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Em 1919, a Conferência de Paz de Paris reuniu 32 nações em torno da elaboração do acordo que deveria ser o marco de encerramento da Primeira Guerra Mundial – e, na visão triunfalista de alguns, o fim de qualquer possibilidade de novo conflito da mesma proporção. O resultado foi um dos maiores equívocos diplomáticos de todos os tempos. O tratado de Versalhes, que supostamente viria a pacificar o mundo, acabou por se tornar a semente de uma violência ainda maior, criando condições para a ascensão do nazismo na Alemanha e a eclosão da Segunda Guerra Mundial, apenas vinte anos mais tarde. O livro O tratado de Versalhes – mais um lançamento da Coleção Globo Livros História – revela com riqueza de detalhes os bastidores das negociações que formataram o documento. Tudo relatado por uma testemunha privilegiada daquele momento histórico: o escritor Harold Nicolson, que em 1919 atuou como membro júnior da delegação diplomática inglesa à Conferência de Paz de Paris. Então um jovem diplomata especializado em questões territoriais, Nicolson descreve com lucidez a distância entre ações e intenções dos grandes líderes – entre eles, o presidente norte-americano Woodrow Wilson, o primeiro-ministro britânico David Lloyd George e o premiê francês Georges Clemenceau –, bem como as circunstâncias que levaram a escolhas irrefletidas, como, por exemplo, a pressão das massas por uma implacável reparação aos danos que o lado perdedor (sobretudo a Alemanha) causara aos países vencedores. O título se divide em duas partes. Na primeira, o autor faz uma avaliação crítica do encontro diplomático, relacionando a desorganização, os erros, os infortúnios e as desavenças que levaram a um acordo final completamente diferente daquele que havia sido imaginado inicialmente como justo, viável e favorável ao restabelecimento da paz no continente europeu. A segunda parte do volume apresenta trechos selecionados do diário que Nicolson escreveu ao longo dos seis meses de missão diplomática, da abertura da conferência até a assinatura do tratado que praticamente decretou a ruína econômica da Alemanha. Ao publicar este livro em 1933, o autor fez questão de esclarecer que, mais do que um registro histórico, buscou reproduzir a “infeliz e doentia atmosfera” da Conferência de Paz de Paris. Seis anos antes do início da Segunda Guerra, Nicolson garantia que desde 1919 muitos dos diplomatas envolvidos na elaboração do Tratado de Versalhes experimentaram “por longo tempo um sentimento de descrença, uma convicção de que a natureza humana, como uma geleira, se move apenas uma ou duas polegadas a cada mil anos”. LIVRO I MEMÓRIAS DA PAZ DE VERSALHES como parece hoje 1 Armistício DE TODOS OS RAMOS DA ATIVIDADE HUMANA, A DIPLOMACIA é a mais versátil. O historiador e o jurista, confiando no protocolo e no procès verbal, podem procurar manter suas condutas dentro dos contornos estritos de uma ciência. O ensaísta pode capturar as cores nas vinhetas de uma arte. Os especialistas – e houve muitos, de Callière a Jusserand, de Maquiavel a Jules Cambon – podem conseguir adensar suas experiências em livros capazes de orientar os que vêm depois. O jornalista pode dar ao quadro os enfoques e a interpretação do pitoresco. Em tais imagens, porém, sempre surge um elemento que escapa à realidade, há sempre o aspecto que se nega a ser registrado ou definido. Essa incerteza de tratamento resulta de causas diversas. Em primeiro lugar, a discrepância entre o protocolo criado e os estágios que levaram à sua adoção. Existe a divergência entre a evolução aparente da negociação e a que realmente ocorreu. Existe a tendência a atribuir efeitos manifestos a causas que só parecem manifestas. Existe a tentação de simplificar motivos mistos de forma a falsificar esses motivos. Existe a dificuldade em determinar a proporção entre iniciativa pessoal e viés de massa. Existe a permanente confusão de línguas, temperamentos, propósitos e interpretações. Acima de tudo, existe o risco de interpretar valores erroneamente, de atribuir a circunstâncias que parecem significativas uma importância que de fato não têm, de subestimar outras circunstâncias aparentemente triviais, mas que no momento foram fatores determinantes. Havia muito eu desejava descrever a nova diplomacia como uma sequela ou contraparte da feição da velha diplomacia que delineei na biografia de meu pai. Quanto mais considero o assunto, menos acredito numa real oposição entre as duas. Diplomacia é essencialmente o sistema organizado de negociação entre estados soberanos. O mais importante fator em tal organização é o elemento da representação – a necessidade fundamental de qualquer negociador ser plenamente representativo de seu próprio soberano. Pequenas mudanças que têm ocorrido nos procedimentos diplomáticos não devem, portanto, ser descritas como um rompimento abrupto entre os conceitos éticos de uma geração e os da geração seguinte. É menos uma questão de ética e mais de método: em outras palavras, foi a incidência da soberania que tem se deslocado, e não os princípios essenciais por que uma diplomacia eficiente se conduz. Hoje, que democracia significa a soberania de todos nós, certas transformações óbvias na prática diplomática foram, estão sendo e serão introduzidas. Mas descrever estas mudanças em termos de valores éticos e não práticos é uma interpretação equivocada de toda a função da diplomacia. O contraste entre a velha e a nova diplomacia não só traduz um exagero como pode prejudicar o estudo científico das relações internacionais. Fortalecido por esta convicção, decidi que não devia tentar esse confronto. Desejo, contudo, dar prosseguimento, de uma forma ou de outra, a meu estudo prévio da diplomacia anterior à guerra e completá-lo na forma de uma trilogia, da qual este volume representa a segunda das três obras. No fim, espero completar o trio com outra biografia e focalizar a diplomacia posterior à guerra em torno da personalidade de Lord Curzon. Neste, o segundo volume de minha trilogia, procurei analisar a fase de transição entre a diplomacia de pré-guerra e de pós-guerra, e dar uma ideia sobre a Conferência de Paz de Paris. Inicialmente, pretendi organizar este estudo também sob a forma de uma biografia, centrando minha história na personalidade de Mr Woodrow Wilson ou de Mr Lloyd George. Todavia, cheguei à conclusão que tal concentração do tema em torno de uma pessoa não daria o necessário destaque à espantosa dispersão de energia que constituiu o verdadeiro ponto-chave da Conferência de Paris. A perspectiva fechada e a continuidade pessoal características do método biográfico teriam prejudicado meu propósito. Estou bem ciente de que abandonando minha intenção inicial perdi imensamente na estruturação da obra, no interesse e no lucro financeiro. Porém, adotando tal método, estaria simplificando os assuntos em vez de proporcionar um quadro das confusões e complicações que de fato ocorreram. Decidi, pois, descrever simplesmente a Conferência de Paz na forma em que a vivi. Mais uma vez me encontrei diante de uma dificuldade. Constatei a impossibilidade de, neste momento, oferecer qualquer narrativa conexa da conferência em termos de assunto ou de cronologia. Por um lado, muitos documentos vitais ainda estão indisponíveis e, por outro, o método consecutivo não daria uma impressão acurada. O ponto importante a entender sobre a Conferência de Paris é sua espantosa inconsequência, a falta completa de qualquer método consecutivo de negociação ou mesmo de imposição. A verdadeira história da Conferência será escrita um dia de forma oficial, coberta de autoridade e legível. O que pode permanecer sem registro é a atmosfera daqueles mesesinfelizes, a névoa em que fomos envolvidos. Meu estudo, portanto, é um estudo em meio à neblina. O leitor não deve esperar qualquer lucidez contínua. Isso não existiu. Creio que li a maioria dos muitos livros que, desde 1919, foram publicados sobre a Conferência de Paz, alguns deles admiráveis, outros pelo contrário. Todavia, de todos extraí a impressão de que faltava algo essencial e estou convencido de que esta omissão crucial é a do elemento de confusão. É esse ingrediente – e somente este – que pretendi deixar bem patente neste volume. A lembrança daqueles dias congestionados é muito viva em mim. Foi reforçada pela leitura do diário que redigi na época. Quando decidi publicar, na segunda metade deste volume, os principais trechos do diário, o fiz convencido de que, em sua jovial trivialidade, reflete, melhor do que comentários da meia-idade desiludida, a atmosfera que pretendo transmitir. Mas a crítica que faço de meu próprio diário está implícita e não explícita. Na época, eu era jovem e estava compreensivelmente agitado. Não é necessário me desculpar por tais falhas. Mas confio em que minha tese principal fique bem clara. É esta. Dado o clima da época, considerando as paixões despertadas em todas as democracias por quatro anos de guerra, teria sido impossível, até mesmo para super-homens, imaginar uma paz de moderação e justiça. A missão dos negociadores de Paris ainda se complicava por circunstâncias particularmente confusas. Os ideais a que foram penhorados pelo Presidente Wilson eram não apenas impraticáveis em si mesmos, mas exigiam, para sua observância, a íntima e incessante colaboração dos Estados Unidos. Sentimos que sua colaboração talvez pudesse ser íntima, mas não poderia ser incessante. Foi portanto a tentativa de homens como Clemenceau e Lloyd George encontrar um meio-termo entre os anseios de suas democracias e os ditames mais moderados de suas próprias experiências, bem como o meio-termo entre a teologia do Presidente Wilson e as necessidades práticas de uma Europa furiosa. Esse duplo abismo tinha de ser transposto por meior-termos que, para uma geração seguinte, parecem hipócritas e enganosos. Mas não eram inevitáveis? E poder-se-ia esperar que a natureza humana, tão recentemente mergulhada na loucura da Grande Guerra, pudesse subitamente demonstrar a branda serenidade de uma sabedoria quase sobre-humana? Não respondo a essas perguntas. Deixo-as como indagações a serem respondidas por alguma geração futura. Tudo que espero alvitrar é que o erro humano é um fator permanente, não episódico, em história e que futuros negociadores estarão expostos, por nobres que sejam suas intenções, a futilidades de intenções e a omissões tão graves como as que caracterizaram o Conselho dos Cinco. Eles estavam convencidos de que jamais cometeriam os erros e as iniquidades do Congresso de Viena. Gerações futuras estarão igualmente convictas de serem imunes aos defeitos que acometeram os negociadores de Paris. Mas, por sua vez, estarão expostas aos mesmos micróbios e à eterna inadequação da inteligência humana. É com triste pesar que hoje em dia recordo aquela manhã de novembro em que Mr Lloyd George anunciou o armistício da entrada de Downing Street. A cena, até hoje, está indelevelmente impressa em minha mente. Eu trabalhava no porão do Foreign Office, num abrigo verde e roxo que, até poucas semanas antes, me protegera dos ataques aéreos dos alemães. Preparava-me para a eventual Conferência de Paz. Mais especificamente, naquela manhã de 11 de novembro estudava o problema do enclave de Strumnitza. Depois de trabalhar cerca de uma hora, constatei que precisava de mais um mapa. Subi as escadas para a torre onde se localizava nossa sala de mapas. A caminho, fui até a sala do administrador solicitar mais algumas caixas de lata para minhas necessidades na Conferência. Fui até a janela e olhei para baixo, na direção do nº 10 de Downing Street. Um grupo estava postado na faixa central da rua e havia meia dúzia de policiais. Eram dez e cinquenta e cinco da manhã. De repente, a porta da frente se abriu. Mr Lloyd George, com os cabelos brancos agitados pelo vento, surgiu na entrada. Acenou com os braços estendidos para a frente. Abri apressadamente a janela. Ele repetia insistentemente a mesma frase. Escutei suas palavras. “Às onze horas desta manhã a guerra estará terminada.” O pessoal se aproximou dele. Direto e sorridente, fez um gesto de despedida e se retirou, desaparecendo por trás da grande porta de entrada. Afluía gente a Downing Street, e em poucos minutos toda a rua ficou cheia. Não houve manifestações. A multidão se espraiou silenciosamente na direção do pátio dos Horse Guards Parade e espalhou-se em volta do muro do jardim de Downing Street. De meu privilegiado posto de observação, vi Lloyd George aparecer naquele jardim, agitado e entusiasmado. Foi até a porta do jardim e em seguida recuou. Dois secretários que o acompanhavam o estimularam a prosseguir. Ele abriu a porta. Pisou no lado de fora, no terreno de Parada. Acenou por um momento e novamente recuou. A multidão avançou em sua direção e as pessoas davam-lhe tapinhas nas costas. A mais viva lembrança de Mr Lloyd George é a deste momento. Um homem se afastando de admiradores muito ansiosos que se esforçavam histericamente para cumprimentá-lo. Deveria ter ido? Tendo ido, deveria ter recuado de forma tão pueril? Aquela cena foi um símbolo de muito do que estava para acontecer. Tendo-se recolhido ao abrigo de seu jardim, Mr Lloyd George riu à vontade com os dois secretários que o acompanhavam. Foi uma cena inesquecível. Afinal, os alemães tinham assinado. Voltei para meu porão e para o enclave de Strumnitza. Quando subi novamente, toda Londres estava enlouquecida. Foi dessa maneira que ouvi sobre a chegada da paz. Muitos anos se passaram desde aqueles dias de novembro quando, em meu subsolo verde e roxo, mergulhava no problema do enclave de Strumnitza. Hoje estou ciente de que, no mesmo período, os governantes do mundo estavam preocupados com questões de relevância muito mais grave. É necessário, ao examinar a base legal dos Tratados de Paz, concentrar-se desde o começo em saber se a correspondência triangular que teve lugar em outubro entre Washington, Berlim e as capitais das Potências Associadas constituiu um contrato no sentido legal do termo. Antes de irmos adiante uma só página, é essencial declarar o seguinte problema: “Os alemães depuseram suas armas em confiança ante o penhor dado por seus inimigos de que os termos da paz a seguir se ajustariam plenamente aos vinte e três princípios[1] enunciados pelo Presidente Wilson? Se assim foi, as Potências Aliadas e Associadas cumpriram ou violaram esse penhor, quando a Alemanha ficou a sua mercê? O problema é tão material para qualquer registro da Conferência de Paz que me sinto obrigado a repetir o procedimento de meus antecessores a propósito deste espinhoso ponto, revendo, em meu primeiro capítulo, os principais aspectos do acordo pré-armistício (o “pactum de contrahendo”) entre a Alemanha e as potências vitoriosas. As peças fundamentais da questão podem ser sintetizadas como se segue. Em 5 de outubro, o Príncipe Max de Baden, após inúmeras e ansiosas ligações telefônicas para o quartel-general alemão, dirigiu uma Nota Oficial ao Presidente Wilson pedindo-lhe para negociar uma paz com base em seus próprios Quatorze Pontos e nos nove princípios subsequentes e para facilitar a imediata conclusão do Armistício. Em 8 de outubro,o Presidente Wilson respondeu na forma de três perguntas: (a) O governo alemão aceitava os Quatorze Pontos como base para o desejado tratado? (b) Ordenaria a imediata retirada de suas tropas de todo o solo estrangeiro? (c) Poderia assegurar que o governo presente e futuro da Alemanha estaria sobre uma base verdadeiramente democrática? Em 12 de outubro, o Chanceler respondeu afirmativamente cada uma destas perguntas. Acrescentou que seu “objetivo ao entrar na discussão era simplesmente acertar detalhes práticos da aplicação” dos “termos” contidos nos Quatorze Pontos do Presidente Wilson e em seus pronunciamentos subsequentes. Em 14 de outubro, o Presidente Wilson novamente se dirigiu ao governo alemão. Disse-lhe que nenhum armistício poderia ser negociado sem “oferecer salvaguardas absolutamente confiáveis da manutenção da presente supremacia militar” dos exércitos Aliados e Associados. Acrescentou que a guerra submarina devia ser imediatamente terminada, e que um governo democrático e representativo devia ser instalado em Berlim. Em 20 de outubro, o Chanceler alemão respondeu acatando estas condições. Em 23 de outubro, o Presidente Wilson informou ao Governo alemão que, tendo agora recebido sua garantia de que aceitava sem restrições os “termos de paz” corporificados em seus próprios pronunciamentos, estava disposto a discutir com seus associados a concessão de um armistício sobre essa base. Repetiu que os termos excluíam toda a possibilidade de retomada de hostilidades. Deu a entender que o caminho para a paz seria facilitado pelo prévio desaparecimento de “autocratas monárquicos.” Acrescentou que comunicara aos Governos Associados a correspondência trocada com o governo alemão, perguntando-lhes se, de sua parte, estariam “dispostos a celebrar a paz com base nos termos e princípios assinalados.” Em 5 de novembro, o Presidente enviou ao Governo Alemão as respostas recebidas de seus associados. Os Governos Aliados haviam manifestado seu desejo de concluir um Tratado com o Governo Alemão fundado nos “termos de paz” estabelecidos pelo Presidente, com duas ressalvas. A primeira delas se referia à questão da Liberdade dos Mares. A segunda ampliava o princípio da “reparação” de modo a cobrir “todos os danos causados à população civil dos Aliados e a suas propriedades pela agressão alemã por terra, por mar e do ar.” Tão logo recebeu esta garantia, o Governo Alemão despachou seus emissários para receberem os termos do armistício. Os termos tinham sido redigidos em conferência do Conselho Supremo em Versalhes: eram tais que deixavam a Alemanha à completa mercê das Potências Aliadas em terra e no mar. Foram assinados na Floresta de Compiègne às 5 horas da manhã da segunda-feira, 11 de novembro. No próximo capítulo descreverei minha particular veneração pelos Quatorze Pontos; resumirei aqueles pontos e os princípios acompanhantes; e mostrarei como dezenove dos vinte e três “termos de paz” do Presidente Wilson foram flagrantemente violados na redação final do Tratado de Versalhes. Por ora, estou voltado apenas para o acordo pré-armistício, pelo qual a Alemanha consentiu em render-se no entendimento explícito de que os termos de paz que lhe seriam impostos observariam inteiramente os princípios wilsonianos e seriam de fato meramente “o detalhe prático de aplicação” daquelas vinte e três condições sobre as quais concordara em deixar cair as armas. Linhas atrás, sintetizei a troca de correspondência que deu forma ao acordo. Mas ainda não é a história completa. Não foi dada importância suficiente, a não ser por Mr Winston Churchill, à “Interpretação” dos Quatorze Pontos dada pelo coronel House, que precedeu sua aceitação pelas Potências Associadas. Na época, o coronel House era o representante dos Estados Unidos no Conselho Supremo de Guerra em Versalhes. Foi esse órgão que aprovou os “Termos de Armistício” conforme redigidos, e pelos quais as Potências Aliadas aceitaram os “termos de paz” do Presidente Wilson. A “Interpretação” ou “comentário” do coronel House dos ou sobre os Quatorze Pontos, é, portanto, um documento de importância realmente vital. Esse “comentário” foi transmitido por cabograma em 29 de outubro de 1918 para o Presidente Wilson, para aprovação. Continha as seguintes aplicações de brilho sobre os Quatorze Pontos e os Novos Princípios. A expressão “open covenants,” pactos abertos, não devia ser interpretada como impedimento a negociações diplomáticas confidenciais. Com a Liberdade dos Mares o Presidente não pretendia abolir a arma do bloqueio naval, mas apenas inculcar algum respeito pela propriedade e pelos direitos privados. O próprio Presidente avançara a cativante teoria de que, em futuras guerras, devido à Liga das Nações, “não haveria neutros.” Diante desse duplo lustro, o parágrafo 2 dos Quatorze Pontos tornou-se a mais vaga expressão de opinião. A exigência de livre-comércio entre as nações da terra não devia ser interpretada como obstáculo a qualquer tipo de proteção de indústrias nacionais. Longe disso. Tudo que exigia era a “porta aberta” para matérias-primas e a proibição de tarifas discriminatórias entre membros da Liga das Nações. O ponto referente a “desarmamento” implicava apenas que as Potências deveriam aceitar a ideia em princípio, e concordariam em nomear uma Comissão para examinar os pormenores. As Colônias Alemãs poderiam, no devido momento, ser encaradas, em princípio, como propriedade da Liga das Nações e, dessa forma, cultivadas por mandatários desejáveis. A Bélgica devia ser indenizada por todos os custos da guerra, uma vez que cada dispêndio que aquela infeliz nação fora obrigada a fazer a partir de agosto de 1914 fora uma despesa “ilegítima.” A França, por outro lado, não devia receber todos os custos de guerra, apenas indenização completa pelos danos realmente sofridos. Sua reivindicação do território do Sarre constituía “clara violação da proposta do Presidente.” A Itália, por razões de segurança, poderia reclamar a fronteira no Brenner, mas as populações alemãs que fossem assim incorporadas teriam assegurada “completa autonomia” à que ficasse dentro de território italiano. As raças súditas da Áustria-Hungria deviam ter completa independência, desde que fosse garantida proteção das minorias raciais e linguísticas. A simples oferta de autonomia “já não servia.” Por outro lado, a Bulgária (país com o qual os Estados Unidos não estavam em guerra e ao qual tinham concedido grande apoio educacional e filantrópico no passado) seria compensada por ter entrado na guerra contra nós. Receberia não só Dobrudja e a Trácia Ocidental, mas também a Trácia Oriental, até a linha Midia-Rodosto. Constantinopla e os Estreitos ficariam sob controle internacional. A Ásia Menor Central permaneceria turca. A Inglaterra obteria a Palestina, a Arábia e o Iraque. Os gregos possivelmente receberiam um mandato sobre Smyrna e os distritos adjacentes. A Armênia deveria surgir como estado independente sob a tutela de alguma Grande Potência. A Polônia deveria ter acesso ao mar, embora esse acesso implicasse uma dificuldade. A dificuldade era a separação da Prússia Oriental do restante da Alemanha. O coronel House foi cuidadoso em alertar o Presidente de que essa solução não seria fácil. E, finalmente, a Liga das Nações deveria ser o “alicerce da estrutura diplomática de uma paz permanente.” Não quero insinuar que o coronel House, ao apresentar isso, sua “interpretação” às Potências Associadas, fosse culpado de algum desejo de modificar osquatorze mandamentos. Tenho o mais profundo respeito pelo coronel House – considerando-o a mais brilhante cabeça diplomática que a América já produziu, mas confesso que uma obscuridade muito indesejável paira sobre sua “interpretação.” Foi com base nessa “interpretação” que os aliados aceitaram os Quatorze Pontos, os Quatro Princípios e os Cinco Detalhamentos como fundamento do eventual Tratado de Paz? Se assim foi, as Potências inimigas certamente deveriam ter sido informadas na época. Escrevo sujeito a correção, uma vez que os documentos exatos, a troca exata de sugestão e concordância hoje não estão disponíveis. Mas é difícil resistir à impressão de que as Potências Inimigas aceitaram os Quatorze Pontos como eram, enquanto as Potências Aliadas só os aceitaram como interpretados pelo coronel House nas reuniões que culminaram com seu cabograma de 29 de outubro. Em algum lugar, em meio às imprecisões apressadas e ansiosas daqueles dias de outubro, espreita a explicação do mal-entendido fundamental que desde então surgiu. De qualquer modo, nós, a equipe técnica, os servidores civis, não tivemos conhecimento da “Interpretação” do coronel House. Também olhávamos os Quatorze Pontos e os pronunciamentos acompanhantes como a carta para nossa atividade futura. Como demonstrarei, abriu-se um grande abismo entre nossos termos de referência e as conclusões posteriores. Se soubéssemos do glossário do coronel House, em abril o teríamos adotado como justificativa para nossa marcha atrás. Mas foi só muitos anos mais tarde que sequer vim a ouvir a respeito desse glossário. E não posso, por um só momento, fingir que ele tenha tido a menor influência sobre minha atitude. Traí minha própria fidelidade aos Quatorze Pontos. A finalidade deste livro é dar uma indicação, alguma tênue pista das razões daquela traição, ou melhor, da atmosfera daquela traição. Porém, minha intenção ao escrever esta história não é comentar documentos; minha única finalidade é reconstituir estados de espírito. Sei que não posso pretender remontar um estado de espírito a não ser com relação ao meu próprio – uma captura de menor valor. Mas afirmo que o que senti na época foi também sentido por noventa e cinco por cento daqueles que, embora não sendo políticos, estávamos ativamente ligados aos assuntos públicos. Quando uso o termo “nós,” refiro-me a muita gente que, em Paris, sentia e pensava como eu. Dessa forma, representávamos parcela de opinião ampla e não totalmente ignorante. Creio que meu próprio estado de espírito com relação à base contratual do Armistício e do Tratado consequente na verdade representa um termo médio de pontos de vista amplamente defendidos, não de todo sem motivo. Não me lembro de, na época, a divergência entre nosso conceito do “pactum de contrahendo” e a interpretação que lhe foi dada na Alemanha se apresentasse em termos tão extremos quanto desde então foi apresentada. Por um lado, estávamos convencidos de que com o desabamento das defesas de oeste – diante do colapso da Áustria, da Turquia e da Bulgária – a Alemanha de qualquer modo estava de joelhos. Foi um alívio quando o armistício foi aceito, pois significava um abreviamento da guerra: mas também estávamos convictos de que se a Alemanha se recusasse a capitular, a imposição de uma completa rendição em solo alemão teria sido questão de meses apenas, talvez semanas. Por outro lado, no outono de 1918 acreditávamos honestamente que só os princípios do Presidente Wilson poderiam fundamentar uma paz duradoura. Em outras palavras, nunca passou por nossa mente que tínhamos comprado a rendição alemã oferecendo os Quatorze Pontos. Aquilo nos parecia, em qualquer hipótese, inevitável. Isto, na época, considerávamos indiscutível. Argumentar doutra forma é admitir, em novembro de 1918, ideias e anseios que só vieram à tona em março seguinte. Essa “datação” incorreta de opinião é de fato um erro mais comum para um historiador do que a atribuição a motivos falsos. Neste caso, ele poderia observar que uma visão, identificável em março, guarda coerência com uma série de documentos públicos trocados (obedecendo a outra visão totalmente diferente) no outono anterior. Inevitavelmente o historiador confunde uma com a outra. É essa confusão que dá origem a erros de julgamento histórico. Outra causa semelhante e não reconhecida de equívocos de compreensão histórica é a prematura e muitas vezes fortuita criação de lendas. Algum pormenor pitoresco, algum floreio de expressão fica gravado na memória do público. Destaca-se. Inevitavelmente, os fatos (aquela hierarquia de circunstâncias que denominamos “os fatos”) acomodam-se bem por trás dessa pitoresca faixa de rua no quadro geral. Olhando por esse ângulo obtém-se uma determinada vista, frequentemente enganadora. Duas faixas de rua dessa natureza surgem durante os primeiros dias da Conferência. A primeira frase-pôster famosa é “Vamos espremer a laranja até as sementes chiarem.” A segunda é a admissão por Mr Lloyd George de que nunca ouvira falar de Teschen. Por trás do primeiro post se junta todo o problema da “eleição kaki” de dezembro de 1918. Por trás do segundo, estão reunidas as inúmeras lendas de que os membros da Conferência de Paz foram para Paris sem nenhuma preparação: de que eram, sem exceção, ignorantes e mal-informados. Contra cada uma dessas lendas, eu gostaria de alertar o futuro historiador. É para ele que escrevo estas notas. A eleição geral de dezembro de 1918 foi, sem dúvida, um desastre. É discutível se foi também um erro. Mr Asquith na época a descreveu como “um erro estúpido e uma calamidade.” Calamidade, certamente foi. Fez com que retornasse a Westminster o mais ignorante grupo de rapazes oriundos das public schools que a Mãe dos Parlamentos já conhecera, e se pode questionar se não foi um erro que poderia ser evitado. O termo “erro estúpido” hoje em dia se refere a atos de estadistas sobre os quais deixaram de consultar previamente um ou outro de nossos magnatas da imprensa. Porém, na Inglaterra, significa o tipo de erro que, com um pouco de previsão, poderia ter sido facilmente evitado. Não acredito que a eleição kaki de 1918 pudesse ser evitada com facilidade. Prefiro chamá-la de uma necessidade lamentável que foi satisfeita sem a constatação plena de sua potencialidade para causar arrependimento. Mr Lloyd George recentemente me assegurou que, se pudesse voltar a novembro de 1918, ainda se lançaria na eleição. Suas razões para essa posição são interessantes e, no meu entendimento, legítimas. Ele argumenta que a coalizão governamental naquele momento era ameaçada por conspirações tanto de direita quanto de esquerda. A da direita, liderada pelo egocêntrico Lord Northcliffe, era radicalmente a favor de uma paz imposta pelos vencedores. A da esquerda, apoiada pela maré violenta de uma corrente ignorante de opinião, clamava pela imediata desmobilização. Se tivesse ido para Paris com ambos os flancos assim expostos, se veria em dificuldades e enfrentaria incertezas em cada uma de suas decisões. Para ele, era essencial precaver-se com um mandato incontestável. Sem dúvida, não poderia ter previsto que sua chapa o sobrecarregaria com uma Câmara dos Comuns tão incompetente, a ponto de ficar subserviente a pessoas desequilibradas como o coronel Claude Lowther e Mr Clement Jones. Mas isso não era tudo. Mr Lloyd George previu que, se tinha de lidar adequadamente com o sinuoso nacionalismo francês, com o místico e arrogante republicanismo americano e com o potencial de desunião das representações dos Domínios da Comunidade Britânica, precisaria de uma titularidaderepresentativa que ficasse acima de qualquer contestação possível. Mesmo assim, houve momentos em que seu direito de falar pela Inglaterra foi insidiosamente questionado. Houve ocasiões em que estadistas de outros países tentaram mobilizar contra ele elementos da própria oposição inglesa, quando flertaram tanto com tories, quanto com liberais de esquerda e trabalhistas recalcitrantes. Durante todo o período da Conferência, Lord Northcliffe, contrariado por não ter sido designado delegado na conferência de paz, dirigiu contra Lloyd George um jato constante de água fervente. É discutível se o primeiro-ministro poderia ter sobrevivido a tais ataques furiosos se não contasse com o respaldo de um mandato concedido pela maioria esmagadora do eleitorado inglês. Contudo, permanece o fato de ter sido uma infelicidade um liberal inglês ter se posto a mercê de uma Câmara dos Comuns e uma imprensa jingoístas. Mas não é em virtude desses traços mais gerais que a eleição de 1918 veio a decepcionar o historiador. Acreditando na lenda popular, ele estará perpetuando o argumento de que Mr Lloyd George, ao partir para Paris, estava irremediavelmente tolhido por suas promessas eleitorais. Esse entendimento seria incorreto. Em primeiro lugar, Mr Lloyd George é suficientemente realista para não ficar preso por qualquer oratória de plataforma. Segundo, ele se comprometeu nos pronunciamentos da campanha com pouca coisa incompatível com a busca de uma paz justa. Não foi ele que usou a imortal frase sobre a laranja e as sementes. O autor foi um dos mais inexperientes de seus colegas. Tem sido difícil reconstituir os termos exatos em que foram proferidas as promessas eleitorais de Mr Lloyd George, a fim de compará-los com a opinião pública esclarecida da época. Dessa análise cheguei à convicção de que na verdade Mr Lloyd George foi mais cauteloso, mais liberal do que as pessoas que hoje em dia procuram defamá-lo. Esse ponto tem certa importância para meu propósito e me disponho a abordá-lo com mais profundidade. Em 12 de novembro – “le jour après le fameux jour” – Mr Lloyd George falou para seus partidários liberais no nº 10 de Downing Street. Assim se expressou: “Nenhum acordo que contrarie os princípios de uma justiça duradoura terá vida longa. Atentemos para o exemplo de 1871. Não podemos nos permitir nenhum sentimento de vingança, nenhum espírito de ganância, nenhum desejo opressor que venha se sobrepor ao princípio fundamental da justica. Surgirão veementes tentativas para bravatear e intimidar o governo procurando fazê-lo se afastar dos rígidos princípios do direito e satisfazer ideias mesquinhas, sórdidas e vulgares de vingança e cobiça.” Manteve (intermitentemente) esta mesma postura liberal ao longo da Conferência e mesmo durante as fases iniciais da campanha eleitoral. Concentrou-se na reconstrução. Em Wolverhampton, em 24 de novembro, manifestou seu desagrado com os “embotados” e reafirmou que seu único propósito era “fazer da Inglaterra uma terra digna de ser berço de heróis.” Foi o Dr Addison, candidato da coalizão em Shoreditch, que pela primeira vez adotou um discurso mais populista. O Times, na época vivendo período de profunda humilhação sob o controle de Lord Northcliffe, estava pronto para aproveitar os ventos da histeria popular. “O ponto crucial,” escreveu The Times em 29 de novembro, “para o eleitor comum é, sem dúvida, a posição do Kaiser.” Em 2 de dezembro, repetiu, “isto é indiscutivelmente uma das questões-chave da eleição.” Havia outra questão-chave: “Nenhuma compensação,” proclamou Mr Austen Chamberlain em West Birmingham, “é alta demais para que não possamos pedi-la.” Não havia como evitar que Mr Lloyd George ficasse afetado por tal onda de patriotismo oriunda de seus seguidores e do Times. Podemos vê-lo em Newcastle, em 30 de novembro, falando de uma “paz implacavelmente justa,” de “condições não de vingança, mas de prudência.” Podemos vê-lo acusando o imperador alemão de “assassino.” Podemos vê-lo afirmando que a Alemanha deve pagar compensações por todos os custos da guerra “até o limite de sua capacidade.” Expondo sua proposta de política, em dezembro, o julgamento do ex-Kaiser e “todo o custo da guerra” figuravam em primeiro lugar. Em Leeds, em 9 de dezembro, mencionou os “frutos da vitória.” Em Bristol, três dias depois, usou a expressão “quem perde paga.” Em consequência desse clima emocional, a coalizão retornou ao poder com uma maioria de 262 assentos. Mr Asquith foi derrotado por Sir Alexander Sprott. Mr Ramsay MacDonald e Mr Snowden foram arrasados. Mr Horatio Bottomley ressurgiu com uma vitoriosa maioria em Hackney. Mr Pemberton Billing venceu a eleição em East Herts. Os “pacifistas foram completamente derrotados,” proclamou The Times. A chapa eleitoral tinha atingido seu objetivo. Hoje podemos constatar que, em meio a toda essa confusão democrática, Mr Lloyd George jamais perdeu inteiramente a cabeça. Ao exigir que os alemães indenizassem os custos da guerra, sempre foi cauteloso ao vincular esta bem recebida declaração a duas condições. Alertou sua plateia que o pagamento devia se limitar, em primeiro lugar, à capacidade alemã para pagar e, segundo, especificando que tal indenização não poderia prejudicar nosso próprio comércio interno e as exportações. Foi duramente censurado pelo Times por essas duas condições. “A única razão plausível,” escreveu o jornal, “ao vincular as indenizações à capacidade de pagamento deve ser o interesse dos aliados.” Por sua vez, o slogan “Julgamento do Kaiser” é um episódio que deixará o futuro historiador muito confuso. Ficará tentado a atribuí-lo à recente extensão do voto às mulheres e à supostamente crescente histeria da política inglesa. Assim fazendo, estará tirando deduções injustas. Pode ser uma característica feminina atribuir a uma pessoa sofrimentos causados por um conjunto de circunstâncias. O professor Fedor Vergin, por exemplo, recentemente defendeu que pode ter sido bom para a saúde psicológica da Europa Wilhelm II ter sido tomado como bode expiatório, uma vez que o sentimento de culpa acumulado ao longo daqueles quatro terríveis anos pôde, desta forma, ser “descarregado.” Na verdade, o desejo de punir a Alemanha na pessoa dessa vítima infeliz não foi privilégio da parcela feminina do eleitorado. Anteriormente já me referi a um discurso proferido em 11 de novembro no Carnegie Hall em Nova York por Mr Alfred Noyes. Informou a uma plateia horrorizada que entre os aliados havia “reacionários” se empenhando em salvar o Kaiser do julgamento pela Corte Internacional de Justiça. “Essa gente,” exclamou Mr Alfred Noyes, “quer permitir que o Kaiser volte a seu iate e seus jantares faustosos enquanto os corpos de vinte milhões de homens assassinados se decompõem na terra.” Mas Mr Noyes não estava sozinho ao fazer esta declaração. A mente do povo inglês durante as semanas logo após o armistício estava deformada pela vitória e estigmatizada pelas cicatrizes do medo. O ódio também sobreviveu. Se os alemães se tivessem portado com discrição nas semanas que precederam o armistício, é possível que a opinião pública inglesa, a menos disposta a alimentar ressentimentos em toda a terra, esquecesse o misto de temor e ódio vivido em 1914-1917. Mas os alemães não procederam com cautela. Em 16 de outubro (onze dias depois de seu primeiro pedido de mediação ao Presidente Wilson) torpedearam, ao largo de Kingston, o vapor Leinster da Irish Mail, causando a morte de 450 homens, mulheres e crianças que se afogaram. A lembrança desta atrocidade ao apagar das luzes ficou vivana mente do povo. “Gente,” escreveu Mr Kipling, “com coração de fera.” “São uns desalmados,” disse o contido Arthur Balfour, “e sempre serão.” Peço a atenção do historiador para as repercussões psicológicas do torpedeamento do S.S. Leinster. Teve um efeito mais profundo e imediato do que hoje em dia se pode recordar. Um segundo pôster que pode levar o historiador a um ramal inútil é a admissão por Mr Lloyd George de “nunca ter ouvido falar de Teschen.” Dirigindo-se à Câmara dos Comuns em 16 de abril de 1919, ele fez a seguinte observação franca, comedida e absolutamente racional: “Quantos membros desta casa já ouviram falar em Teschen? Não me furto a afirmar que jamais ouvi falar a respeito.” Obviamente não mais de sete membros da Câmara dos Comuns poderiam ter ouvido referências a esse remoto e miserável ducado, mas o fato de Mr Lloyd George tê-lo admitido horrorizou entendidos como Mr Wickham Steed, que havia muitos anos se mantinha familiarizado com o problema de Teschen. A grita surgiu de imediato. “Lloyd George não sabe nada sobre as questões que está tentando resolver. Ouvimos de seus próprios lábios. Toda a delegação inglesa em Paris e na verdade todas as que integram a Conferência desconhecem os assuntos e não estão preparadas. Estamos à beira do desastre.” Este clamor repercutiu na mente de todos os leitores do Daily Mail. Transformou-se em opinião inabalável. Mas é realmente errônea. O problema com a Conferência de Paris não era a falta de informação, era o excesso. A falha não era falta de preparo, mas a ausência de coordenação. Foi esta última falha que, desde o início, contaminou todo o sistema. O tema merece uma explicação mais ampla. Evidentemente teria sido difícil para o Gabinete ou mesmo para os funcionários de carreira, durante os quatro anos de guerra, elaborar planejamentos detalhados para uma eventual celebração da paz. Em primeiro lugar, o fluxo de assuntos de rotina era tão absorvente que não havia disponibilidade alguma de tempo e energia humana para tal tarefa. Em segundo lugar, até os meses finais de 1918, era impossível prever com precisão razoável as reais circunstâncias em que se encerraria o conflito. Em terceiro lugar, os governantes em todo o mundo não estavam dispostos a se comprometer com condições pormenorizadas de paz que, caso ocorresse um impasse, se revelassem rígidas em demasia, ou muito restritivas, em caso de uma vitória completa. Todavia, isto não quer dizer que não tenha sido feito um trabalho preparatório. Longe disso. Em cada um dos três principais países foram criados grupos especiais de trabalho para preparar subsídios a serem utilizados em um eventual Congresso. Na Inglaterra, na primavera de 1917, foi criado um órgão especial para a coleta de material e treinamento de um grupo voltado para as negociações da paz. Mr Alwyn Parker, bibliotecário do Foreign Office, dedicou seu reconhecido talento administrativo à organização de toda uma conferência de paz que viesse a acontecer. Chegou a elaborar um quadro colorido apresentando a futura sistematização do setor inglês da conferência. Cada um dos primeiros-ministros e representantes dos domínios identificava sua própria órbita naquele sistema planetário de pontos verdes, vermelhos e azuis. Mr Parker podia se localizar modestamente em uma órbita lunar, assessorando Júpiter, Lord Hardine of Penshurst, “embaixador encarregado da organização.” O planisfério de Mr Parker na verdade não cumpriu esse papel – na forma planejada por seu criador – na Conferência de Paz que finalmente se realizou. Ao ver o projeto, Mr Lloyd George deu uma sonora risada. Mas outro planejamento de Mr Parker acabou sendo de maior utilidade e foi realmente muito valioso. Deveu-se à sua exata previsão de que a enorme delegação inglesa se acomodaria sem qualquer dificuldade nos hotéis Majestic e Astoria. Graças à sua capacidade de coordenação, o Ministério da Guerra, o Almirantado, o Departamento de Inteligência de Comércio de Guerra e o Ministério de Relações Exteriores foram capazes de preparar material sem superposições em qualquer aspecto vital. Finalmente, a seção de história do Ministério de Relações Exteriores preparou, sob a direção do Dr G.W. Prothero, os inestimáveis manuais de paz, escritos por especialistas de renome, que proporcionaram à delegação informações detalhadas sobre qualquer tema que viesse a ser ventilado. Esses manuais vêem sendo publicados desde então. Se algum historiador duvidar da qualidade de nossa preparação, eu o convido a obter toda a coleção na London Library e a examinar atentamente seu conteúdo. Concordará que dificilmente poderia haver fonte mais competente, abrangente e lúcida de informações. Nos Estados Unidos foi criado um órgão semelhante em setembro de 1917, sob o nome “The Inquiry.” Diretamente subordinado ao coronel House e sob a supervisão imediata do Dr Mezes, este grupo de 150 acadêmicos trabalhou doze meses em instalações da American Geographical Society de Nova York. A quantidade de material que colheram é espantosa. O George Washington rangeu e vergou através do Atlântico sob o peso de sua erudição, que foi suplementada pelos inestimáveis relatórios do professor A.C. Coolidge, que desde dezembro estava encarregado da “comissão americana de estudos sobre a Europa central.” Houve instantes em que esse homem brilhante e sensível foi a única fonte confiável de informações à disposição da Conferência de Paz. Hoje em dia, parece incrível que nem os representantes americanos e tampouco a Conferência em geral tenham dado muita atenção às palavras sensatas e moderadas de Archibald Coolidge. A equipe técnica da delegação dos Estados Unidos foi recrutada em sua maioria no “Inquiry” do coronel House. Surgiu na América, principalmente durante a investigação feita pelo senado, um comentário de que a delegação americana não estava bem preparada. Tal observação é descabida e injusta. Nunca trabalhei com um grupo mais inteligente, mais competente, de mente mais aberta ou mais precisamente informado do que a delegação americana presente à Conferência de Paz. Em todas as oportunidades em que discordei de suas opiniões, acabei concluindo que eu estava errado e eles, certos. Se o Tratado de Paz tivesse sido redigido somente pelos especialistas americanos teria sido um dos mais criteriosos e precisos documentos de que se poderia ter notícia. Infelizmente, por motivos que comentarei mais tarde, a comissão americana, durante as semanas iniciais, perdeu a autoconfiança e, em consequência a autoridade que, por direito, deveria lhe ser atribuída. Os preparativos do governo francês foram menos detalhados e, como os fatos acabaram comprovando, menos eficientes. É verdade que tinha sido organizado um “Comité d’Études” sob a direção do professor Lavisse e uma pesquisa subsidiária sobre questões econômicas fora realizada por alguns meses sob a supervisão de M Morel. No último momento, M Tardieu assumiu ele próprio o trabalho de coordenação dos trabalhos dessas duas comissões. Parece que esta coordenação não foi muito longe. Por minha experiência afirmo que a delegação mais bem informada era a americana, vindo a inglesa em segundo lugar. Quanto à francesa, penso que lhe faltava uma base de informações e rapidez de assimilação dos fatos. Os italianos só sabiam o que eles mesmos desejavam. Portanto, não está certo acusar a Conferência de Paris de falta de preparação e conhecimento técnico. Porém, como muitas críticas que conseguiram ampla e duradoura aceitação, a acusação contém um fundo de verdade. Em primeiro lugar, as informaçõesnão eram plenamente discutidas nem entre as diversas delegações nem tampouco entre os peritos de qualquer delegação com seus respectivos plenipotenciários. Por exemplo, tinha pouca importância eu obter todas as informações possíveis sobre o enclave de Strumnitza se não recebesse dos chefes de minha delegação uma orientação sobre a política em relação à Bulgária. A falta de comunicação entre os plenipotenciários e seus especialistas será abordada no capítulo 4, quando examinarei a organização propriamente dita da conferência. Aparecerá sob o título “Erros.” Mas também poderia figurar no capítulo 3, sob o título “Infelicidades.” Entretanto, antes de examinar nossos infortúnios em Paris, devo comentar as ideias, esperanças e intenções armados das quais desembarcamos em janeiro de 1919 na Gare du Nord. 2 Atraso A HISTÓRIA DA CONFERÊNCIA DE PARIS AINDA ESTÁ por ser escrita. Levará muitos anos até que se consiga reunir e digerir todo o material pertinente. As provas documentais (digamos, no ano de 1953) serão abundantes e autênticas. Nessa época, os testemunhos humanos estarão silenciados ou nebulosos. Ainda assim, estou convencido de que em qualquer congresso internacional é o elemento humano que determina a evolução de uma negociação e seu conteúdo. A finalidade destas notas é cristalizar este elemento antes que se evapore nos resíduos do tempo. Qual era meu estado de espírito quando cruzei o canal rumo a Paris naquele 3 de janeiro de 1919? Quero reafirmar que não alimento nenhuma ilusão quanto à minha importância naqueles infelizes eventos. Corro o risco de ser considerado egoísta ao apresentar uma opinião pessoal. Estou absolutamente certo de que, no Congresso de Montreal, em agosto de 1965, o estado-maior de especialistas estará constituído por jovens homens e mulheres sujeitos aos mesmos estímulos emocionais e à mesma confiança presunçosa que me inspiraram quando, naquela manhã, almoçava na viagem entre Calais e a Gare du Nord, convicto de que me lançava a uma tarefa para a qual estava qualificado por alentado estudo, elevados ideais e uma completa ausência de paixões e preconceitos. Assim pensando, estava tragicamente enganado. Um dos “Manuais da Conferência de Paz” preparados para nossa orientação foi o elaborado pelo professor Webster com base no Congresso de Viena. Li atentamente esse pequeno, conciso e competente trabalho. À medida que o trem se aproximava de St. Denis, senti que sabia exatamente os erros que tinham sido cometidos pelos mal orientados, reacionários e, afinal, patéticos aristocratas que tinham representado a Inglaterra em 1814. Tinham trabalhado em segredo. Nós, por outro lado, estávamos decididos a “chegar a acordos negociados com toda transparência.” Não haveria segredo sobre os procedimentos. Os povos em todo o mundo compartilhariam conosco cada etapa da negociação. Ainda me reportando a Viena, eles acreditavam na doutrina das “compensações.” Mencionaram um tanto cinicamente a “transferência de almas.” Nós, de nossa parte, não estávamos dispostos a cometer este erro. Acreditávamos no nacionalismo, acreditávamos na autodeterminação dos povos. “Povos e Províncias,” assim pregavam os “Quatro Princípios” de nosso Profeta, “não serão jogados de uma soberania para outra como se fossem peças de mobília ou peões de um jogo de xadrez.” Diante destas palavras “peões” e “mobília,” nossos lábios se contraíam com democrática repulsa. Mas não era só isso. Estávamos a caminho de Paris não apenas para pôr um fim à guerra, mas para definir uma nova ordem europeia. Estávamos preparando não só uma Paz, mas a Paz Eterna. Pairava sobre nós um halo de missão divina. Devíamos nos manter alertas, firmes, íntegros e devotados. Estávamos destinados a realizar coisas grandiosas, duradouras e nobres. É com certa tristeza que hoje recordo uma conversa que tive com Mr J.L. Garvin em 5 de dezembro, quando ainda estava em Londres. Por alguma estranha razão, tínhamos estado juntos em um teatro e depois caminhávamos de volta à casa por St. Martin’s in the Fields. Paramos na calçada e continuamos a discussão sobre a Conferência que se avizinhava. Olhei fixa e desafiadoramente para Whitehall e expliquei a Mr Garvin o quanto realmente eram nobres, muito nobres, meus princípios. Ele ouviu com sua habitual complacência as loucuras de moço. “Bem,” disse, “se realmente é esse o espírito que o move ao partir para Paris, fico muito contente.” Hoje em dia fico rindo de tal excesso de fantasia. Todavia, naquele momento estava sendo absolutamente sincero. Quero analisar os ingredientes desta sinceridade. A Conferência foi uma imposição, por um grupo de países vencedores, de determinadas cláusulas de rendição a um grupo de países derrotados. Mas não era nesses termos que nós, os mais moços, encarávamos nossa missão. Pensávamos menos nos antigos inimigos e mais nos novos países que tinham emergido de suas entranhas exaustas. Nossas emoções giravam menos em torno do velho e mais em torno do novo. Concito os jovens que estarão assessorando os representantes ingleses na Conferência de Montreal em 1965 a acreditar quando digo que os conceitos de “Alemanha,” “Áustria,” “Hungria,” “Bulgária” ou “Turquia” não eram prioritários em nosso pensamento. O que fazia nossos corações cantarem hinos nos portões do céu era pensar em uma nova Sérvia, uma nova Grécia, uma nova Boêmia, uma nova Polônia. É muito significativo esse ângulo de abordagem emocional. Acredito que era um ângulo generalizado, mas que não ficará visível nos documentos pertinentes. Requer um demorado e atento estudo de “The New Europe” – revista publicada na época por iniciativa dos Drs Ronald Burrows e Seton Watson, discorrendo sobre a doutrina da qual eu estava profundamente imbuído. Surgiram tendências e preconceitos que obtiveram sucesso, não em consequência de um desejo vingativo de subjugar e castigar nossos antigos inimigos, mas de um ardoroso anseio de criar e fortalecer as novas nações para as quais voltávamos nossa atenção, com instinto maternal, como justificação para nossos sofrimentos e de nossa vitória. A Conferência de Paris nunca será interpretada corretamente se esse componente emocional não for sublinhado em cada fase. Posso, acredito, recordar com certa precisão o que sentia na época em relação a nossos últimos inimigos. Minha posição em relação à Alemanha era um misto de medo, admiração, simpatia e desconfiança. Por um lado, naquela ocasião eu gostava dos alemães tanto quanto antes da guerra. Estava muito impressionado com a coragem da população civil alemã ao enfrentar o bloqueio e também com os grandiosos feitos da esquadra e do exército alemães no mar e em terra. Por outro lado, tinha me assustado com seus bombardeios, apreensivo com o sucesso de seus submarinos e humilhado por suas vitórias incessantes. Eu os odiava por sua crueldade natural e os desprezava por sua inabilidade política. Desconfiava deles por sua falta de confiabilidade diplomática. Todavia, esta mistura de sentimentos não me deixou nenhum resíduo de desejo de vingança. Deixou-me apenas com o anseio premente de que no futuro a Alemanha pudesse se tornar inofensiva. Com relação à Áustria, alimentava um sentimento “de mortuis.” Meus interesses antiquários lamentavam seu desaparecimento. Minhas tendências modernistas comemoravam a vitalidade que agora devia emergir daquele solo exausto. Minha posição em relação à Áustria era uma reflexão um tanto triste sobre o que restaria dela quando se criasse a Nova Europa. Não a encarava como uma entidadeviva: pensava na Áustria apenas como uma relíquia patética. Meus sentimentos relacionados com a Hungria eram menos imparciais. Confesso que encarava – e ainda encaro – aquela tribo turaniana com profundo desagrado. Como seus primos, os turcos, tinham destruído muito e nada construído. Buda Pest era uma cidade espúria, despida de qualquer realidade autóctone. Por séculos, os magiares oprimiram as nacionalidades por eles subjugadas. Chegara a hora da libertação e da desforra. Para com os búlgaros, eu alimentava um sentimento de desdém. Suas tradições, sua história, suas vinculações na época deveriam tê-los ligado à causa da Rússia e da Entente. Tinham se portado traiçoeiramente em 1913, e, na Grande Guerra, reincidiram nesse ato pérfido. Motivados por ambições materiais, aliaram-se à Alemanha e, ao fazê-lo, estenderam a guerra por mais dois anos. Quando vitoriosos, foram impiedosos e imprevidentes na Sérvia e na Macedônia. Tinham se aliado a nossos inimigos por motivos exclusivamente egoístas, mas suas previsões mostraram-se erradas. Agora, se empenhavam em lançar sobre o rei Ferdinand a culpa pelo que na realidade fora um movimento de egoísmo nacional. Não achava que os búlgaros merecessem condescendência maior do que a que estariam dispostos a conceder em circunstâncias semelhantes. Pelos turcos não tinha e não tenho a mínima simpatia. A longa residência em Constantinopla me convencera de que, por trás de sua máscara de indolência, o turco esconde impulsos da mais brutal selvageria. Essa convicção diminuiu ante seu comportamento com a guarnição de Kut ou com os armênios no interior de suas fronteiras. Os turcos em nada contribuíram para o progresso da humanidade. Não passam de uma raça de saqueadores anatólios. Meu desejo era que no Tratado de Paz ficassem confinados ao território da Anatólia. Esses eram os sentimentos, – e creio que este resumo seja uma representação precisa – bem diferentes das ideias com que fui para Paris. Porém, se quero transmitir corretamente o estado de espírito dominante e médio em janeiro de 1919, também devo falar dos propósitos mais definidos em nós induzidos pelas doutrinas e pelo árido revivalismo de Woodrow Wilson. No fim do outono de 1913, certo dia almocei com Mr Henry Morgenthau, que chegara recentemente a Constantinopla como embaixador dos Estados Unidos. Depois do almoço sentamos no terraço apreciando o contorno de Istambul por entre esparsos e cansados ciprestes. Fiz perguntas sobre Woodrow Wilson, que acabara de surgir para nós orientais como um planeta flamante no longínquo oeste. Mr Morgenthau levantou-se, de repente, e entrou em seu gabinete. Voltou com um livro e o depôs em minhas mãos. “Se quer realmente,” disse, “aprender a lição de wilsonismo, leia este livro.” Hoje já não recordo qual das muitas obras de Mr Wilson foi posta em minhas mãos naquela tarde suave. Sei apenas que a expressão “wilsonismo” prendeu minha atenção. “Eis aqui,” refleti, “um homem que é algo mais do que um político; é o expoente de uma nova teoria política. Senti algo na entonação do embaixador que parecia mais do que simples companheirismo, mais ainda do que respeito profundo. Havia um traço de fervor religioso. Preciso estudar as palavras e os feitos deste novo profeta.” Foi a partir daquele momento que comecei a absorver “a filosofia política completa” de Woodrow Wilson. Naquela tarde de outono não fui capaz de prever a que picos de fé e a que vales de reação o breve gesto de proselitismo de Mr Morgenthau iria me levar. Pelo fim de 1918, os ensinamentos de Woodrow Wilson tinham se acomodado em minha mente em três categorias principais. Havia os principais artigos de fé, simples e, portanto, místicos. Havia a aplicação dessas crenças ao grande problema da neutralidade americana. Havia, como corolário de sua proposta, os “Quatorze Pontos,” os “Quatro Princípios” e os “Cinco Detalhes.” Os dogmas de sua filosofia política eu aceitava com credulidade ardorosa. Ainda hoje creio neles, apesar de amarga desilusão. Acreditava com ele que o padrão de conduta política e internacional devia ser tão alto e sensível quanto o da conduta pessoal. Acreditava e ainda acredito que o único patriotismo verdadeiro é um ativo desejo de que a tribo ou o país da gente sirva a esse ideal em cada manifestação. Compartilhava com ele o ódio pela violência em qualquer forma e a aversão ao despotismo em qualquer forma. Entendia, como ele, que esse ódio é o que sente a maior parte da humanidade, e que no novo mundo essa força silenciosa de sentimento popular podia tornar-se o poder controlador no destino da humanidade. “As novas coisas mundiais,” proclamou o Presidente Wilson em 5 de junho de 1914, “são as coisas que se distanciam da força. São as compulsões morais da consciência humana.” “Homem nenhum,” declarou, “pode se desviar destes valores sem se afastar da esperança de todo o mundo.” Eu admitia, claro, que nas semanas que se seguiram a esta afirmação as “compulsões morais da consciência humana” não tinham se revelado muito obrigatórias. Também admitia que Wilson, como profeta, era um profeta muito americano – que sua filosofia na prática era aplicável apenas às proporções do poder disponíveis no Hemisfério Ocidental. Eu estava consciente, sobretudo, de que havia em seus pronunciamentos um ligeiro traço de revivalismo, um toque de arrogância metodista, mais do que um traço de presunção presbiteriana. Mas não me sentia dissuadido por essas restrições. “Os Estados Unidos,” li, “não se podem arvorar em donos do mundo” – Mr Wilson falava em 1914 – “mas podem proclamar a distinção de levar certas luzes que o mundo jamais viu com tanta nitidez, fachos que iluminam os caminhos da liberdade, do princípio e da justiça.” Não me desconcertavam o toque bíblico dessas palavras, tampouco seu sabor Princeton. Também me agrada pensar que, com os nervos atingidos pela duração da guerra, conservei minha crença em Wilson como um profeta da racionalidade humana. Minha fé era reforçada, de tempos em tempos, pelo privilégio da convivência com Walter Page. “É algo que existe,” li em maio de 1915, “um homem ser orgulhoso demais para lutar. É algo que existe, uma nação ser tão certa que não precisa convencer outras pela força que está certa. Ao contrário da maioria de meus compatriotas, não considerava esta declaração irritante, antes a considerava consistente, corajosa, sã. Também não fiquei muito incomodado, em janeiro de 1917, pelo tom ditatorial, quase teocrático, que desde aquela data começou a invadir o didatismo de Princeton. “Existem,” li, “princípios americanos, políticas americanas. Não seguimos nenhum outro. São os princípios da humanidade e devem prevalecer.” Senti que essa afirmação deveria ter usado palavras com mais tato. Mas como afirmação era bastante sólida e com ela concordei. Nove dias mais tarde, os alemães, em sua cegueira, anunciaram a decisão de lançar a guerra submarina sem limites. Em 4 de abril, os Estados Unidos entraram na guerra. A partir daquele momento, eu não estava em minoria na minha fé em Woodrow Wilson. Pouco depois, no dia 8 de janeiro de 1918, surgiram os Quatorze Pontos. Muito casuísmo e alguma perspicácia têm sido empregados sobre esses pronunciamentos históricos. O próprio Presidente Wilson a eles se referiu em 1919 como “certos princípios claramente definidos que devem criar uma nova ordem em que imperem o direito e a justiça.” Nesse mesmo dia, vemos Mr Balfour mencioná-los como “certos princípios admiráveis, mas muito abstratos.” No entento, seriam realmente tão“muito abstratos”? Considerando a data em que foram emitidos, os Quatorze Pontos são precisos a ponto de temeridade. Podem perfeitamente ser resumidos da forma a seguir: Discurso de 8 de janeiro de 1918. O programa da paz mundial é, portanto, o nosso programa, e esse programa, o único possível, como o vemos, é este: 1. “Pactos abertos de paz abertamente negociados, depois dos quais não haja entendimentos privados de nenhum tipo, mas sim diplomacia efetuada sempre francamente e à vista do público.” 2. “Absoluta liberdade de navegação sobre os mares além das águas territoriais, tanto na paz quanto na guerra...” 3. “Remoção até onde possível de todas as barreiras econômicas...” 4. “Garantias adequadas dadas e recebidas de que armamentos nacionais serão reduzidos ao mais baixo nível compatível com a segurança interna.” 5. “Um ajuste livre, aberto, razoável e absolutamente imparcial de reivindicações coloniais, com base na estrita observância do princípio segundo o qual, na solução de todas essas questões de soberania, os interesses das populações concernentes devem ter o mesmo peso das reivindicações dos governos cujo domínio está em causa.” 6. “A evacuação de todo o território russo.” (...) “A Rússia deve ter a oportunidade sem constrangimentos, sem obstruções, de determinar com toda a independência seu próprio desenvolvimento político e sua política nacional.” A Rússia ser bem-vinda, ”mais do que bem-vinda,” na Liga das Nações, “com instituições de sua própria escolha” e recebendo toda forma de ajuda. 7. A Bélgica a ser evacuada e restaurada. 8. A França a ser evacuada, as porções invadidas “restauradas,” e a Alsácia-Lorena devolvida a ela. 9. “Reajuste das fronteiras da Itália efetuado segundo linhas claramente reconhecíveis de nacionalidade.” 10. “Aos povos da Áustria-Hungria (...) a mais livre oportunidade de desenvolvimento autônomo.” (N.B. – Esse ponto foi subsequentemente modificado para completa independência em lugar de “desenvolvimento autônomo.) 11. Romênia, Sérvia e Montenegro evacuados, e os territórios ocupados “restaurados.” A Sérvia receber livre acesso ao mar. 12. As porções turcas do Império Otomano terem “uma soberania segura.” Nacionalidades subjugadas terão segurança e “a oportunidade de desenvolvimento autônomo absolutamente sem constrangimentos.” Garantida a liberdade dos Estreitos. 13. Erigir-se um Estado Polonês Independente, que “deve incluir territórios habitados por populações inquestionavelmente polonesas e receber acesso ao mar livre e seguro.” 14. Deve ser formada uma associação geral de nações, segundo pactos específicos, “com o fim de proporcionar garantias mútuas de independência política e integridade territorial para grandes e pequenos estados igualmente.” A esses quatorze pontos devem ser acrescentados os “Quatro Princípios” e os “Cinco Detalhes.” Os Princípios surgiram num discurso de 11 de fevereiro de 1918, prefaciados por uma declaração de que a Paz eventual não conteria “anexações, contribuições e danos punitivos.” Os Princípios poder ser assim resumidos: 1. “Cada parte do acordo final deve basear-se na justiça inerente ao caso particular.” 2. “Povos e províncias não devem ser trocados e destrocados de uma soberania a outra como permuta de mobiliário ou de peões num jogo de xadrez.” 3. “Todo acerto territorial deve ser do interesse das populações envolvidas, e não mero componente de compromissos para conciliar reivindicações de estados rivais.” 4. “Todos os elementos nacionais bem definidos receberão a máxima satisfação possível, sem introduzirem novos ou perpetuar antigos vetores de discórdia e antagonismo.” Os “Cinco Detalhes” aparecem num discurso de 27 de setembro de 1918. São menos esclarecedores. O primeiro insistia na justiça para amigos e inimigos igualmente. O segundo denunciava todos os “interesses em separado.” O terceiro dispunha que não haveria alianças no corpo da Liga, e o quarto proibia as combinações econômicas entre membros da Liga. O quinto “detalhamento” reafirmava a proibição de Tratados secretos. Eu não só acreditava profundamente nesses princípios, mas também tinha como certo que os Tratados de Paz se baseariam exclusivamente neles. Afora sua inerente compulsão moral e à parte o fato de que constituíam a única base consensual para nossa negociação, eu sabia que o Presidente dispunha de irrestrito poder físico para impor seus pontos de vista. Naquele momento, éramos todos dependentes da América, não só para os tendões da guerra, mas também para os tendões da paz. Nosso suprimento de alimentos, nossas finanças, estavam inteiramente subordinados aos ditados de Washington. A força de compulsão possuída de Woodrow Wilson naqueles primeiros meses de 1919 era esmagadora. Jamais nos ocorreu que, se houvesse necessidade, ele hesitaria em usá-la. “Nunca,” escreve Mr Keynes, “um filósofo possuiu tantas armas com que dobrar os Príncipes do mundo.” Ele não usou aquelas armas. Não era (e para nós foi doloroso aos poucos constatar) um filósofo. Era apenas um profeta. Tais eram, portanto, minhas percepções, meus pensamentos e minhas intenções quando fiz o caminho rumo a Paris. Não tinha dúvida, como disse, de que nos princípios do Presidente Wilson se fundamentaria a paz. Minha confiança, estou convencido, era compartilhada pelos colegas que eram meus iguais em idade e em status. Claro que se pode dizer que as emoções e os conceitos de servidores civis são de menor importância para o desfecho dos grandes acontecimentos políticos. Ponho em dúvida essa argumentação. Se tivéssemos todos, embora vinculados a nossas funções, preservado nossas crenças originais e nosso estado de espírito, nossa capacidade de atuar conjuntamente teria sido importante. Na verdade, porém, à medida que as semanas passaram, sofremos uma perda de confiança, uma queda de idealismo e uma mudança de espírito. Estas memórias têm por finalidade registrar e explicar tal mudança. Ela deveu-se em grande parte a causas além de nosso controle, mesmo quando, no momento, delas não tínhamos consciência. Causas semelhantes estarão presentes em qualquer congresso de igual complexidade e magnitude. Escrevo este livro para alertar futuros servidores civis. Neste instante, permitam-me voltar no tempo. Vejo-me, em 3 de janeiro de 1919, entre volumes com documentos e caixas-arquivo de estanho dirigindo-me da Gare du Nord para o Hotel Majestic. Permitam-me fazer uma avaliação de quanto os princípios enunciados nos Quatorze Pontos foram realmente adotados pelos eventuais Tratados de Paz. Nossos pactos de paz não foram negociados com transparência. Poucas vezes se viu tanto segredo no curso de um encontro diplomático. A Liberdade dos mares não foi assegurada. Longe do estabelecimento do Livre-Comércio na Europa, levantou-se uma barreira de tarifas maior e mais numerosa do que jamais se vira. Não se reduziram os armamentos nacionais. As Colônias Alemãs foram distribuídas entre os vencedores de uma forma que não se caracterizou por liberalidade, nem desprendimento e tampouco imparcialidade. Os desejos, para não falar nos interesses, das populações (como no Sarre, em Shantung e na Síria) foram flagrantemente ignorados. A Rússia não foi bem recebida na Sociedade das Nações e não lhe foi concedida liberdade para organizar suas próprias instituições. As fronteiras da Itália não foram reajustadas pela linha das nacionalidades. Às porções turcas do Império Otomano não se garantiu uma soberania segura. O território da Polônia incluiu muitagente indiscutivelmente não polonesa. Na prática, a Liga das Nações não foi capaz de assegurar independência política às Grandes e Pequenas nações igualmente. Províncias e povos na verdade foram tratados como peças de mobiliário e peões do xadrez. Os arranjos territoriais, em quase todos os casos, se basearam em meras acomodações e compromissos, conciliando reivindicações de estados rivais. Na prática, perpetuaram-se elementos de discórdia e antagonismo. Nem mesmo o velho sistema de Tratados Secretos foi inteira e universalmente destruído. Das vinte e três condições do Presidente Wilson, apenas quatro, pode-se dizer com alguma precisão, foram incorporadas aos Tratados de Paz. A delegação inglesa em Paris ficou hospedada no Hotel Majestic, na Avenue Kléber. Esse gigantesco caravanserai fora construído quase todo em mármore ônix, para ser usufruído pelas senhoras brasileiras que, antes da guerra, iam a Paris comprar suas roupas. Mr Alwyn Parker, ao nos distribuir as acomodações, levou na devida consideração os perigos e tentações a que poderíamos ficar expostos. Na primeira categoria – perigos – ele tinha (tal como pensava habitualmente) previsto as duas subcategorias (a) espionagem e (b) doença. Como proteção contra (a), encarregou Sir Basil Thomson da Scotland Yard da missão de organizar um “serviço de segurança.” Em consequência, embora fosse bastante fácil sair do Majestic, entrar era extremamente difícil. Muitos representantes estrangeiros foram detidos por suspeita de forçarem a entrada. Mr Parker foi mais além. Tinha estudado a fundo o Congresso de Viena e estava decidido, com toda razão, a não permitir que a Conferência de Paris repetisse o despropósito de Metternich. Deste modo, o Hotel Majestic foi ocupado, do porão ao último andar, por empregados ingleses bem preparados, oriundos de nossos hotéis do interior. A alimentação, por conseguinte, era do tipo anglo-suíço, enquanto o café era genuinamente inglês. Todavia, todo o nosso trabalho acabou sendo realizado no vizinho Hotel Astoria. Foi lá que arquivamos nossos documentos e guardamos nossos mapas. Os empregados do Astoria eram de nacionalidade francesa. Houve momentos (geralmente no café da manhã) em que sentimos que tinha ocorrido um ligeiro lapso na lógica de Mr Parker. Mas como organizador Mr Parker foi soberbo. A fim de se proteger contra a categoria (b), tinha contratado um médico obstetra de grande renome. O quadro de funcionárias ficou subordinado a um supervisor. Desta forma, o clima no Majestic era de alegria e companheirismo anglicanos. A delegação inglesa englobava 207 pessoas, sendo: 12 do Foreign Office, com 6 secretários; 28 do Ministério da Guerra; 22 do Almirantado; 13 da Força Aérea; 26 do Tesouro e do Comércio; e 75 dos Domínios. Com frequência, ouve-se afirmar que havia gente demais. Seria mais apropriado dizer que a pressão do trabalho estava desigualmente distribuída. Determinados membros da delegação, em particular os especialistas políticos e econômicos, ficaram evidentemente sobrecarregados. Outros membros, em especial os grupos assessores dos representantes dos Domínios, viam as horas passarem lentas. Inevitável e compreensivelmente, fizeram o melhor uso de sua posição de certa forma inútil. O grande saguão do Majestic ficava tomado pelo barulho das xícaras de chá e a melodia das músicas para dançar ecoando escadas acima. Nossos visitantes mais críticos viriam a exagerar estes sintomas de relaxamento. Em Londres correu o boato de que o Majestic era o reduto dos preguiçosos. Houve em Pall Mall quem resmungasse que Lord Castlereagh fora para Viena acompanhado por um grupo de apenas dezessete auxiliares. Eu mesmo reconheço que houve momentos em que me senti desconfortável naquele saguão agitado, pois me desagradava ver o espetáculo daquela gente alegre que não tinha como preencher seu tempo. Tempo, tempo, tempo! Tornou-se uma obsessão para nós, à medida que as semanas se passavam. Ficar vendo o tempo balançar e dançar ante nossos olhos era realmente uma terrível provação. Entretanto, não creio que a acusação de excesso de gente fosse totalmente justificada. Era essencial ter à disposição muitos especialistas que poderiam ser solicitados a qualquer instante. Não se podia evitar que os representantes dos Domínios viessem acompanhados por secretários e assistentes. Também convém lembrar que, tão logo as linhas gerais de trabalho foram claramente definidas, os vadios mais óbvios foram mandados de volta para Londres. A organização interna da delegação inglesa foi estabelecida logo nos primeiros dias. Lord Hardinge, na condição de “embaixador encarregado da organização,” assumiu principalmente os deveres administrativos. Sir Maurice Hankey foi designado secretário da delegação e montou seu escritório na Villa Majestic, no outro lado da rua. Mr Clement Jones conviveu alegre e fraternalmente com os representantes dos Domínios e Mr Lloyd George se refugiou na Rue Nitot, com Mr Balfour no andar de cima. Na pista de corridas em Auteil foi instalada, para desagrado dos parisienses, o setor encarregado da impressão de documentos. A vizinhança do Majestic ficava aturdida com o barulho dos motociclistas. Uma frota de carros do exército facilitava nossos deslocamentos. Um sofisticado sistema telefônico nos ligava a Londres e ao mundo exterior. Um serviço expresso de aviões ligava diariamente Buc e Croydon. Antes da abertura da conferência, toda a parafernália do Majestic, do Astoria, da Villa Majestic e da Rue Nitot funcionava com a reconhecida eficiência de um ministério inglês. No sábado, 11 de janeiro, chegaram a Paris o primeiro-ministro e os representantes diplomáticos dos Domínios. No domingo, 12 de janeiro, teve lugar no Quai d’Orsay a primeira reunião não oficial entre os plenipotenciários. Na segunda-feira, 13 de janeiro, a delegação do Império Britânico teve sua primeira reunião, e na tarde do mesmo dia os plenipotenciários voltaram a se reunir, sob o título de “Conselho Supremo de Guerra,” a fim de ratificar o armistício. Mas somente no sábado, 18 de janeiro, a conferência foi oficialmente aberta, e apenas uma semana mais tarde foram designados os cinco comitês encarregados de preparar o material técnico. Os Comitês Territoriais, porém, que deviam criar as futuras fronteiras da Europa, só foram formados na primeira semana de fevereiro. O atraso de mais de nove semanas entre a assinatura do armistício e a primeira tentativa séria de se debruçar sobre o trabalho certamente permanecerá sendo uma das mais irrespondíveis críticas que se fazem à Conferência de Paris e para as quais não se encontra resposta. Por conseguinte, é necessário examinar as causas, psicológicas e outras mais, que provocaram esse atraso. É possível identificar duas fases distintas. A primeira corresponde ao atraso entre o armistício e a reunião da Conferência. A segunda diz respeito ao que ocorreu entre a abertura da Conferência e o início dos trabalhos propriamente ditos. Os motivos para escusar a postergação da Conferência de Paz em geral são estranhos e variados. Surge em primeiro lugar o argumento histórico. O Congresso de Viena foi mais dilatório ainda. As procrastinações do Congresso de Westfália foram infinitamente mais dilatadas. Em segundo lugar, aparece o argumento ético. Era preciso, era justo que se desse tempo para que as mais extremadas paixões geradas pela guerra declinassem, antes que os governantes de todo o mundo se reunissem para estabelecer
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