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Profundanças 2

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Ipiaú-BA, julho de 2017
© 2017 by Daniela Galdino
Capa, editoração e arte: Ícaro Gibran
Ilustração capa: Bruna Risério
Revisão: Daniela Galdino
Profundanças é um projeto independente idealizado por Daniela Galdino e conta com a parceria da produ-
tora Voo Audiovisual.
Esta publicação, sem fins lucra�vos, está disponível para download gratuito no link:
www.vooaudiovisual.com.br/profundancas2
FICHA CATALOGRÁFICA
Biblitecária Eva Dayane J. dos Santos
CRB5 1670
P964
Profundanças 2/ Daniela Galdino, Organizadora. Ipiaú: Voo Audiovisual, 2017.
 185f.: il.
 Acesso: h�p://vooaudiovisual.com.br/projects/profundancas2/
 
 1. Literatura Brasileira - escritoras. 2. Mulheres - poesia.
3. Fotografia - escritoras. I. Galdino, Daniela.
 ISBN: 978-85-68836-01-9
 CDD B869.1
“[...] Às vezes, no final da tarde, antes que a noite 
tomasse conta do tempo, ela se sentava na soleira da 
porta e, juntas, ficávamos contemplando as artes das 
nuvens no céu. Umas viravam carneirinhos; outras, 
cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia 
aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, 
então, espichava o braço, que ia até o céu, colhia aquela 
nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na 
boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito 
rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os 
nossos sonhos se esvaecessem também [...]” 
 (Conceição Evaristo, em “Olhos d'água”)
Este livro é dedicado...
à memória de sonho, devaneio e luta representada pela passagem de 
Frida Kahlo pela terra; 
à memória da educadora Arlete Vieira da Silva, pelo seu legado de 
esperança em tempos tão violentos; 
a todas as mulheres que, vivas, aliam sua existência à teimosia de 
construir outros mundos possíveis e
assim resistem nos lugares onde se encontram/reencantam.
Dedicatória
Apresentação
“A felicidade não é mais esperas”
Aidil Araújo Lima
 Aildil Araújo Lima por Camila Camila e Le�cia Ribeiro
“Me bombardeiam no oriente”
Ana Mendes
 Ana Mendes por Josi Oliveira
“Na envergadura necessária do corpo”
Andréa Mascarenhas
 Andréa Mascarenhas por Henrique Valença
"o sonho vedou a casca, os cantos"
Daniela Galdino
 Daniela Galdino por Ana Lee
“Desabrochei na luz dos teus dias”
Dayane Rocha
 Dayane Rocha por Cláudio Gomes
“Do lado de dentro até hoje não sabe”
Débora Ramos
 Débora Ramos por Andrezza Tavares
 “talvez eu seja grande demais para o dia e a noite” 
Erika Cotrim
 Erika Cotrim por Haísa Lima
“Causo sono às minhas chagas”
Haísa Lima
 Haísa Lima por Catarina Barbosa 
“criando leitos para que outres deságuem”
JeisiEkê de Lundu
 JeisiEkê de Lundu por Lanmi Tripoli
07.
08.
18.
28.
39.
50.
60.
71.
80.
90.
“não me basto em prefácios... conheci os precipícios”
Laiz Carvalho
 Laiz Carvalho por Mariana Lisboa e João Caique“
“Porque é nos arredores que as coisas sobram”
Larissa Pereira
 Larissa Pereira por Adrian Greyce e Rodrigo Iris
“Esses olhos serenos já viram o tempo e os temporais”
Lílian Almeida
 Lílian Almeida por Inajara Diz
“Agora me banho em dissabores”
Mel Andrade
 Mel Andrade por Brenda Matos
“Insaciável em sonhos e desejos”
Miriam Alves
 Miriam Alves por João Santana
“Estampo relâmpagos nos muros”
Rita Santana
 Rita Santana por Shai Andrade
“Há uma severa vida que resiste”
Thalita Peixe de Medeiros
 Thalita Peixe de Medeiros por Ytallo Barreto
Ficha Técnica
Sobre as Escritoras
Sobre Fotógrafes
Sobre a Ilustradora
Sobre a Equipe de Produção
Outros agradecimentos
102.
112.
122.
131.
141.
151.
161.
Su
m
á
ri
o
171.
172.
176.
180.
181.
184. 
Apresentação
Irmanades pelo grito
 Cá estamos na continuidade da desobediência. Por refutar-
mos as dinâmicas literárias que, a cada dia, fabricam a nossa 
invisibilidade. Por sabermos que somos muitas em profundas 
relações com a palavra. Por sentirmos uma necessidade avassala-
dora de falar com outres, ouvir as palavras suas. Por sabermos que 
alguns nos querem mortas. 
 Neste segundo volume de Profundanças apresentamo-nos: 
dezesseis escritoras, dezenove fotógrafes. Mais do que soma, aqui 
importa o encontro de vozes dissidentes, pois das vivências 
cotidianas temos retirado a matéria da re-existência nos lugares 
onde estamos – e não para onde nos predestinam. Vias sinuosas, 
veredas interrompidas e reinventadas nos colocaram em 
convergência. Novamente a roda se faz e nela projetamos sussurros 
que se expandem até reverberar em outros corpos. Agora já estamos 
irmanades pelo grito.
 Mais do que nunca bradar se faz necessário. O nosso país 
está de garganta atravessada por um golpe. Um estado de exceção 
orquestrado ao modo jurídico-parlamentar por segmentos sociais 
odiadores tem violentando as nossas sensibilidades e usurpado os 
nossos direitos. Estamos na mira constante: nós, mulheres – ainda 
mais se negras, indígenas, trans, lésbicas, pobres. Ou sucumbimos à 
mira, ou inventamos formas de re-existir.
 Odiadores não representam a totalidade do mundo. É 
preciso arrancar esperança aos dias e lançá-la em garrafas, balões, 
ruas, muros, livros. Cá estamos para dizer que a literatura é também 
o nosso foco de re-existência aos golpes – sejam eles nas grandes 
esferas ou nos circuitos íntimos. Por isso é muito significativo que 
Profundanças 2 seja lançada no dia 06 de julho, data de nascimento 
da pintora mexicana Frida Kahlo. Escolher essa data significa dar 
visibilidade a uma extensa genealogia de combates cotidianos que 
nos põem irmanades, ainda que as limitações temporais nunca nos 
tenham permitido um encontro direto. As indireções, sim, têm nos 
convergido. Os caminhos são díspares, mas as relações nós as 
construímos.
 Nossos corpos inflados por outras lutas, outros sonhos em 
balões que nos antecederam. E dessa maneira escrevemos, criamos 
na r ra t i vas v i sua i s de au to r rep resen tações quando, 
indirecionadamente, desejamos que outres aqui se reconheçam. E 
que nos reconheçamos nas re-existências de quem também está 
sob a mira do ódio, do aniquilamento e do desencanto. 
 Cá estamos: escritoras inéditas (em sua maioria), algumas já 
com um livro autoral publicado, três com mais de um livro. A 
horizontalidade (e não as hierarquias que marcam as disputas 
literárias) é o que nos move, também essa a razão de cá estarmos 
sem determinação de aonde chegaremos. Profundanças, desde a 
sua estreia em 2014, é um espaço de diálogos, expansões artísticas 
e democratização.
 Muito embora saibamos que o acesso virtual tenha 
amplitude recortada, insistimos em disponibilizar o livro 
gratuitamente na esperança de que seja lido nos mais diferentes 
contextos, por diferentes sujeitos. Se a roda que nos colocou em 
contato, fazendo surgir este livro, for recriada em outros espaços, 
com modos desobedientes de leitura, o grito irá reverberar com 
muita força. Afinal, o fato de estarmos numa ação literária e 
fotográfica colaborativa já implode as formas como a literatura tem 
se tornado uma propriedade de poucos. Só o muito nos contenta. Cá 
estamos...
Daniela Galdino (Organizadora) 
07
Aidil	Araújo	Lima
“A felicidade não é mais esperas”
Ponto	de	cruz
Seu dia começara cedo. Na verdade, a noite de Vera foi em clara agonia. 
Aguardava ansiosa o dia, buscava na memória pensamento que 
acalmasse o corpo, nenhum pensamento vinha na lembrança, o corpo 
suava, sentia dores nas entranhas como se fosse parir de desejo. Do lado, 
o marido alheio a tudo, roncava. Levantou-se sorrateiramente, as horas 
andam ligeiras quando não nos lembramos delas; resolveu adiantar 
detalhes do caldo. Sossegou o facho, abria os sururus um a um e os 
retirava de dentro da casca, fez até lembrança de uma música de criança, 
absolveu-se, nem sentiu o tempo se arrastando. O sol lhe sorriu através 
da fresta do telhado. Limpou a casa com o cuidado de quem espera a 
felicidade. – Botameu café, mulher! Gritou o marido, com mau humor tão 
certo. Nesse dia ela nem deu assunto, alma em festa, colocou a chaleira 
no fogo, pegou ovos no quintal – fritou-os na manteiga de garrafa. 
Apanhou o leite na porta – levou ao fogo, tudo pronto, serviu o café como 
a um estranho – como estrelas que brilham tão longe e as vemos tão 
perto, seus pensamentos estão ancorados no dia de ontem. Ele chegou 
disfarçando - amanhã venho te ver - faz um caldo. O marido fala, 
interrompendo suas lembranças - pra quem manca igual à vaca do 
vizinho, você está rápida hoje, mulher. Não deu assunto - hoje seria uma 
vaca. Com mãos estúpidas ele bate a porta e sai. Ela pega delicadamente 
os temperos, cortou-os como quem faz carinho, derretia sentimento em 
cada corte – sentindo suas dores sendo lavadas – penduradas no varal, 
cheirosas e salientes. As grosserias que sofria dia a dia foram lavadas no 
banho de folhas de jasmim, ficou cheirosa que nem só. O cheiro de 
jasmim lhe trouxe o vigor de outrora, olhou-se no espelho – já não era a 
mesma mulher. Ele achava-a maravilhosa. Dizia não se importar com seu 
defeito na perna – resultado de um coice, não foi do marido, esse foi um 
cavalo de verdade. Estava tudo pronto. Bordou ponto de cruz... No pano 
branco criou uma mulher tão viva... Chegou a ouvir seu alegre canto 
enquanto estendia as roupas coloridas no varal, à espera do homem 
chegando. Ele vinha a abraçava por trás, fazia um chamego, a mulher 
desenhada no bordado ficava maluca; a bordadeira quase espeta o dedo 
na agulha nessa transposição do imaginário no tecido através da arte. 
Batidas na porta – era ele. Correu e abriu. Ele nada disse – apenas passou 
os dedos em seus lábios que umedeceram. Mexeu em seu tempo – já não 
era mais a mulher infeliz que vivia com um bruto. Era desejada, dissolvia-
se por inteira como a manteiga de garrafa – melava-se – enroscava - 
dissolvia suas mágoas. Fundem seus corpos em direção ao sol, são 
inundados pela energia da felicidade plena, infinita, como se tivessem 
soltado o corpo da alma, voavam pelo infinito – passaram pelas estrelas, 
o oceano, as montanhas da civilização inca – exaustos, felizes, voltaram 
aos corpos, largados no lençol com bordado de ponto de cruz, esse tinha 
a figura do sol ao centro expandindo-se infinitamente. Ficaram em 
silêncio – escutando a respiração. E o caldo? Saboreou como se fossem 
seus lábios. Pegou-a na nuca e puxou para si, ela ia dengosa. – Tenho que 
ir. Ela sabia. Ficou só, olhando o firmamento, revia os lugares idos há 
poucos instantes, as montanhas, a lua cheia, júpiter. – Mulher, bota meu 
jantar! – gritou novamente o marido. Ela o serviu com olhar distante.
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10
Seres	encantados
Muita coisa já foi vista nesta terra. Como carecer de permissão da árvore 
para entrar no mato, senão fica perdido lá dentro, sem nunca encontrar 
saída. Certo sujeito, depois de muita reza foi encontrado, deram-lhe 
bebida de folhas e ele foi recuperando a vontade, dizendo que explicava 
depois o acontecido. Nunca achou coragem. Ficou o dito pelo não dito. 
Tudo parecia pouco nesse lugar que tinha uma lagoa encantada. Dizem 
os antigos existir uma passagem secreta no fundo que leva ao Convento 
do Carmo, por onde mulheres de importância desciam por dentro da 
terra, ajudadas pela escuridão de dar medo a quem tem coragem. 
Enxotava com um “cruz credo” os medos no caminho e iam por dentro da 
terra na calada da noite aliviar na lagoa a quentura malvada das 
tentações da carne. Dizem que em noite de lua cheia elas entoavam 
cantigas de chamamento e seres encantados apareciam, penetravam em 
suas agonias, arrancando gritos de satisfação. Se Hosana soubesse dessa 
passagem secreta não teria ateado fogo ao próprio corpo. Aconteceu de 
fato. Cansada de esperar mãos de homem que despertasse quentura em 
suas vontades, mortificou-se. Quis acabar depressamente com aquela 
prisão de anseios, procurou por combustível, ateou fogo no corpo. A dor 
foi lancinante, berrou como uma leoa. Foi socorrida por vários homens 
fortes que tocaram em seu corpo quente. Tanta espera por esse toque e 
agora a vida lhe dera uma chance. Sorriu. Antônio acaricia sua pele, põe 
ervas cicatrizantes na queimadura, o mato invade sua vida já mofada, já 
quase passada, reflorescendo. Sararam feridas de tantos anos de pudor 
de obediência ao pai, ele agora morto havia liberado a sua existência. 
Descansa os olhos. O cheiro de jasmim envolve o quarto, imagina-se com 
o vestido de bolas vermelhas que ganhou da madrinha, dançando no 
Jardim Faquir, em frente ao rio. Só a lua testemunha e compreende essa 
alegria. Acordou com um buquê de rosas vermelhas ao lado, um cartão 
cheirando a jasmim - Te esperei tanto tempo. A felicidade não é mais 
esperas. Antônio.
Árvore	sagrada
Num gesto sem vontade, ela passa a vassoura pela casa. Os movimentos 
se demoram cansados, se misturam nas lembranças de menina, da vó 
dizendo: varrer casa à noite chama coisa ruim. Desalentada da vida, 
encosta o corpo cansado na parede sem cor, com manchas do passado. A 
mão continuou na vassoura, deslembrada de ânimo, sente saudades da 
vó, dos passeios à casa com pé de cajá. Era pequena, ainda recorda como 
da primeira boneca que foi sua, ficaram na memória as árvores sagradas. 
Surpreende-se no encontro com a árvore de Iemanjá, se abraçam felizes 
em cumprir o destino, ela a embala com os galhos, afaga com as folhas 
seus cabelos. A vó gritava de longe: sai daí, menina! Essas árvores são 
sagradas; não pode brincar com elas. A vó nem imaginava a ligação entre 
as duas, a árvore lhe segredou tantas coisas... O vento soprava, era 
Iemanjá com sua espada na mão, que cortava o ar e lhe transmitia 
antigos saberes. Voltou das lembranças, já escurecia, terminou a limpeza 
da casa, lavou o corpo e o descansou na rede. O pensamento ganhou 
largueza, ouvia distante a voz da avó querendo culpado - pregar botão 
em roupa no corpo chama a morte abreviando a ida pro além. Lágrimas 
escorreram, eram salgadas, Iemanjá lhe disse que morava nas águas 
salgadas, ela iria entender que não agiu de caso pensado. Não sentia 
remorso, não foi de propósito, mas o marido esbravejou tanto da camisa 
com botão perdido, que ela pegou um e pregou na camisa já vestida no 
corpo. Ele fraquejou as pernas, perguntou - o que é isso mulher, que tá 
assucedendo? E foi escorregando a vida, quando chegou ao chão ela já 
tinha ido embora. Estava mortinho da silva. Chorava e não era de 
saudade do traste, era do afago da árvore. 
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Fio	de	silêncio
Se o avô estivesse no mundo dos vivos a soltaria do retrato só com 
palavras, mas a mentira da vida é nos fazer acreditar que podemos 
costurar esperanças, ela pensava enquanto alinhavava os sonhos de 
outras mulheres. A tarde mornava, o olhar desincerto lutava para enfiar a 
linha na agulha. Amparou os pensamentos nos tecidos, debruçando a 
vista na janela. Esfregou os olhos pensando ser delírio, olhou novamente. 
A menina ainda brincava de esconde-esconde, saindo do cemitério dos 
pretos, correndo para o cemitério dos brancos, depois ela entra na Igreja 
do Rosarinho, tão cheia de vigor que se desconheceu. Só se reconhece 
quando a menina lhe acena e sorri. A memória retrocede em 
cambalhotas de quando era criança, só pelo prazer de ver a cidade virada 
de cabeça para baixo de lá do alto. Ela não lembra que dia aconteceu a 
chegada dos turistas, curiosos com o cemitério de brancos e negros, um 
em frente ao outro. Só recorda que eles a escolheram para tirar foto junto 
dos túmulos, diziam-lhe ser uma negra linda. Ela se orgulhou e ficou 
paradinha ao lado de várias catacumbas, a imagem se impregnando da 
alma dos antepassados. Depois desse dia nunca mais foi a mesma, sua 
alegria ficou presa nos retratos. Largou mão do estudo, ia para a casada 
madrinha no Largo d'Ajuda aprender a costurar. Pensava que podia 
descosturar sua vida do retrato e coser outra com agulha e linha. Quando 
o sol esfriava voltava para casa, descia a ladeira e corria para o rio 
Paraguaçu, gostava de ver a imagem refletida na água, nesse instante a 
alegria presa no retrato se soltava e ela ria. O tempo foi curvando seu 
corpo sobre as linhas, os seios encolhendo dando espaço ao corpo. As 
moças bonitas que chegavam com panos de seda só lembravam o 
retrato que os turistas lhes prometeram mandar. Enquanto isso um fio de 
silêncio costurava sua vida. Certa vez, estava marcando o vestido nos 
contornos do corpo de uma mulher em frente ao espelho, percebeu seu 
corpo estragado. Pegou umas contas amarelas largadas num canto, foi 
enfiando na linha sem nenhuma certeza, só queria matar o tempo, 
enganar o pensamento. Sentiu um arrepio no corpo. Deus benza. Veio a 
ideia de pegar ervas de Oxum e lavar o corpo, a água escorreu 
desenrugando a pele, desembruçando a alma, até vontade cantar nasceu 
na garganta, entoou uma música antiga, que sua avó cantava para Oxum. 
Como é a vida – pensava enquanto descia as escadas em frente ao rio. 
Coseu tanto pano e a esperança estava era nas contas. Inespera o que vê. 
Os retratos. Todos. Boiando no rio. Rapidamente sua imagem se dissolve. 
Deu vontade de dançar, de ser mulher tocada, de sentir coisas nunca 
sentidas antes.
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12
									Aidil	Araújo	Lima	
																						por	CAMILA CAMILA E
									 LETÍCIA RIBEIRO
Ana	Mendes
“Me bombardeiam no oriente”
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excita o delírio o cheiro da doença 
ela gosta do perturbe ela é a barata
que pisa e abandona a própria sorte
de formigas 
ela é o dom de criar nadas
o vício da rejeita da transfigura de tudo
veja o que fiz do teu rosto do amor de mim
veja do rosto do amor de mim o que fiz
cega segue...
ll
umbigo limbo na rasteja da superfície 
almeja quedar no fundo das coisas 
nas quais a aporia é sua morada
e após tamanha entrega
na bubuia do útero mar
redenção à beleza
inútil de ser 
ela
havia algo de mais escandaloso que sua voz:
o peso dos próprios ombros
a força a fé e fúria 
de seu silêncio
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S AN
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S
20
- o que você fez, criança?
à noite tudo se contrai
mas meu coração permanece inchado de sopros:
existir é escolher as palavras que seremos 
aperfeiçoando o que deus não foi capaz: 
a si mesmo 
e não sei quais são as minhas...
herdeiros do orgulho de lúcifer que somos
nos é intrínseca a queda e assim sendo 
nos é própria a ferida materna: 
eu também quis saber como é destruir algo belo
e talvez tenha sido isso o que deus desejou
quando empurrou a luz do céu
e afogou o mundo
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S
21
FIU FIU:
açofrio
Sempre que resisto
Sou arrastada, esfolada, pisoteada
Espancada pelo punho do padrasto Capital
Personificado na insígnia da farda
Que sussurra em cassetetes e coronhadas:
Recue!
Desista!
Os omissos se preenchem com mais um cheque
Os desesperados com crack
Ou esvaziam a cabeça com cleck!
Afogam-me na lama
Me bombardeiam no oriente
Às vezes, caminho com um fuzil
Que me pesa mais que meu corpo
E a fome, minha companhia inseparável,
Tem rosto franzido
Com passos de brita caminha
E sorri ao prato de comida:
Quem dera
Pelo menos aqueles alimentos cancerígenos
Eu comesse...
E o meu algoz?
Assina e assassina
Com mais um cheque
Aos meus sobram
Crack e cleck!
Minhas mãozinhas carregam pedras
Esculpem tijolos
E para me manter acordada
Masco coca cheiro loló
Caminho descalça
Sobre pedregulhos e chão ressecado
Com fome e sede
Desesperada
Também agonizo no concreto das metrópoles
Nos morros, nos becos
Morando entre lixão e bueiros
Repouso pelas calçadas
E me esquento com a chama do isqueiro
Seja no chão rachado
Ou no asfalto
Ou naquele terreno baldio
Onde meu corpo abandonaram
A mídia madrasta
Ganhará mais um prêmio:
Sonegação de impostos e um cheque
Pelo registro fotográfico
Da minha carcaça esquelética
Apática, leiloa minha dor:
Vende a imagem da minha tragédia
Àqueles que lhe querem
Recortada, silenciosa e encoberta.
Lhes convido a responder a charada existencial:
Quem eu sou?
Sou o sonho de Humanidade
Que vocês esquecem
E perseguem
A
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22
									ANA	MENDES	
																								por	JOSI OLIVEIRA
Andréa	Mascarenhas
“Na envergadura necessária do corpo”
|	de	atalhos	e	desvios	|
mergulho/leio carta alheia, de JGR . RJ, 25 de janeiro de 1962 . linhas de 
amizade se escrevem entre vírgulas, pontos - letra de máquina, letra de 
mão . laços fraternos entre compadres encerram mares sem distância . ao 
lado, tv vende medos em áudio e vídeo e entonações . capitalismo se faz 
em moedas de carne e osso e fé . assaltos a ônibus acontecem entre 
04:00 e 08:00 horas de toda infernal manhã . assim mesmo trabalho se 
sobrepõe à segurança e autopreservação . no peito, coração escravizado . 
no olho, esperança se perde em cinzas . nas mãos que escrevem (sim, 
escrevem), há que se administrar um peso desolador . reportagem 
extraordinária não assusta mais . propagandas invadem ruas que ainda 
não absorvem passos corridos na madrugada . 
oh, meu Rio, em sépia e neblina te re.convoco: apresento minhas chagas 
à espera de teu beijo santo, senhora morta nesse presente sem futuro . 
cabisbaixa, enfrento a noite e seus gritos imagéticos . penso que ainda 
sei filosofar aos botões, se é que ainda há tempo para pensamentos sem 
protocolo . ardem os grilhões cerebrais . minha bandeira rasgada vou 
costurando com palavras tontas e linhas tortas . artefatos explosivos de 
1968 ressuscitados em ações bomba em 2016 . a pena que escrevia leis, 
hoje chicoteia new.escravos sem cor . tios SANgue nos patenteiam como 
suas eternas marionetes aptas ao lixo . por imagens aprendemos a servir 
a nossos próprios conterrâneos de capa, espada e direito . 
o que faço: com minhas cartas tornadas públicas à revelia de meu 
querer; com o privado alheio que se tornou subitamente público; com os 
grilhões que se nos impõem; com as madrugadas e ruas invadidas; com 
meu passado em sépia e neblina; com essa escravidão estrangeira que 
nos encarcera por dentro; com as palavras fraternas de JGR; com os 
assaltados de cada infernal manhã destinada ao trabalho; com 
capitalismo.osso; com vírgulas e pontos - entre atalhos e desvios (?)
|	e.la	|	
ela diz que não e vem, estrear na vida . pergunta como se morre na cidade 
. ela deixa recado sobre a relva, pra que molhe e se perca das vistas . sem 
fadiga, usa as pernas como a voar de casa em casa . esconde os pés . ela 
brinca com fogo em minhas noites meninas . mesmo gente grande chora 
diante do que não se sabe e vem . prefere as madrugadas, névoas e ruas 
desertas . não pense que veste preto, a invisível . às vezes, grita e não 
escuto . perto longe: aqui - sinônimo de estar . cigana de trouxas sempre 
prontas . arriba a saia e cega qualquer movimento de olhar . rastro sem 
poeira se levanta antes dela . alquimista de fantasmas medrosos, dá suas 
ordens às avessas . esquece que não morrerá, com pena dos íntimos . 
rouba verdes esmeraldas como se fosse possível mudar seu/nosso 
destino - de dor à esperança . chafurda na felicidade alheia que nunca 
conhecerá . escolada em epifanias sem voz, perde a chave do paraíso, de 
puro propósito . conhece como ninguém meus sótãos e porões há muito 
abandonados . arquiteturas de mim, arruinadas por teu olho invasor . em 
leve compensação, posso (re)fazer aqui tua art déco ensimesmada, nua, 
sem timidez . ainda aposta incógnitas que me ignoram completamente, 
ela . azeita meus dedos para que aprendam texturas matemáticas e teu 
braile frio . sons impossíveis tenho que decorar em nome de cada 
capricho seu . in.submisso, quase duvido que nasci para ser.VIr.L.Ã . não 
seicomo, abrevia meus abismos ao contrário do previsto . esquece que 
sei decifrar seus passos mórbidos e ainda assim, morro um pouco a cada 
expectativa . roda gigante recolhe e entontece meus medos: um dia 
voltam aptos e me desnorteiam . dela arranco as certezas, moedas de 
suja barganha . no mar se esconde ou nada . dia jamais poderá vê-la . 
amanhece quando não há mais só e sol . noturna, ciúma de qualquer 
estrela . AquI, quer palco exclusivo e cachê infinito para um instante, 
só.mente .
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|	feliz,	noite	|
orquestra de violões . cheiro de música antiga, invade . farol em desapego 
de noites . ruínas de hoje . madrugadas em que deito teu sono, em claro . 
de tanto, pouco . de pedros, heranças . sem vestido ou glória, histórias . 
corais, só ecos de mar . sinos: independência dissonante . silêncio 
in.sepulcro . nunca te gerei no tempo.templo . nascimentos e escuros . 
serão ventos esgarçados de dor que tomam as frentes . jamais predomina 
em mando alheio . palavras.flor, cerimônias . lágrimas vermelhas em rios 
de dentro . justiça e direito secam antes de correrem . cascatas ondeiam 
teus temores . sem resgate, salvo liberdades e folhas . aleluias 
entre.mundos ganham almas quase de mãos dadas . canto novo se entoa 
sobre oceanos . suprimentos de esperança, qual chuva necessária se 
derramam, quem sabe, quando amor for moeda mais que junção de 
sen.tidos . santos, carurus e prata . fogos de artifício espocam, tristes . 
bambinos choram e ainda nascem nus, sem nome . mundo.mundis, vasta 
ilusão in.escrita . capítulos marginais não mais se perdem . enganam 
fossos de byte . livro, vida e cânone: invençSÃOões . já não sei se se 
salvam ternura e inocência . meus olhos alheios dizem: ainda morre na 
praia infância esquecida . desterros enganam . chaves, cadeados, 
fronteiras .
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|	palco	italiano	|	
primeiro plano, teu lugar . tablado difícil de sair . ordinário raro . 
extraordinário tudo . desejo.mundo . maravilhoso seu . quando passa em 
mim, rua é agora e me acontece . confronto sem guerra solta história . 
Aleph melhorado com olhos para voar . perplexo: vejo . abro os trabalhos 
e só há palavras em rito de orfandade . improviso se m'esgarça . 
antigamente sem futuro . verbo afetar: bala e gume . literatura em mim, 
em ti: locação . convite à criação . arte: rito mágico em cada um . longe da 
página, olhar de papel cortante . questões.tudo e sedução . ver o valor 
nascer às cegas . intu.ir . recortar o alheio olhar i.n.apreensível . quem 
sabe (?), quase tudo passa por palavras . an passant, sempre à frente: da 
foto, da vida, do olho . in.ter.fe.r.ir . montar a cena . dar a ver manga e 
vestido dentro do ensaio . vir.e.ser . avessos em linhas sem corte . o que é 
teu nasceu de outrem . teu ver |me| faz ficção . e pode não ser . sétimo ato 
e há poesia.mundo em teu umbigo . larva experimental do que não sei . 
paixão: pensamento pulsante e/ou palavra generosa, de corpo inteiro . 
real e sua concretude . só desejo . há.ver: império do olhar . tempo corre 
sobre estruturas de vento . culturas.pensamento . portas não são 
impedimento para o nada.tudo . louca transmutação que exala vida . da 
retina miro cegas bocas, dor/voz de rua e silêncio . potência: 
antropofágica vontade criadora . a quem disse que não digo que sim só o 
instante anterior à vaia . meu livro, palavra obtusa, sem pena na mão – 
sei, e faltam capítulos machadianos . tu, expectador e porvir . incrível me 
faz de ressaca . criar, procedimento ilógico, fechado/aberto e sem 
pedágio algum . s.ei, subjetividade construída qual formação de plateia . 
dúvida sem antigamente afeta qualquer um/a . conquanto, memória de 
livro . en.cantos podem ser rasos . sem pretensão, impossível morre de 
inanição . devaneios nascem prontos . imprevisibilidade destoante nos 
consola . ainda cairá chuva de metáfora em dias líricos . barragens serão 
talvez fruto de uma imaginação tresloucada e que não merece 
credibilidade . sim, o uso do plural em cada lógica, verdade e pensamento 
virará lei, como prevê tua intuição . envolta em sonata harmônica 
formato tuas emoções emprestadas, sem crédito . do palco rua 
castroalvino irrompem teus infinitos, MIMéLticos . cuidado: 
olho.denúncia por onde bem pode se esvair a alma . enveredo no que não 
li . do saber caixa.de.fósforo exala perfume tupiniquim universal . 
escola.palco, vida.tese . vai, gauche, ser vida inteligente perto ou muito 
longe de Copacabana . pra invadir teu jardim de palavras peço agora 
licença pra mestiçagens sem dono . perdão pela mímese desaforada, pela 
metáfora roubada, por cada descabido ato de escutar sem ver . aguardo 
cartas secretas postadas em tua/nossa arte: lerei com paciência . destas 
mal traçadas linhas me despeço . desde já, permita-me tradução 
m.im.ética de teus ecos . mui atenciosamente, subscrevo-me . eu . A
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									Andréa	Mascarenhas	
	por	HENRIQUE VALENÇA
Daniela	Galdino
“o sonho vedou a casca, os cantos”
um	pé	de	água
não saberei do corpo celeste
que, devagar, nutre auroras
tocá-lo, percorrê-lo é violentar
o terreno limítrofe das horas
oferecida em displicência
envolta nas dilatações
semeadora de penumbra:
acinte vejo
macero vontades extraviadas
quem respira terremotos
inibe a calma de hesitações
deito-me na barcaça do sonho
ofereço-te grandezas:
esta cachoeira
que se oculta
em minhas pernas
aérea	de	aquário
uraniana, sorve meus pés
lambe minha concha, cona
reúne tudo: seivas, sons,
sais, sobras, sustos
e orna, deslizadeira,
o recipiente de afetos
meus ecos liquefeitos
 rarefeitos
desconhecem gargalos
transbordada
serei pedra sem limo
no fundo das tuas marés
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nutri-end
não durmo em concha
evito acordar infinita
sincero plano de fuga retomo
plantada em terreno baldio
reconheço-me galho inerte
poda se faz
atravessada em ponta de mato
ensaio 
 colheita interrompida
 cinza semeadura
 
cesta. feira. noite
desandas meu caldeirão
de alquimias grotescas
surges iluminado, pervertido
estacionas culpas e cônegos
inaugurado, pressentido
quedas livre no meu ventre
teus roncos blasfemam
minhas poucas indecisões
festa no céu da boca
durmo infinita
em concha de retalhos 
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alumbramento
assim aprendi:
lunação é completo ciclo 
intervalo entre luas novas
levo 29 dias
algumas horas
minutos, segundos
calculadas variações para mais
e menos vejo
cenários adiados
inchada te encontro
estou minguante
minguado ressurges
ela, nova, enfolha
crescente é a casa que nos guarda
náufragos nautas com fusos
de longe observam sem ler
convulsas marés, 
cachos de murta
tempos de cortar: 
unhas, cabelos, pulsos
fio de madrugada nos guia
pinhão roxo nas janelas, um quarto
lunação ...
estes voos profundos no assoalho
viagem longa que a cama não alcança
crescente é a casa que nos guarda
céu	em	si
estes tons impróprios
desandam o dia chuvoso 
a pele ao Domingo
a pele ao crepúsculo
a pele ao abismo
o sonho vedou a casca, os cantos
o sonho escorre pela cama
lança rachaduras no prédio
asfixia o elevador, a escada
o sonho verteu gotas, gritos
silêncio de abismos nas casas
 de crepúsculo nas ruas
 e domingo nas cercas
o sonho relincha nos entrepostos 
 paralisa tomadas
 apaga ponteiros
o sonho deita nas encruzilhadas
na cama, homem de anil
esquece rota de fuga
soletra vagares, pulsações
evita o banho a que se destina
recorda o pássaro em desatino
alma voraz que lhe abriu a fenda
está refeito o homem de anil
sem terra que sustente o passo
afagado em fonteluminosa
desabrigado de regras
desobrigado de reinos
goza em looping a descoberta:
 cu de céu. infinita-se.
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arada
ostento cara de terra
espírito de poço
índole mar
remota felicidade
sempre tive
irrigada padeço
estranheza, pra mim,
é abre-te sésamo
vagueio em cova funda
porque estou semente
gozo no sereno
inerte
numa pedra de amolar
corro as sete freguesias
e fastio não me alcança
levo fachos de gritos 
aonde me querem muda
replantando-me
dou cestos fartos
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									Daniela	Galdino
	por	ANA LEE
Dayane	Rocha
“desabrochei na luz dos teus dias”
Porto	velho
O horizonte que te viu chegando
Foi testemunha dessa nova entrada
Não vi teu caos no mar se afogando
Mas vi teu cais como uma morada
 
Vi nos teus olhos outro mar nadando
Uma partida sem ter mais chegada
No meu repouso te vi repousando
No teu repouso, não me vi em nada.
 
Busquei um barco pra velar comigo
Tu procuravas encontrar abrigo
Pra descansar o teu sofrido arco
 
Tu me encontraste por coincidência
Na maré alta de tanta evidência
Sou qualquer porto pro teu velho barco.
Onze horas da noite, fecho a porta
Na tristeza do quarto, eu pago o custo
Quando o olho pro chão, então me assusto
Vendo uma esperança quase morta.
O suporte que tenho não suporta
Ouvir de tantas bocas falsas juras
Quando durmo escutando essas agruras
Me desperto, assustada com um gemido
"O silêncio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras" 
Mote: Severina Branca
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Escutar o seu nome, ainda treme
As paredes rachadas do meu peito
Que por mais que eu peleje é tão sem jeito
Que até sem gemer, o corpo geme
Eu escuto uma voz me dizer: reme!
Mas, meus braços cansados dizem não
Um minuto que eu fico com a razão
Ele manda esperar, e eu espero
Quero muito dizer que não lhe quero
Mas não posso calar meu coração. 
Sem limites, amei e ouvi as juras
De quem sem ter limites me enganava
E o meu peito, carente, experimentava
O seu gosto de fel junto às doçuras
Mas, depois, só provei as amarguras
De quem mais me jurou sentir saudade
O seu choro externava falsidade
E eu chorei de verdade ao pé da cama
O desgosto maior de um ser que ama
É amar quem não ama de verdade. 
Cinza
Era cinza a tarde amordaçada
Sem vestígios de telas e de cores
Só restou uma cor acinzentada
E um véu cor de cinza nas flores.
 
Era cinza o aroma dos amores
Tinha cinza na beira da calçada
Era cinza o clarão da madrugada
Tinha cinza queimando algumas dores
 
Era cinza o cenário que eu via
Era cinza o pincel da poesia
Era cinza, só cinza e nada mais
 
Era cinza o meu pranto que pingava
Era cinza o meu sangue que sangrava
Era cinza, era cinza a cor dos “ais”.
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Visões
Vi mil sonhos correrem pra distante
Sem ao menos freá-los com meus olhos
E olhando o destroço entre os ferrolhos
Vi que nada sobrou naquele instante.
O desgosto chorava, lamentando
Por no jogo do azar ter tanta sorte
Até minha fraqueza que era forte
Vi que aos poucos estava se entregando.
As visões que meus sonhos visitaram
Foram elas as que mais me assustaram
Assustada e confusa me acordei
Vislumbrei pesadelos tão reais
Que eu nem sei se eles foram irreais
Ou vivi tudo aquilo que sonhei.
Prece
Desabrochei na luz dos teus dias
Sentindo a paz da cor da aurora
Refugiada, fui de hora em hora
Esconder-me em tuas poesias
Em cada letra, minhas alegrias
Foram passando, sem pressa ou demora
Minha tristeza sempre fica fora
Quando os teus passos servem como guias
Teu verso exala queixas e revoltas
À dor das idas, o amor das voltas
Uma lembrança que não adormece
Teu verso inspira o canto da lira
É tanto verso que teu verso inspira
Que até parece que teu verso é prece.
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									Dayane	Rocha	
	por	CLÁUDIO GOMES
Débora	Ramos
“Do lado de dentro até hoje não sabe”
Vida
Toco minhas partes
Refaço-me em gozo
Com minhas próprias mãos
Einsamkeit
Nina se preparava para dormir quando bateram à porta. Enquanto 
escovava os dentes amarelados (de quem tomou muito antibiótico) 
trocava os últimos miúdos do dia com Vanessa. Elas dividiam 
apartamento. Se assustou quando Vanessa, de olhos arregalados, 
anunciou sussurrando a presença de dois policias. A visão do olho-
mágico era mais que estranha para aquela hora da noite. Vanessa, 
automaticamente, pensou que estavam buscando por ela. Era 
estrangeira e carregava essa eterna culpa. Todo estrangeiro carrega algo 
de culpa, mesmo sem ter motivos reais. Naqueles segundos em que Nina 
bochechava, Vanessa já se via sendo deportada. Esquecera de algum 
papel importante? Não entregara algum comprovante na última 
entrevista na secretaria de imigrantes? Que vergonha seria voltar ao seu 
país algemada, logo ela que buscava a liberdade...
Os dois homens eram loiros e altos. Cumprimentaram educadamente a 
moça de olhos azuis-acinzentados que abrira a porta. Seria a 
semelhança? Vanessa se questionava paranoicamente. Ficou 
posicionada um pouco atrás de Nina, como se ela fosse um escudo. 
- Boa noite! Em que posso ajudá-los? 
- A senhora escutou algum barulho estranho do apartamento de cima? 
- Algum barulho? ... Não. Na verdade, a única coisa que escuto do 
apartamento de cima são passos. 
- Nos últimos dias ouviram passos? 
- Não. Quer dizer, na verdade não prestei atenção. Você escutou, Vanessa?
Vanessa relutou antes de responder. Havia se transportado com aquela 
pergunta. Nunca vira ninguém do apartamento de cima. Elas conheciam 
o vizinho da frente. Era um senhor simpático, digo, ao menos as 
cumprimentava. Havia outros vizinhos que ignoravam as tentativas de 
bom dia ou boa noite. Nina rebatia a angústia da amiga com humor: são 
pessoas frustradas ou os novos velhos nazis. Elas riam. 
Tinha quase certeza que aquele apartamento era vazio ou mal-
assombrado. Normalmente ruídos ou barulhos bruscos eram o que se 
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a cozinha e o outro que ficava atrás da porta de entrada até o banheiro. 
Vanessa estava paralisada. Nunca vira nada parecido. Para não dizer que 
era um lixão, já que se tratava de um lar, pensou numa compilação de 
imundície e entulho, imagem que não vira nem em filme de ficção belga. 
O síndico trabalhava com outro homem na remoção da quinquilharia, 
olhou para sua direção e disse: - Tem gente que vive e parece que está 
morto.
Ela ficou sem palavras. Havia garrafas de cerveja, vodka, whisky, restos 
de comida, roupas, sapatos, movéis, lembranças de viagens, máquinas 
fotográficas, maços vazios de cigarro, retratos. Muitos retratos. Enquanto 
percorria o caminho livre até a cozinha sentia-se desolada. Como não 
conhecia a vizinha? Quanta solidão espalhada! Um metro de lixo por 
todo o apartamento quadrado. Fotos de pessoas, fotos de paisagens, 
fotos íntimas, fotos de amantes e seus sexos. A imagem de uma mulher 
sorridente se repetia. Era ela. Ela era fotógrafa. Um acúmulo de anos, era 
impossível juntar tudo aquilo em um mês. Voltou a si quando o síndico, 
com um tom costumeiro, falou: - Amanhã, se você quiser, pode vir pegar 
algumas coisas. E desceu com mais um saco de lixo. 
Evitou responder. Estava assombrada. Saiu de lá às pressas. Não era 
apenas o lixo, era a solidão que se escondia atrás dele. Era a normalidade 
daquela ocasião. Enquanto seus sentidos perturbados voltavam, lá 
estava ela, em frente a sua geladeira, abismada. Ficou tão perdida nos 
espasmos do seu pensamento, que nem notara já estar em casa... Teria 
sonhado? Se não fosse a geladeira cheia de posters de filmes 
sessentistas não acreditaria. Pegou uma água para ver se voltava a si. 
Quando fechou a porta notou um bilhete de Nina:
- Amiga,os bombeiros vieram pegar o corpo de madrugada.
escutava. Nos últimos dias, se ela não estivesse enganada, o silêncio 
ecoava transpondo o teto. Parecia que os fantasmas haviam saído de 
férias. Era verão.
- Não. Não escutei nada. 
Os policias agradeceram e se desculparam. Afinal, não eram pagos para 
incomodar ninguém com perguntas no meio da noite. Faziam apenas o 
seu trabalho. Não se sentiam mais importantes, não eram autoridades, 
eram policias. Subiram para o apartamento. Eles haviam recebido um 
telefonema da família da desconhecida moradora. Os parentes 
moravam em outra cidade e há muito tempo não tinham notícias dela. 
Estavam preocupados. 
Vanessa sentia-se um tanto angustiada. Como ela podia nunca ter visto 
sua vizinha? Morava há três anos naquele apartamento. Concluiu: aqui 
ninguém se conhece. Sentiu saudade da sua terra natal. Da janela de 
Nina viram os policiais deixando o prédio. Não havia acontecido nada. 
Quando Vanessa acordou Nina já havia saído. Sempre saía cedo, era 
professora de Biologia. Tinha muito trabalho, mas seus esforços valiam a 
pena. Trabalhava para a formação do seu povo, tinha um ótimo salário e 
ainda as maiores férias de todo o país. Ali era bom ser professor.
Agora ouvia muitos passos vindos do apartamento de cima. A vizinha 
misteriosa havia voltado e pelo barulho estava de mudança. Terminou o 
café e resolveu subir. Queria conhecer a mulher que a polícia procurava e 
contá-la da preocupação da família. Quando abriu a porta um vento 
fedido lhe abraçou. Era um cheiro podre. Uma catinga que nem o 
Beberibe em dias de cheia conseguia alcançar. Do primeiro patamar 
avistara vários sacos azuis de lixo. Não acreditava que poderia vir dali 
aquele odor... A fedentina lhe deixou tonta. Certo, que, vira e mexe lhe 
vinha às narinas um mal cheiro, mas sempre pensou ser algum lixeiro 
pela rua ou um caminhão de coleta. O vento que ocupa todo o espaço 
trazia, mesmo sem querer, tais odores... Não, não eram apenas os sacos. 
Quando chegou ao patamar do apartamento avistou um mar de lixo. 
Havia apenas dois caminhos livres. Um da porta de entrada até a 
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Lamentações	de	Antígona
Conheces aquela moça dos olhos de águia? Aqueles são olhos de quem 
vê muito mundo. Na verdade, por vezes, ela viu apenas um quarto. Era 
pequeno e havia uma janela com vista para a rua. A rua era de barro, 
pobre e de casas humildes. Naquela época ainda existia um pau-brasil 
do lado direito da sua vista. Ela achava uma riqueza.
O quarto era seu mundo. O mundo do lado de fora da janela: casas 
pobres e um pau-brasil. Do lado de dentro até hoje não sabe. Cresceu 
entre paredes. Sufocada. Sufocava. Acabou por aprender a ver mais 
mundo do que existia entre aquele tapume. Havia um teto e as coisas 
que um pai provê. Há uma mãe. O velho já desencarnou. 
Houve tempo que a morte do seu pai era seu sonho. Na sua pueril 
inocência via a morte como solução do pesadelo da sua vida naquela 
família. O sonho de morte livraria daquela falta de vida. O tempo passou. 
O tempo cuidou de amansar seus instintos infantis tão sanguinários. 
Ainda hoje ela tem uns bichos, mas já não os alimenta. Já se sentiu 
culpada pela sombra. A sorte foi perceber a tempo que só existe sombra 
se existir luz. Ela não era tão má assim...
Hoje ela sabe que ninguém tem culpa. Tudo na vida é para ser melhor, 
para crescer. Livrar-se do apego do amor e da dor é viver em paz. 
Desapegar do amor. Desapegar, sobretudo, da dor. Se tudo é caminho, 
com ou sem pernas devemos nos mover. Toda poeira que sobe, assenta. 
Sem mais devaneios! Aquele bicho era um espelho da insanidade 
paterna. Fruto daquilo que seu pai lhe deu. Era o que ele tinha para dar: 
medo e morte. Qualquer dia ela poderia acordar morta, se é que isso 
existe… Acordar morta. Ela reza até hoje para acordar viva. Talvez, por 
isso, muitas vezes acorda meio morta. Seu pai seria o assassino. Imagine 
isso. Deu-lhe a vida e prometia-lhe a morte. Ouviu muitas ameaças. 
Cresceu entre beijos na cabeça - que ela odiava - xingamentos e 
ameaças. Facas sendo amoladas no batente da porta da cozinha. Na 
época o piso era queimado. A beira da porta era afiada de tanto amolar 
faca e facão. Os domingos eram os melhores e os piores dias. A cana 
debaixo da pia. O pai arredio virava cavalo do cão. 
Para viver uma vida diferente aos sete anos de idade, ele tinha que 
morrer. Acho que na sua consciência de menina havia devaneios de 
outras vidas, de outros nortes. Não tinha medo da morte. Tinha medo 
daquela vida. Era ele ou ela. Não tinha saída. Ela planejou algumas fugas. 
Teve que aguentar. Não é fácil ser criança. Ser adulto é saber perdoar. 
Largar. Deixar os medos que fundamentam a construção da velha 
infância. Rezar para não fracassar, já que os alicerces foram tão daninhos. 
Não mudou muita coisa. Ela continua planejando fugas como na idade 
menor.
Hoje já não existe mais inimigo. Seu pai morreu. Por vezes, talvez pela 
memória que gosta de repetir-se, é má consigo. Vez ou outra ainda dói. 
Carrega mais peso do que deveria. Por isso, mesmo jovem, tem ombros 
que sinalizam cansaço. Estás vendo?
Só agora, que a vida lhe amaciou, tem piedade do desconhecido. Deseja 
tê-lo como amigo. Amiga daquele que seria seu assassino. Ele era seu pai, 
porra!
Na cidade-sono dos retirantes ele se fez auxiliar de veterinário, vendedor 
de frutas, detetive particular. Assim foi construindo um lar. Contam que 
em algum momento da vida, em São Paulo, ele descobriu numa igreja o 
que era pecado. Acabou-se, assim, a diversão. Não havia mais forró, nem 
sanfona, nem cantar, nem dançar. Abraçou a causa. Até pregava e todo 
tipo de felicidade foi proibida em casa. Como ela queria dançar! Era tudo 
que ela queria. Ela, uma dançarina nata. Da mãe não herdara tamanha 
leveza, então, devia existir algum frescor no seu genitor que ela não 
conhecera. 
Vira e mexe pergunta a sua mãe sobre os avós paternos. Ela gosta dos 
idosos. Da sabedoria que as rugas guardam. Sabe apenas que a chegada 
do seu pai matou avó negra no parto. Alguém que morreu trazendo uma 
vida ao mundo. Talvez por isso carregava tanto medo e tanta morte. Era 
coisa de berço. De parto. O umbigo não separa.
A pergunta continua. Quem era aquele homem? Nunca poderá 
responder. Seu pai, aquele que ameaçava e também a amava, pouco se 
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revelou. Uma coisa é certa: era duplo. Dois que estavam ali. Lado a lado. 
Não deu tempo de contar. Depois de anos, quando ela conseguiu desatar 
o laço de ódio, voou um oceano para lhe reencontrar. Tinha que saber 
mais dele, pois já não se reconhecia, precisava saber mais sobre ela.
Horas depois do desembarque a cabeça dura do velho explodiu. Ela 
chorava sem saber por que no CDU-Boa Viagem. Eram daquelas 
mensagens que vão além do on-line, do telefone ou qualquer dessas 
tecnologias da comunicação. Era intuição. 
Uma memória infantil se fez viva:
Orava ajoelhada próxima do pai. O ódio tomava conta do seu 
coraçãozinho. Era obrigada a se ajoelhar. Ele queria abrandar, com seu 
gesto cristão, toda culpa. Ele não se dava conta do que fazia. Ela, sim, 
sabia. Como era comum aos domingos, havia almoçado ameaças e 
constrangimentos. Ainda tinha fel na sua boca de menina. De joelhos, ao 
lado do genitor, pedia a Deus, em seu íntimo, com toda a verdade de uma 
criança:
- Mate-o! Mate-o! Com ele não há paz. Deus, me livre desse pai! 
O dia chegou. Deus atendeu. Naquele instante pensou triste:
- Deus tarda, mas não falha. 
Os olhos de águia da moça até hoje marejam.
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									Fernanda	Limão	
	por	AMANDA PIETRA
									Débora	Ramos	
									por	ANDREZZA TAVARES
									 
Erika	Cotrim
“talvez eu seja grande demais para o dia e a noite”
Dois	pés
Sozinha em casa, com os pés em cima da mesa e sentindo um som que 
não ouviahá muito tempo, ela conseguiu refletir melhor sobre quem 
tinha errado mais ou primeiro. Chegou à conclusão que não foi 
ninguém. As coisas aconteceram no ritmo mais louco e alucinado 
possível. Como quando um prédio cai depois de uma explosão de gás. 
Não foi culpa do engenheiro, nem do arquiteto, nem do dono do 
restaurante e muito menos do pessoal que instalou o gás. Aconteceu. 
Como acontecem as tragédias, os tsunamis, as coisas ruins que chegam 
como um turbilhão ... tão impossíveis de deter quanto a natureza da 
gente. 
Sozinha ela conseguia ver isso claramente. Ao conversar com outra 
pessoa, ouviu que tinha mania de se auto sabotar. Tinha medo de quando 
as coisas estavam dando certo demais. E era verdade. Ela tinha mesmo 
muito medo de tudo que estava inexplicavelmente bom, afinal, quem era 
ela para ter tanto direito a tanta felicidade? Ela não era ninguém. Ela 
nunca tinha tido nem sorte, nem tanto amor. Não estava acostumada, no 
final das contas. Olhando para a sala vazia, com a casa já quase 
desmontada, ela percebia. 
Estava indo embora porque tinha medo. Porque sentia uma angústia 
surreal de não merecer tanta felicidade. Medo de não saber lidar com o 
que poderia acontecer caso tanta coisa boa acabasse de uma vez. Ela não 
estava pronta. Ela nunca estava pronta para dar tchau. Para ir embora. 
Talvez fosse o medo de morrer sozinha, muito maior do que o medo de 
ficar presa para sempre. Sozinha, em casa, ela conseguia pensar nisso 
melhor. E doía como tem que doer essas coisas sempre tão dela, sempre 
tão únicas. Ia ser sozinha ou ia ser feliz?
De	madrugada,	eu	e	meus	versos
Madruguei escrevendo versos, justo eu que não sou nem de poemas e 
muito menos de madrugadas. Me vesti de estrelas e barulho de mar, eu 
que nem tenho esse talento para moda romântica. Suspirei como 
suspiram aqueles que sabem: precisam ir embora em algum momento, 
mas não estão com disposição para partir. Justo eu, tão cheia de certezas, 
tão cheia de verdades, justo eu, tão eu mesma sendo cada dia menos eu. 
Não entendo se era a alma que estava cansada de ficar quietinha, salva, 
calada dentro de mim. Comportada, como era de se esperar. Não sei se 
respirar fora da bolha tinha de fato me destruído por dentro e estava 
todo o meu organismo a se reconstruir. Não sei. O fato é que a cada dia 
mais desejo de madrugar me dava, mais anseio de partir me consumia. 
Conhecer outros lugares, outros países, sentir os cheiros de comida 
diferente - porque essas daqui já nem fome mais me davam. Era fome o 
que eu queria sentir. Não era medo. 
No entanto, o medo ia e vinha, que nem igual as ondas do mar. 
Igualzinho, sim. Eu seguia apática, como ficam apáticos aqueles que só 
podem de longe observar o oceano sem imaginar que tipo de cores 
existia logo ali, depois do horizonte. Eu, tão cheia de certezas, não 
merecia estar passando por aquilo. Em que momento mesmo eu tinha 
me perdido do que achava que deveria querer? Em que momento passei 
a ver poesia nas coisas estranhas que nos consomem dia a dia? 
Eu, tão profunda, tão intensa, agora tão rasa e enorme. Sempre tão barco 
ancorado, virei jangada de pescador, tudo porque quis ser grande. Tudo 
porque quero ser grande. Tudo porque talvez eu seja grande demais para 
o dia e a noite e precise devorar madrugadas, vestida de estrelas e com a 
fome de engolir o mar e respirar dentro das ondas. Eu, que acho que 
deveria ir embora.
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Ela	e	eu,	que	sou	só	um	cara
Ela que me fez em pedaços, ela que me fez muito melhor, ela que um dia 
chegou vestida de madrugada e estrelas e depois foi embora porque 
precisava mesmo ir: ela. 
Eu, que era só um cara, eu que era o moço bonito no meio de um caminho, 
a encontrei num dia qualquer. Tinha um jeito meio perdido, torto como 
costuma ser modo de quem acabou uma fuga da própria vida porque já 
não tinha mais certeza nenhuma a não ser que precisava ir embora. E eu 
que era só um cara me vi ali: querendo ser a estrada de quem já tinha 
cansado de caminhar. 
Ia dar errado, era certo. Arrisquei. Apareci como devem surgir as grandes 
tábuas de salvação. Fui corda para jangada de pescador, tão leve e 
volúvel. Depois fui leme para quem já sabia que devia voltar a navegar. 
Ela gostava de metáforas com o mar. Gostava mesmo era de metáforas. A 
mulher, que era toda uma hipérbole. 
Também gostava de madrugadas, a tal menina. E gostava de dizer que 
tinha ido embora porque achava que não tinha se encontrado na vida e 
que na verdade mesmo, não sabia se queria encontrar. Tinha tomado 
gosto pelas ventanias, justo ela, que jurava, morria de medo de 
tempestades. 
Eu, que era só um cara que assumia riscos, sabia que ela ia embora. 
Era grande demais para ficar. Ela que por uns dias tinha sido só medo, 
em outros só choro, e em outros só desprendimento, era agora apenas 
coragem. E se foi. Justo ela, que eu queria que tivesse ficado.
Ritmo
Transformo em sonho o som dessas cordas. A cada novo acorde sinto 
como se o som fosse palpável, denso, colorido, um objeto que a gente 
consegue guardar numa gaveta ou estante para pegar sempre que sentir 
saudade. Vai ver foi assim que surgiram as caixinhas de música. 
E desse jeito transformo em som o meu desejo. Guardo num lugar bem 
fácil de ser encontrado cada vez que me perguntar por que estou aqui. 
Fica mais fácil assim, não é?
E os desejos transformo em planos. Planos meus, planos nossos. Se não 
for para fazer planos eu nem levanto todo dia. Não era assim que eu 
dizia? Me planejo em cada detalhe, e você sabe como tenho problemas 
com planos que não são bem sucedidos. 
Transformo em verdade o que digo sussurrando enquanto ando por aí. 
Não é que é verdade quando dizemos o que sentimos até quando 
estamos sozinhos? Faz muito mais sentido falar sozinho às vezes. 
Transformo em medo aquela ida e em saudade a despedida. E a saudade 
converto em doces doses de amor transformadas em mensagens: 
devemos sempre dar vivas pela tecnologia e o poder de amansar o 
coração de quem ficou de longe observando o outro voar. 
Transformo em gritos os meus segredos, de longe, de perto. Consigo te 
explicar cada pedacinho desse combo de frustração, mágoa, medos e 
manias. E se você ainda fica, mesmo assim - ou é muito amor ou é mesmo 
resignação. E por falar em amor, amo o seu dedilhar no violão, mas já 
disse isso antes. Mesmo assim me faço em som pra você entender, viro 
ritmo. E veja bem, é tão bonito quando viramos poesia.
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									Erika	Cotrim
																		por	HAÍSA LIMA
Haísa	Lima
“causo sono ás minhas chagas”
Causo sono às minhas chagas
pois chego a cegar de tantas causas;
me pinto em tino de ébrias coisas
me pranto em pano de leves roupas
e levo em poucas, mas boas palavras
a causa maior da minha sina:
sintetizar o sumo do que me consome
ou morrer de fome por não me caber.
A solidão não morre nas presenças.
Se não se conectam as almas,
altas são as precipitações
do meu voo de encontro ao chão.
E me enterro fundo no que não me é vão:
rememorações, cigarro e alguma poesia.
Me mata a alma cada companhia áspera
de uma existência lisa
que me ocupe o ânimo
com verberações precisas
sobre minúcias das esferas políticas.
Me ocupam mais os ocos e os ócios
o balé das esferas em danças elípticas,
pois me afaga mais o peito
a esvaziês de um universo inteiro
que a insistência de um diálogo vazio.
A solidão não morre nas presenças;
morro eu na deriva de uma vida lúcida
que nasce fúlgida,
cresce monótona
e falece túrgida.
Na solidão do cosmo inteiro,
nasci sozinha,
mas morrerei múltipla.
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Sou fortuna pouca ao luxo da noite:
gasto os parcos cílios das pálpebras 
pra observar a prata que salpica o breu.
Valho quase nada que valha cobrir-se em véu
e me mostro inteira ao escuro que me veste:
essa nudez celeste
queverte estrelas em mim.
Sou toda constelada sim;
nua em pêlo,
sou espelho da escuridão.
Tampouco me vela qualquer guardião.
Neste caso,
acendo velas para um santo ateu
e ascendo à fé de um sol que nunca vem...
- "santo" só porque é casto tal ocaso;
- "ateu" porque meu credo é teu. De mais ninguém.
Vê que me pluraliza um singular anseio
de não ver multiplicado o meu receio
de estar dividida ao meio
e, no entanto, não ser dois...
Faço as contas para subtrair as dúvidas
pois com as certezas faço apenas dívidas
- ironias vívidas
 da minha tabuada de aflições.
A ordem dos fatores não altera a agonia;
mas consta na matemática das fisiologias
que, por mais que eu some,
permaneço uma só;
e ainda que eu me eleve ao quadrado
e ainda que eu me eleve o espírito
veja só:
em pedaços sou menor. 
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83
Sou casa vazia.
Reverbero meu oco no eco do corredor
e cada parede faz reverência às minhas exclamações.
A ausência acompanha aranhas em seus teares
e já não circulam ares
se as janelas já não se abrem aos solares dias.
Também não há mais banhos lunares na varanda
ou cantarolares no chuveiro.
Cada degrau se emudeceu das correrias de meninice
e não reconheceria mais 
os calcanhares rachados que tais meninos agora têm.
Veem só poeira e pó.
Mas há uma luz.
A telha quebrada convida 
um feixe de amanhecer a varrer o vazio da sala.
A madeira do chão se espreguiça e estala
e novas colônias de bolores e não-amores se alojam em silêncio,
goteira após goteira,
aguardando que venha abaixo 
algum último grito de existência concreta.
Sou existência de concreto, madeira e gesso:
Casa vazia, sou memória e também sou recomeço.
Arranquei do fundo do meu útero infértil 
um último verso prenhe de fé
convencida de que determinadas palavras
possam parir uma esperança tardia:
perdão pra quem me tem ódio,
afago para quem me tem medo,
beijo para quem me tem nojo,
amor para quem me tem fobia.
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									Haísa	Lima	
									por	CATARINA BARBOSA
JeisiEkÊ	de	Lundu
“criando leitos para que outres desaguem”
Enquanto	meus	pés	balançam
Nascida sem território, 
cria da beira,
nem baiana nem mineira.
Nem menino nem menina,
sempre do lado de fora, sempre à margem. 
Nem macacão nem vestido. 
Desejo pulsante, corpo fluido, 
engrenagem solta, criação de delírio, 
Espetáculo vida, isso não é teatro, 
isso não é uma performance, 
meu gênero é fluido,
meu corpo é onda, camaleão sem referência. 
Reflexo sem espelho. 
Antropofagia sem sentido. 
Não quero aqui afirmar nada, 
mas confrontar suas certezas consagradas.
Meu desejo não é quebrar nem juntar, mas existir.
Isso é um grito de alerta, não de socorro.
Escorrem em mim versos 
de uma poesia desconexa, 
sem meio nem fim. 
Meu território é confuso, 
minhas vértebras são tênues, 
Sigo em confronto comigo mesma,
em busca de uma construção 
que não pretende subtrair nem somar.
Não pretendo divagar sobre conceitos homologados 
mas discorrer sobre uma existência em constante criação. 
Ainda sou nascente, 
não sei se pretendo chegar a algum oceano,
mas percorrer por terras criando leitos para que outres deságuem.
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Meta[morfose]
Ainda vagam em minha memória restos de meu corpo. Ainda restam em 
mim marcas de outras existências. Não sei ao certo de que modo: só sei 
que é dor, dói aqui dentro, bem no fundo. É complicado dizer, a língua em 
que tento me comunicar é muito rasa, não dá conta. Eu sou isso e basta. 
Não sou nem um sopro, um vento, um fogo, nem algo que simule ficção
Essas coisas não são.
Permanece então o eu sou.
Entro em ebulição
Dentro de mim existe vapor, 
Vento... fogo. 
Larvas escorrem em minha boca
Dentro de mim, combustão.
O que era pedra virou lama 
E corre quente.
Agonia
Você bem que podia olhar aqui dentro,
bem que podia reparar nessa bagunça toda.
É tanto treco jogado,
tanta ferida aberta,
Tá tudo tão fora do lugar que nem sei mais.
Você bem que podia reparar, 
Menina!
Meu batom borrado,
Minha cara amassada,
Meu cabelo desgrenhado.
Me sinto como um quadro morto
pendurado na parede
E você nem pra me olhar.
Menina!
Dá pra reparar!
Essa lágrima que caiu
Borrou meu rímel;
Transbordou vindo do fundo que nem sei de onde.
- Olha, menina, repara direito!
Tá tudo empilhado.
De vez em quando arrasto um monte,
Mas sempre acabo empilhando
Pra lá mais adiante.
Pode não parecer
Mas aqui dentro tá um turbilhão.
Isso que você vê, menina!
É casca seca querendo soltar
Aqui dentro tem lama
Que corre frouxa.
Uma solidão. 
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Janelas
Só dormi essa noite porque sequei a última garrafa de vodka, dormi de 
bêbada - não de sono, esse já não sinto há muito tempo. Acordei com os 
poros mais abertos, cicatrizes de esfaqueamentos internos, é como se eu 
quisesse sair do meu próprio corpo abrindo um buraco no meio do peito. 
Meus órgãos dando espaço a coisas que não compreendo, só sinto. Meus 
poros estão se abrindo, reflexos de um desejo que não controlo, nem vou 
controlar. A janela do quarto estava aberta. Chovia hoje de manhã, eu já 
estava acordada, mas fiquei ali imóvel vendo os pingos de chuva caírem 
sobre o meu rosto. Senti-me de novo no asfalto, caída no chão enquanto 
me batiam, não pelos pingos de chuva, mas pela sensação de não reagir, 
de olhar de dentro do corpo como se tivesse uma janela no lugar dos 
olhos, eu observando de lá sem reação alguma, estática e imóvel. Eu vi, 
sei que vi porque não dei ao que vi nenhum sentido, sei que vi porque 
nada serve o que vi, meu rosto como umbral de uma porta para o lado de 
fora, desconhecido e sombrio, ameaçador. Vou te falar porque não sei o 
que fazer de ter vivido, não quero o que vi. Eu, prisioneira do meu próprio 
corpo, mas era meu último refúgio.
Voo
Acabei de nascer, acabei de parir a mim e não tocou a ave maria das seis 
da tarde, nem tive um seio pra aliviar minha fome da não matéria, acabo 
de nascer, chorei como um bebê ao abrir os olhos a uma realidade que 
arde, assopra e bate. Acabo de parir-me para me presentear a infância 
que não tive. Estou no começo de uma história com o fim determinado 
pelos mavambos na esquina ou envelhecer sozinha. Acabo de nascer em 
um parto de metamorfose, doeu, não foi natural, talvez esteja de 
resguardo esperando os pontos cicatrizarem. Hoje mesmo tentei voar 
mais uma vez, mesmo assim, continuo aqui dentro. Vivo nesse dilema que 
às vezes chega até perto do que sinto, aumentam ainda mais as fagulhas.
 
Não! Não é isso,
pode ser que a altura impeça minha decolagem, ou sou eu mesma que 
não quero subir mais alto? Talvez meu corpo ainda não o seja? Nem 
importa o que digo, tento justificar meus medos e acabo me 
embaraçando em mim mesma. Não é só meu corpo que muda a cada 
segundo, eu já não sou a mesma há muito tempo. Já não tenho as 
mesmas necessidades. Tudo que tentei ser antes do que sou agora, já não 
faz mais tanto sentido. Pode ser que em algum momento foi importante 
pra mim, hoje é só uma marcação de tempo; restaram-me apenas os 
fragmentos incompreensíveis do ritual, embora pela primeira vez eu 
sinta que meu esquecimento esteja enfim ao nível do mundo. Ah! E nem 
ao menos quero que me seja explicado aquilo que pra ser explicado teria 
que sair de si mesmo; não quero que me seja explicado o que de novo 
precisaria de validação humana para ser interpretado. Não tenho bula, 
não posso ser lida, não posso ser interpretada, o que quer que leia de 
mim ainda será raso e superficial; vida e morte foram minhas e eu fui 
monstruosa.
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meu corpo perdido no espaço 
pseudo programado 
órgãos a esmo 
plataformas vazias 
cérebrofragmentado 
massa cefálica de isopor 
pedaço de imensidão 
errância inata
concreto 
face oculta
corpo artificial
ciborg 
um corpo sem órgãos 
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									JeisiEkÊ	de	Lundu	
																									por	LANMI TRIPOLI
Laiz	Carvalho
“não me basto em prefácios... conheci os precipícios”
Teoria
Quando ingressei numa Universidade para galgar minha formação 
profissional, passei a estreitar um laço ainda mais efetivo com os livros, 
passei a debruçar o meu cérebro, sequioso de conhecimento, sobre as 
infindáveis teorias e seus respectivos pensadores. Homens que 
baforavam brilhantes ideias e faziam as mesmas germinarem em minha 
mente, crescendo feito trepadeiras afoitas. Eu engolia a vida dos livros, 
enquanto a minha esperava de braços cruzados, espiando pela fresta da 
janela e sorrindo de soslaio, alcunhando-me, sabiamente, de tola. Ciente 
de ser muito mais que uma tímida nota de rodapé, desapeguei de toda a 
parafernália cognitiva e, categoricamente, decidi dar um crédito ao que 
acontecia ao meu redor... Pasmei, de antemão, ao cerrar a primeira obra... 
Descobri que, aparte as brochuras, eu não sabia nada da realidade. 
Atrelei-me tanto às abstrações, que precisei estudar os arranjos do chão 
para pôr o pé em sua concretude sem ser devorada pelos meus 
fantasmas. Passei tanto tempo estudando lições acadêmicas, que 
esqueci a cartilha mais simples e fantástica da alma... O letramento das 
experiências, o Bê a Bá rústico das quedas, aquilo que aprendemos pelo 
sal que se mescla à lágrima no choro. Quando me apartei dos 
calhamaços, me perdi nas linhas do que me pertencia em 
materialidade... Os meus Mestres não me ensinaram os meandros da 
vida, os intelectuais só ofertaram as suas teorias e nenhum compromisso 
a mais. Nessa engenharia toda quem me apontaria o caminho a seguir, se 
eu não quisesse cruzar com o sofrimento? Rompi com as páginas e fui 
parar na contra-capa do caos... Tive que caminhar por sobre um tapete de 
espinhos, driblar as flores e o cheiro familiar de seus perfumes 
traiçoeiros, tive que descarrilar-me dos meus confortos para passar os 
dedos na lama putrefata que jazia, enraizada, no estômago do poço. Hoje 
sou uma mulher completa, profunda em meus entendimentos, não me 
basto em prefácios... conheci os precipícios.
Bebendo	aos	goles	o	romantismo
Minha avó, que Deus já levou deste mundo, tinha uma sabedoria ímpar... 
A minha mãe bebeu da água do pote de vó e tornou-se uma fiandeira das 
lições da vida. Nada que se encontrasse em livros, nada que se 
encontrasse em enciclopédias, manuais, tratados ou num título desses 
que se imortaliza numa moldura pendurada na parede... O que a minha 
avó sabia não se explicava em obras com brochuras e calhamaço 
propício a doutor... A minha mãe bebeu da fonte; quanto que eu, menina 
casmurra, quis aprender com os golpes... talvez por imaginar-me forte o 
suficiente para suportar os solavancos, talvez por ter exercido o papel do 
princípio ativo da tolice em sua mais torpe composição, talvez por ter 
sido eu mesma nos exageros que me são peculiares e no silêncio 
providencial que a minha alma buscava quando eu via ao longe a vida 
pegar um bonde, sem destino certo e desgarrada de mim. Eu deveria ter 
ido ao pote, mas não fui. Minha avó dizia, "antes só do que mal 
acompanhada" e eu, esboço primeiro de um aprendiz das letras, fiz vistas 
grossas. Tomaram o meu romantismo, debruçaram sobre um papel 
morno, rabiscaram até que enfeiassem o que era arte. O meu amor era 
abstrato em peleja vã com as cinzas de um concreto armado... Nessa 
nuvem de suspiros e lágrimas eu optava por um estado gasoso e queria 
me cirandar com as nuvens no céu. Estava muito mais interessada em 
catar estrelas, contornar os anéis de um planeta e decalcá-los em meus 
dedos nus... numa espera desagradável. Quiseram afogar o meu 
romantismo numa gota de orvalho, desenraizá-lo de suas originárias 
grandezas, petrificá-lo em sua disposição sazonal, entortar-lhe o cabo 
como se faz em talher de fajuto aço, quiseram atribuir-lhe um preço e 
revirar os seus ocasos. Quiseram lhe sobrepor de fuligens... "ANTES SÓ 
DO QUE MAL ACOMPANHADA ". Minha avó, saiba que fui ao pote e bebi 
da velha água... entre o gole e a língua do estômago eu refiz minha 
jornada. Desenterrei o romantismo que é um estado nobre para quem 
tem alma nobre, sem que com isso lhe atribuam o epíteto de bula para 
imbecis. Puxei-o pelos ossos rebocados em terra e o cobri de sabiás. Vó, 
estou apta a amar novamente... porque me vi para além de um espelho... 
porque tive que me ausentar de mim para redimensionar tal valor... 
porque tive que cumprimentar a morte para seguir viagem com a vida. 
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E Amar, minha avó, é divino. Sentir-se amada é mais divino ainda... isso eu aprendi nas 
lembranças oriundas do seu temperinho, espraiado ao modo paciência, no feijão 
dominical... Aprendi na urdidura tortuosa das cicatrizes agora mortas. Das minhas 
costas nuas eclodem asas de uma velha borboleta nova, pronta para observar do alto o 
que agora é simples chão.
No	reino	da	calanga	mandatária
 Havia um Reino muito equidistante em um ponto qualquer 
entre os hemisférios... Um Reino habitado por calangos de todas as 
espécies, tipologias e temperamentos. Alguns eram até bem servidos de 
dotes pecuniários, mas a grande massa era composta por calangos 
sofredores, trabalhadores em série, vítimas de um sistema cruel, ímpio, 
covarde, mutilador de sonhos, fabricador de ilusões. Esses calangos, 
apontados nas ruas por suas couraças de qualidade duvidosa, sofriam 
toda a sorte de preconceito por conta da escassa quantia de calangorréis 
(moeda local) que dispunham no bolso, ou, comumente, por conta da cor 
esverdeada pardacenta sem viço que encapelava as suas carnes de 
terceira. Traçado um breve quadro de calangolândia (no que tange a seus 
aspectos econômicos e sociais) irei registrar aqui um ocorrido que não 
passou despercebido, por um triz, no cerne da sociedade calangonense, 
não fosse a astúcia de um João de barro andarilho que queria fincar 
raízes naquele famigerado lugar. 
O fato foi originado na única escola que lá havia... Na única 
para os calangos pobres porque os ricos mandavam os seus filhos para o 
Instituto de Educação Intelectual e Formação Intelectual Educacional de 
Calangos da Capital, tudo bem que girando a roda os dois termos 
possuam o mesmo significado, mas é que os calangos ricos gostavam de 
pompa e isso perpassava pelo emprego desnecessário de expressões 
desnecessárias, redundantes, surtidoras de efeitos morais e outras 
miudezas para eles relevantes – ou tenha sido isso um pretexto pois que 
não havia nada de repetitório nisso aí.
 A história é de Zé Mané Calanguinho, batizado com esse nome 
dada a desimportância financeira de sua árvore genealógica no ventre 
da sociedade puritana calangonense... Levantou cedo para ir ao único 
instituto de educação voltado para a classe de calangos pobres... Ansioso 
para aprender mais um dia de coisas novas ou não... (Calanguinho havia 
se acostumado, como era tradição da casta, baixar a cabeça para as 
pedras que vinham de cima). Aprendera que não se podia praticar o ato 
da reflexão, da criticidade, e decorava as lições sem questionar. Engolia 
conteúdos goela abaixo como que se engole uma presa... Acontece que 
nesse dia o seu ânimo estava diferente, queria, não sei por qual razão, 
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sorver conhecimentos contestando, debatendo, inferindo, arguindo, 
argumentando, mas ficou nisso. Reza a lenda que havia uma mandatária 
nessa escola que exibia em sua calda de “calanga-mor” um poder tal qual 
um chefe de estado. A sua calanguice se esticava para quase uma 
ditadura... Um ar de calangueteira imperial, uma pose de “A última flor do 
Lácio” misturadaao seu olhar soberbo de calanga arrogante e 
imperialista. A nobre não permitiu que o calanguinho adentrasse ao 
sacro ambiente didático/pedagógico, ao templo dos deuses 
enciclopédicos, apenas porque o coitado usava uma sandália de 
borrachinha grosseira e estúpida que o impedia, consideravelmente, de 
dialogar com os filósofos mais austeros, os literatos mais estudados, os 
educadores mais ilustres, os poetas mais demiurgos da história da 
humanidade e nem por menos com Madre Tereza de Calcutá, Irmã Dulce, 
Chico Xavier e Jesus Cristo (Filho do Dono não apenas de Calangolândia 
como do Mundo Inteiro) e, que, ironicamente, andava descalço... O 
calanguinho não pôde estudar porque a mandatária da escola acredita 
em mula sem cabeça e saci pererê... Fantasia, só nos contos e novelinhas 
infantis. A Realidade é gritante, decadente, incisiva, cruel e dispensa o 
floreio próprio das aparências. Em que planeta um sapato de couro fino 
lustrado é superior à fome de estudar? Em que terra uma sandália de 
borracha ordinária é decisiva na hora de deixar calangos aprendentes 
do lado de lá do muro? Atrás de um portão que se abre para um discurso 
movediço de inclusão? Falácia. Hipocrisia. Distúrbio intelectual, 
emocional e, mais precisamente, humanitário. 
 Ai, se não fosse a perspicácia do João de barro em dizer para 
aquele humilde calanguinho que erguesse a cabeça porque a essas 
pessoas a vida ensina e ela não faz escolha entre rico, pobre, branco, 
negro, esfarrapado, bem vestido, maltrapilho, calçado, pé no chão... As 
lições são rigorosas e chegam para qualquer um. De posse desse 
conselho humanista, calanguinho seguiu sua vida, estudou numa escola 
que não tinha portões, mas que se abria em boa vontade e reais 
preocupações... Tornou-se um calango de respeito, conduta ilibada, de 
pensamentos vanguardistas e fundamentado em profundos 
conhecimentos... Zé Mané agora é José Emanoel – Juiz de Direito. 
Não sei se por coincidência ou não, dado que as estórias e invencionices 
da imaginação sofrem desse mal... Ele será o responsável por julgar a 
soberana mandatária, que após anos a fio mumificada naquela 
escolinha terminou por ser alvo de graves denúncias de mal uso do 
dinheiro público, desvios, desmandos...
 Em Calangolândia é assim, um dia da caça, o outro, do caçador... 
Mas dentro de mato bruto sandália de borracha vale mais que sapato de 
couro - lustrado. Essa é a máxima da vida. Paradigma de calango. 
 “Tenhamos sensibilidade” – Bradou uma lesma asquerosa que 
passava consternada e em nada tinha a ver com essa história. Felizes os 
poucos que não se vergam sob o domínio do poder, nem se submetem às 
algemas invisíveis da ambição e das entojantes bajulices... Caráter não 
é coisa que se aprenda folheando enciclopédias, mas interpretando a 
vida...
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									Laiz	Carvalho	
									por	MARIANA LISBOA E
 JOÃO CAIQUE
Larissa	Pereira
“Porque é nos arredores que as coisas sobram”
A	moça
“Três tigres tristes no ...” Como era mesmo aquele trava-línguas?, ela 
pensava, ao entrar na padaria. Três tigres? Eram três mesmo? Poucos e 
tristes tigres. A tristeza se derrama em uma esquina. É ímpar, a danada. 
Porque é nos arredores que as coisas sobram. É nas “quinas” que os pares 
se desfazem, o leite derrama ou a mesa reclama existência. Sim. Três 
pães. Aliás, não. Dez. Cinco de sal. Tem de cenoura? E de chocolate? 
Mudar. Mudar é bom. Mas chocolate não é mudança, ela sabia. Chocolate 
é manutenção do estado de alerta. Adrenalina de final de jogo. 
“Três tigres tristes”. Tão bobo esse trava-línguas. Como pode esquecê-lo? 
Sim. Dez. Cinco de sal, três de cenoura, dois de chocolate. Merda de 
lágrima que a queria absorta. Hora de comprar pão, quais maldições 
invocar? Já havia conferido o valor, não havia para que e nem por que 
olhar para a moça do balcão, mas os olhos verdes da diabinha não a 
deixavam em paz. A conheço? Perguntava-se. 
Fazia tanto tempo. Tudo ali remetia a uma estranha modernidade, até 
mesmo o absurdo da neve empoeirada da decoração natalina. Só ela 
com aquelas histórias de sentimentos, gente e coisa antiga. Trava-língua. 
Os alunos gostavam. Davam risadas. Afinal, em qual situação ela 
conhecera a mocinha do balcão? Por hábito, e para ganhar tempo, pediu. 
Pode me dar a nota fiscal, por favor? De outra cidade? Seria isso? E a 
insistência dos tigres ... Que chatos! 
Inofensivos, é verdade. Medo nenhum, tristeza demais. Droga, a diabinha 
já fez tudo o que havia para ser feito. Troco recebido, só lhe restava sair e 
ensaiar sorrisos, mas a lembrança veio tão rápida quanto óbvia. Era no 
trigo. Sim. “Três tigres tristes no trigo”. Ora, que tolice, não poderia 
chatear-se por não ter memória. Guardava ainda outras cenas. Daquela 
moça, por exemplo, que agora ria para ela, desafiando-a. Não era essa a 
resposta que você queria? No trigo. 
Padaria, trigo, semente. É preciso manter o equilíbrio da encruzilhada. 
Ela agora constatava: como era fácil encurralar-se. Por desejo e por 
conta própria. Eram duas moças tristes olhando-se, embora aquela 
soubesse mais dela do que ela mesma. Saiu rápido, mal calculando os 
passos na escada. Seria necessário esperar o tempo de fecundação da 
tristeza. Isso a moça não poderia roubar-lhe. Se não dominava bem os 
tigres, era especialista em ninhadas, sabia cuidar. Já havia escolhido o 
seu caminho. Em casa tomaria café com o pão quente e aquela tristeza 
bem alimentada seria a sua companhia, pensou, enquanto caminhava 
decidida, qual tigre no trigo.
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O	homem
E Otávio Henrique era lá nome de homem? Nunca gostara daquele 
nome, muito menos daquela história que lhe inventaram. A camisa de 
tecido grudava no corpo. Fazia calor, que dia quente, meu Deus! O suor 
emoldurava o rosto, acentuando seu desconforto. A infância feliz no meio 
do mato, os anos de ouro da juventude desperdiçados na capital e agora, 
quando era pra descansar, estava enfiado naquele táxi rumo a mais uma 
reunião. Se ao menos a mãe não tivesse morrido naquele carnaval, quem 
sabe o quanto a sua vida seria diferente? O nome composto fora ideia 
dela. Aliás, todo o mundo surgira da cabeça dela. Ele queria ser só 
Henrique, gostava da sonoridade do seu segundo nome. Henrique era 
como o primeiro namorado lhe chamava. Táxi sem ar-condicionado, não 
gostava do calor dos sapatos. Gostava do calor do mato, daqueles dias 
quentes em que ele era Henrique, não o filho da mãe, nem o colega 
educado da faculdade, tampouco o dono da empresa. Henrique era 
diferente disso tudo. Que merda, o taxista, não parava de conversar. Como 
ser bom ao lado de um cara chato desse? A mãe rezava. Na quarta-feira 
de cinzas, entre os abraços de meus pêsames e os chás de hortelã, ele 
fora encomendado à capital. Futuro promissor. Liberdade. Aproveitar a 
vida. Era o que lhe diziam e ele lembrava. Sim, o trânsito estava uma 
merda, apenas assentiu com a cabeça ou chegou a falar com o 
motorista? Não gostava muito dessas frases vazias, mas às vezes era a 
única opção. E hoje, nossa, que dia difícil hoje. 14:50. Estava atrasado e 
ainda esse calor. Otávio Henrique, vejam só! Segurou a ponta da gravata 
sentindo-se cômico. Gostava desse tipo de palavra. Excelente aluno em 
Lexicografia, achava que o mato e o dicionário eram parentes. Ambos 
tinham cheiros e sons. Eram o seu cenário. Porra, quantos minutos já 
estavam parados ali? Coçou a orelha, impaciente. Sempre tivera esse 
hábito. Coçar a orelha para se saber gente. Mas ele era um grande tolo, 
isso sim. Saudade do mato ou saudade do primeiro namorado? Um tolo, 
repetia, enquanto o som mecânico do rádio transmissor lhe cortou os 
pensamentos: “ PABX 35 na escuta, cliente no Motel Veneza deseja uma 
carteira de Carlton”. Som de flores. Esforço de concentração. Como é 
gostosa

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