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Manuel J. Gandra O IMPÉRIO DO DIVINO na Amazónia Mafra – Rio de Janeiro 2017 Editores: Instituto Mukharajj Brasilan & Centro Ernesto Soares de Iconografia e Simbólica-Cesdies Est. da Grota Funda, 2440 – Guaratiba Rio de Janeiro/RJ – CEP 22785-330 Tel.: +5521 9399-0997 Email: secretaria.imub@gmail.com Site: www.imub.org Título: O IMPÉRIO DO DIVINO NA AMAZÓNIA Autor: Manuel J. Gandra Coordenação Editorial: Loryel Rocha [loryel@brasilan.com.br] Projeto Gráfico: Diogo Gandra Design da Capa: Diogo Gandra Copyright: ©Manuel J. Gandra/Instituto Mukharajj Edições Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada por escrito, do autor ou do Instituto Mukharajj Brasilan, no todo ou em parte, por quaisquer que sejam os meios, constitui violação das leis em vigor. Fale com o Autor: manueljgandra@gmail.com 1ª Edição Luso-Brasileira: Junho de 2017 – 102 exemplares, todos numerados e assinados pelo autor; e-book.- impresso a pedido. 3 ÍNDICE 7 O Império do Divino Espírito Santo 63 Impérios do Divino – Cronologia 115 O Império do Divino na Amazónia 119 Amapá 191 Amazonas 205 Maranhão 319 Mato Grosso 337 Pará 363 Rondónia 389 Tocantins 419 Contributo para uma Bibliografia dos Impérios do Divino Espírito Santo Continente – Açores – Madeira – Brasil - USA 459 Índice de verbetes 4 Acrónimos e siglas ACTomar: Arquivo Concelhio de Tomar AHU: Arquivo Histórico Ultramarino ANTT: Arquivo Nacional da Torre do Tombo Boletim: Boletim da Junta da Província do Ribatejo, n. 1 (1937-1940) BN: Biblioteca Nacional ER: Francisco Câncio, Etnografia Ribatejana: notas de um ribatejano, v. 1, Lisboa, 1956 IAdS: Gustavo de Matos Sequeira, Inventário Artístico de Portugal: Distrito de Santarém, Lisboa, 1949 “A religiosidade portuguesa, do mesmo modo que a galega […] há que ir buscá-la sob as formas regulares e canónicas da religião oficial. Sob ela palpita e vive ainda um certo naturalismo que tem muito de pagão e não pouco de panteísta” MIGUEL DE UNAMUNO (Por tierras de Portugal y España) O IMPÉRIO DO DIVINO ESPÍRITO SANTO 9 I “[...] tem de haver um entendimento sobre a lugar e a sua história, coisa que Portugal recusa há cinco séculos”. FRANCISCO PALMA DIAS (Artes e Letras, n. 19, Jun. 2009) O Paracleto ou Espírito Santo é uma entidade etérea e inefável, celebrada conjuntamente por judeus e por cristãos, cinquenta dias depois da Páscoa, na festa dos Tabernáculos e do Pentecostes, respectivamente 1. Entre cristãos esta solenidade tem oitava privilegiada e inaugura um período novo no ano eclesiástico, prolongando-se durante 24 semanas, até ao primeiro Domingo do Advento (obrigatoriamente entre 27 de Novembro e 3 de Dezembro). O Pentecostes também é denominado Páscoa Rosada, comemorando a descida do Fogo do Consolador, ou Paracleto, sobre 1 Também o Islamismo se preocupa desde os seus primórdios com a eminência da Hora (o Fim dos Tempos), isto porque a profetologia islâmica reproduz nos seus traços gerais a Cristologia Ebionita, paraclética, herdada da comunidade judaico-cristã primitiva. A transposição da profetologia do Paracleto (Fâraqlit) não é sensível ao nível das concepções adoptadas pelo Islão sunita, sob a sua forma exterior. Porém, ela influencia os teósofos místicos, a metafísica do Sufismo e, particularmente, a teosofia shi'ita, autêntica religião do Consolador (Ver Evangelho de Barnabé), da qual a Igreja paulina se afastou, centrando-se nos temas do pecado original e da respectiva redenção pelo sacrifício cruento (Theologia crucis). Cf. Henri Corbin, L'idée du Paraclet en philosophie iranienne, in En Islam Iranien, v. 2, liv. VIII, cap. III. Mahomed († 632) autodenomina-se Mestre da Hora, embora não fixe qualquer data precisa para o evento, proclamando apenas que "a ordem de Deus se manifesta" (Ata amr Allah). Posteriormente, outros haviam de encarregar-se dos cálculos epilogísticos. 10 os Discípulos, consoante a narrativa dos Actos dos Apóstolos (II, 1-4). Depois da Ascensão aqueles regressaram ao Cenáculo e ali esperaram em oração, durante 9 dias, a realização da promessa de Jesus. No décimo dia, seriam 9 horas da manhã: “[...] de repente veio do Céu um estrondo como de vento que assoprava com ímpeto e encheu toda a casa onde estavam assentados. E lhes apareceram, repartidas, umas como línguas de fogo, que repousaram sobre cada um deles. E foram todos cheios do Espírito Santo, e começaram a falar em várias línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem”. Pentecostes da capela do Senado de Guimarães 11 A iconografia portuguesa deste episódio da História Sagrada esteve, invariavelmente, ao serviço da causa do Império do Divino Espírito Santo, motivo por que se trata de um tema muito comum, nomeadamente em capelas e altares da invocação do Paracleto. O culto do Divino Espírito Santo sob a forma de Império é expressão própria e exclusiva do mundo lusíada (nos Açores e no Brasil 2 conserva ainda a fidelidade às origens) não tendo qualquer similitude com as devoções homónimas que existem por todo o restante orbe católico. Isso mesmo concluíria Jaime Cortesão, uma vez na posse dos resultados de um inquérito realizado por sua iniciativa em Espanha, onde se não acha o mínimo vestígio da devoção do Império, nem sequer no território aragonês, de onde era natural a Rainha Santa Isabel, sua mais que improvável “inventora”, como creio ter já demonstrado em outra ocasião 3. Incapazes de penetrar a semântica genuína dos Impérios do Divino, a devoção mais autenticamente pneumatológica da cultura lusíada, autores houve que os advogaram susceptíveis de: - enraízar em cultos pagãos em louvor de Ceres 4, de Júpiter Pluvius 5, ou, simplesmente, de cultos politeístas 6; - estar relacionados com “cerimónias contra a peste” 7; 2 A propósito da popularidade do Império do Divino Espírito Santo no Brasil, na década de 1820, convém recordar que José Bonifácio preferiu o título de Imperador ao de Rei, porque era “mais amado pelo povo”. Cf. Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro, 1962. Com efeito, a Festa e o Regime político iniciaram juntos um novo tempo, as barracas do Império do Divino diante do Paço Imperial. 3 Cf. Alenquer, in Nova Águia, n. 3 (1º semestre de 2009), p. 140-151. 4 Cf. José Diniz da Graça Motta e Moura, Memória Histórica da notavel Villa de Nisa, v. 1, p. 58: “imperfeita imitação das festas e sacrifícios que os romanos anualmente faziam a Ceres, filha de Saturno e Cibele, deuses da agricultura [...]”. Salete da Ponte reata esta opinião no artigo A Simbólica de Festividades no Ciclo dos Tempos, in Boletim Cultural Da Câmara Municipal de Tomar, n. 21 (Out. 1997), p. 13-26. 5 Cf. Luís Ribeiro, Os Festejos do Espírito Santo, in Almanaque dos Açores – 1934, Angra do Heroísmo, 1933, p. 72-76. 6 Cf. Teófilo Braga, Cantos Populares do Arquipélago Açoriano, v. 2, p. 202. O argumento do culto do Império enquanto sobrevivência do gentilismo foi um dos mais invocados pelas autoridades eclesiásticas para proibir e suprimir os festejos. 7 Cf. Teófilo Braga, O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, v. 2, Lisboa, 1885, p. 284. 12 - concitar a “protecção divina contra pragas e malinas”, mediante actos devocionais e práticas caritativas 8; Natal muçulmano em Tripoli (Líbia), onde tabuleiros idênticos aos de Tomar são ofertados como ex-votos (Domenica del Corriere, n. 20, 17 Jul. 1966) - proceder do cerimonial do “bispo-inocente” 9; - ser uma herança das confrarias francesasdo Espírito Santo 10. 8 Cf. Michel Giacometti, Cancioneiro Popular Português, Lisboa, 1981, p. 39. 9 Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, Coimbra, 1910-1922, 4 vols. Ver, especificamente, v. 1, p. 252 e v. 3, p. 556-557. A festividade do Bispo inocente celebrada a 28 de Dezembro, véspera dos Santos Inocentes, ainda se realizava na Sé de Lisboa, com grande pompa, em pleno século XVII. Ver Mário Martins, O Bispo Menino, o Rito de Salisbúria e a Capela Real Portuguesa, in Didaskalia, n. 2 (1972), p. 183-192. 10 As confrarias francesas do Espírito Santo apenas promoviam a assistência na doença e na morte, assim como os bodos, omitindo, porém, o cerimonial da coroação. Cf. P. Duparc, Les Confréries du Saint Esprit et communautés d’habitants au Moyen Âge, in Révue d’Histoire du Droit Français et Étranger, v. 3 (1958), p. 349-367 e v. 4 (1958), p. 555-585. 13 - ter origem judaica 11. - ser expediente, destinado a apaziguar o vulcanismo, recorrendo a procissões e orações 12; * * * O Auto do Império encena de forma simbólica o advento da Terceira Idade do Mundo, de acordo com uma tese do abade cisterciense Joaquim de Fiore, propalada pelos meios joaquimitas, e segundo a qual a história da humanidade percorreria três Tempos, desde a Criação até ao Fim do Mundo, vividos cada um deles sob a influência de uma das três pessoas da Trindade (lema da tripeça 13). O lema da tripeça, conforme a doutrina de Joaquim de Fiore no seu Comentário ao Apocalipse 11 Cf. Correio da Manhã (11 Jun. 1991). Com mais razão se poderia dizer de origem muçulmana a Festa dos Tabuleiros de Tomar, atendendo à similitude formal dos ex- votos reproduzidos na foto publicada supra! 12 Tese perfilhada por César das Neves e pelo sociológo Caetano Valadão Serpa, que deixa sem explicação o enraizamento dos Impérios na Madeira e no Brasil, por exemplo, onde, consabidamente, inexiste vulcanismo! No Congresso do Espírito Santo de Alenquer (2016), Fernanda Enes subscreveu a mesma paralaxe, estribada na falsa assunção de que o Império do Divino foi uma criação açoriana. Com efeito, o culto do Divino Espírito Santo teve origem em Portugal continental (muitíssimo antes da “descoberta” do arquipélago açoriano), de onde havia de se difundir para todo o mundo lusíada. Ora, sendo a liturgia do Império do Divino fundada num símbolo teológico- filosófico (joaquimita) e, salvo ligeiras variações tópicas, constante e universal, que particularidades do rito se baseiam no medo-pânico originado no vulcanismo? 13 Sobre este tópico, ver Fernando Pessoa, Prefácio a Quinto Império de Augusto Ferreira Gomes, Lisboa, 1934 e Manuel J. Gandra, A. A. Carvalho Monteiro: imaginário e legado, Mafra, 2014, p. 184-190. 14 Assim, se a lei mosaica fora específica da Idade do Pai e a lei evangélica da do Filho, a futura lei do Evangelho Eterno sê-lo-ia da do Espírito Santo 14. Abbade Joaquim – Floreceo no Século XII A sua escatologia da História foi de tal modo influente em Portugal que continuava a ter cultores no século XIX, como testemunha a presente litografia, datável de c. 1810 14 Cf. Manuel J. Gandra, Joaquim de Fiore, Joaquimismo e Esperança Sebástica, Lisboa, 1999. 15 Encontro de Abraão com Melquisedeque, rei de Salém Tábua do pintor Gregório Lopes, pertencente ao retábulo da capela-mor da igreja de São João Baptista de Tomar. Melquisedeque oferece o pão e o vinho da comunhão ao patriarca Abraão, tal qual Jesus fará aos discípulos na Última Ceia. Em segundo plano, semi-encobertos pela figura enigmática de Melquisedeque, o Nesi Shalom (Príncipe da Paz) dos essénios, descobrem-se as figuras que encarnam as três grandes confissões do Livro: um judeu, um muçulmano e um cristão. Assim propagandeada, a missão ecuménica, mais apropriadamente o Evangelho Português, que a Ordem de Cristo herdou do Templo torna-se indiscutível. 16 O esgotamento da segunda Idade ou do Filho prenunciaria o início do Tempo do Divino Paracleto, era da confraternização universal de cujo advento os portugueses se fizeram arautos, disseminando pelas novas latitudes tais expectativas milenaristas, porém nem sempre da forma mais ortodoxa e conforme aos dogmas romanos. Esse o móbil da perseguição de que os festejos passaram a ser alvo a partir do século XVI, nunca o carácter pagão então invocado pela hierarquia eclesiástica e mais tarde pela etno-antropologia (hoje pela sociologia) arregimentada para mascarar os autênticos motivos. Se necessário fosse angariar testemunhos para ilustrar o carácter heterodoxo da piedade popular subjacente aos festejos em louvor do Paracleto, bastaria evocar: - uma passagem do Orto do Esposo, apelando a um regresso às fontes e à genuinidade do ideal cristão: “[…] pois Jesus Cristo e os seus apóstolos não nos ensinaram arte de lógica, nem o enganamento vão das palavras, mas deram-nos ciência limpa e pura […]” 15; - ou uma xácara da ilha do Corvo (Açores): “Ascendeu o Espírito Santo Sua Santa monarquia, Desceu do Céu à terra Com prazer e alegria. No ar, como pomba branca, Coroada a Virgem Maria, Com treze chamas de fogo Todas ardentes, ardia. Com seus doze Apóstolos Para a sua Companhia, Entraram a pregar Por aquela heresia Pela vontade de Deus Tudo se lhe convertia”. 15 Orto do Esposo, , fl. 34v-35r. Cf. edição crítica de B. Maler, Rio de Janeiro, 1965. 17 * * * Cada um dos aludidos períodos históricos, encarnando personalidade própria, consubstanciaria diferentes formas religiosas, sucessivamente manifestadas de Oriente para Ocidente. A sede da Igreja do Pai fora Jerusalém, a do Filho, Roma. A Terra Santa vindoura onde situá-la? Camões chamou Nova Roma a Lisboa. De Mafra se diz que pelo menos durante um dia há-de ser Roma. Alenquer: o convento de São Francisco no topo da “eminência para a parte Sul” e a igreja do Espírito Santo junto ao rio Seja como for, os iniciados na doutrina dos espirituais franciscanos identificavam-na com Alenquer. Segundo eles essa era a povoação portuguesa que maior similitude tirava de Jerusalém, a qual constitui no círculo judaico- 18 cristão-islâmico o modelo paradigmático da Cidade Santa, o pólo teofânico, por excelência (i. e., da revelação divina) 16. Creio ter sido o franciscano Frei Manuel da Esperança 17 quem primeiro enfatizou por escrito o que já então seria uma assunção geralmente admitida: “[...] o nosso convento [fundado, em 1222, pela infanta Dona Sancha (filha de Dom Sancho I)] hoje, está posto sobre uma eminência para a parte do Sul, senhoreando o castelo, que lhe responde do Norte, e com estas aparências ajudadas da vizinhança do rio, profundidade do vale, correspondência dos montes e outras coisas notáveis, tiveram alguns motivo para se persuadirem que Alenquer se assemelhava muito à Santa Cidade de Jerusalém e que o Monte Sião no nosso convento estava representado”. Este terá sido, no meu entender, o argumento que mais influiu no imaginário dos eruditos seiscentistas para creditarem Alenquer - curiosamente vizinha da localidade e santuário de Meca – enquanto capital da religião nacional do Paracleto. Persistem, efectivamente, inúmeras interrogações sobre as circunstâncias da instituição dos Impérios do Divino, quase consensualmente atribuída (por uma tradição erudita, sem qualquer confirmação documental!) à Rainha Santa Isabel (1269?-1336), justamente em Alenquer. De facto, foram autores seiscentistas, maioritariamente eclesiásticos, os primeiros a reivindicar a invenção dos Impérios do Divino para a Rainha Santa, já então beatificada (em 1516, pelo Papa Leão X) e canonizada (desde o ano de 1625,apesar de a canonização só haver sido formalizada por Bento XIV, no século XVIII, com algumas imprecisões) 18: 16 De facto, a cidade portuguesa que replica Jerusalém nos mais ínfimos pormenores é Tomar, concebida pelo grão-mestre Gualdim Pais para sede espiritual da nona Província da Ordem do Templo. Cf. Manuel J. Gandra, O Projecto Templário e o Evangelho Português, Mafra, 2014, cap. VIII, p. 239-277. 17 História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de São Francisco da Província de Portugal, Lisboa, 1656, 1ª parte, cap. 10, p. 67. 18 Sem embargo de a hagiografia oficial (à semelhança dos testamentos de 1314, 1327 e 1328) de Santa Isabel ser omissa no que concerne ao Império do Divino, inúmeros autores haviam de adoptar o ponto de vista de tais eruditos. Um dos mais eminentes e nado em Tomar foi Leitão Gaspar da Fonseca. Cf. Padre José Pereira Baião, Portugal 19 Brás de Araújo de Valadares 19: “[...] E tanto que a dita obra [igreja do Espírito Santo] foi acabada e posta em sua perfeição logo os Senhores Rei e Rainha antes que se partissem da dita vila, estando um dia ouvindo missa na dita casa, a missa [...] acabada os ditos Senhores Rei e Rainha [sic] passaram cavaleiros escudeiros contra boa gente [sic] que aí estava moradores da dita vila e termo e lhe recomendaram a dita casa, os quais lhe disseram que lho tinham em grande mente, dizendo que pois a Deus provera a dita casa ali para fazer que por tal milagre [da revelação dos alicerces] como a todos era notório e manifesto que eles lhe prometiam pelo que pertencia a Deus principalmente e por eles Senhores tão afincadamente recomendaram, por ser tanto serviço de Deus, Honra da dita vila, que eles a guardariam e proveriam em tal forma que por fim do mundo ela fosse sempre em sua perfeição melhorada e não piorada e os ditos Rei e Rainha disseram que lho tinham em serviço e logo os ditos cavaleiros, escudeiros e homens bons e a maior parte dos moradores da dita vila e termo, que aí eram presentes, se ajustaram e ordenaram entre si uma confraria em louvor e honra do dito Senhor Santo Espírito, dotando cada um do que Deus dera, aquilo que se atreveram para se dizerem em missas em a dita casa pelo seu dia e em todos os dias do ano e em outros alguns dias pela semana. E se disse um honrado voto pelo seu dia fazendo de tudo um compromisso da regra e maneira que se havia de fazer e manter para sempre a dita feita, o qual compromisso feito e examinado o fizeram logo a saber [a]os ditos Rei e Rainha de que os ditos senhores foram muito ledos e lhe deram para ele grande ajuda, para comprarem [...] e outras coisas muitas para a dita festa necessárias, e que se começasse logo [1321!] a fazer, ordenando que para a dita festa ser mais perfeitamente obrada, que à sexta-feira se corressem touros que se Glorioso, e Ilustrado com a vida e virtudes das Bemaventuradas Rainhas Santas Sancha, Teresa, Mafalda, Isabel e Joana, Lisboa Ocidental, 1727, § 30-33. 19 Escrivão em Alenquer. Legou-nos um Livro de Registos de Privilégios (1654 a 1672), contendo, além de outros documentos: “Principio e fundamento da Casa do Spiritto Sancto na Villa de Alamquer, dado pela Raynha Sancta Izabel molher del Rey Dom Deniz no anno de 1321, a qual falesseu no anno de 1333 ha 4 dias de Julho em Estremos dia quarta frª como consta tudo de hua certidão e papeis antiguos autênticos que estão no Cartório da dicta Sancta Caza e Na da Camarª desta ditta Vila […]”, e ainda dois milagres que aconteceram “na Casa do Espírito Santo”, etc. 20 chamasse Sexta-feira das carnes em cada um ano, com que se desenfadassem [...] e que as matassem [...] e que em tal guisa os esfolassem e esportelassem que com aquela noite e Sábado [...] fosse aquela carne toda cozida, para se pôr em um paiol, a par do outro paiol do pão que é ordenado para o dito voto [i. e., bodo], o qual pão e carne se há-de comer ao Sábado véspera por clérigos e frades, quando [...] com a procissão da Candeia, que é ordenado vir ao Sábado a Santa Maria de Triana a qual havia de ser grande que estivesse um homem digno um cabo dela no mosteiro de São Francisco da dita vila e viesse ao longo pelas ruas da dita vila e saísse pela Porta do Carvalho e viesse o outro cabo dentro [d]a igreja de Santa Maria de Triana ao altar. Onde estivesse acesa assim em São Francisco como em Santa Maria onde ao altar mor é ordenado estar um homem nu com seus pasmos [i. e., panos] e com sua candeia nos braços em maneira de bandeira assim como vem na procissão e por no dito altar donde há-de haver continuadamente todo ano as missas e todas as horas, a qual candeia acabada de apanhar fosse na jornada acesa [...]. Santo Espírito com todas as cruzes da igreja e mosteiro a benzer todo o dito pão e carne, para se dar ao dia seguinte no dito voto [i. e, bodo] e marcaram as vésperas do dito Senhor Santo Espírito como entram outras coisas mui boas para a dita festa, como lhe melhor parecer as quais são postas e escritas no dito compromisso e acordaram e ordenaram que quando aí não houvesse imperadores prometidos por sua devoção, que então elegessem outros da dita vila e termo, dos mais abastados e pertencentes que os fossem e isto seja feito com conselho dos mais dos ditos confrades por a dita festa se não desfazer, e cumprimento de seu efeito e os outros irmãos os ajudarão e contribuirão cada um aquilo que honestamente puderem segundo sua faculdade” 20. Dom Rodrigo da Cunha (1577-1643), em 1642 21: 20 Cf. Principio e fundamento […]. 21 Eminente prelado e um dos mais estrénuos defensores das prerrogativas e da autonomia portuguesas durante a monarquia dual. Foi aluno dos jesuítas em Lisboa, tornando-se, em 1600, pensionista no real colégio de S. Paulo de Coimbra. Doutorou-se em Direito canónico, tendo ocupado as mitras de Coimbra (1616), Porto (1619), Braga (1627) e Lisboa (1635). De 1635 até 1639, havia de permanecer em Madrid, exercendo as funções de Conselheiro de Estado, após o que regressou a Portugal, sendo recebido apoteoticamente em Lisboa e concorrendo decisivamente para a Restauração de 1640. No dia 1 de Dezembro, querendo demonstrar a inequívoca adesão à causa, saiu em procissão, de cruz alçada, percorrendo as principais artérias de Lisboa, em consequência 21 “Ela [Dona Isabel] e el Rei Dom Dinis, seu marido, foram os autores da festa que se chama do Espírito Santo, cuja solenidade foi tão célebre por todo o reino, e mais nos maiores e mais populosos lugares dele, como ouvimos contar aos antigos. A que hoje dura em Alenquer tinha a mesma celebridade pelo reino, isto é eleger-se e constituir-se Imperador, que na primeira oitava do Espírito Santo, com majestade real, assistisse aos ofícios divinos, andasse na procissão, condecorasse com sua presença as mesas, honrasse as festas e invenções com que o povo procurava alegrar-se. Aqui em Alenquer se celebra ainda esta acção que chamam do Império, com grande aparato, levam três coroas e uma delas que foi da Rainha Santa Isabel. Servem pessoas nobres e de qualidade ao Imperador que está em trono debaixo de docel, onde se assenta depois de haver oferecido junto do altar uma daquelas coroas na mão do sacerdote que diz a missa. E mandaram estes senhores Reis que assistindo o Príncipe herdeiro do Reino nesta ocasião em Alenquer, ele fosse o que levasse a coroa da igreja do Espírito Santo à do mosteiro de São Francisco, onde se dá princípio à festa cuja parte principal é que no sábado, véspera de Pentecostes se cerca com uma coroa, ou rolo de cera benta, tudo o que há na vila, começando do mosteiro de São Francisco, até à igreja do Espírito Santo, assistindo toda ela em procissão, no que viram já por vezes milagrosos efeitos, porque fazendoesta cerimónia em tempo de grande peste, foi Deus servido acabar-se o mal, e tornasse a serenidade” 22. Frei Manuel da Esperança (1586?-1670), em 1656 23: “Do Império na Festa do Espírito Santo [...]: A muitas coisas notáveis, em que teve boa parte a Rainha Santa Isabel, fez lugar a velhice desta casa. Uma é a solenidade do Império, da qual ela e seu do que seria nomeado governador do reino, enquanto D. João IV não chegou de Vila Viçosa. Testemunhou o auto de juramento do monarca, celebrado a 15 de Dezembro, tendo sido o primeiro a ratificar o juramento dos Três Estados ao soberano e a seu filho, D. Teodósio (28 de Janeiro de 1641). 22 História Eclesiástica da igreja de Lisboa, Lisboa, 1642, parte 2, cap. 27, p. 122r-122v. 23 Religioso e cronista franciscano. Desempenhou diversos cargos na sua Ordem, a saber: guardião no Colégio de S. Boaventura (Coimbra) e dos conventos de S. Francisco do Porto e de Santarém, secretário do comissário geral Frei Martinho do Rosário, vigário paroquial e três vezes ministro provincial. Deve-se-lhe a edificação do convento seráfico de Tomar, do adro do convento do Porto e o claustro do de Telheiras. 22 marido, para celebrar a festa do Espírito Santo foram os inventores primeiros. E porque a seu exemplo o mesmo império se usa em muitas partes [...]” 24. Frei Francisco Brandão (1601-1680), em 1672 25: “Por ser Senhora de Sintra, e destes Paços a Rainha Santa Isabel, havia de admitir dentro deles o celebrar-se a Festa do Espírito Santo, que na vila de Alenquer, que também era sua instituiu com boda, e cerimónia de Imperador, como se usa […]” 26. D. Fernando Correia de Lacerda (1628-1685), em 1680 27: “Depois de haver edificado em Alenquer uma igreja ao Espírito Santo no primeiro ano em que se fez a solenidade da Coroação do Imperador, e com todo o luzimento, não só chamou a nobreza para tomar parte neste Império que ela tão piedosamente acabava de erigir, mas também convocou pessoas de diversas hierarquias. Tanto que o ornato da igreja esteve posto em sua perfeição, se disse nela, com assistência dos reis e da corte, uma missa oficiada com toda a solenidade, e acabado o sacrossanto sacrifício, chamando os reis a nobreza mais qualificada e parte da boa gente da vila e seus contornos, que tinha assistido naquele religioso acto, lhes encomendou aquela casa, o que eles tiveram por grande honra; e agradecidos às reais recomendações, porque os reis, quando põem encargos com rogos, faziam mercês com os rogos, lhes responderam que eles prometiam, que por serviço de Deus e de Sua Alteza tratariam da conservação daquela casa. Estimaram os reis esta piedosa promessa da nobreza e do povo em que o povo igualou a generosidade da nobreza. Ajuntaram-se as pessoas a quem os reis tinham encomendado a igreja 24 História Seráfica, Lisboa, 1656, liv. 1, p. 132-133. 25 Monge cisterciense, doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra e geral da sua congregação, qualificador do Santo Ofício, examinador das Três Ordens Militares, cronista-mor do Reino, etc. 26 Sexta Parte da Monarquia Lusitana, Lisboa, 1672, p. 185. 27 Prelado, graduado em Cânones na Universidade de Coimbra. Inquisidor em Évora e Lisboa, deputado do Conselho Geral do Santo Ofício e comissário da Bula de Cruzada. Bispo de Porto, nomeado por D. Pedro II e confirmado por Clemente X (17.7.1673). No ano de 1683, sentindo-se doente, seria absolvido das obrigações pastorais, retirando-se para o convento da Serra do Pilar e, posteriormente, para Lisboa, onde faleceu. 23 e erigiram uma confraria em louvor do Espírito Santo a que fizeram liberais devoções” 28. “Dia da Ressurreição de Cristo Senhor Nosso vai acompanhado de toda a Nobreza e Povo da vila, à Igreja de São Francisco dela, o homem que há-de fazer a figura de Imperador com dois que fazem a de Reis, e três pajens que lhe levam diante outras tantas coroas, uma das quais deixou a Rainha Santa para aquele acto. E tanto que chegam ao altar, se oferecem nele as coroas a Deus, e um religioso, vestido nas vestes sacerdotais, as põe na cabeça do Imperador e dos Reis, e nesta forma vão com majestoso séquito acompanhar a alegre procissão, que naquela manhã florida se faz a Cristo Senhor Nosso ressuscitado, naquele religioso convento. Na mesma tarde sai da miraculosa igreja do Espírito Santo o Imperador, diante do qual precedem festins, e trombetas, e dois pajens, um com a Coroa da Majestade, e outro com o estoque da Justiça, e vai ao mesmo convento onde torna a ser coroado, e depois de se distribuírem ramalhetes pelas pessoas Nobres do acompanhamento, dançavam eles com algumas donzelas, que a título de Damas, acompanham ao Imperador, às quais se dava parte do dote para seu casamento. Acabada esta função, torna o Imperador, com a mesma Majestade, à igreja do Espírito Santo, e oferecendo a Coroa no Altar, a torna a receber das mãos de um Sacerdote e se assenta em um trono debaixo de um dossel, onde os Nobres o festejam com tanta reverência, como se não fosse fingida a Majestade, e nesta forma continua o Império todos os domingos seguintes, até o dia de Espírito Santo, em cuja véspera sai o Imperador do mesmo convento, com toda a pompa, e com ele um homem, que leva duas madeixas de cera benta na mão, uma ponta das quais fica ardendo no altar da mesma igreja, e o mais saindo a procissão dela passando pela Porta do Carvalho, se vai estendendo pelas ruas até chegar ao altar da igreja de Nossa Senhora de Triana, onde se enrola, e se põe nela, para arder por todo o discurso do ano. Acabado o acto, vai a procissão com todas as Cruzes das igrejas, e dos Conventos à Santa Casa do Espírito Santo, e nela benzem os sacerdotes o pão, e a carne, que ao outro dia se há-de comer em um bodo; o que tudo se ordenou por instrução da Santa Rainha; e con- siderando o Império, e a candeia, se é lícito ajuizar as alheias acções, 28 Cf. Historia da Vida, Morte, e Milagres, Canonização, e Trasladação de Santa Isabel Sexta Rainha de Portugal (1680), p. 191-193. 24 principalmente estas que são misteriosas, não podemos deixar de entender que aquela candeia põe a Santa Rainha todos os anos ao Espírito Santo, para que Deus, havendo um só pastor e um só rebanho, estabeleça, em cumprimento da sua promessa, na coroa portuguesa, o império universal do mundo” 29. Padre Manuel Fernandes (1614-1693), em 1690 30: “[...]. E entre outras devoções que naquele tempo se ordenaram, a Rainha Santa introduziu um modo que chamam Impérios ou Bodos gerais em que nas terras menos populosas se convida ou elege um homem que se chama Imperador do Espírito Santo, com mordomos; e na festa de Pentecostes instituiu um bodo com abundância de pão, bolos, carne e outras coisas comestíveis [...]” 31. Já as raras fontes documentais conhecidas anteriores a seiscentos permitem constatar, sem contradição, que a albergaria alenquerence dedicada ao Paracleto remontava ao tempo de D. Sancha, filha de D. Sancho I e Senhora de Alenquer (c. 1180-1229), a qual instituíra no Paço Real um albergue destinado a enfermos pobres e peregrinos. Conhece-se também uma carta, de 18 de Setembro de 1279, da Rainha D. Beatriz (viúva de D. Afonso III) a tomá-la “em sua guarda e defesa” 32. Seja como for, D. Isabel de Aragão havia de demonstrar uma profunda dedicação àquela instituição, patrocinando, no ano de 1321, o primeiro compromisso da confraria que, doravante, havia de tutelá- la 33, dotando-a generosamente de inúmeros privilégios e promovendo 29 Idem, ibidem, p. 194-196. Neste trecho reivindica para a sua hagiografada a instituição das festas do Império, em Alenquer, estabelecendo (pela primeiravez, de forma explícita e iniludível) um nexo entre as ditas cerimónias e a tradição nacional do Quinto Império. 30 Professou na Companhia de Jesus no ano de 1631. Professor de Teologia Moral, Retórica e Filosofia, foi Reitor dos Colégios do Faial, Santarém e ainda do noviciado de Lisboa. Confessor de D. Pedro II, desempenhou também o cargo de deputado da Junta dos Três Estados. Autor de Alma Instruída na Doutrina e Vida Cristã, em cujo segundo volume (Lisboa, 1690, t. 2, p. 911-916) dedica umas quantas páginas aos festejos do Império, mencionando, expressamente (p. 914), a instituição deles pela Rainha Santa Isabel 31 Alma Instruída na Doutrina e Vida Cristã, v. 2, Lisboa, 1690, p. 914. 32 ANTT: Chancelaria D. Afonso V, liv. 1, fl. III. 33 Luciano Ribeiro, Alenquer – Subsídios para a sua História, Lisboa, 1936, p. 133. 25 a reedificação da respectiva igreja, tendo contígua a albergaria, no exacto local onde se erguiam as casas do seu Paço. Atente-se no teor de um dos mais antigos textos hagiográficos, relatando a Lenda da Rainha D. Isabel chamada a Sancta molher d’el-Rei Dom Denis a qual fundou a Casa do Spirito Sancto da vila d’Alenquer, atribuído a Damião de Góis (1502-1574), historiador, humanista e confrade da Confraria do Espírito Santo de Alenquer, com a qual mantinha relações muito estreitas, porquanto os mordomos e o capelão dela testemunhariam a seu favor no processo contra si instaurado pelo Santo Ofício (1571) 34. Nele, Damião de Góis é categórico, ao creditar à consorte de D. Dinis apenas e só a fundação da igreja e hospital (“Casa e Hospital”) do Espírito Santo: “[…] e na qual vila esta bem-aventurada Rainha fundou a Casa do Espírito Santo, de que as Rainhas deste reino de então a ca foram sempre muito devotas (fl. 2r). E porque esta ordem pela obrigação que dos tais encargos lhe compete é quase como herança da sua coroa, Vossa Alteza [fl. 2v] deve sempre ter especial cuidado do serviço e tutela da dita Casa e Hospital porque se o assim não fizer facilmente se poderiam pelo tempo perder o bom modo e governo que no tratar das coisas dela se deve ter […]. [fl. 7r] No qual tempo a dita Senhora por sua devoção e como se diz por revelação divina no lugar onde Deus tal milagre por ela fizera fundou esta Casa da invocação do Espírito Santo de Alenquer, com logo nela ordenar confrades e bodo pelo modo e costume que se até o presente dia tem. Para o qual bodo logo ela e el- Rei Dom Dinis seu marido deram guado e fizeram doações para o entretimento e despesas da dita Casa […]. No fundar desta Casa do Espírito Santo, como se acha por memória e antiga escritura se diz que vindo a Rainha com sua gente e oficiais para abrir os alicerces que os 34 Cf. Raul Rego, O Processo de Damião de Góis na Inquisição, Lisboa, 1971, p. 184. Enquanto seu tio, Bastião de Macedo (cerca de 1570), foi provedor da Confraria do Espírito Santo de Alenquer, Damião de Góis ofereceu à igreja da instituição diverso património, arrolado na Lembrança de algumas coisas que mandei e dei a igrejas deste Reino desde o ano de mil quinhentos e vinte e seis a esta parte (documento autógrafo, datado de 16 de Fevereiro de 1572, integrado no processo inquisitorial): órgãos de som; duas sobrepelizes de pano de linho; três balandraus de pano vermelho para serviço de missa de três homens; uma mesa grande de mármore para se partir a carne dos touros que se distribuía no bodo de Domingo de Pentecostes; uns bordos de madeira de fora, para fazer bancos para se pôr o pão do dito bodo; uns bordos para se fazer uma charola para o órgão da igreja, etc. 26 achou milagrosamente demarcados do tamanho e grandor que a [fl. 7v] igreja é e começados a cavar. […]. Item mais se acha que fazendo- se aa dita obra que passava uma moça com um molho de rosas na mão por a par do dito lugar onde a Rainha estava com suas donzelas vendo como trabalhavam e que uma das ditas donzelas pediu as rosas À moça e as deu à Rainha. A qual Senhora partindo-se da obra deu a cada um dos oficiais uma das ditas rosas as quais eles puseram a par de seus fatos, e à tarde querendo-se ir para casa tomando cada um a rosa que lhe fora dada se lhe converteram em dobras, do que espantados o foram logo dizer à Rainha […]” 35. * * * A Rainha Santa tem servido de pretexto para a validação de um sem número de incongruências e paralaxes 36, porquanto acha-se apurado como indubitável que: - A corte de Aragão, nomeadamente a de Jaime II, irmão de Dona Isabel, não manteve ligações com franciscanos espirituais ou fraticelli; - D. Isabel não foi a fundadora do convento de Santa Clara, em Coimbra; - O físico Arnalte, supostamente Arnaldo de Vilanueva (1235- 1311), com o qual a Rainha teria trocado correspondência e com quem planeava avistar-se em Santiago de Compostela, não podia ser o franciscano milenarista, pois este falecera em 1311, data muito anterior à da alegada correspondência. Até o Milagre das Rosas, porventura a única lenda da Rainha Santa que alcançou difusão nacional, não consta da biografia anónima 35 BN: IL. 223, fl. 2r-2v e 7r-7v. Cf. Teresa Andrade e Sousa, Lenda da Rainha D. Isabel: códice iluminado da B. N., in Revista da Biblioteca Nacional, s. 2, v. 2 (1), (1987), p. 43 e 46. 36 Cf. Padre Jacinto Monteiro, Os Franciscanos e o Culto do Espírito Santo nos Açores: a influência da Rainha Santa Isabel e a Visão Portuguesa Tradicional, in União, a. 1 (n. 9, Angra do Heroísmo, 13 Mar. 1998): Diálogos – Suplemento de Cultura, Arte e Ciência; Os Franciscanos e o Culto do Espírito Santo nos Açores: os franciscanos espirituais e a Figura da Rainha Santa (idem, n. 10, 30 Abr. 1998); Os Franciscanos e o Culto do Espírito Santo nos açores: a suposta influência herética na Corte da Rainha Santa Isabel (idem, n. 11, 29 Mai. 1998); Os Franciscanos e o Culto do Espírito Santo nos Açores: um resumo para Estudo Crítico da sua génese e implantação (idem, n. 12, 3 Jun. 1998). 27 de D. Isabel, redigida no séc. XIV, ocorrendo apenas num retábulo de pintura, quatrocentista, do Museu Nacional d’Art de Catalunya 37 e muito brevemente, na Crónica da Ordem dos Frades Menores 38 de Frei Marcos de Lisboa, naquilo que constitui um dos mais remotos registos hagiográficos impressos do episódio. O que a maioria daqueles que se referem ao miraculoso evento desconhece é que são dois (e não apenas um!) os Milagres das Rosas creditados a Santa Isabel: - o primeiro, mais divulgado, ao qual se reporta a generalidade das alusões literárias, artísticas, etc., consistiu na transformação de dinheiro em rosas e di-lo a tradição realizado em Coimbra, enquanto a Rainha acompanhava as obras que decorriam no convento de Santa Clara-a-Velha; - o segundo terá ocorrido em Alenquer, durante as obras de edificação da igreja do Espírito Santo, sendo descrito como a transformação de rosas em moedas de ouro. D. Fernando Correia de Lacerda narra o episódio que teve Alenquer por cenário, nos seguintes termos: “Detiveram-se os Reis alguns dias na Vila de Leiria, e passaram à de Alenquer, e como Deus fala aos seus servos em sonhos, uma noite em que o sono não fugia dos olhos da Santa Rainha, sendo que muitas vezes o faziam fugir as vigílias, sonhou, que seria obra muito agradável ao Senhor fazer naquela Vila uma igreja dedicada ao Espírito Santo, na qual se celebrasse o Sacrossanto Sacrifício da Missa, e ainda que o tempo a que acordou do sono não era de todo dia claro, como era costumada a louvar a Deus, como Estrela Matutina, se vestiu e foi ouvir Missa; tanto que a ouviu se foi ao rossio da Vila, que o Rio umas vezes inunda, outras prateia, e mandando chamar os juízes daquele Povo, lhes ordenou, que mandassem quatro pedreiros, e seis trabalha- dores, porque queria que se abrissem uns alicerces naquele sítio, tanto que os juízes foram fazera diligência, se pôs a Santa Rainha em oração no mesmo lugar, porque como aquelas acções eram inspiradas por Deus, não reparava em que fossem vistas no mundo, e vindo os Oficiais, e trabalhadores, se levantou, e foi para onde determinava 37 MNAC: inv. 64044. 38 Volume 2, Lisboa, 1562, fl. 197. 28 abrir os alicerces e chegando ao sítio destinado, os achou abertos, e desenhados, vendo a Santa Rainha tão impensado sucesso, não sem consideração de que era superior prodígio, perguntou aos juízes, se os tinham mandado abrir naquela forma, ou deles tinham alguma notícia, e os juízes lhe responderam, que nem eles nem outra pessoa alguma havia dado princípio a aquela obra, antes passando por aquele sítio no princípio da noite antecedente, não tinha aquela parte diferença alguma do outro campo, ouvindo a Santa Rainha este desengano, reconheceu o favor, e pondo-se outra vez em oração, deu, com muitas lágrimas de ternura, graças a Deus da maravilha... Ainda que parecia, que não necessitava de mais firmeza a fábrica, a que Deus tinha feito a milagrosa planta, como os alicerces da igreja estavam só delineados à flor da terra, mandou a Santa Rainha, que na forma da delineação, se pusessem de maior altura, e depois de assistir na obra por algum espaço do dia, despedindo-se dos oficiais, lhes disse, que trabalhassem com cuidado, porque lhes havia de pagar o jornal com vantagens, chegando ao Paço deu conta a El-Rei do sucesso, de que ele recebeu grande gosto [...]. Tanto que a Santa Rainha acabou de jantar como aquela obra era santa, veio assistir a ela a tarde toda, e passando por aquele sítio, ao declinar do dia, uma moça com um molho de rosas nas mãos, disse a Santa Rainha a uma Dama sua, que lhas pedisse da sua parte, obedeceu a Dama ao preceito, a moça ao rogo, e passando as rosas da segunda mão às da Santa Rainha, ficaram elas da melhor sorte, e com o melhor preço [...]. Chegado o tempo da Santa Rainha se voltar para o Paço, deu a cada um dos oficiais, e trabalhadores sua rosa, dizendo-lhes que com elas lhes pagava o dia, e rindo-se eles, cuidando que era graça, as aceitaram com grande cortesia, admirando tanta urbanidade em majestade tão venerada, e para continuar o trabalho, guardou cada um a sua em lugar distinto, posto o Sol, depois de se ausentar a Santa Rainha, tomando cada qual os vestidos, para se recolherem a suas casas, e querendo levar as flores, para testemunhas de que a Santa Rainha lhes fizera aquelas mercês, quando as buscaram, acharam dobras, e duvidando que fossem verdadeiras tão lucrosas transformações; para se tirarem de dúvidas determinaram ir buscar a Santa Rainha, a qual acharam ainda pela rua, e lhe disseram, que sua Alteza lhes mandara pôr dobras em lugar de rosas, que eles não tinham merecido tão liberal paga, e estavam certos da satisfação; 29 ouvindo a Santa Rainha o sucesso daquela mudança, conheceu que era prodígio do Céu, porque com outros semelhantes, tinha a divina grandeza, honrado a sua humildade, e pondo os olhos na terra e coração no Céu, deu muitas graças ao Senhor [...]. Quando os oficiais deram conta à Santa Rainha, do sucesso que os tinha em dúvida, lhe não deu ela alguma resposta, e chamando um deles à parte, lhe perguntou outra vez pelo acontecimento, e ele lhe tornou a referir a verdade, e tanto que se certificou do milagre, os chamou a todos, e lhes impôs o segredo, dizendo-lhes que se aproveitassem do dinheiro [...]” 39. Santa Isabel e o Milagre das Rosas em Alenquer (c. 1670-1680), óleo sobre tela (80 x 120 mm) do pintor Bento Coelho (matriz de Salvaterra de Magos) 39 Historia da Vida, Morte, e Milagres, Canonisação, e fundação de Sancta Isabel Sexta Rainha de Portugal, 1680, p. 185-189. Ver também versão consignada no Livro de Registros de Brás Araújo de Valadares. Numa composição de Homenagem da Academia dos Singulares (1670), o poeta Serrão de Castro havia de satirizar este episódio iconografado por Bento Coelho: “Assim que sua virtude / a pedra é de que usa / e com ela fez de rosas / dinheiro, sem liga alguma. / Também a vós [Bento Coelho] esta pedra / parece que não se oculta / pois fazeis de terra cinzas / ouro fino e prata pura”. Cf. Luís de Moura Sobral (coord.), Bento Coelho e a cultura do seu tempo, Lisboa, 1998, p. 286- 288. 30 Milagre das Rosas de Alenquer (1692) António Gomes e Domingos Nunes Painel do terceiro retábulo lateral do lado da Epístola da igreja de Santa Clara-a-Nova 31 Milagre das Rosas de Alenquer (óleo sobre tela) Painel central do retábulo do coro alto da igreja de Santa Clara-a-Nova 32 Não obstante o segundo Milagre das Rosas 40 ser aquele que se acha directamente relacionado com o culto o Império do Espírito Santo (até porque outrora o Pentecostes era denominado Páscoa das Rosas…!), havia de ser suplantado pela primeira versão, actualmente dramatizada em inúmeras festividades do Império na América do Norte e, por contágio, nas de algumas das ilhas açorianas. * * * Álvaro Rodrigues de Azevedo adianta, baseado numa escritura que existiu na Câmara de Alenquer, o ano de 1272, enquanto Jaime Cortesão, adoptando sugestão de Frei Manuel da Esperança e tendo à vista documentos do Arquivo desse município, afirma ter sido o convento de São Francisco o palco da primeira realização de um Império do Divino, em 1323 41. Alguns autores têm optado, em alternativa a Alenquer, pela Sala dos Infantes do Paço da Vila de Sintra sem, contudo, especificarem a ocasião do evento 42. Porém, já no Compromisso da Confraria do Espírito Santo de Benavente 43, o mais antigo que se conhece (coevo da fundação da igreja do Espírito Santo dessa localidade que presumivelmente se verificou no primeiro quartel do séc. XIII), se alude à festividade do Império, o que induz a supor a sua concretização aí anteriormente a 1272 44: 40 Iconografado num óleo, anterior a 1670, desaparecido, da Capela Real do Paço da Ribeira e num outro, sobre tela, de Bento Coelho pertencente ao acervo da matriz de Salvaterra de Magos. Cf. Luís de Moura Sobral, Bento Coelho (1620-1708) e a Cultura do seu tempo, Lisboa, 1998, p. 286, n. 34. No coro-alto de Santa Clara-a-Nova (3º retábulo lateral do lado da Epístola), acha-se um terceiro óleo figurando o episódio em apreço, entalhado por António Gomes e Domingos Nunes. Cf. Nelson Correia, A Talha, in Monumentos, n. 18 (Mar. 2003), p. 65-73 e Ana Rita Carvalho, Imagens seiscentistas da Rainha Santa Isabel, in Invenire, n. 12 (Jan.-Jun. 2016), p. 44-47. 41 Os Factores democráticos na formação de Portugal, Lisboa, 1966, p. 195-197; ver também Memórias Paroquiais, v. 2, n. 46, p. 320 42 Cf. Frei Francisco Brandão, Monarquia Lusitana, sexta parte, cap. 42 e Figanière, Memórias das Rainhas de Portugal, p. 213. 43 Houve nesta localidade Irmandade do Espírito Santo em data anterior a 1237, conforme documentação editada por Rui de Azevedo, Benavente: Estudo Histórico- Descritivo, Lisboa, 1926, p. 81-110; 117-120; 279-280. 44 António Brásio: “Não há documentos de instituição da confraria do Espírito Santo de Benavente, nem da feitura de seus estatutos. Se a data de uma verba, segundo a qual, D. 33 “[…]. Assim que nós sobreditos, desejando de cumprir estas coisas instituímos das próprias fazendas em o ano uma vez um convite [i. e., um bodo] aos pobres por dia do Espírito Santo, digo, pobres em Cristo, o qual Cristo é apascentado em os pobres, aos quais todos os confrades cautelosamente terão e a nenhum ofenderão e com diligência em vestiduras farpadas e bem aparelhadas, as quais cada um dos confrades acerca de si terão para ministrar, tirando os clérigos, as quais coisas, procuradas [e juntas], os clérigos com sobrepelizes e os leigos com as vestiduras farpadas [roupas rôtas = pobrezaevangélica] 45 devem de discorrer pelas igrejas cantando com Plagia mandava cantar anualmente uma missa por uma herdade que legara à Confraria do Espírito Santo da mesma vila, é do mês de Agosto de 1272, da era de César, que corresponde a 1234 da era cristã, sabido é que nesta data já existia em Benavente a dita confraria sem que se saiba desde quando”. 45 A Pobreza Evangélica foi o tema crucial da disputa entre espirituais e conventuais. De acordo com S. Boaventura, a pobreza mais não é que a forma de imperfeição exterior que a perfeição exclusiva de Cristo assumira; por esse motivo devia a sua relativa perfeição à graça de Jesus mais do que ao seu valor intrínseco. Na prática ambos os grupos concordavam que a pobreza constituía um antídoto contra a cupidez, fonte de todo o mal. Porém, os espirituais consideravam que só o usus pauper, i. e., a prática efectiva da pobreza absoluta, constituía sinal de pobreza evangélica, não passando tudo o resto de transgressão a esse ideal. A adesão ou recusa do usus pauper tornar-se-ia sinónimo de lealdade ou oposição ao exemplo de renúncia ao mundo por parte de S. Francisco, reverenciado corno um quase émulo de Cristo e indigitado guia da renovação espiritual e fundador da nova era a que tal santificação conduziria. A veemência das posições dos fraticelli introduziria um tom apocalíptico no debate, uma vez que entendiam a aspiração aos bens e conhecimentos mundanos, como marca do Anticristo. Por seu turno, Pedro Juan Olivi, único espiritual que advogara a obediência aos superiores da Ordem e da hierarquia da Igreja, encarava a pobreza evangélica corno um estado de perfeição interior, directamente proporcional à caridade como fonte de todo o bem. Assim, quanto maior a renúncia ao mundo, tanto maior a caridade subjacente a essa renúncia. Donde a fortuna dos beguinos ou begardos, até em Portugal. Álvaro Pais trataria o problema da pobreza teórica de Cristo e dos franciscanos no De Planctu Ecclesiae (v. 2, art. 55-57, fl. 173a), apropriando-se frequentemente, ad litteram e sem indicar a fonte, do Tractatus de paupertate Christi et Apostolorum do franciscano Frei Bonagracia de Bérgamo (Cf. Archivum Franciscanum Historicum, v. 22, 1929, p. 315- 316 e 322; Alejandro Amaro, Fr. Álvaro Pelagio, su vida, sus obras, su posición respecto de la cuéstion de la pobreza teórica, en la Orden Franciscana, bajo Juan XXII, 1316-1334, in Archivo lberoamericano, Madrid, 1916). Sobre a Pobreza Evangélica, ver Tratado de Confissom (1489 [Lisboa, 1973, p. 98-99 e 231]): "[...]. É esse mesmo o estado das religiões. Porque estes nunca são fartos nem contentes por muito que hajam, case têm um cálice queriam outro e se têm dois queriam quatro, e se quatro oito, e assim subir de um em outro, e das vestimentas isso mesmo, e das cruzes e dos outros ornamentos que fossem tantos e tão nobres que em toda a terra não fossem achados outros tais. E assim dos hábitos e das câmaras muito bem pintadas e das coisas 34 pandeiros e compãs [trombetas?] bem soantes [juntamente assim como o diz David] louvando ao Senhor, e distribuindo aquelas esmolas aquele dia e com muito prazer e alegria, porque em verdade ao tal dador ama Deus. Mais instituímos que se algum confrade adoecer, os confrades o visitarão por cada sua noite, procurando de o visitar e assim os mordomos com suas próprias pessoas de vigiar até serem certos de sua saúde. E se morrer mui honradamente, com candeias acesas o corpo leve à igreja e o guarde até ser sepultado, e quando aquele corpo sepultarem todos os confrades com cada um sua candeia acesa na mão farão celebrar uma missa pela sua alma e de todos os fiéis de Deus cantada e oferecerão cada um seu dinheiro, e depois que haja sido sepultado os mordomos tomem as candeias e os dinheiros e deem a uma parte [que for do seu agrado] ao capelão que disser a missa e ao altar, e a outra ponham em o seu tesouro para comprar as coisas necessárias. E aos 30 dias farão cantar [por sua alma] outra missa como a de cima com suas candeias [acesas] nas mãos e dinheiros para oferecer. E se algum confrade for caminho e adoecer todos os confrades mandem por ele, e isto até jornada de um dia, e se morrer o mesmo farão. Os confrades sempre terão em seu tesouro incenso, pano de linho, candeias, vestidos e todo o necessário [pranchas de cortiça para envolver o corpo do defunto] para enterrar os mortos. Se algum confrade ao seu confrade algumas injúrias disser ou lhe chamar necessárias desta vida fossem a tão nobres que não pudessem ser achadas outras tais. E isso mesmo os mosteiros mui pintados e mui grandes. Assim como Deus morasse nas altezas grandes dos mosteiros ou nas pinturas das paredes e não morasse nas almas limpas dos pecados, porque tanto fazemos por estas coisas, ca já não avondaria para servir Deus nas igrejas feitas simplesmente; assim como são as outras que são simples; assim como mandava São Francisco a seus freires que houvessem casas de pedra e de lodo em que morassem. E que não andassem depos las pinturas da parede mais que andassem em pos o espírito e tão grandes são os haveres que despendem em fazer estas obras dos mosteiros que bem avondariam em comer e beber e em vestir a todos os pobres da terra e por azo de fazerem aquestas coisas com grande cobiça nunca lhes minguam obras e é azo de pedirem esmolas e ainda que as areias do mar fossem ouro não abastaria tanta é a sua cobiça para cumprir estas coisas. [...]. E por isto a cobiça em todos os estados do mundo é senhora e rainha esta é aquela pela qual são feitas e obradas todas as malícias do mundo. Esta obrou e fez cisma na igreja de Deus e a mantém [...]". Cf. E. Randolph Daniel, Spirituality and Poverty: Angelo de Clareno and Ubertino da Casale, in Medievalia et Humanística, nova série, n. 4 (1973), p. 89-93; M. D. Lambert, Franciscan Poverty, the Doctrine of the Absolute Poverty of Christ and the Apostles in the Franciscan Order (1200-1323), Londres, 1961. 35 tredo [imbecil, sodomita ou esterco] ou alguma coisa falsa disser, este entre no capítulo e seja açoitado com três açoites em camisa, e então jure sobre esta carta [aliás: sobre esta cruz e carta] que por ira disse aquilo e não por feito que lhe vise, e pague meia libra de cera para a confraria. E se o ferir com mão cerrada ou aberta entre no capítulo e seja açoitado com seis açoites e dê à confraria uma libra de cera. E se algum confrade a outro confrade ferir com espada, lança, cutelo seja deitado da confraternidade. Se algum confrade sem sua culpa em alguma pobreza vier ou em algum cativeiro cair ou todas as coisas lhe arderem, todos os confrades do débito de caridade seus [aliás: seis] dinheiros lhe contribuam. Se alguma viúva ou pobre [aliás: viúva pobre] entre nós estiver ao qual lhe haja caído sua casa ou que a sua vinha não possa corrigir por pobreza todos os confrades trabalhem nela e a sua casa lhe ergam. E nenhum confrade ao outro confrade presuma trazer em Juízo nem em outro lugar ainda que seja contra parente ou estranho, porque quanto aí perder tudo lhe há-de pagar e também pagará meia libra de cera à confraria. Se algum dos nossos confrades com algum homem razões houver ou contenda que não seja dos da confraria, todos os confrades sejam por parte do nosso confrade. E se algum confrade com outro confrade algumas razões ou contenda tiver ou houver, venha diante dos nossos juízes e eles os concertem. Se algum confrade recusar ao juízo dos nossos juízes e o não quiser receber seja deitado da confraria [...]. Assim que todos os irmãos, assim como é escrito acima, vestidos devemos honradamente levar os pobres defuntos à[s] igreja[s], assim como qualquer confrade nosso, e estar com candeias acesas atéque seja sepultado e pela alma dele oferecer cada um seu dinheiro dos quais aos nossos mordomos queiram que sejam aquelas coisas que se aí despenderem restauradas, incenso, panos e outras coisas [aliás: e pela alma dele [defunto pobre] cada um entregar aos nossos mordomos seus dinheiros, com os quais se possam repor o incenso, panos e outras coisas que aí se despenderem]. Determinamos mais que em aqueles tempos em que soem fazer prantos sobre os mortos, a saber, quando o corpo da casa é levado à igreja e depois que é sepultado os confrades cantem e saltem [aliás: salmodiem?] porque por isto o pranto das mulheres seja minguado e também o pranto dos homens” 46. 46 Tradução em linguagem, realizada cerca de 1544, do compromisso original (decerto anterior a 1272), em latim. Cf. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Benavente: estudo 36 Em 1623, ainda era organizada nos seguintes moldes a festividade do Império, promovida pela confraria do Espírito Santo de Benavente: “A festa do Espírito Santo que é o fundamento desta Santa Casa [da Misericórdia] se costumou sempre fazer e obrar com muita pontualidade, e acharam que sempre se usou na maneira seguinte: que se ordenassem umas charamelas ou trombetas as quais cantariam as vésperas e aos touros que comumente sempre se costumaram haver e ao dia do Espírito Santo a missa e no mesmo dia das duas horas da tarde sairá o provedor e capelão e os Irmãos do ano com a folia e charamelas; e o irmão que for mordomo da tal festa levará o guião do Espírito Santo e o companheiro a coroa em um prato de prata; e assim andarão por a vila por as casas provocando deem esmolas à casa de touros e do mais como sempre foi costume, e se mata um boi que se dá aos pobres e aos ministros da casa. Ao outro dia primeira oitava se ordenarão doze moças bem trajadas e vestidas, as quais levarão em seus tabuleiros as esmolas de trigo que são dez alqueires com cada uma sua vela na mão; e assim duas mulheres para levarem a oferta de vinho que são dois almudes; e com cada uma sua vela; e assim dois homens que levam dois carneiros com suas velas também, que é a oferta que achamos que sempre se deu aos padres da Igreja por a missa que naquele dia se diz na Igreja matriz por a alma de Pero Urzela e de Sancha Fernandes sua mulher 47 e de Maria Anes […]. À primeira oitava pela manhã o provedor com os Irmãos, levando a folia e as charamelas, irão por todas as casas aonde estiverem as moças apartadas e as levarão e ajuntarão, e ao sair de cada uma das ditas moças de casa se lhe tocarão as charamelas e assim se ajuntarão e levarão até à casa do mordomo; da qual tornarão as ditas moças com os tabuleiros na cabeça com o trigo da esmola; e as mulheres com o vinho; e os homens com os dois carneiros. Irão caminhando até à Misericórdia com uma cruz, indo diante a folia e as histórico-descritivo (obra póstuma continuada e editada por Rui de Azevedo), Lisboa, 1926 p. 81-83; Rui Pinto de Azevedo, O Compromisso da Confraria do Espírito Santo de Benavente, in Lusitânia Sacra, v. 6 (1963). 47 Evidente lapso, porquanto, consoante verba do Compromisso, a mulher de Pero Urzela não foi Sancha Fernandes, mas Maria Pires. Aquela foi a doadora dos ornamentos. 37 charamela tangendo com muito prazer; e os Irmãos do ano irão de uma e outra parte afastando a gente. Da casa da Misericórdia aonde entrarão com esta oferta dando uma volta ao derredor da casa e se tornarão a sair com a cruz da casa e da Igreja em procissão com grande prazer e alegria, caminhando para a Igreja matriz, aonde se há-de dizer e sempre costumou dizer a missa a qual será de canto de órgão e solene; e a oferta se oferecerá o dito trigo, indo cada moça com o seu tabuleiro à cabeça e na mão esquerda a sua vela acesa, e assim irá ao sacerdote e beijando se volverá para a sacristia, e nesta mesma ordem irão as do vinho e os dos carneiros. Acabada a missa por a qual se dá de esmolas aos padres, além da oferta de trigo, vinho e carneiros, trezentos reis se irão os três padres revestidos assim como estiverem à missa com as ditas cruzes e dez irmãos com suas tochas, assim como estiverem à missa e irão ao adro desta vila e dirão um responso ao pé da torre aonde está a campã e logo dirão outro ao canto da Igreja da parte leste; e logo dirão outro que é o último à porta da Igreja aonde está outra campã; e acabados se tangerão as charamelas e os foliões com muito prazer e alegria porque assim achamos ser costume antigo, e por tradição se dizer sempre que a instituidora desta festa, Maria Anes, era grande bailadeira e que assim mandou que tal dia se bailasse sobre sua cova” 48. O mesmo ritual, ou similar, poderá ter ocorrido em outros pontos do território nacional, onde consabidamente existiram confrarias e hospitais sob a tutela do Divino Paráclito, anteriores aos de Alenquer, promovidos ou inspirados por franciscanos de tendência espiritual. Os mesmos que secundando o proselitismo de Santa Isabel (que só pisou solo nacional no ano de 1288!) lograriam levá-la a patrocinar e, porventura, institucionalizar em Alenquer, na segunda década do séc. XIV, tais festejos com um aparato nunca antes visto, o 48 Cf. Lembranças dos costumes desta Sancta Caza da Misericórdia, n. 13ºa 17º, tomadas em Mesa de 11 de Junho de 1623 (Livro de Registo das Provisões e Sentenças de Sua Majestade, etc., 1622-1779, fl. 48-51),no tempo do provedor Belchior Leitão Correia. No tombo da matriz (fl. 119v-122), sob o título Capela de Maria Anes, da maneira que se há-de fazer a festa, acha-se uma cópia da descrição da festividade do Império, feita em 1708 por Frei António Antunes Machado, beneficiado na matriz e então escrivão da Misericórdia. Foi tal a popularidade de Maria Anes que o Auto do Império de Benavente ficou conhecido pela “festa de Maria Anes”, designação que ainda conservava em 1731. Cf. Livro de Registo das Provisões…, fl. 72-73. 38 que terá contribuído para radicar a tradição segundo a qual sob a sua égide e a de Dom Dinis se haviam originado. Não será excessivo recordar que também Mário Martins põe “sérias dúvidas” à invenção “da solenidade do Império”, pela Rainha Santa e por Dom Dinis 49, opinião igualmente partilhada pelo investigador gaulês Daniel-Francis Laurentiaux 50. Em suma, de duas coisas distintas muitos exegetas têm feito uma insustentável: sendo indiscutível que D. Isabel protegeu e dotou generosamente a Irmandade do Espírito Santo de Alenquer, carece já de qualquer fundamento documental coevo plausível (porquanto a ideia é posterior à canonização da rainha, em 1625!), a sua creditação enquanto introdutora da devoção do Império em Portugal! De tão concitado por supostas autoridades na matéria (avalizadas em fontes, cuja letra atraiçoaram), passou a condicionar, hodiernamente, a forma como umas quantas comunidades, maioritariamente da diáspora portuguesa nos Estados Unidos da América do Norte, bem como algumas insulares açorianas, contaminadas por aquelas, ritualizam os festejos do Divino. 49 Teatro Sagrado na Idade Média, in Brotéria, v. 50, n. 2 (Fev. 1950), p. 148. 50 Também Álvaro Rodrigues de Azevedo – Rui de Azevedo, após constatarem a omissão, nos três testamentos da Rainha Santa (19.4.1314; 12.3.1328; 5.7.1336), de quaisquer referências, quer à igreja do Espírito Santo, quer ao Império de Alenquer, não hesitariam em afirmar que “a rainha Isabel foi estranha a isso tudo”. Cf. Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Lisboa, 1926, p. 280. 39 II “E a cidade é fundada em quadro, e tão comprida como larga: e mediu ele a Cidade com a cana de ouro [...]. E o seu comprimento e asua altura e a sua largura são iguais”. APOCALIPSE, XXI, 16 A principal cerimónia da Função, Folia, ou Império, consistia, salvo ligeiras variantes regionais, na coroação com três coroas, uma imperial e duas reais, do Menino Imperador assessorado por dois Reis – por vezes figurados por um homem maduro e por outro idoso -, na razão das Idades do Espírito Santo, do Filho e do Pai, respectivamente. O Menino, símbolo da humanidade espiritualmente renovada e religada às verdades fundamentais da pobreza evangélica do amor fraterno, empunhava o ceptro, com que tocando na testa dos fiéis se significava a bênção do Divino. Após ter recebido as homenagens do Povo e das autoridades civis e eclesiásticas procedia à libertação de um, ou de vários presos, concluindo os festejos com um vodo, ou bodo 51, servido a todos, independentemente da sua condição social e credo, e constituído por um repasto, regra geral, confeccionado com a carne de bois previamente corridos, pão, vinho e arroz-doce 52. Num dado momento, ainda nebuloso, o vocábulo Império ter- se-á tornado sinónimo de Teatro do Divino, expressão que havia de ser adoptada para designar o palco onde, anualmente, se encena o Auto do Império, como prelúdio da Nova Ordem Mundial, cujo advento na Terra se antevê como prefiguração de uma hierofania de âmbito cósmico. 51 Corruptela do latim voto, compromisso de partilha de um dom, por natureza, gratuito. Por amplificação semântica, ou sinédoque, o vodo foi transformado no bodo,evocativo do acto de comer, apesar de não ser o feminino de boda (do hebraico abodah), repasto oferecido pelos noivos aos convidados para o seu casamento. 52 Cf. Manuel J. Gandra, Sabores, Cheiros e Comeres do Divino (no prelo). 40 Império do Penedo (Sintra), O Imperador distribuindo alimento (Açores, 1907), Folia da Fajãzinha (Flores, Açores) 41 Libertação do preso no Império da Baía (séc. XIX) No Teatro do Divino tomava assento, no domingo de Pentecostes, o Imperador, com a respectiva corte, logo após a cerimónia da coroação. Nele era armado um altar, decorado com colchas de tear, onde era depositada a coroa Imperial, destinando-se, igualmente, à recepção das inúmeras oferendas dos devotos. Até ao anoitecer, o povo permanecia no terreiro adjacente, festejando o Divino, mediante a recriação de elaborados enredos sacro-profanos por intermédio dos quais se divertia, divulgando, concomitantemente, a mensagem do Evangelho Eterno, nem sempre tolerada quer pelo trono, quer pelo altar, conforme denotam as sucessivas invectivas e proibições de que foi alvo a devoção 53 que, disse-o Jaime Cortesão, explica boa parte da História de Portugal. 53 Ver Manuel J. Gandra, Colectânea das principais censuras e leis contra os Impérios do Divino Espírito Santo, in Newsletter do Centro Ernesto Soares de Iconografia e Simbólica, n. 16 (6 a 8 Jun. 2003). 42 Faria e Sousa corrobora-o, pelo menos, no que concerne à expansão marítima, quando admite: “[…] las [naves] llevo Dios, a quien ellos obedecen, i no a otro poder, o ingenio alguno, i que no ay duda que soplo en aquellas velas el viento del Espirito Santo, como lo pondera nuestro grande Juan de Barros en el capitulo segundo del libro quarto de la Década primera. I quien duda, que esse entendio nuestro gran Poeta quando introduxo […] a Venus por su protectora, siendo ella una Diosa que conforme a las misteriosas fabulas es assistida, i aun engendrada de palomas […]” 54. Não obstante me sejam familiares inúmeros registos minuciosos do Auto do Império no território continental 55, prefiro, na presente circunstância, evocar o testemunho de um insular, o padre Joaquim Chaves Cabral, acerca da função do Divino na ilha açoriana de Santa Maria e do papel do Teatro no respectivo contexto: “Durante o trajecto até ao Teatro a folia à frente, a uma certa distância, canta a sua cantilena, o clero e os músicos cantam o Te- Deum e a filarmónica o Hino do Espírito Santo. Noutros tempos, quando os costumes o toleravam, um grupo especial de cantadores cantava a alvorada dirigida por um trovador com acompanhamento de violas e rabeca. Era um conjunto de vozes e sons característicos. Chegado o cortejo ao Teatro, sobe o menino acompanhado do Trinchante, e, voltado aquele para o público, de coroa na cabeça, é entoado pelos cantores o Te-ergo e levantado pelos foliões um viva ao Espírito Santo, acompanhado pelo tambor e que é entusiasticamente correspondido pelo povo. A coroa é posta sobre a mesa e o pároco acompanhado do seu ajudante sobe para benzer o provimento da mesa [grande pão, chamado pão da mesa, de um alqueire, ou mais, de uma rosca de três quartos, de uma bandeja de pequeníssimos pães, chamados brindeiros bentos e de um frasco de vinho]. Quase sempre o primeiro provimento da mesa é conduzido ao Teatro pelo Imperador e pessoas de sua família, outras vezes por pessoas estranhas que os oferecem em cumprimento de promessas. A massa deste pão é mal temperada, no geral, e só se aproveita bem em torra. 54 Cf. Comentário a Os Lusíadas, v. 1, 1639, p. 103-104. 55 Cf. Manuel J. Gandra, Dicionário do Milénio Lusíada, v. 1, Lisboa, 2003. 43 Começa agora o trinchante a sua árdua e honrosa tarefa da distribuição das Flores do Espírito Santo [pedaço de pão ou rosca] com que vai entretendo o povo em volta do Teatro. [...] Logo que o Trinchante começa a distribuição, aglomera-se o povo em volta do Teatro, especialmente a rapaziada que grita de mão no ar: Senhor Trinchante um bocadinho de pão de mesa. [...]. E assim continua até ao fim do dia. Todo o movimento do Império está no Teatro e na copeira” 56. Com efeito, “todo o movimento do Império está no Teatro e na Copeira”, isto é, respectivamente, no palanque destinado à coroação e entronização do Imperador e na despensa-refeitório, onde o Divino, por seu intermédio, providencia a abundância alimentar à comunidade. Panelões em cobre, do trem de cozinha do bodo do Império de Alcabideche (Cascais) 56 Cf. Festas do Espírito Santo na Ilha de Santa Maria, in Arquivo dos Açores, v. 14 (1921). 44 Prato de bodo (Biscoitos, Terceira, Açores) e Cangirão para vinho (Império do Outeiro, Angra do Heroísmo, Terceira) Tijela de sopa de Esmola do Espírito Santo (Império da Fonte do Bastardo, Terceira) 45 Bodos em S. Miguel (1907) e Angra do Heroísmo (Terceira, Açores), nos inícios do século XX 46 Arneiro (Alenquer) e São Martinho do Campo (Santo Tirso): capelas do Espírito Santo com seus alpendres Capela (Sardoal) e Teatro (S. Miguel, Açores) do Divino Espírito Santo Em Portugal, o alpendre ou telheiro, muito vulgar nas ermidas e capelas do Espírito Santo 57, por vezes precedido por escadaria 57 Na região de Alenquer subsistem vários exemplos. 47 (elevado, portanto, relativamente ao piso circundante) 58, assumia a função consignada nos Açores ao Teatro. O carácter de galilé que assumia nesses casos estaria, evidentemente, relacionado com o significado desta: antecâmara da Terra Santa (Galileia), espaço de transição entre o mundo profano e a ordem sagrada. Capela do Divino Espírito Santo do Fundão (Castelo Branco) No arquipélago dos Açores o Império começou por ser um simples estrado, palanque, varanda, pavilhão ou telheiro móvel, em madeira, erguido no adro da igreja, apoiado sobre colunas, coberto com colmo, faia ou giesta e ornamentado com colchas (vulgo arramada). 58 Diversas ocorrências podem ser apontadas nasregiões de Torres Vedras e Mação, bem com na Beira Baixa. 48 Arramada da Horta (Açores) 49 Os Impérios, em alvenaria, têm sido invariavelmente interpretados como os sucedâneos de tais estruturas rudimentares e efémeras 59, que, apesar de tudo, persistem, geralmente diante dos próprios Impérios ou nas traseiras das igrejas, como ainda se observa na ilha de Santa Maria. Para os adeptos de taxonomias, direi que são três os grupos de Teatros característicos do arquipélago dos Açores: 1. Impérios-casa, também denominados Casas do Espírito Santo Em algumas das ilhas açorianas do grupo ocidental, como, por exemplo, nas Flores e no Corvo, as Casas do Espírito Santo desempenham o papel que os Teatros assumem na função do Império em outros locais do arquipélago. Casa do Espírito Santo (Flores, Açores) Assemelha-se a uma vulgar moradia, excepto por possuir cores garridas e uma coroa imperial na fachada. No seu interior desenrolam-se todas as cerimónias e actos cultuais, sagrados, ou profanos, do Império 59 João Ilhéu, Cadafalsos, “Triatros” e Impérios, in Notas Etnográficas, Angra do Heroísmo, 1980. 50 Altar do Divino da Casa do Espírito Santo da Fajãzinha (Flores, Açores) Trata-se de simples casas lineares térreas, em alguns casos, adaptadas ao fim a que se destinam, quer seja realizar a liturgia do Império, num espaço organizado como uma autêntica capela, confeccionar alimentos, reunir comensais, ou mesmo armazenar alfaias. 2. Teatros marienses Alpendres e copeiras de carácter austero e de linhas arcaicas, evoluiriam para o modelo mais elaborado dos cadafalsos ou teatros de São Miguel. Nas ilhas do grupo oriental (Santa Maria e São Miguel), a maioria dos Alpendres, Cadafalsos ou Teatros remanescentes foi erigida em época remota, bastas fontes documentais referindo-se a tais estruturas e descrevendo-as acopladas a algumas das igrejas construídas no início do povoamento do arquipélago. O mesmo critério pode ser constatado na Graciosa, onde, na Vila da Praia, o 51 Teatro do Divino foi construído encostado a uma das paredes laterais da matriz de São Mateus. Teatros de São Miguel (o 1º demolido), de Santo António (Santa Maria), do Farroupo e dos Arrifes (Ponta Delgada, S. Miguel) Em algumas das ilhas, o papel que os Teatros assumem no Auto do Império noutros locais do arquipélago é desempenhado pela Copeira, casa pobre, de pavimento térreo, constando de simples sala espaçosa com extensas mesas de madeira fixas e de uma ampla cozinha com lugar para 12 a 15 grandes panelas. 52 Eis um relato do que ocorre durante o Pentecostes numa Copeira de Santa Maria: “Na copeira estão as mesas postas e são convidados a entrar os que acompanham a coroação - homens, mulheres e crianças, uns após outros. Serve-se sopa de pão de trigo, carne cosida, pão e vinho. No fim de cada refeição estruge no ar um caloroso viva ao Espírito Santo. [...]. E assim até à noite se põem mesas e levantam mesas, enquanto há pão e carne, que, em regra nunca faltam, antes sobejam”. O vocábulo Copeira volta a ocorrer num relato do Padre Manoel Azevedo da Cunha, datado de Março de 1905, reportando-se aos festejos do Império na Vila da Calheta (São Jorge): “No domingo - a missa de festa e coroação - seguindo os emblemas para uma casa de depósito próxima à igreja, e a que chamam copeira, teatro ou cadafalso. Ali fica a coroa em veneração todo o resto do dia: a coroa no trono do altar; e a bandeira com o coto da haste dentro do cadafalso, e o restante saindo pela respectiva janela, e fora do edifício. Depois do jantar, onde comparece quase toda a fidalguia do lugar, manda o imperador para a copeira, uns grandes pães, travessas de carne guisada, um cabrito assado, vinho e doces, para obsequiar qualquer que, estranho à freguesia, passe e se demore no arraial, ou para distribuir pelos pobres, velhos ou crianças que sempre acodem das freguesias limítrofes. [...]. E assim empregam a tarde na distribuição do doce. Simultaneamente ha no arraial outros motivos de diversão: bandos [loas] danças de fitas, de arcos, de maços, de pau da mó, cavalhadas, comédias ao ar livre, e descantes à viola, que é o instrumento vulgar na ilha”. 3. Impérios-capela ou Impérios-tabernáculo Característicos do grupo central. É consensual que os Teatros ou Impérios em alvenaria, abobadados, da Terceira e de São Miguel, representam o culminar de uma evolução a partir dos primitivos Alpendres, Cadafalsos e Teatros efémeros, em madeira (estrados ou palanques móveis), expressamente edificados para a festa do 53 Pentecostes, mesmo em espaços privados, como era o caso dos conventos 60. Por exemplo, as freiras do Mosteiro de São João, na cidade da Horta (Faial), festejavam o Espírito Santo, com grande solenidade, desde a Páscoa até ao Pentecostes. Segundo testemunho de Gabriel d’Almeida, “[…] armavam o Teatro na cerca, de modo a que pudesse ser visto da Torre da Matriz, que servia de tribuna aos curiosos. Faziam a missa da coroação, com sermão e conduziam depois, com aparato, a coroa para o Império. Durante o trânsito para o tabernáculo a comunidade cantava o Magnificat”. O investigador micaelense, Luís Bernardo D’Ataíde descreve esses Teatros do Espírito Santo num artigo publicado em 1928, na Revista dos Açores: “[...] sustidos por colunas ornamentadas com berrantes calos, uns telhados, outros de abóbada suspensa em toscas pilastras de grosseiros cunhais encruzados. Na sua feição pitoresca, na rudeza das suas linhas, no desmantelado do aspecto e no exotismo da arquitectura, eles vão pondo notas de impressionante excentricidade pelos povoados, lendo-se nas suas colunas fendidas e nas pedras patinadas que os compõem, uma das mais interessantes páginas da nossa etnografia. Aí são recebidos o ceptro e a coroa de prata na sétima dominga, aguardando o sorteio do mordomo da primeira dominga, para casa de quem seguem então ao anoitecer”. Até há relativamente poucos anos, tais estruturas eram vulgares no Pico e no Faial, sendo cobertas com ramagens de arvoredo comum, donde o nome de ramadas ou arramadas que se lhes dava. Tais estruturas efémeras persistem ainda em algumas localidades das ilhas 60 Apresentavam certas semelhanças com as denominadas Varandas da Aclamação, expressamente erguidas para as cerimónias de entronização dos monarcas portugueses, como se comprova pela iconografia que figura o acto. A 12 de Outubro de 1822, D. Pedro I foi aclamado Imperador do Brasil, num Teatro, edificado diante do Paço Real, exactamente defronte daquele onde eram dispensadas as mesmas efusivas homenagens ao Imperador do Divino, no Campo de Santana (Rio de Janeiro). Aliás, consta que terá sido justamente essa a circunstância que determinou a adopção do título de Imperador pelo príncipe. 54 de São Miguel, de Santa Maria e da Graciosa, onde o Império das Sete Marias, no lugar das Fontes (Santa Cruz), constitui o último testemunho do género, patrocinado, há cerca de 40 anos, por uma Irmandade de mulheres, a Irmandade das Sete Marias. Trata-se de uma estrutura cúbica, de mais ou menos quatro metros quadrados de área, por dois metros e meio de altura, toda em madeira, e pintado de azul. Tem no interior um altar rudimentar, onde é depositada a coroa da Irmandade, depois da coroação. Este pequeno Teatro possui apenas uma porta na frente, e duas janelas de cada um dos lados. É montado no centro da localidade, onde também se desenrola o programa festivo. Em suma: o estrado elevado dos Teatros efémeros poderá ter- se transformado numa estrutura, quase invariavelmente, de forma cúbica, coberta de colmo ou madeira (à semelhança da maioria dos imóveis destinados à habitação, então denominados Casas palhaças) e totalmente
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