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Ipiaú-BA, julho de 2017 © 2017 by Daniela Galdino Capa, editoração e arte: Ícaro Gibran Ilustração capa: Bruna Risério Revisão: Daniela Galdino Profundanças é um projeto independente idealizado por Daniela Galdino e conta com a parceria da produ- tora Voo Audiovisual. Esta publicação, sem fins lucra�vos, está disponível para download gratuito no link: www.vooaudiovisual.com.br/profundancas2 FICHA CATALOGRÁFICA Biblitecária Eva Dayane J. dos Santos CRB5 1670 P964 Profundanças 2/ Daniela Galdino, Organizadora. Ipiaú: Voo Audiovisual, 2017. 185f.: il. Acesso: h�p://vooaudiovisual.com.br/projects/profundancas2/ 1. Literatura Brasileira - escritoras. 2. Mulheres - poesia. 3. Fotografia - escritoras. I. Galdino, Daniela. ISBN: 978-85-68836-01-9 CDD B869.1 “[...] Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se sentava na soleira da porta e, juntas, ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu. Umas viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço, que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também [...]” (Conceição Evaristo, em “Olhos d'água”) Este livro é dedicado... à memória de sonho, devaneio e luta representada pela passagem de Frida Kahlo pela terra; à memória da educadora Arlete Vieira da Silva, pelo seu legado de esperança em tempos tão violentos; a todas as mulheres que, vivas, aliam sua existência à teimosia de construir outros mundos possíveis e assim resistem nos lugares onde se encontram/reencantam. Dedicatória Apresentação “A felicidade não é mais esperas” Aidil Araújo Lima Aildil Araújo Lima por Camila Camila e Le�cia Ribeiro “Me bombardeiam no oriente” Ana Mendes Ana Mendes por Josi Oliveira “Na envergadura necessária do corpo” Andréa Mascarenhas Andréa Mascarenhas por Henrique Valença "o sonho vedou a casca, os cantos" Daniela Galdino Daniela Galdino por Ana Lee “Desabrochei na luz dos teus dias” Dayane Rocha Dayane Rocha por Cláudio Gomes “Do lado de dentro até hoje não sabe” Débora Ramos Débora Ramos por Andrezza Tavares “talvez eu seja grande demais para o dia e a noite” Erika Cotrim Erika Cotrim por Haísa Lima “Causo sono às minhas chagas” Haísa Lima Haísa Lima por Catarina Barbosa “criando leitos para que outres deságuem” JeisiEkê de Lundu JeisiEkê de Lundu por Lanmi Tripoli 07. 08. 18. 28. 39. 50. 60. 71. 80. 90. “não me basto em prefácios... conheci os precipícios” Laiz Carvalho Laiz Carvalho por Mariana Lisboa e João Caique“ “Porque é nos arredores que as coisas sobram” Larissa Pereira Larissa Pereira por Adrian Greyce e Rodrigo Iris “Esses olhos serenos já viram o tempo e os temporais” Lílian Almeida Lílian Almeida por Inajara Diz “Agora me banho em dissabores” Mel Andrade Mel Andrade por Brenda Matos “Insaciável em sonhos e desejos” Miriam Alves Miriam Alves por João Santana “Estampo relâmpagos nos muros” Rita Santana Rita Santana por Shai Andrade “Há uma severa vida que resiste” Thalita Peixe de Medeiros Thalita Peixe de Medeiros por Ytallo Barreto Ficha Técnica Sobre as Escritoras Sobre Fotógrafes Sobre a Ilustradora Sobre a Equipe de Produção Outros agradecimentos 102. 112. 122. 131. 141. 151. 161. Su m á ri o 171. 172. 176. 180. 181. 184. Apresentação Irmanades pelo grito Cá estamos na continuidade da desobediência. Por refutar- mos as dinâmicas literárias que, a cada dia, fabricam a nossa invisibilidade. Por sabermos que somos muitas em profundas relações com a palavra. Por sentirmos uma necessidade avassala- dora de falar com outres, ouvir as palavras suas. Por sabermos que alguns nos querem mortas. Neste segundo volume de Profundanças apresentamo-nos: dezesseis escritoras, dezenove fotógrafes. Mais do que soma, aqui importa o encontro de vozes dissidentes, pois das vivências cotidianas temos retirado a matéria da re-existência nos lugares onde estamos – e não para onde nos predestinam. Vias sinuosas, veredas interrompidas e reinventadas nos colocaram em convergência. Novamente a roda se faz e nela projetamos sussurros que se expandem até reverberar em outros corpos. Agora já estamos irmanades pelo grito. Mais do que nunca bradar se faz necessário. O nosso país está de garganta atravessada por um golpe. Um estado de exceção orquestrado ao modo jurídico-parlamentar por segmentos sociais odiadores tem violentando as nossas sensibilidades e usurpado os nossos direitos. Estamos na mira constante: nós, mulheres – ainda mais se negras, indígenas, trans, lésbicas, pobres. Ou sucumbimos à mira, ou inventamos formas de re-existir. Odiadores não representam a totalidade do mundo. É preciso arrancar esperança aos dias e lançá-la em garrafas, balões, ruas, muros, livros. Cá estamos para dizer que a literatura é também o nosso foco de re-existência aos golpes – sejam eles nas grandes esferas ou nos circuitos íntimos. Por isso é muito significativo que Profundanças 2 seja lançada no dia 06 de julho, data de nascimento da pintora mexicana Frida Kahlo. Escolher essa data significa dar visibilidade a uma extensa genealogia de combates cotidianos que nos põem irmanades, ainda que as limitações temporais nunca nos tenham permitido um encontro direto. As indireções, sim, têm nos convergido. Os caminhos são díspares, mas as relações nós as construímos. Nossos corpos inflados por outras lutas, outros sonhos em balões que nos antecederam. E dessa maneira escrevemos, criamos na r ra t i vas v i sua i s de au to r rep resen tações quando, indirecionadamente, desejamos que outres aqui se reconheçam. E que nos reconheçamos nas re-existências de quem também está sob a mira do ódio, do aniquilamento e do desencanto. Cá estamos: escritoras inéditas (em sua maioria), algumas já com um livro autoral publicado, três com mais de um livro. A horizontalidade (e não as hierarquias que marcam as disputas literárias) é o que nos move, também essa a razão de cá estarmos sem determinação de aonde chegaremos. Profundanças, desde a sua estreia em 2014, é um espaço de diálogos, expansões artísticas e democratização. Muito embora saibamos que o acesso virtual tenha amplitude recortada, insistimos em disponibilizar o livro gratuitamente na esperança de que seja lido nos mais diferentes contextos, por diferentes sujeitos. Se a roda que nos colocou em contato, fazendo surgir este livro, for recriada em outros espaços, com modos desobedientes de leitura, o grito irá reverberar com muita força. Afinal, o fato de estarmos numa ação literária e fotográfica colaborativa já implode as formas como a literatura tem se tornado uma propriedade de poucos. Só o muito nos contenta. Cá estamos... Daniela Galdino (Organizadora) 07 Aidil Araújo Lima “A felicidade não é mais esperas” Ponto de cruz Seu dia começara cedo. Na verdade, a noite de Vera foi em clara agonia. Aguardava ansiosa o dia, buscava na memória pensamento que acalmasse o corpo, nenhum pensamento vinha na lembrança, o corpo suava, sentia dores nas entranhas como se fosse parir de desejo. Do lado, o marido alheio a tudo, roncava. Levantou-se sorrateiramente, as horas andam ligeiras quando não nos lembramos delas; resolveu adiantar detalhes do caldo. Sossegou o facho, abria os sururus um a um e os retirava de dentro da casca, fez até lembrança de uma música de criança, absolveu-se, nem sentiu o tempo se arrastando. O sol lhe sorriu através da fresta do telhado. Limpou a casa com o cuidado de quem espera a felicidade. – Botameu café, mulher! Gritou o marido, com mau humor tão certo. Nesse dia ela nem deu assunto, alma em festa, colocou a chaleira no fogo, pegou ovos no quintal – fritou-os na manteiga de garrafa. Apanhou o leite na porta – levou ao fogo, tudo pronto, serviu o café como a um estranho – como estrelas que brilham tão longe e as vemos tão perto, seus pensamentos estão ancorados no dia de ontem. Ele chegou disfarçando - amanhã venho te ver - faz um caldo. O marido fala, interrompendo suas lembranças - pra quem manca igual à vaca do vizinho, você está rápida hoje, mulher. Não deu assunto - hoje seria uma vaca. Com mãos estúpidas ele bate a porta e sai. Ela pega delicadamente os temperos, cortou-os como quem faz carinho, derretia sentimento em cada corte – sentindo suas dores sendo lavadas – penduradas no varal, cheirosas e salientes. As grosserias que sofria dia a dia foram lavadas no banho de folhas de jasmim, ficou cheirosa que nem só. O cheiro de jasmim lhe trouxe o vigor de outrora, olhou-se no espelho – já não era a mesma mulher. Ele achava-a maravilhosa. Dizia não se importar com seu defeito na perna – resultado de um coice, não foi do marido, esse foi um cavalo de verdade. Estava tudo pronto. Bordou ponto de cruz... No pano branco criou uma mulher tão viva... Chegou a ouvir seu alegre canto enquanto estendia as roupas coloridas no varal, à espera do homem chegando. Ele vinha a abraçava por trás, fazia um chamego, a mulher desenhada no bordado ficava maluca; a bordadeira quase espeta o dedo na agulha nessa transposição do imaginário no tecido através da arte. Batidas na porta – era ele. Correu e abriu. Ele nada disse – apenas passou os dedos em seus lábios que umedeceram. Mexeu em seu tempo – já não era mais a mulher infeliz que vivia com um bruto. Era desejada, dissolvia- se por inteira como a manteiga de garrafa – melava-se – enroscava - dissolvia suas mágoas. Fundem seus corpos em direção ao sol, são inundados pela energia da felicidade plena, infinita, como se tivessem soltado o corpo da alma, voavam pelo infinito – passaram pelas estrelas, o oceano, as montanhas da civilização inca – exaustos, felizes, voltaram aos corpos, largados no lençol com bordado de ponto de cruz, esse tinha a figura do sol ao centro expandindo-se infinitamente. Ficaram em silêncio – escutando a respiração. E o caldo? Saboreou como se fossem seus lábios. Pegou-a na nuca e puxou para si, ela ia dengosa. – Tenho que ir. Ela sabia. Ficou só, olhando o firmamento, revia os lugares idos há poucos instantes, as montanhas, a lua cheia, júpiter. – Mulher, bota meu jantar! – gritou novamente o marido. Ela o serviu com olhar distante. A ID IL A R A Ú JO L IM A A ID IL A R A Ú JO L IM A 10 Seres encantados Muita coisa já foi vista nesta terra. Como carecer de permissão da árvore para entrar no mato, senão fica perdido lá dentro, sem nunca encontrar saída. Certo sujeito, depois de muita reza foi encontrado, deram-lhe bebida de folhas e ele foi recuperando a vontade, dizendo que explicava depois o acontecido. Nunca achou coragem. Ficou o dito pelo não dito. Tudo parecia pouco nesse lugar que tinha uma lagoa encantada. Dizem os antigos existir uma passagem secreta no fundo que leva ao Convento do Carmo, por onde mulheres de importância desciam por dentro da terra, ajudadas pela escuridão de dar medo a quem tem coragem. Enxotava com um “cruz credo” os medos no caminho e iam por dentro da terra na calada da noite aliviar na lagoa a quentura malvada das tentações da carne. Dizem que em noite de lua cheia elas entoavam cantigas de chamamento e seres encantados apareciam, penetravam em suas agonias, arrancando gritos de satisfação. Se Hosana soubesse dessa passagem secreta não teria ateado fogo ao próprio corpo. Aconteceu de fato. Cansada de esperar mãos de homem que despertasse quentura em suas vontades, mortificou-se. Quis acabar depressamente com aquela prisão de anseios, procurou por combustível, ateou fogo no corpo. A dor foi lancinante, berrou como uma leoa. Foi socorrida por vários homens fortes que tocaram em seu corpo quente. Tanta espera por esse toque e agora a vida lhe dera uma chance. Sorriu. Antônio acaricia sua pele, põe ervas cicatrizantes na queimadura, o mato invade sua vida já mofada, já quase passada, reflorescendo. Sararam feridas de tantos anos de pudor de obediência ao pai, ele agora morto havia liberado a sua existência. Descansa os olhos. O cheiro de jasmim envolve o quarto, imagina-se com o vestido de bolas vermelhas que ganhou da madrinha, dançando no Jardim Faquir, em frente ao rio. Só a lua testemunha e compreende essa alegria. Acordou com um buquê de rosas vermelhas ao lado, um cartão cheirando a jasmim - Te esperei tanto tempo. A felicidade não é mais esperas. Antônio. Árvore sagrada Num gesto sem vontade, ela passa a vassoura pela casa. Os movimentos se demoram cansados, se misturam nas lembranças de menina, da vó dizendo: varrer casa à noite chama coisa ruim. Desalentada da vida, encosta o corpo cansado na parede sem cor, com manchas do passado. A mão continuou na vassoura, deslembrada de ânimo, sente saudades da vó, dos passeios à casa com pé de cajá. Era pequena, ainda recorda como da primeira boneca que foi sua, ficaram na memória as árvores sagradas. Surpreende-se no encontro com a árvore de Iemanjá, se abraçam felizes em cumprir o destino, ela a embala com os galhos, afaga com as folhas seus cabelos. A vó gritava de longe: sai daí, menina! Essas árvores são sagradas; não pode brincar com elas. A vó nem imaginava a ligação entre as duas, a árvore lhe segredou tantas coisas... O vento soprava, era Iemanjá com sua espada na mão, que cortava o ar e lhe transmitia antigos saberes. Voltou das lembranças, já escurecia, terminou a limpeza da casa, lavou o corpo e o descansou na rede. O pensamento ganhou largueza, ouvia distante a voz da avó querendo culpado - pregar botão em roupa no corpo chama a morte abreviando a ida pro além. Lágrimas escorreram, eram salgadas, Iemanjá lhe disse que morava nas águas salgadas, ela iria entender que não agiu de caso pensado. Não sentia remorso, não foi de propósito, mas o marido esbravejou tanto da camisa com botão perdido, que ela pegou um e pregou na camisa já vestida no corpo. Ele fraquejou as pernas, perguntou - o que é isso mulher, que tá assucedendo? E foi escorregando a vida, quando chegou ao chão ela já tinha ido embora. Estava mortinho da silva. Chorava e não era de saudade do traste, era do afago da árvore. A ID IL A R A Ú JO L IM A A ID IL A R A Ú JO L IM A 11 Fio de silêncio Se o avô estivesse no mundo dos vivos a soltaria do retrato só com palavras, mas a mentira da vida é nos fazer acreditar que podemos costurar esperanças, ela pensava enquanto alinhavava os sonhos de outras mulheres. A tarde mornava, o olhar desincerto lutava para enfiar a linha na agulha. Amparou os pensamentos nos tecidos, debruçando a vista na janela. Esfregou os olhos pensando ser delírio, olhou novamente. A menina ainda brincava de esconde-esconde, saindo do cemitério dos pretos, correndo para o cemitério dos brancos, depois ela entra na Igreja do Rosarinho, tão cheia de vigor que se desconheceu. Só se reconhece quando a menina lhe acena e sorri. A memória retrocede em cambalhotas de quando era criança, só pelo prazer de ver a cidade virada de cabeça para baixo de lá do alto. Ela não lembra que dia aconteceu a chegada dos turistas, curiosos com o cemitério de brancos e negros, um em frente ao outro. Só recorda que eles a escolheram para tirar foto junto dos túmulos, diziam-lhe ser uma negra linda. Ela se orgulhou e ficou paradinha ao lado de várias catacumbas, a imagem se impregnando da alma dos antepassados. Depois desse dia nunca mais foi a mesma, sua alegria ficou presa nos retratos. Largou mão do estudo, ia para a casada madrinha no Largo d'Ajuda aprender a costurar. Pensava que podia descosturar sua vida do retrato e coser outra com agulha e linha. Quando o sol esfriava voltava para casa, descia a ladeira e corria para o rio Paraguaçu, gostava de ver a imagem refletida na água, nesse instante a alegria presa no retrato se soltava e ela ria. O tempo foi curvando seu corpo sobre as linhas, os seios encolhendo dando espaço ao corpo. As moças bonitas que chegavam com panos de seda só lembravam o retrato que os turistas lhes prometeram mandar. Enquanto isso um fio de silêncio costurava sua vida. Certa vez, estava marcando o vestido nos contornos do corpo de uma mulher em frente ao espelho, percebeu seu corpo estragado. Pegou umas contas amarelas largadas num canto, foi enfiando na linha sem nenhuma certeza, só queria matar o tempo, enganar o pensamento. Sentiu um arrepio no corpo. Deus benza. Veio a ideia de pegar ervas de Oxum e lavar o corpo, a água escorreu desenrugando a pele, desembruçando a alma, até vontade cantar nasceu na garganta, entoou uma música antiga, que sua avó cantava para Oxum. Como é a vida – pensava enquanto descia as escadas em frente ao rio. Coseu tanto pano e a esperança estava era nas contas. Inespera o que vê. Os retratos. Todos. Boiando no rio. Rapidamente sua imagem se dissolve. Deu vontade de dançar, de ser mulher tocada, de sentir coisas nunca sentidas antes. A ID IL A R A Ú JO L IM A A ID IL A R A Ú JO L IM A 12 Aidil Araújo Lima por CAMILA CAMILA E LETÍCIA RIBEIRO Ana Mendes “Me bombardeiam no oriente” L excita o delírio o cheiro da doença ela gosta do perturbe ela é a barata que pisa e abandona a própria sorte de formigas ela é o dom de criar nadas o vício da rejeita da transfigura de tudo veja o que fiz do teu rosto do amor de mim veja do rosto do amor de mim o que fiz cega segue... ll umbigo limbo na rasteja da superfície almeja quedar no fundo das coisas nas quais a aporia é sua morada e após tamanha entrega na bubuia do útero mar redenção à beleza inútil de ser ela havia algo de mais escandaloso que sua voz: o peso dos próprios ombros a força a fé e fúria de seu silêncio A N A M E N D E S AN A M E N D E S 20 - o que você fez, criança? à noite tudo se contrai mas meu coração permanece inchado de sopros: existir é escolher as palavras que seremos aperfeiçoando o que deus não foi capaz: a si mesmo e não sei quais são as minhas... herdeiros do orgulho de lúcifer que somos nos é intrínseca a queda e assim sendo nos é própria a ferida materna: eu também quis saber como é destruir algo belo e talvez tenha sido isso o que deus desejou quando empurrou a luz do céu e afogou o mundo A N A M E N D E S 21 FIU FIU: açofrio Sempre que resisto Sou arrastada, esfolada, pisoteada Espancada pelo punho do padrasto Capital Personificado na insígnia da farda Que sussurra em cassetetes e coronhadas: Recue! Desista! Os omissos se preenchem com mais um cheque Os desesperados com crack Ou esvaziam a cabeça com cleck! Afogam-me na lama Me bombardeiam no oriente Às vezes, caminho com um fuzil Que me pesa mais que meu corpo E a fome, minha companhia inseparável, Tem rosto franzido Com passos de brita caminha E sorri ao prato de comida: Quem dera Pelo menos aqueles alimentos cancerígenos Eu comesse... E o meu algoz? Assina e assassina Com mais um cheque Aos meus sobram Crack e cleck! Minhas mãozinhas carregam pedras Esculpem tijolos E para me manter acordada Masco coca cheiro loló Caminho descalça Sobre pedregulhos e chão ressecado Com fome e sede Desesperada Também agonizo no concreto das metrópoles Nos morros, nos becos Morando entre lixão e bueiros Repouso pelas calçadas E me esquento com a chama do isqueiro Seja no chão rachado Ou no asfalto Ou naquele terreno baldio Onde meu corpo abandonaram A mídia madrasta Ganhará mais um prêmio: Sonegação de impostos e um cheque Pelo registro fotográfico Da minha carcaça esquelética Apática, leiloa minha dor: Vende a imagem da minha tragédia Àqueles que lhe querem Recortada, silenciosa e encoberta. Lhes convido a responder a charada existencial: Quem eu sou? Sou o sonho de Humanidade Que vocês esquecem E perseguem A N A M E N D E S AN A M E N D E S 22 ANA MENDES por JOSI OLIVEIRA Andréa Mascarenhas “Na envergadura necessária do corpo” | de atalhos e desvios | mergulho/leio carta alheia, de JGR . RJ, 25 de janeiro de 1962 . linhas de amizade se escrevem entre vírgulas, pontos - letra de máquina, letra de mão . laços fraternos entre compadres encerram mares sem distância . ao lado, tv vende medos em áudio e vídeo e entonações . capitalismo se faz em moedas de carne e osso e fé . assaltos a ônibus acontecem entre 04:00 e 08:00 horas de toda infernal manhã . assim mesmo trabalho se sobrepõe à segurança e autopreservação . no peito, coração escravizado . no olho, esperança se perde em cinzas . nas mãos que escrevem (sim, escrevem), há que se administrar um peso desolador . reportagem extraordinária não assusta mais . propagandas invadem ruas que ainda não absorvem passos corridos na madrugada . oh, meu Rio, em sépia e neblina te re.convoco: apresento minhas chagas à espera de teu beijo santo, senhora morta nesse presente sem futuro . cabisbaixa, enfrento a noite e seus gritos imagéticos . penso que ainda sei filosofar aos botões, se é que ainda há tempo para pensamentos sem protocolo . ardem os grilhões cerebrais . minha bandeira rasgada vou costurando com palavras tontas e linhas tortas . artefatos explosivos de 1968 ressuscitados em ações bomba em 2016 . a pena que escrevia leis, hoje chicoteia new.escravos sem cor . tios SANgue nos patenteiam como suas eternas marionetes aptas ao lixo . por imagens aprendemos a servir a nossos próprios conterrâneos de capa, espada e direito . o que faço: com minhas cartas tornadas públicas à revelia de meu querer; com o privado alheio que se tornou subitamente público; com os grilhões que se nos impõem; com as madrugadas e ruas invadidas; com meu passado em sépia e neblina; com essa escravidão estrangeira que nos encarcera por dentro; com as palavras fraternas de JGR; com os assaltados de cada infernal manhã destinada ao trabalho; com capitalismo.osso; com vírgulas e pontos - entre atalhos e desvios (?) | e.la | ela diz que não e vem, estrear na vida . pergunta como se morre na cidade . ela deixa recado sobre a relva, pra que molhe e se perca das vistas . sem fadiga, usa as pernas como a voar de casa em casa . esconde os pés . ela brinca com fogo em minhas noites meninas . mesmo gente grande chora diante do que não se sabe e vem . prefere as madrugadas, névoas e ruas desertas . não pense que veste preto, a invisível . às vezes, grita e não escuto . perto longe: aqui - sinônimo de estar . cigana de trouxas sempre prontas . arriba a saia e cega qualquer movimento de olhar . rastro sem poeira se levanta antes dela . alquimista de fantasmas medrosos, dá suas ordens às avessas . esquece que não morrerá, com pena dos íntimos . rouba verdes esmeraldas como se fosse possível mudar seu/nosso destino - de dor à esperança . chafurda na felicidade alheia que nunca conhecerá . escolada em epifanias sem voz, perde a chave do paraíso, de puro propósito . conhece como ninguém meus sótãos e porões há muito abandonados . arquiteturas de mim, arruinadas por teu olho invasor . em leve compensação, posso (re)fazer aqui tua art déco ensimesmada, nua, sem timidez . ainda aposta incógnitas que me ignoram completamente, ela . azeita meus dedos para que aprendam texturas matemáticas e teu braile frio . sons impossíveis tenho que decorar em nome de cada capricho seu . in.submisso, quase duvido que nasci para ser.VIr.L.Ã . não seicomo, abrevia meus abismos ao contrário do previsto . esquece que sei decifrar seus passos mórbidos e ainda assim, morro um pouco a cada expectativa . roda gigante recolhe e entontece meus medos: um dia voltam aptos e me desnorteiam . dela arranco as certezas, moedas de suja barganha . no mar se esconde ou nada . dia jamais poderá vê-la . amanhece quando não há mais só e sol . noturna, ciúma de qualquer estrela . AquI, quer palco exclusivo e cachê infinito para um instante, só.mente . A N D R É A M A S C A R E N H A S AN D R É A M A S C A R E N H A S 30 | feliz, noite | orquestra de violões . cheiro de música antiga, invade . farol em desapego de noites . ruínas de hoje . madrugadas em que deito teu sono, em claro . de tanto, pouco . de pedros, heranças . sem vestido ou glória, histórias . corais, só ecos de mar . sinos: independência dissonante . silêncio in.sepulcro . nunca te gerei no tempo.templo . nascimentos e escuros . serão ventos esgarçados de dor que tomam as frentes . jamais predomina em mando alheio . palavras.flor, cerimônias . lágrimas vermelhas em rios de dentro . justiça e direito secam antes de correrem . cascatas ondeiam teus temores . sem resgate, salvo liberdades e folhas . aleluias entre.mundos ganham almas quase de mãos dadas . canto novo se entoa sobre oceanos . suprimentos de esperança, qual chuva necessária se derramam, quem sabe, quando amor for moeda mais que junção de sen.tidos . santos, carurus e prata . fogos de artifício espocam, tristes . bambinos choram e ainda nascem nus, sem nome . mundo.mundis, vasta ilusão in.escrita . capítulos marginais não mais se perdem . enganam fossos de byte . livro, vida e cânone: invençSÃOões . já não sei se se salvam ternura e inocência . meus olhos alheios dizem: ainda morre na praia infância esquecida . desterros enganam . chaves, cadeados, fronteiras . A N D R É A M A S C A R E N H A S 31 | palco italiano | primeiro plano, teu lugar . tablado difícil de sair . ordinário raro . extraordinário tudo . desejo.mundo . maravilhoso seu . quando passa em mim, rua é agora e me acontece . confronto sem guerra solta história . Aleph melhorado com olhos para voar . perplexo: vejo . abro os trabalhos e só há palavras em rito de orfandade . improviso se m'esgarça . antigamente sem futuro . verbo afetar: bala e gume . literatura em mim, em ti: locação . convite à criação . arte: rito mágico em cada um . longe da página, olhar de papel cortante . questões.tudo e sedução . ver o valor nascer às cegas . intu.ir . recortar o alheio olhar i.n.apreensível . quem sabe (?), quase tudo passa por palavras . an passant, sempre à frente: da foto, da vida, do olho . in.ter.fe.r.ir . montar a cena . dar a ver manga e vestido dentro do ensaio . vir.e.ser . avessos em linhas sem corte . o que é teu nasceu de outrem . teu ver |me| faz ficção . e pode não ser . sétimo ato e há poesia.mundo em teu umbigo . larva experimental do que não sei . paixão: pensamento pulsante e/ou palavra generosa, de corpo inteiro . real e sua concretude . só desejo . há.ver: império do olhar . tempo corre sobre estruturas de vento . culturas.pensamento . portas não são impedimento para o nada.tudo . louca transmutação que exala vida . da retina miro cegas bocas, dor/voz de rua e silêncio . potência: antropofágica vontade criadora . a quem disse que não digo que sim só o instante anterior à vaia . meu livro, palavra obtusa, sem pena na mão – sei, e faltam capítulos machadianos . tu, expectador e porvir . incrível me faz de ressaca . criar, procedimento ilógico, fechado/aberto e sem pedágio algum . s.ei, subjetividade construída qual formação de plateia . dúvida sem antigamente afeta qualquer um/a . conquanto, memória de livro . en.cantos podem ser rasos . sem pretensão, impossível morre de inanição . devaneios nascem prontos . imprevisibilidade destoante nos consola . ainda cairá chuva de metáfora em dias líricos . barragens serão talvez fruto de uma imaginação tresloucada e que não merece credibilidade . sim, o uso do plural em cada lógica, verdade e pensamento virará lei, como prevê tua intuição . envolta em sonata harmônica formato tuas emoções emprestadas, sem crédito . do palco rua castroalvino irrompem teus infinitos, MIMéLticos . cuidado: olho.denúncia por onde bem pode se esvair a alma . enveredo no que não li . do saber caixa.de.fósforo exala perfume tupiniquim universal . escola.palco, vida.tese . vai, gauche, ser vida inteligente perto ou muito longe de Copacabana . pra invadir teu jardim de palavras peço agora licença pra mestiçagens sem dono . perdão pela mímese desaforada, pela metáfora roubada, por cada descabido ato de escutar sem ver . aguardo cartas secretas postadas em tua/nossa arte: lerei com paciência . destas mal traçadas linhas me despeço . desde já, permita-me tradução m.im.ética de teus ecos . mui atenciosamente, subscrevo-me . eu . A N D R É A M A S C A R E N H A S AN D R É A M A S C A R E N H A S 32 Andréa Mascarenhas por HENRIQUE VALENÇA Daniela Galdino “o sonho vedou a casca, os cantos” um pé de água não saberei do corpo celeste que, devagar, nutre auroras tocá-lo, percorrê-lo é violentar o terreno limítrofe das horas oferecida em displicência envolta nas dilatações semeadora de penumbra: acinte vejo macero vontades extraviadas quem respira terremotos inibe a calma de hesitações deito-me na barcaça do sonho ofereço-te grandezas: esta cachoeira que se oculta em minhas pernas aérea de aquário uraniana, sorve meus pés lambe minha concha, cona reúne tudo: seivas, sons, sais, sobras, sustos e orna, deslizadeira, o recipiente de afetos meus ecos liquefeitos rarefeitos desconhecem gargalos transbordada serei pedra sem limo no fundo das tuas marés D A N IE L A G A L D IN O D A N IE L A G A L D IN O 41 nutri-end não durmo em concha evito acordar infinita sincero plano de fuga retomo plantada em terreno baldio reconheço-me galho inerte poda se faz atravessada em ponta de mato ensaio colheita interrompida cinza semeadura cesta. feira. noite desandas meu caldeirão de alquimias grotescas surges iluminado, pervertido estacionas culpas e cônegos inaugurado, pressentido quedas livre no meu ventre teus roncos blasfemam minhas poucas indecisões festa no céu da boca durmo infinita em concha de retalhos D A N IE L A G A L D IN O 42 alumbramento assim aprendi: lunação é completo ciclo intervalo entre luas novas levo 29 dias algumas horas minutos, segundos calculadas variações para mais e menos vejo cenários adiados inchada te encontro estou minguante minguado ressurges ela, nova, enfolha crescente é a casa que nos guarda náufragos nautas com fusos de longe observam sem ler convulsas marés, cachos de murta tempos de cortar: unhas, cabelos, pulsos fio de madrugada nos guia pinhão roxo nas janelas, um quarto lunação ... estes voos profundos no assoalho viagem longa que a cama não alcança crescente é a casa que nos guarda céu em si estes tons impróprios desandam o dia chuvoso a pele ao Domingo a pele ao crepúsculo a pele ao abismo o sonho vedou a casca, os cantos o sonho escorre pela cama lança rachaduras no prédio asfixia o elevador, a escada o sonho verteu gotas, gritos silêncio de abismos nas casas de crepúsculo nas ruas e domingo nas cercas o sonho relincha nos entrepostos paralisa tomadas apaga ponteiros o sonho deita nas encruzilhadas na cama, homem de anil esquece rota de fuga soletra vagares, pulsações evita o banho a que se destina recorda o pássaro em desatino alma voraz que lhe abriu a fenda está refeito o homem de anil sem terra que sustente o passo afagado em fonteluminosa desabrigado de regras desobrigado de reinos goza em looping a descoberta: cu de céu. infinita-se. D A N IE L A G A L D IN O D A N IE L A G A L D IN O 43 arada ostento cara de terra espírito de poço índole mar remota felicidade sempre tive irrigada padeço estranheza, pra mim, é abre-te sésamo vagueio em cova funda porque estou semente gozo no sereno inerte numa pedra de amolar corro as sete freguesias e fastio não me alcança levo fachos de gritos aonde me querem muda replantando-me dou cestos fartos D A N IE L A G A L D IN O 44 Daniela Galdino por ANA LEE Dayane Rocha “desabrochei na luz dos teus dias” Porto velho O horizonte que te viu chegando Foi testemunha dessa nova entrada Não vi teu caos no mar se afogando Mas vi teu cais como uma morada Vi nos teus olhos outro mar nadando Uma partida sem ter mais chegada No meu repouso te vi repousando No teu repouso, não me vi em nada. Busquei um barco pra velar comigo Tu procuravas encontrar abrigo Pra descansar o teu sofrido arco Tu me encontraste por coincidência Na maré alta de tanta evidência Sou qualquer porto pro teu velho barco. Onze horas da noite, fecho a porta Na tristeza do quarto, eu pago o custo Quando o olho pro chão, então me assusto Vendo uma esperança quase morta. O suporte que tenho não suporta Ouvir de tantas bocas falsas juras Quando durmo escutando essas agruras Me desperto, assustada com um gemido "O silêncio da noite é quem tem sido Testemunha das minhas amarguras" Mote: Severina Branca 52 D A Y A N E R O C H A D A Y A N E R O C H A Escutar o seu nome, ainda treme As paredes rachadas do meu peito Que por mais que eu peleje é tão sem jeito Que até sem gemer, o corpo geme Eu escuto uma voz me dizer: reme! Mas, meus braços cansados dizem não Um minuto que eu fico com a razão Ele manda esperar, e eu espero Quero muito dizer que não lhe quero Mas não posso calar meu coração. Sem limites, amei e ouvi as juras De quem sem ter limites me enganava E o meu peito, carente, experimentava O seu gosto de fel junto às doçuras Mas, depois, só provei as amarguras De quem mais me jurou sentir saudade O seu choro externava falsidade E eu chorei de verdade ao pé da cama O desgosto maior de um ser que ama É amar quem não ama de verdade. Cinza Era cinza a tarde amordaçada Sem vestígios de telas e de cores Só restou uma cor acinzentada E um véu cor de cinza nas flores. Era cinza o aroma dos amores Tinha cinza na beira da calçada Era cinza o clarão da madrugada Tinha cinza queimando algumas dores Era cinza o cenário que eu via Era cinza o pincel da poesia Era cinza, só cinza e nada mais Era cinza o meu pranto que pingava Era cinza o meu sangue que sangrava Era cinza, era cinza a cor dos “ais”. D A Y A N E R O C H A D A Y A N E R O C H A 53 Visões Vi mil sonhos correrem pra distante Sem ao menos freá-los com meus olhos E olhando o destroço entre os ferrolhos Vi que nada sobrou naquele instante. O desgosto chorava, lamentando Por no jogo do azar ter tanta sorte Até minha fraqueza que era forte Vi que aos poucos estava se entregando. As visões que meus sonhos visitaram Foram elas as que mais me assustaram Assustada e confusa me acordei Vislumbrei pesadelos tão reais Que eu nem sei se eles foram irreais Ou vivi tudo aquilo que sonhei. Prece Desabrochei na luz dos teus dias Sentindo a paz da cor da aurora Refugiada, fui de hora em hora Esconder-me em tuas poesias Em cada letra, minhas alegrias Foram passando, sem pressa ou demora Minha tristeza sempre fica fora Quando os teus passos servem como guias Teu verso exala queixas e revoltas À dor das idas, o amor das voltas Uma lembrança que não adormece Teu verso inspira o canto da lira É tanto verso que teu verso inspira Que até parece que teu verso é prece. D A Y A N E R O C H A D A Y A N E R O C H A 54 Dayane Rocha por CLÁUDIO GOMES Débora Ramos “Do lado de dentro até hoje não sabe” Vida Toco minhas partes Refaço-me em gozo Com minhas próprias mãos Einsamkeit Nina se preparava para dormir quando bateram à porta. Enquanto escovava os dentes amarelados (de quem tomou muito antibiótico) trocava os últimos miúdos do dia com Vanessa. Elas dividiam apartamento. Se assustou quando Vanessa, de olhos arregalados, anunciou sussurrando a presença de dois policias. A visão do olho- mágico era mais que estranha para aquela hora da noite. Vanessa, automaticamente, pensou que estavam buscando por ela. Era estrangeira e carregava essa eterna culpa. Todo estrangeiro carrega algo de culpa, mesmo sem ter motivos reais. Naqueles segundos em que Nina bochechava, Vanessa já se via sendo deportada. Esquecera de algum papel importante? Não entregara algum comprovante na última entrevista na secretaria de imigrantes? Que vergonha seria voltar ao seu país algemada, logo ela que buscava a liberdade... Os dois homens eram loiros e altos. Cumprimentaram educadamente a moça de olhos azuis-acinzentados que abrira a porta. Seria a semelhança? Vanessa se questionava paranoicamente. Ficou posicionada um pouco atrás de Nina, como se ela fosse um escudo. - Boa noite! Em que posso ajudá-los? - A senhora escutou algum barulho estranho do apartamento de cima? - Algum barulho? ... Não. Na verdade, a única coisa que escuto do apartamento de cima são passos. - Nos últimos dias ouviram passos? - Não. Quer dizer, na verdade não prestei atenção. Você escutou, Vanessa? Vanessa relutou antes de responder. Havia se transportado com aquela pergunta. Nunca vira ninguém do apartamento de cima. Elas conheciam o vizinho da frente. Era um senhor simpático, digo, ao menos as cumprimentava. Havia outros vizinhos que ignoravam as tentativas de bom dia ou boa noite. Nina rebatia a angústia da amiga com humor: são pessoas frustradas ou os novos velhos nazis. Elas riam. Tinha quase certeza que aquele apartamento era vazio ou mal- assombrado. Normalmente ruídos ou barulhos bruscos eram o que se D É B O R A R A M O S D É B O R A R A M O S 62 a cozinha e o outro que ficava atrás da porta de entrada até o banheiro. Vanessa estava paralisada. Nunca vira nada parecido. Para não dizer que era um lixão, já que se tratava de um lar, pensou numa compilação de imundície e entulho, imagem que não vira nem em filme de ficção belga. O síndico trabalhava com outro homem na remoção da quinquilharia, olhou para sua direção e disse: - Tem gente que vive e parece que está morto. Ela ficou sem palavras. Havia garrafas de cerveja, vodka, whisky, restos de comida, roupas, sapatos, movéis, lembranças de viagens, máquinas fotográficas, maços vazios de cigarro, retratos. Muitos retratos. Enquanto percorria o caminho livre até a cozinha sentia-se desolada. Como não conhecia a vizinha? Quanta solidão espalhada! Um metro de lixo por todo o apartamento quadrado. Fotos de pessoas, fotos de paisagens, fotos íntimas, fotos de amantes e seus sexos. A imagem de uma mulher sorridente se repetia. Era ela. Ela era fotógrafa. Um acúmulo de anos, era impossível juntar tudo aquilo em um mês. Voltou a si quando o síndico, com um tom costumeiro, falou: - Amanhã, se você quiser, pode vir pegar algumas coisas. E desceu com mais um saco de lixo. Evitou responder. Estava assombrada. Saiu de lá às pressas. Não era apenas o lixo, era a solidão que se escondia atrás dele. Era a normalidade daquela ocasião. Enquanto seus sentidos perturbados voltavam, lá estava ela, em frente a sua geladeira, abismada. Ficou tão perdida nos espasmos do seu pensamento, que nem notara já estar em casa... Teria sonhado? Se não fosse a geladeira cheia de posters de filmes sessentistas não acreditaria. Pegou uma água para ver se voltava a si. Quando fechou a porta notou um bilhete de Nina: - Amiga,os bombeiros vieram pegar o corpo de madrugada. escutava. Nos últimos dias, se ela não estivesse enganada, o silêncio ecoava transpondo o teto. Parecia que os fantasmas haviam saído de férias. Era verão. - Não. Não escutei nada. Os policias agradeceram e se desculparam. Afinal, não eram pagos para incomodar ninguém com perguntas no meio da noite. Faziam apenas o seu trabalho. Não se sentiam mais importantes, não eram autoridades, eram policias. Subiram para o apartamento. Eles haviam recebido um telefonema da família da desconhecida moradora. Os parentes moravam em outra cidade e há muito tempo não tinham notícias dela. Estavam preocupados. Vanessa sentia-se um tanto angustiada. Como ela podia nunca ter visto sua vizinha? Morava há três anos naquele apartamento. Concluiu: aqui ninguém se conhece. Sentiu saudade da sua terra natal. Da janela de Nina viram os policiais deixando o prédio. Não havia acontecido nada. Quando Vanessa acordou Nina já havia saído. Sempre saía cedo, era professora de Biologia. Tinha muito trabalho, mas seus esforços valiam a pena. Trabalhava para a formação do seu povo, tinha um ótimo salário e ainda as maiores férias de todo o país. Ali era bom ser professor. Agora ouvia muitos passos vindos do apartamento de cima. A vizinha misteriosa havia voltado e pelo barulho estava de mudança. Terminou o café e resolveu subir. Queria conhecer a mulher que a polícia procurava e contá-la da preocupação da família. Quando abriu a porta um vento fedido lhe abraçou. Era um cheiro podre. Uma catinga que nem o Beberibe em dias de cheia conseguia alcançar. Do primeiro patamar avistara vários sacos azuis de lixo. Não acreditava que poderia vir dali aquele odor... A fedentina lhe deixou tonta. Certo, que, vira e mexe lhe vinha às narinas um mal cheiro, mas sempre pensou ser algum lixeiro pela rua ou um caminhão de coleta. O vento que ocupa todo o espaço trazia, mesmo sem querer, tais odores... Não, não eram apenas os sacos. Quando chegou ao patamar do apartamento avistou um mar de lixo. Havia apenas dois caminhos livres. Um da porta de entrada até a D É B O R A R A M O S D É B O R A R A M O S 63 Lamentações de Antígona Conheces aquela moça dos olhos de águia? Aqueles são olhos de quem vê muito mundo. Na verdade, por vezes, ela viu apenas um quarto. Era pequeno e havia uma janela com vista para a rua. A rua era de barro, pobre e de casas humildes. Naquela época ainda existia um pau-brasil do lado direito da sua vista. Ela achava uma riqueza. O quarto era seu mundo. O mundo do lado de fora da janela: casas pobres e um pau-brasil. Do lado de dentro até hoje não sabe. Cresceu entre paredes. Sufocada. Sufocava. Acabou por aprender a ver mais mundo do que existia entre aquele tapume. Havia um teto e as coisas que um pai provê. Há uma mãe. O velho já desencarnou. Houve tempo que a morte do seu pai era seu sonho. Na sua pueril inocência via a morte como solução do pesadelo da sua vida naquela família. O sonho de morte livraria daquela falta de vida. O tempo passou. O tempo cuidou de amansar seus instintos infantis tão sanguinários. Ainda hoje ela tem uns bichos, mas já não os alimenta. Já se sentiu culpada pela sombra. A sorte foi perceber a tempo que só existe sombra se existir luz. Ela não era tão má assim... Hoje ela sabe que ninguém tem culpa. Tudo na vida é para ser melhor, para crescer. Livrar-se do apego do amor e da dor é viver em paz. Desapegar do amor. Desapegar, sobretudo, da dor. Se tudo é caminho, com ou sem pernas devemos nos mover. Toda poeira que sobe, assenta. Sem mais devaneios! Aquele bicho era um espelho da insanidade paterna. Fruto daquilo que seu pai lhe deu. Era o que ele tinha para dar: medo e morte. Qualquer dia ela poderia acordar morta, se é que isso existe… Acordar morta. Ela reza até hoje para acordar viva. Talvez, por isso, muitas vezes acorda meio morta. Seu pai seria o assassino. Imagine isso. Deu-lhe a vida e prometia-lhe a morte. Ouviu muitas ameaças. Cresceu entre beijos na cabeça - que ela odiava - xingamentos e ameaças. Facas sendo amoladas no batente da porta da cozinha. Na época o piso era queimado. A beira da porta era afiada de tanto amolar faca e facão. Os domingos eram os melhores e os piores dias. A cana debaixo da pia. O pai arredio virava cavalo do cão. Para viver uma vida diferente aos sete anos de idade, ele tinha que morrer. Acho que na sua consciência de menina havia devaneios de outras vidas, de outros nortes. Não tinha medo da morte. Tinha medo daquela vida. Era ele ou ela. Não tinha saída. Ela planejou algumas fugas. Teve que aguentar. Não é fácil ser criança. Ser adulto é saber perdoar. Largar. Deixar os medos que fundamentam a construção da velha infância. Rezar para não fracassar, já que os alicerces foram tão daninhos. Não mudou muita coisa. Ela continua planejando fugas como na idade menor. Hoje já não existe mais inimigo. Seu pai morreu. Por vezes, talvez pela memória que gosta de repetir-se, é má consigo. Vez ou outra ainda dói. Carrega mais peso do que deveria. Por isso, mesmo jovem, tem ombros que sinalizam cansaço. Estás vendo? Só agora, que a vida lhe amaciou, tem piedade do desconhecido. Deseja tê-lo como amigo. Amiga daquele que seria seu assassino. Ele era seu pai, porra! Na cidade-sono dos retirantes ele se fez auxiliar de veterinário, vendedor de frutas, detetive particular. Assim foi construindo um lar. Contam que em algum momento da vida, em São Paulo, ele descobriu numa igreja o que era pecado. Acabou-se, assim, a diversão. Não havia mais forró, nem sanfona, nem cantar, nem dançar. Abraçou a causa. Até pregava e todo tipo de felicidade foi proibida em casa. Como ela queria dançar! Era tudo que ela queria. Ela, uma dançarina nata. Da mãe não herdara tamanha leveza, então, devia existir algum frescor no seu genitor que ela não conhecera. Vira e mexe pergunta a sua mãe sobre os avós paternos. Ela gosta dos idosos. Da sabedoria que as rugas guardam. Sabe apenas que a chegada do seu pai matou avó negra no parto. Alguém que morreu trazendo uma vida ao mundo. Talvez por isso carregava tanto medo e tanta morte. Era coisa de berço. De parto. O umbigo não separa. A pergunta continua. Quem era aquele homem? Nunca poderá responder. Seu pai, aquele que ameaçava e também a amava, pouco se D É B O R A R A M O S D É B O R A R A M O S 64 revelou. Uma coisa é certa: era duplo. Dois que estavam ali. Lado a lado. Não deu tempo de contar. Depois de anos, quando ela conseguiu desatar o laço de ódio, voou um oceano para lhe reencontrar. Tinha que saber mais dele, pois já não se reconhecia, precisava saber mais sobre ela. Horas depois do desembarque a cabeça dura do velho explodiu. Ela chorava sem saber por que no CDU-Boa Viagem. Eram daquelas mensagens que vão além do on-line, do telefone ou qualquer dessas tecnologias da comunicação. Era intuição. Uma memória infantil se fez viva: Orava ajoelhada próxima do pai. O ódio tomava conta do seu coraçãozinho. Era obrigada a se ajoelhar. Ele queria abrandar, com seu gesto cristão, toda culpa. Ele não se dava conta do que fazia. Ela, sim, sabia. Como era comum aos domingos, havia almoçado ameaças e constrangimentos. Ainda tinha fel na sua boca de menina. De joelhos, ao lado do genitor, pedia a Deus, em seu íntimo, com toda a verdade de uma criança: - Mate-o! Mate-o! Com ele não há paz. Deus, me livre desse pai! O dia chegou. Deus atendeu. Naquele instante pensou triste: - Deus tarda, mas não falha. Os olhos de águia da moça até hoje marejam. D É B O R A R A M O S 65 Fernanda Limão por AMANDA PIETRA Débora Ramos por ANDREZZA TAVARES Erika Cotrim “talvez eu seja grande demais para o dia e a noite” Dois pés Sozinha em casa, com os pés em cima da mesa e sentindo um som que não ouviahá muito tempo, ela conseguiu refletir melhor sobre quem tinha errado mais ou primeiro. Chegou à conclusão que não foi ninguém. As coisas aconteceram no ritmo mais louco e alucinado possível. Como quando um prédio cai depois de uma explosão de gás. Não foi culpa do engenheiro, nem do arquiteto, nem do dono do restaurante e muito menos do pessoal que instalou o gás. Aconteceu. Como acontecem as tragédias, os tsunamis, as coisas ruins que chegam como um turbilhão ... tão impossíveis de deter quanto a natureza da gente. Sozinha ela conseguia ver isso claramente. Ao conversar com outra pessoa, ouviu que tinha mania de se auto sabotar. Tinha medo de quando as coisas estavam dando certo demais. E era verdade. Ela tinha mesmo muito medo de tudo que estava inexplicavelmente bom, afinal, quem era ela para ter tanto direito a tanta felicidade? Ela não era ninguém. Ela nunca tinha tido nem sorte, nem tanto amor. Não estava acostumada, no final das contas. Olhando para a sala vazia, com a casa já quase desmontada, ela percebia. Estava indo embora porque tinha medo. Porque sentia uma angústia surreal de não merecer tanta felicidade. Medo de não saber lidar com o que poderia acontecer caso tanta coisa boa acabasse de uma vez. Ela não estava pronta. Ela nunca estava pronta para dar tchau. Para ir embora. Talvez fosse o medo de morrer sozinha, muito maior do que o medo de ficar presa para sempre. Sozinha, em casa, ela conseguia pensar nisso melhor. E doía como tem que doer essas coisas sempre tão dela, sempre tão únicas. Ia ser sozinha ou ia ser feliz? De madrugada, eu e meus versos Madruguei escrevendo versos, justo eu que não sou nem de poemas e muito menos de madrugadas. Me vesti de estrelas e barulho de mar, eu que nem tenho esse talento para moda romântica. Suspirei como suspiram aqueles que sabem: precisam ir embora em algum momento, mas não estão com disposição para partir. Justo eu, tão cheia de certezas, tão cheia de verdades, justo eu, tão eu mesma sendo cada dia menos eu. Não entendo se era a alma que estava cansada de ficar quietinha, salva, calada dentro de mim. Comportada, como era de se esperar. Não sei se respirar fora da bolha tinha de fato me destruído por dentro e estava todo o meu organismo a se reconstruir. Não sei. O fato é que a cada dia mais desejo de madrugar me dava, mais anseio de partir me consumia. Conhecer outros lugares, outros países, sentir os cheiros de comida diferente - porque essas daqui já nem fome mais me davam. Era fome o que eu queria sentir. Não era medo. No entanto, o medo ia e vinha, que nem igual as ondas do mar. Igualzinho, sim. Eu seguia apática, como ficam apáticos aqueles que só podem de longe observar o oceano sem imaginar que tipo de cores existia logo ali, depois do horizonte. Eu, tão cheia de certezas, não merecia estar passando por aquilo. Em que momento mesmo eu tinha me perdido do que achava que deveria querer? Em que momento passei a ver poesia nas coisas estranhas que nos consomem dia a dia? Eu, tão profunda, tão intensa, agora tão rasa e enorme. Sempre tão barco ancorado, virei jangada de pescador, tudo porque quis ser grande. Tudo porque quero ser grande. Tudo porque talvez eu seja grande demais para o dia e a noite e precise devorar madrugadas, vestida de estrelas e com a fome de engolir o mar e respirar dentro das ondas. Eu, que acho que deveria ir embora. E R IK A C O T R IM E R IK A C O T R IM 73 Ela e eu, que sou só um cara Ela que me fez em pedaços, ela que me fez muito melhor, ela que um dia chegou vestida de madrugada e estrelas e depois foi embora porque precisava mesmo ir: ela. Eu, que era só um cara, eu que era o moço bonito no meio de um caminho, a encontrei num dia qualquer. Tinha um jeito meio perdido, torto como costuma ser modo de quem acabou uma fuga da própria vida porque já não tinha mais certeza nenhuma a não ser que precisava ir embora. E eu que era só um cara me vi ali: querendo ser a estrada de quem já tinha cansado de caminhar. Ia dar errado, era certo. Arrisquei. Apareci como devem surgir as grandes tábuas de salvação. Fui corda para jangada de pescador, tão leve e volúvel. Depois fui leme para quem já sabia que devia voltar a navegar. Ela gostava de metáforas com o mar. Gostava mesmo era de metáforas. A mulher, que era toda uma hipérbole. Também gostava de madrugadas, a tal menina. E gostava de dizer que tinha ido embora porque achava que não tinha se encontrado na vida e que na verdade mesmo, não sabia se queria encontrar. Tinha tomado gosto pelas ventanias, justo ela, que jurava, morria de medo de tempestades. Eu, que era só um cara que assumia riscos, sabia que ela ia embora. Era grande demais para ficar. Ela que por uns dias tinha sido só medo, em outros só choro, e em outros só desprendimento, era agora apenas coragem. E se foi. Justo ela, que eu queria que tivesse ficado. Ritmo Transformo em sonho o som dessas cordas. A cada novo acorde sinto como se o som fosse palpável, denso, colorido, um objeto que a gente consegue guardar numa gaveta ou estante para pegar sempre que sentir saudade. Vai ver foi assim que surgiram as caixinhas de música. E desse jeito transformo em som o meu desejo. Guardo num lugar bem fácil de ser encontrado cada vez que me perguntar por que estou aqui. Fica mais fácil assim, não é? E os desejos transformo em planos. Planos meus, planos nossos. Se não for para fazer planos eu nem levanto todo dia. Não era assim que eu dizia? Me planejo em cada detalhe, e você sabe como tenho problemas com planos que não são bem sucedidos. Transformo em verdade o que digo sussurrando enquanto ando por aí. Não é que é verdade quando dizemos o que sentimos até quando estamos sozinhos? Faz muito mais sentido falar sozinho às vezes. Transformo em medo aquela ida e em saudade a despedida. E a saudade converto em doces doses de amor transformadas em mensagens: devemos sempre dar vivas pela tecnologia e o poder de amansar o coração de quem ficou de longe observando o outro voar. Transformo em gritos os meus segredos, de longe, de perto. Consigo te explicar cada pedacinho desse combo de frustração, mágoa, medos e manias. E se você ainda fica, mesmo assim - ou é muito amor ou é mesmo resignação. E por falar em amor, amo o seu dedilhar no violão, mas já disse isso antes. Mesmo assim me faço em som pra você entender, viro ritmo. E veja bem, é tão bonito quando viramos poesia. E R IK A C O T R IM E R IK A C O T R IM 74 Erika Cotrim por HAÍSA LIMA Haísa Lima “causo sono ás minhas chagas” Causo sono às minhas chagas pois chego a cegar de tantas causas; me pinto em tino de ébrias coisas me pranto em pano de leves roupas e levo em poucas, mas boas palavras a causa maior da minha sina: sintetizar o sumo do que me consome ou morrer de fome por não me caber. A solidão não morre nas presenças. Se não se conectam as almas, altas são as precipitações do meu voo de encontro ao chão. E me enterro fundo no que não me é vão: rememorações, cigarro e alguma poesia. Me mata a alma cada companhia áspera de uma existência lisa que me ocupe o ânimo com verberações precisas sobre minúcias das esferas políticas. Me ocupam mais os ocos e os ócios o balé das esferas em danças elípticas, pois me afaga mais o peito a esvaziês de um universo inteiro que a insistência de um diálogo vazio. A solidão não morre nas presenças; morro eu na deriva de uma vida lúcida que nasce fúlgida, cresce monótona e falece túrgida. Na solidão do cosmo inteiro, nasci sozinha, mas morrerei múltipla. H A ÍS A L IM A H A ÍS A L IM A 82 Sou fortuna pouca ao luxo da noite: gasto os parcos cílios das pálpebras pra observar a prata que salpica o breu. Valho quase nada que valha cobrir-se em véu e me mostro inteira ao escuro que me veste: essa nudez celeste queverte estrelas em mim. Sou toda constelada sim; nua em pêlo, sou espelho da escuridão. Tampouco me vela qualquer guardião. Neste caso, acendo velas para um santo ateu e ascendo à fé de um sol que nunca vem... - "santo" só porque é casto tal ocaso; - "ateu" porque meu credo é teu. De mais ninguém. Vê que me pluraliza um singular anseio de não ver multiplicado o meu receio de estar dividida ao meio e, no entanto, não ser dois... Faço as contas para subtrair as dúvidas pois com as certezas faço apenas dívidas - ironias vívidas da minha tabuada de aflições. A ordem dos fatores não altera a agonia; mas consta na matemática das fisiologias que, por mais que eu some, permaneço uma só; e ainda que eu me eleve ao quadrado e ainda que eu me eleve o espírito veja só: em pedaços sou menor. H A ÍS A L IM A H A ÍS A L IM A 83 Sou casa vazia. Reverbero meu oco no eco do corredor e cada parede faz reverência às minhas exclamações. A ausência acompanha aranhas em seus teares e já não circulam ares se as janelas já não se abrem aos solares dias. Também não há mais banhos lunares na varanda ou cantarolares no chuveiro. Cada degrau se emudeceu das correrias de meninice e não reconheceria mais os calcanhares rachados que tais meninos agora têm. Veem só poeira e pó. Mas há uma luz. A telha quebrada convida um feixe de amanhecer a varrer o vazio da sala. A madeira do chão se espreguiça e estala e novas colônias de bolores e não-amores se alojam em silêncio, goteira após goteira, aguardando que venha abaixo algum último grito de existência concreta. Sou existência de concreto, madeira e gesso: Casa vazia, sou memória e também sou recomeço. Arranquei do fundo do meu útero infértil um último verso prenhe de fé convencida de que determinadas palavras possam parir uma esperança tardia: perdão pra quem me tem ódio, afago para quem me tem medo, beijo para quem me tem nojo, amor para quem me tem fobia. H A ÍS A L IM A H A ÍS A L IM A 84 Haísa Lima por CATARINA BARBOSA JeisiEkÊ de Lundu “criando leitos para que outres desaguem” Enquanto meus pés balançam Nascida sem território, cria da beira, nem baiana nem mineira. Nem menino nem menina, sempre do lado de fora, sempre à margem. Nem macacão nem vestido. Desejo pulsante, corpo fluido, engrenagem solta, criação de delírio, Espetáculo vida, isso não é teatro, isso não é uma performance, meu gênero é fluido, meu corpo é onda, camaleão sem referência. Reflexo sem espelho. Antropofagia sem sentido. Não quero aqui afirmar nada, mas confrontar suas certezas consagradas. Meu desejo não é quebrar nem juntar, mas existir. Isso é um grito de alerta, não de socorro. Escorrem em mim versos de uma poesia desconexa, sem meio nem fim. Meu território é confuso, minhas vértebras são tênues, Sigo em confronto comigo mesma, em busca de uma construção que não pretende subtrair nem somar. Não pretendo divagar sobre conceitos homologados mas discorrer sobre uma existência em constante criação. Ainda sou nascente, não sei se pretendo chegar a algum oceano, mas percorrer por terras criando leitos para que outres deságuem. JE IS IE K Ê D E L U N D U JE IS IE K Ê D E L U N D U 92 Meta[morfose] Ainda vagam em minha memória restos de meu corpo. Ainda restam em mim marcas de outras existências. Não sei ao certo de que modo: só sei que é dor, dói aqui dentro, bem no fundo. É complicado dizer, a língua em que tento me comunicar é muito rasa, não dá conta. Eu sou isso e basta. Não sou nem um sopro, um vento, um fogo, nem algo que simule ficção Essas coisas não são. Permanece então o eu sou. Entro em ebulição Dentro de mim existe vapor, Vento... fogo. Larvas escorrem em minha boca Dentro de mim, combustão. O que era pedra virou lama E corre quente. Agonia Você bem que podia olhar aqui dentro, bem que podia reparar nessa bagunça toda. É tanto treco jogado, tanta ferida aberta, Tá tudo tão fora do lugar que nem sei mais. Você bem que podia reparar, Menina! Meu batom borrado, Minha cara amassada, Meu cabelo desgrenhado. Me sinto como um quadro morto pendurado na parede E você nem pra me olhar. Menina! Dá pra reparar! Essa lágrima que caiu Borrou meu rímel; Transbordou vindo do fundo que nem sei de onde. - Olha, menina, repara direito! Tá tudo empilhado. De vez em quando arrasto um monte, Mas sempre acabo empilhando Pra lá mais adiante. Pode não parecer Mas aqui dentro tá um turbilhão. Isso que você vê, menina! É casca seca querendo soltar Aqui dentro tem lama Que corre frouxa. Uma solidão. JE IS IE K Ê D E L U N D U JE IS IE K Ê D E L U N D U 93 Janelas Só dormi essa noite porque sequei a última garrafa de vodka, dormi de bêbada - não de sono, esse já não sinto há muito tempo. Acordei com os poros mais abertos, cicatrizes de esfaqueamentos internos, é como se eu quisesse sair do meu próprio corpo abrindo um buraco no meio do peito. Meus órgãos dando espaço a coisas que não compreendo, só sinto. Meus poros estão se abrindo, reflexos de um desejo que não controlo, nem vou controlar. A janela do quarto estava aberta. Chovia hoje de manhã, eu já estava acordada, mas fiquei ali imóvel vendo os pingos de chuva caírem sobre o meu rosto. Senti-me de novo no asfalto, caída no chão enquanto me batiam, não pelos pingos de chuva, mas pela sensação de não reagir, de olhar de dentro do corpo como se tivesse uma janela no lugar dos olhos, eu observando de lá sem reação alguma, estática e imóvel. Eu vi, sei que vi porque não dei ao que vi nenhum sentido, sei que vi porque nada serve o que vi, meu rosto como umbral de uma porta para o lado de fora, desconhecido e sombrio, ameaçador. Vou te falar porque não sei o que fazer de ter vivido, não quero o que vi. Eu, prisioneira do meu próprio corpo, mas era meu último refúgio. Voo Acabei de nascer, acabei de parir a mim e não tocou a ave maria das seis da tarde, nem tive um seio pra aliviar minha fome da não matéria, acabo de nascer, chorei como um bebê ao abrir os olhos a uma realidade que arde, assopra e bate. Acabo de parir-me para me presentear a infância que não tive. Estou no começo de uma história com o fim determinado pelos mavambos na esquina ou envelhecer sozinha. Acabo de nascer em um parto de metamorfose, doeu, não foi natural, talvez esteja de resguardo esperando os pontos cicatrizarem. Hoje mesmo tentei voar mais uma vez, mesmo assim, continuo aqui dentro. Vivo nesse dilema que às vezes chega até perto do que sinto, aumentam ainda mais as fagulhas. Não! Não é isso, pode ser que a altura impeça minha decolagem, ou sou eu mesma que não quero subir mais alto? Talvez meu corpo ainda não o seja? Nem importa o que digo, tento justificar meus medos e acabo me embaraçando em mim mesma. Não é só meu corpo que muda a cada segundo, eu já não sou a mesma há muito tempo. Já não tenho as mesmas necessidades. Tudo que tentei ser antes do que sou agora, já não faz mais tanto sentido. Pode ser que em algum momento foi importante pra mim, hoje é só uma marcação de tempo; restaram-me apenas os fragmentos incompreensíveis do ritual, embora pela primeira vez eu sinta que meu esquecimento esteja enfim ao nível do mundo. Ah! E nem ao menos quero que me seja explicado aquilo que pra ser explicado teria que sair de si mesmo; não quero que me seja explicado o que de novo precisaria de validação humana para ser interpretado. Não tenho bula, não posso ser lida, não posso ser interpretada, o que quer que leia de mim ainda será raso e superficial; vida e morte foram minhas e eu fui monstruosa. JE IS IE K Ê D E L U N D U JE IS IE K Ê D E L U N D U 94 meu corpo perdido no espaço pseudo programado órgãos a esmo plataformas vazias cérebrofragmentado massa cefálica de isopor pedaço de imensidão errância inata concreto face oculta corpo artificial ciborg um corpo sem órgãos 95 JE IS IE K Ê D E L U N D U JeisiEkÊ de Lundu por LANMI TRIPOLI Laiz Carvalho “não me basto em prefácios... conheci os precipícios” Teoria Quando ingressei numa Universidade para galgar minha formação profissional, passei a estreitar um laço ainda mais efetivo com os livros, passei a debruçar o meu cérebro, sequioso de conhecimento, sobre as infindáveis teorias e seus respectivos pensadores. Homens que baforavam brilhantes ideias e faziam as mesmas germinarem em minha mente, crescendo feito trepadeiras afoitas. Eu engolia a vida dos livros, enquanto a minha esperava de braços cruzados, espiando pela fresta da janela e sorrindo de soslaio, alcunhando-me, sabiamente, de tola. Ciente de ser muito mais que uma tímida nota de rodapé, desapeguei de toda a parafernália cognitiva e, categoricamente, decidi dar um crédito ao que acontecia ao meu redor... Pasmei, de antemão, ao cerrar a primeira obra... Descobri que, aparte as brochuras, eu não sabia nada da realidade. Atrelei-me tanto às abstrações, que precisei estudar os arranjos do chão para pôr o pé em sua concretude sem ser devorada pelos meus fantasmas. Passei tanto tempo estudando lições acadêmicas, que esqueci a cartilha mais simples e fantástica da alma... O letramento das experiências, o Bê a Bá rústico das quedas, aquilo que aprendemos pelo sal que se mescla à lágrima no choro. Quando me apartei dos calhamaços, me perdi nas linhas do que me pertencia em materialidade... Os meus Mestres não me ensinaram os meandros da vida, os intelectuais só ofertaram as suas teorias e nenhum compromisso a mais. Nessa engenharia toda quem me apontaria o caminho a seguir, se eu não quisesse cruzar com o sofrimento? Rompi com as páginas e fui parar na contra-capa do caos... Tive que caminhar por sobre um tapete de espinhos, driblar as flores e o cheiro familiar de seus perfumes traiçoeiros, tive que descarrilar-me dos meus confortos para passar os dedos na lama putrefata que jazia, enraizada, no estômago do poço. Hoje sou uma mulher completa, profunda em meus entendimentos, não me basto em prefácios... conheci os precipícios. Bebendo aos goles o romantismo Minha avó, que Deus já levou deste mundo, tinha uma sabedoria ímpar... A minha mãe bebeu da água do pote de vó e tornou-se uma fiandeira das lições da vida. Nada que se encontrasse em livros, nada que se encontrasse em enciclopédias, manuais, tratados ou num título desses que se imortaliza numa moldura pendurada na parede... O que a minha avó sabia não se explicava em obras com brochuras e calhamaço propício a doutor... A minha mãe bebeu da fonte; quanto que eu, menina casmurra, quis aprender com os golpes... talvez por imaginar-me forte o suficiente para suportar os solavancos, talvez por ter exercido o papel do princípio ativo da tolice em sua mais torpe composição, talvez por ter sido eu mesma nos exageros que me são peculiares e no silêncio providencial que a minha alma buscava quando eu via ao longe a vida pegar um bonde, sem destino certo e desgarrada de mim. Eu deveria ter ido ao pote, mas não fui. Minha avó dizia, "antes só do que mal acompanhada" e eu, esboço primeiro de um aprendiz das letras, fiz vistas grossas. Tomaram o meu romantismo, debruçaram sobre um papel morno, rabiscaram até que enfeiassem o que era arte. O meu amor era abstrato em peleja vã com as cinzas de um concreto armado... Nessa nuvem de suspiros e lágrimas eu optava por um estado gasoso e queria me cirandar com as nuvens no céu. Estava muito mais interessada em catar estrelas, contornar os anéis de um planeta e decalcá-los em meus dedos nus... numa espera desagradável. Quiseram afogar o meu romantismo numa gota de orvalho, desenraizá-lo de suas originárias grandezas, petrificá-lo em sua disposição sazonal, entortar-lhe o cabo como se faz em talher de fajuto aço, quiseram atribuir-lhe um preço e revirar os seus ocasos. Quiseram lhe sobrepor de fuligens... "ANTES SÓ DO QUE MAL ACOMPANHADA ". Minha avó, saiba que fui ao pote e bebi da velha água... entre o gole e a língua do estômago eu refiz minha jornada. Desenterrei o romantismo que é um estado nobre para quem tem alma nobre, sem que com isso lhe atribuam o epíteto de bula para imbecis. Puxei-o pelos ossos rebocados em terra e o cobri de sabiás. Vó, estou apta a amar novamente... porque me vi para além de um espelho... porque tive que me ausentar de mim para redimensionar tal valor... porque tive que cumprimentar a morte para seguir viagem com a vida. L A IZ C A R V A L H O L A IZ C A R V A L H O 104 E Amar, minha avó, é divino. Sentir-se amada é mais divino ainda... isso eu aprendi nas lembranças oriundas do seu temperinho, espraiado ao modo paciência, no feijão dominical... Aprendi na urdidura tortuosa das cicatrizes agora mortas. Das minhas costas nuas eclodem asas de uma velha borboleta nova, pronta para observar do alto o que agora é simples chão. No reino da calanga mandatária Havia um Reino muito equidistante em um ponto qualquer entre os hemisférios... Um Reino habitado por calangos de todas as espécies, tipologias e temperamentos. Alguns eram até bem servidos de dotes pecuniários, mas a grande massa era composta por calangos sofredores, trabalhadores em série, vítimas de um sistema cruel, ímpio, covarde, mutilador de sonhos, fabricador de ilusões. Esses calangos, apontados nas ruas por suas couraças de qualidade duvidosa, sofriam toda a sorte de preconceito por conta da escassa quantia de calangorréis (moeda local) que dispunham no bolso, ou, comumente, por conta da cor esverdeada pardacenta sem viço que encapelava as suas carnes de terceira. Traçado um breve quadro de calangolândia (no que tange a seus aspectos econômicos e sociais) irei registrar aqui um ocorrido que não passou despercebido, por um triz, no cerne da sociedade calangonense, não fosse a astúcia de um João de barro andarilho que queria fincar raízes naquele famigerado lugar. O fato foi originado na única escola que lá havia... Na única para os calangos pobres porque os ricos mandavam os seus filhos para o Instituto de Educação Intelectual e Formação Intelectual Educacional de Calangos da Capital, tudo bem que girando a roda os dois termos possuam o mesmo significado, mas é que os calangos ricos gostavam de pompa e isso perpassava pelo emprego desnecessário de expressões desnecessárias, redundantes, surtidoras de efeitos morais e outras miudezas para eles relevantes – ou tenha sido isso um pretexto pois que não havia nada de repetitório nisso aí. A história é de Zé Mané Calanguinho, batizado com esse nome dada a desimportância financeira de sua árvore genealógica no ventre da sociedade puritana calangonense... Levantou cedo para ir ao único instituto de educação voltado para a classe de calangos pobres... Ansioso para aprender mais um dia de coisas novas ou não... (Calanguinho havia se acostumado, como era tradição da casta, baixar a cabeça para as pedras que vinham de cima). Aprendera que não se podia praticar o ato da reflexão, da criticidade, e decorava as lições sem questionar. Engolia conteúdos goela abaixo como que se engole uma presa... Acontece que nesse dia o seu ânimo estava diferente, queria, não sei por qual razão, L A IZ C A R V A L H O L A IZ C A R V A L H O 105 sorver conhecimentos contestando, debatendo, inferindo, arguindo, argumentando, mas ficou nisso. Reza a lenda que havia uma mandatária nessa escola que exibia em sua calda de “calanga-mor” um poder tal qual um chefe de estado. A sua calanguice se esticava para quase uma ditadura... Um ar de calangueteira imperial, uma pose de “A última flor do Lácio” misturadaao seu olhar soberbo de calanga arrogante e imperialista. A nobre não permitiu que o calanguinho adentrasse ao sacro ambiente didático/pedagógico, ao templo dos deuses enciclopédicos, apenas porque o coitado usava uma sandália de borrachinha grosseira e estúpida que o impedia, consideravelmente, de dialogar com os filósofos mais austeros, os literatos mais estudados, os educadores mais ilustres, os poetas mais demiurgos da história da humanidade e nem por menos com Madre Tereza de Calcutá, Irmã Dulce, Chico Xavier e Jesus Cristo (Filho do Dono não apenas de Calangolândia como do Mundo Inteiro) e, que, ironicamente, andava descalço... O calanguinho não pôde estudar porque a mandatária da escola acredita em mula sem cabeça e saci pererê... Fantasia, só nos contos e novelinhas infantis. A Realidade é gritante, decadente, incisiva, cruel e dispensa o floreio próprio das aparências. Em que planeta um sapato de couro fino lustrado é superior à fome de estudar? Em que terra uma sandália de borracha ordinária é decisiva na hora de deixar calangos aprendentes do lado de lá do muro? Atrás de um portão que se abre para um discurso movediço de inclusão? Falácia. Hipocrisia. Distúrbio intelectual, emocional e, mais precisamente, humanitário. Ai, se não fosse a perspicácia do João de barro em dizer para aquele humilde calanguinho que erguesse a cabeça porque a essas pessoas a vida ensina e ela não faz escolha entre rico, pobre, branco, negro, esfarrapado, bem vestido, maltrapilho, calçado, pé no chão... As lições são rigorosas e chegam para qualquer um. De posse desse conselho humanista, calanguinho seguiu sua vida, estudou numa escola que não tinha portões, mas que se abria em boa vontade e reais preocupações... Tornou-se um calango de respeito, conduta ilibada, de pensamentos vanguardistas e fundamentado em profundos conhecimentos... Zé Mané agora é José Emanoel – Juiz de Direito. Não sei se por coincidência ou não, dado que as estórias e invencionices da imaginação sofrem desse mal... Ele será o responsável por julgar a soberana mandatária, que após anos a fio mumificada naquela escolinha terminou por ser alvo de graves denúncias de mal uso do dinheiro público, desvios, desmandos... Em Calangolândia é assim, um dia da caça, o outro, do caçador... Mas dentro de mato bruto sandália de borracha vale mais que sapato de couro - lustrado. Essa é a máxima da vida. Paradigma de calango. “Tenhamos sensibilidade” – Bradou uma lesma asquerosa que passava consternada e em nada tinha a ver com essa história. Felizes os poucos que não se vergam sob o domínio do poder, nem se submetem às algemas invisíveis da ambição e das entojantes bajulices... Caráter não é coisa que se aprenda folheando enciclopédias, mas interpretando a vida... L A IZ C A R V A L H O L A IZ C A R V A L H O 106 Laiz Carvalho por MARIANA LISBOA E JOÃO CAIQUE Larissa Pereira “Porque é nos arredores que as coisas sobram” A moça “Três tigres tristes no ...” Como era mesmo aquele trava-línguas?, ela pensava, ao entrar na padaria. Três tigres? Eram três mesmo? Poucos e tristes tigres. A tristeza se derrama em uma esquina. É ímpar, a danada. Porque é nos arredores que as coisas sobram. É nas “quinas” que os pares se desfazem, o leite derrama ou a mesa reclama existência. Sim. Três pães. Aliás, não. Dez. Cinco de sal. Tem de cenoura? E de chocolate? Mudar. Mudar é bom. Mas chocolate não é mudança, ela sabia. Chocolate é manutenção do estado de alerta. Adrenalina de final de jogo. “Três tigres tristes”. Tão bobo esse trava-línguas. Como pode esquecê-lo? Sim. Dez. Cinco de sal, três de cenoura, dois de chocolate. Merda de lágrima que a queria absorta. Hora de comprar pão, quais maldições invocar? Já havia conferido o valor, não havia para que e nem por que olhar para a moça do balcão, mas os olhos verdes da diabinha não a deixavam em paz. A conheço? Perguntava-se. Fazia tanto tempo. Tudo ali remetia a uma estranha modernidade, até mesmo o absurdo da neve empoeirada da decoração natalina. Só ela com aquelas histórias de sentimentos, gente e coisa antiga. Trava-língua. Os alunos gostavam. Davam risadas. Afinal, em qual situação ela conhecera a mocinha do balcão? Por hábito, e para ganhar tempo, pediu. Pode me dar a nota fiscal, por favor? De outra cidade? Seria isso? E a insistência dos tigres ... Que chatos! Inofensivos, é verdade. Medo nenhum, tristeza demais. Droga, a diabinha já fez tudo o que havia para ser feito. Troco recebido, só lhe restava sair e ensaiar sorrisos, mas a lembrança veio tão rápida quanto óbvia. Era no trigo. Sim. “Três tigres tristes no trigo”. Ora, que tolice, não poderia chatear-se por não ter memória. Guardava ainda outras cenas. Daquela moça, por exemplo, que agora ria para ela, desafiando-a. Não era essa a resposta que você queria? No trigo. Padaria, trigo, semente. É preciso manter o equilíbrio da encruzilhada. Ela agora constatava: como era fácil encurralar-se. Por desejo e por conta própria. Eram duas moças tristes olhando-se, embora aquela soubesse mais dela do que ela mesma. Saiu rápido, mal calculando os passos na escada. Seria necessário esperar o tempo de fecundação da tristeza. Isso a moça não poderia roubar-lhe. Se não dominava bem os tigres, era especialista em ninhadas, sabia cuidar. Já havia escolhido o seu caminho. Em casa tomaria café com o pão quente e aquela tristeza bem alimentada seria a sua companhia, pensou, enquanto caminhava decidida, qual tigre no trigo. L A R IS S A P E R E IR A L A R IS S A P E R E IR A 114 O homem E Otávio Henrique era lá nome de homem? Nunca gostara daquele nome, muito menos daquela história que lhe inventaram. A camisa de tecido grudava no corpo. Fazia calor, que dia quente, meu Deus! O suor emoldurava o rosto, acentuando seu desconforto. A infância feliz no meio do mato, os anos de ouro da juventude desperdiçados na capital e agora, quando era pra descansar, estava enfiado naquele táxi rumo a mais uma reunião. Se ao menos a mãe não tivesse morrido naquele carnaval, quem sabe o quanto a sua vida seria diferente? O nome composto fora ideia dela. Aliás, todo o mundo surgira da cabeça dela. Ele queria ser só Henrique, gostava da sonoridade do seu segundo nome. Henrique era como o primeiro namorado lhe chamava. Táxi sem ar-condicionado, não gostava do calor dos sapatos. Gostava do calor do mato, daqueles dias quentes em que ele era Henrique, não o filho da mãe, nem o colega educado da faculdade, tampouco o dono da empresa. Henrique era diferente disso tudo. Que merda, o taxista, não parava de conversar. Como ser bom ao lado de um cara chato desse? A mãe rezava. Na quarta-feira de cinzas, entre os abraços de meus pêsames e os chás de hortelã, ele fora encomendado à capital. Futuro promissor. Liberdade. Aproveitar a vida. Era o que lhe diziam e ele lembrava. Sim, o trânsito estava uma merda, apenas assentiu com a cabeça ou chegou a falar com o motorista? Não gostava muito dessas frases vazias, mas às vezes era a única opção. E hoje, nossa, que dia difícil hoje. 14:50. Estava atrasado e ainda esse calor. Otávio Henrique, vejam só! Segurou a ponta da gravata sentindo-se cômico. Gostava desse tipo de palavra. Excelente aluno em Lexicografia, achava que o mato e o dicionário eram parentes. Ambos tinham cheiros e sons. Eram o seu cenário. Porra, quantos minutos já estavam parados ali? Coçou a orelha, impaciente. Sempre tivera esse hábito. Coçar a orelha para se saber gente. Mas ele era um grande tolo, isso sim. Saudade do mato ou saudade do primeiro namorado? Um tolo, repetia, enquanto o som mecânico do rádio transmissor lhe cortou os pensamentos: “ PABX 35 na escuta, cliente no Motel Veneza deseja uma carteira de Carlton”. Som de flores. Esforço de concentração. Como é gostosa
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