diversas ocorrências podem ser apontadas nasregiões de Torres Vedras e Mação, 
bem com na Beira Baixa. 
48 
 
 
 
 
Arramada da Horta (Açores) 
 
 
49 
 
Os Impérios, em alvenaria, têm sido invariavelmente 
interpretados como os sucedâneos de tais estruturas rudimentares e 
efémeras 59, que, apesar de tudo, persistem, geralmente diante dos 
próprios Impérios ou nas traseiras das igrejas, como ainda se observa 
na ilha de Santa Maria. 
Para os adeptos de taxonomias, direi que são três os grupos de 
Teatros característicos do arquipélago dos Açores: 
 
1. Impérios-casa, também denominados Casas do Espírito Santo 
 
Em algumas das ilhas açorianas do grupo ocidental, como, por 
exemplo, nas Flores e no Corvo, as Casas do Espírito Santo 
desempenham o papel que os Teatros assumem na função do Império 
em outros locais do arquipélago. 
 
 
 
Casa do Espírito Santo (Flores, Açores) 
Assemelha-se a uma vulgar moradia, excepto por possuir cores garridas e uma 
coroa imperial na fachada. No seu interior desenrolam-se todas as cerimónias 
e actos cultuais, sagrados, ou profanos, do Império 
 
59 João Ilhéu, Cadafalsos, “Triatros” e Impérios, in Notas Etnográficas, Angra do 
Heroísmo, 1980. 
50 
 
 
 
Altar do Divino da Casa do Espírito Santo da Fajãzinha (Flores, Açores) 
 
 
Trata-se de simples casas lineares térreas, em alguns casos, 
adaptadas ao fim a que se destinam, quer seja realizar a liturgia do 
Império, num espaço organizado como uma autêntica capela, 
confeccionar alimentos, reunir comensais, ou mesmo armazenar 
alfaias. 
 
2. Teatros marienses 
 
Alpendres e copeiras de carácter austero e de linhas arcaicas, 
evoluiriam para o modelo mais elaborado dos cadafalsos ou teatros de 
São Miguel. 
Nas ilhas do grupo oriental (Santa Maria e São Miguel), a 
maioria dos Alpendres, Cadafalsos ou Teatros remanescentes foi 
erigida em época remota, bastas fontes documentais referindo-se a 
tais estruturas e descrevendo-as acopladas a algumas das igrejas 
construídas no início do povoamento do arquipélago. O mesmo 
critério pode ser constatado na Graciosa, onde, na Vila da Praia, o 
51 
 
Teatro do Divino foi construído encostado a uma das paredes laterais 
da matriz de São Mateus. 
 
 
 
 
 
Teatros de São Miguel (o 1º demolido), de Santo António (Santa Maria), do 
Farroupo e dos Arrifes (Ponta Delgada, S. Miguel) 
 
 
Em algumas das ilhas, o papel que os Teatros assumem no 
Auto do Império noutros locais do arquipélago é desempenhado pela 
Copeira, casa pobre, de pavimento térreo, constando de simples sala 
espaçosa com extensas mesas de madeira fixas e de uma ampla 
cozinha com lugar para 12 a 15 grandes panelas. 
52 
 
Eis um relato do que ocorre durante o Pentecostes numa 
Copeira de Santa Maria: 
 
“Na copeira estão as mesas postas e são convidados a entrar os 
que acompanham a coroação - homens, mulheres e crianças, uns após 
outros. Serve-se sopa de pão de trigo, carne cosida, pão e vinho. No 
fim de cada refeição estruge no ar um caloroso viva ao Espírito Santo. 
[...]. E assim até à noite se põem mesas e levantam mesas, enquanto 
há pão e carne, que, em regra nunca faltam, antes sobejam”. 
 
O vocábulo Copeira volta a ocorrer num relato do Padre 
Manoel Azevedo da Cunha, datado de Março de 1905, reportando-se 
aos festejos do Império na Vila da Calheta (São Jorge): 
 
“No domingo - a missa de festa e coroação - seguindo os 
emblemas para uma casa de depósito próxima à igreja, e a que 
chamam copeira, teatro ou cadafalso. Ali fica a coroa em veneração 
todo o resto do dia: a coroa no trono do altar; e a bandeira com o coto 
da haste dentro do cadafalso, e o restante saindo pela respectiva 
janela, e fora do edifício. 
Depois do jantar, onde comparece quase toda a fidalguia do lugar, 
manda o imperador para a copeira, uns grandes pães, travessas de 
carne guisada, um cabrito assado, vinho e doces, para obsequiar 
qualquer que, estranho à freguesia, passe e se demore no arraial, ou 
para distribuir pelos pobres, velhos ou crianças que sempre acodem 
das freguesias limítrofes. [...]. E assim empregam a tarde na 
distribuição do doce. Simultaneamente ha no arraial outros motivos 
de diversão: bandos [loas] danças de fitas, de arcos, de maços, de pau 
da mó, cavalhadas, comédias ao ar livre, e descantes à viola, que é o 
instrumento vulgar na ilha”. 
 
3. Impérios-capela ou Impérios-tabernáculo 
 
Característicos do grupo central. É consensual que os Teatros 
ou Impérios em alvenaria, abobadados, da Terceira e de São Miguel, 
representam o culminar de uma evolução a partir dos primitivos 
Alpendres, Cadafalsos e Teatros efémeros, em madeira (estrados ou 
palanques móveis), expressamente edificados para a festa do 
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Pentecostes, mesmo em espaços privados, como era o caso dos 
conventos 60. 
Por exemplo, as freiras do Mosteiro de São João, na cidade da 
Horta (Faial), festejavam o Espírito Santo, com grande solenidade, 
desde a Páscoa até ao Pentecostes. 
Segundo testemunho de Gabriel d’Almeida, 
 
“[…] armavam o Teatro na cerca, de modo a que pudesse ser visto da 
Torre da Matriz, que servia de tribuna aos curiosos. Faziam a missa da 
coroação, com sermão e conduziam depois, com aparato, a coroa para 
o Império. Durante o trânsito para o tabernáculo a comunidade 
cantava o Magnificat”. 
 
O investigador micaelense, Luís Bernardo D’Ataíde descreve 
esses Teatros do Espírito Santo num artigo publicado em 1928, na 
Revista dos Açores: 
 
“[...] sustidos por colunas ornamentadas com berrantes calos, uns 
telhados, outros de abóbada suspensa em toscas pilastras de 
grosseiros cunhais encruzados. Na sua feição pitoresca, na rudeza das 
suas linhas, no desmantelado do aspecto e no exotismo da 
arquitectura, eles vão pondo notas de impressionante excentricidade 
pelos povoados, lendo-se nas suas colunas fendidas e nas pedras 
patinadas que os compõem, uma das mais interessantes páginas da 
nossa etnografia. Aí são recebidos o ceptro e a coroa de prata na 
sétima dominga, aguardando o sorteio do mordomo da primeira 
dominga, para casa de quem seguem então ao anoitecer”. 
 
Até há relativamente poucos anos, tais estruturas eram vulgares 
no Pico e no Faial, sendo cobertas com ramagens de arvoredo comum, 
donde o nome de ramadas ou arramadas que se lhes dava. Tais 
estruturas efémeras persistem ainda em algumas localidades das ilhas 
 
60 Apresentavam certas semelhanças com as denominadas Varandas da Aclamação, 
expressamente erguidas para as cerimónias de entronização dos monarcas portugueses, 
como se comprova pela iconografia que figura o acto. A 12 de Outubro de 1822, D. Pedro 
I foi aclamado Imperador do Brasil, num Teatro, edificado diante do Paço Real, 
exactamente defronte daquele onde eram dispensadas as mesmas efusivas homenagens 
ao Imperador do Divino, no Campo de Santana (Rio de Janeiro). Aliás, consta que terá 
sido justamente essa a circunstância que determinou a adopção do título de Imperador 
pelo príncipe. 
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de São Miguel, de Santa Maria e da Graciosa, onde o Império das Sete 
Marias, no lugar das Fontes (Santa Cruz), constitui o último 
testemunho do género, patrocinado, há cerca de 40 anos, por uma 
Irmandade de mulheres, a Irmandade das Sete Marias. 
Trata-se de uma estrutura cúbica, de mais ou menos quatro 
metros quadrados de área, por dois metros e meio de altura, toda em 
madeira, e pintado de azul. Tem no interior um altar rudimentar, onde 
é depositada a coroa da Irmandade, depois da coroação. Este pequeno 
Teatro possui apenas uma porta na frente, e duas janelas de cada um 
dos lados. É montado no centro da localidade, onde também se 
desenrola o programa festivo. 
Em suma: o estrado elevado dos Teatros efémeros poderá ter-
se transformado numa estrutura, quase invariavelmente, de forma 
cúbica, coberta de colmo ou madeira (à semelhança da maioria dos 
imóveis destinados à habitação, então denominados Casas palhaças) e 
totalmente

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