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A CENTRALIDADE DA SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO NO PADRÃO DE REPRODUÇÃO DO CAPITAL DAS ECONOMIAS DEPENDENTES Wendell da Costa Magalhães1 RESUMO Este trabalho, com base na Teoria Marxista da Dependência, principalmente nas obras de Ruy Mauro Marini e Jaime Osorio, trata da centralidade ocupada pelo fenômeno da superexploração da força de trabalho no chamado padrão de reprodução do capital das economias dependentes, em especial das economias latino-americanas. Tem o objetivo, assim, de deixar claro como tal fenômeno se evidencia como elemento central, estruturante e definidor do padrão de reprodução do capital vigente nessas economias ao longo do desenvolvimento dos respectivos ciclos do capital que aí se conformam. Para isso, se fez uma revisão bibliográfica de um conjunto de trabalhos capazes de nos esclarecer a relação ontológico-categorial das categorias dependência, superexploração da força de trabalho e padrão de reprodução do capital; e de como estas refletem a lógica e historicidade das economias latino-americanas, exposta, num nível mais alto de abstração, nos seus correspondentes ciclos do capital que se sucedem. Como resultado, tem-se que a forma particular com que se comporta a lei do valor mundializada nas economias dependentes latino-americanas supõe, para o seu entendimento, uma perspectiva integradora que perpassa pela consideração do ciclo do capital na economia dependente em sua totalidade; e pelo reconhecimento da centralidade da superexploração da força de trabalho no padrão de reprodução do capital responsável por fazer a mediação dessa lei em tempo e espaço particular. Palavras-chave: Superexploração da força de trabalho. Padrão de reprodução do capital. Dependência. Ciclo do capital. Teoria Marxista da Dependência. ABSTRACT This work, based on the Marxist Theory of Dependence, mainly in the works of Ruy Mauro Marini and Jaime Osorio, it treats of the centrality occupied by the phenomenon of superexploitation of the workforce in the called reproduction pattern of capital of dependent economies, especially of Latin American economies. Thus, its purpose is to make clear how this phenomenon is evidenced as a central, structuring and defining element of the reproduction pattern of capital prevailing in these economies throughout the development of the respective capital cycles that conform there. For this, it was made a bibliographic review of a set of works that are able to clarify the ontological-categorical relation of the categories dependence, superexploitation of the workforce and reproduction pattern of capital; and how these categories reflect the logic and historicity of Latin American economies, exposed at a higher level of abstraction in their corresponding cycles of capital. It is concluded that the 1 Bacharel em Ciências Econômicas (UFPA) e Mestre em Economia, com concentração em Desenvolvimento Econômico Regional, pelo Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do Pará – wendell10magal@hotmail.com. particular way in which the law of worldwide value behaves in Latin American dependent economies presupposes, for their understanding, an integrative perspective that goes through the consideration of the cycle of capital in the dependent economy as a whole; and that the centrality of superexploitation of the workforce in the reproduction pattern of capital responsible for mediating this law in particular time and space must be recognized. Keywords: Superexploitation of the workforce. Reproduction pattern of capital. Dependence. Capital cycle. Marxist Theory of Dependence. INTRODUÇÃO A Teoria da Dependência que surge em meados da década de 1960, predominantemente pelas mãos de autores latino-americanos, pode ser subdividida, conforme seu aspecto teórico-metodológico, em uma versão weberiana, representada por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto2; e uma versão marxista, com a qual nos filiamos, e que tem nos nomes de Theotonio Dos Santos, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini, Orlando Caputo, Adrián Sotelo Valência e Jaime Osorio seus principais representantes3. No que toca à primeira destas versões, conforme se deu seu desenvolvimento, no lugar de uma Teoria da Dependência, o que mais parece comparecer é uma “apologia da dependência”, como bem assinala o professor Nilson Araújo de Souza (2005). Ali, segundo Martins (2011), os autores trabalham com um tipo ideal da dependência, coisa característica do aporte teórico- metodológico weberiano, no qual o uso das categorias marxistas torna-se simples fraseologia subordinada a este primeiro, perdendo seu vigor crítico original. Muito diferente disso, consideramos que a chamada Teoria Marxista da Dependência (TMD), em perfeita linha com o pensamento de Marx, nos fornece um aporte teórico- metodológico valioso para o estudo da conformação da lei do valor capitalista em espaço e tempo determinado, apontando, com a crítica que faz, a necessidade de superação não somente do que estabelece como dependência, mas da própria sociabilidade pautada pelo capital. Dos autores que elaboraram essa teoria, Ruy Mauro Marini, em especial, ao empreender o exercício teórico que dá fruto a sua obra a respeito do que podemos chamar de capitalismo dependente, nos lega categorias fundamentais que aqui visamos resgatar para a compreensão da dialética da dependência presente na América Latina. Destacamos aí nessa tarefa, sobretudo, as categorias de dependência, superexploração da força de trabalho e padrão de reprodução do capital. 2 Cf. CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo [1969]. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. 6 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 3 Cf. Martins (2011) e Luce (2018). Com estas, visamos esclarecer, com base na TMD, como o fenômeno da superexploração da força de trabalho se evidencia como elemento central, estruturante e definidor do padrão de reprodução do capital vigente nas economias dependentes, em especial nas economias latino-americanas, ao longo da sucessão dos diferentes ciclos do capital que aí se conformam. Tal objetivo se mostra importante de ser atingido para que, convencidos deste diagnóstico, possamos pensar estratégias de superação do nosso subdesenvolvimento e dependência em relação às leis do capitalismo global, levando em conta as formas particulares com que estas se afirmam em nosso continente. Para isso, para além desta introdução e das considerações finais, estruturamos este trabalho em cinco capítulos. O primeiro se detém em introduzir as categorias de análise aí citadas e o respectivo fundamento de cada uma delas. No segundo, apresenta-se o surgimento da dita economia exportadora a partir da plena integração da América Latina à divisão internacional do trabalho (DIT), e sua caracterização por um padrão agromineiro exportador, pautado pelo fenômeno da superexploração da força de trabalho. No terceiro capítulo, convêm demonstrar como a industrialização das economias dependentes não encerra esse último fenômeno, mas o perpetua com a configuração de um novo ciclo do capital que estabelece a lógica de seu padrão industrial. No quarto capítulo, tratamos do que Marini ([1973] 2011a) denomina como o novo anel da espiral, situação em que o padrão de reprodução do capital na economia dependente já industrializada passa a sofrer a intervenção direta do capital estrangeiro, elevando o desenvolvimento das forças produtivas na região, mas não deixando de conferir centralidade à superexploração da força de trabalho, o que eleva a dependência a um novo patamar financeiro e tecnológico. No quinto capítulo, apresentamos o caráter geral do ciclo do capitalna economia dependente e como ele estabelece a lógica do padrão de reprodução do capital nessa economia pautado na superexploração da força de trabalho, tendo a predominância, conforme nos diz Osorio (2012), de um padrão de especialização produtiva no contexto da mundialização. Por fim, se fazem as ditas considerações finais. 1 ACERCA DAS CATEGORIAS DE ANÁLISE: dependência, padrão de reprodução do capital e superexploração da força de trabalho As economias latino-americanas podem ser caracterizadas como dependentes desde sua plena integração à divisão internacional do trabalho (DIT) em meados do século XIX4, no 4 Ver o que afirma Marini ([1973] 2011a, p. 135-136), no que destaca que a situação colonial não é a mesma que a situação de dependência, com esta última somente se dando quando acontece a plena integração da que passam a serem marcadas pelo fenômeno da superexploração de sua força de trabalho, que a estruturou e ainda estrutura o ciclo do capital aí presente e, logo, o seu padrão de reprodução do capital. Nesse sentido, Theotonio Dos Santos nos fornece a compreensão da dependência, em âmbito mais geral, como uma situação condicionante, que é também histórica, na qual se “configura uma certa estrutura da economia mundial que favorece o desenvolvimento econômico de alguns países em detrimento de outros e que determina as possibilidades de desenvolvimento das economias internamente, as constituindo como realidades econômico-sociais.”5 Ruy Mauro Marini, por sua vez, de forma mais específica, diz que a dependência é “uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência.”6. Esta situação ou relação de dependência é marcada, em geral, por dois estruturantes básicos que a pautam e assim a definem: i) os mecanismos de transferência de valor; ii) e a superexploração da força de trabalho. Ambos tiveram o seu desenvolvimento teórico inicial feitos na obra Dialética da Dependência (1973) de Marini. Mais precisamente, nesta obra, a superexploração aparece como uma forma de “compensar” as transferências de (mais-)valor que acontecem das economias dependentes para as ditas economias centrais ou imperialistas. Em síntese, temos aí que as classes dominantes das economias dependentes, percebendo-se assoladas pelos mecanismos de transferência de valor vigentes nessas economias7 – cuja consequência mais direta disto é a diminuição da massa de mais-valor de que podem se apropriar – acabam por encontrarem nos mecanismos de superexploração da força de trabalho os meios de abrandarem tal perda. Da obra de Marini (2011a), exclusivamente, se depreende que estes mecanismos resumem-se a três: i) aumento da jornada de trabalho sem compensação salarial; ii) aumento da intensidade do trabalho também sem compensação salarial; iii) e apropriação de parte do fundo de consumo do trabalhador pelo capital, a partir de pagamentos de salários abaixo do valor real da força de trabalho. Todos os três mecanismos, deste modo, concorrem, nas América Latina na economia mundial após, mais precisamente, 1840. 5 DOS SANTOS, T [1978]. Imperialismo y Dependencia. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2011, p. 364, tradução nossa. 6 MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência [1973]. In: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro (orgs.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011a, p. 134-135. 7 Decorrentes, basicamente, da formação de monopólios internacionais de manufaturados; e da maior produtividade das nações centrais, conforme expõe Marini ([1973] 2011a), o que ainda detalharemos mais a frente neste trabalho. economias dependentes, para uma remuneração do trabalhador abaixo do valor de sua força de trabalho de forma estrutural. Dito isso, temos que, assim como a contradição fundamental do capitalismo entre capital e trabalho ganha uma conotação especial no capitalismo dependente através dos mecanismos de superexploração, o ciclo do capital nesta economia também terá uma característica especial, levando Marini a falar em um ciclo do capital na economia dependente8. Este, em nossa concepção, fornece a lógica do padrão de reprodução do capital das economias deste tipo. Por sua vez, por padrão de reprodução do capital, com base em Marini (1982)9, que a criou, e Osorio (2012, 2014), que a melhor fundamentou, entendemos como sendo uma categoria de mediação10 que reflete a dimensão da realidade capitalista em que se encontram imbricadas a valorização do capital e a produção de valores de uso. Desta forma, ela está em um nível de análise ou abstração que intermedeia os níveis mais gerais, nos quais se encontram noções como modo de produção capitalista e sistema mundial, e os níveis menos abstratos ou mais histórico-concretos, em que se encontram noções como formação econômico-social e conjuntura. Em síntese, portanto, temos por padrão de reprodução do capital a mediação de como o todo, que é o modo de produção capitalista estruturado pelo sistema mundial e sob a forma de uma economia-mundo11, se faz presente e efetiva suas partes, de forma regular, através de uma lei do valor mundializada12 que se processa em diferentes formações econômico-sociais e conjunturas. A dialética presente nos diferentes ciclos do capital da economia dependente latino- americana ao longo da história, porém, conforma diferentes padrões de reprodução do capital. Estes últimos, por sua vez, são determinados não apenas pela característica do ciclo do capital 8 Cf. Marini ([1973] 2011a, [1979] 2012). 9 A categoria padrão de reprodução do capital foi elaborada por Ruy Mauro Marini, aparecendo pela primeira vez num artigo deste autor na publicação não periódica Cuadernos Cidamo, intitulado Sobre el patrón de reproducción de capital en Chile (1982). Neste, dirá, numa definição ainda muito genérica, que o padrão de reprodução do capital no Chile se refere à “relação entre as estruturas de acumulação, produção, circulação e distribuição de bens”. Em: MARINI, R. M. Sobre el patrón de reproduccíon de capital en Chile. Cuadernos de Cidamo. México D. F., n. 7, 1982, tradução nossa. Disponível em: http://www.mariniescritos.unam.mx/061_reproduccion_capital_chile.html. Acesso em: 3 nov. 2018. 10 Em Bottomore (1988), temos que a mediação é uma categoria central da dialética. Por ela, se estabelecem conexões via algum intermediário. Indo além da posição ocupada por essa categoria na epistemologia e na lógica em geral, na dialética materialista marxista, porém, essa categoria assume um estatuto ontológico, ou seja, uma posição que diz respeito à própria constituição do ser e, mais especificamente, do ser social. O estudo da totalidade deste ser social, portanto, deve perpassar, obrigatoriamente, pelas mediações pelas quais os complexos que constituem essa totalidade se efetivam, no que se inclui aí a maneira como as leis gerais do modo de produção capitalista se conformam em espaço e tempo particular. 11 Sobre esse tema, em específico, ver Martins (2011). 12 Cf. AMIN, S. (2006). que lhes corresponde, mas pelas determinações do modo como está estruturado o sistema mundial capitalista no qual estão inseridos.13 A configuração particular deste sistema, nesse sentido, estabelece a situação dos padrões de reprodução do capital em termos da produção de valores de uso na DIT; e da dinâmica de acumulação e transferência de valor produzida por cada um deles. Temos, então, que o processo mundial de acumulação de capital se apresenta sob a forma de diferentes padrões de reprodução do capital pelo mundo, pertencentes a núcleos geográficos de acumulação de capital, que se concentram nas economias centrais ou imperialistas; em contrapartida aospadrões de amplas regiões dependentes e periféricas, nas quais predomina a desacumulação de capital14. Mais além disso, o desenvolvimento do sistema mundial capitalista, ao longo da história, estabelece diversas DIT’s que determinam os padrões de reprodução do capital que se sucedem na economia dependente, do ponto de vista da sua produção de valores de uso 15. Assim, temos um padrão agromineiro exportador, que abarca desde o início das independências políticas formais das economias dependentes, efetivadas na primeira metade do século XIX, até a segunda década do século XX; um padrão industrial, iniciado na segunda metade dos anos 1930, com uma primeira etapa internalizada e autônoma que vai até os anos 1940, e tendo continuidade com uma etapa de integração ao capital estrangeiro, iniciada nos anos de 1950; e um padrão exportador de especialização produtiva, indo de meados dos anos 1980 e se prolongando até os nossos dias atuais.16 Visamos esclarecer a lógica que preside cada padrão deste e de como todos eles, por se referirem, no geral, aos padrões das economias dependentes latino-americanas que se sucederam ao longo da história, conferem centralidade ao fenômeno da superexploração da 13 Osorio (2012, p. 79), nesse sentido, nos alerta que, para cada padrão que se sucede na economia dependente, é preciso “considerar que eles fazem parte de um movimento mais geral, o do sistema mundial capitalista, de modo que sua análise deve integrar-se aos processos que marcam o curso de tal sistema, das etapas que vão tendo curso e da lógica que rege cada uma de suas periodizações”. 14 Tal realidade se conforma mediada pelos mecanismos de transferência de valor, já aqui citados, que costumam privilegiar as primeiras dessas economias em detrimento destas últimas regiões. Cf. Osorio (2012, 2014). 15 Os nomes que Osorio (2012) mesmo utiliza para diferenciar tais padrões destaca essa dimensão material que os qualificam. 16 Se faz necessário lembrar ainda que cada padrão deste está entremeado por etapas de transição, nas quais se designam “momentos em que um padrão não termina de se subordinar e em que o padrão que emerge ainda não domina com clareza”.1 Temos então uma etapa de transição do padrão agromineiro exportador para o padrão industrial na primeira metade dos anos 1930; e uma segunda etapa de transição separando o padrão industrial do padrão exportador de especialização produtiva que vai de meados dos anos 1970 até início dos anos 1980. Por sua vez, as características particulares, num menor nível de abstração, de cada um destes padrões pode ser vista em LUCE, M. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias – uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018 força de trabalho. Comecemos, nesse sentido, pela dialética do padrão agromineiro exportador, apreendida, num nível mais alto de abstração, pela categoria economia exportadora, formulada por Marini (2011a). 2 A ECONOMIA EXPORTADORA E SEU CICLO: a dialética da dependência fundamentada na superexploração da força de trabalho O conceito de economia exportadora, presente em Dialética da Dependência (1973) de Marini, explica como a economia latino-americana originalmente se integra ao mercado mundial e assim desenvolve o fenômeno da troca desigual. Detectado pela teoria cepalina a partir da concepção da deterioração dos termos de intercâmbio, este tem seu segredo (ou essência) explicado (a) na transferência de (mais-)valor que se opera entre economias com diferentes graus de industrialização. Nesse sentido, Marini se pauta na perspectiva marxista para explicar tal fenômeno, nos deixando claro que é só a partir da visualização de como a lei do valor – tal qual se encontra refletida teoricamente na obra de Marx – se faz presente em economias dependentes, as subordinando à sua lógica, é que se faz possível captar em sua inteireza o problema que se sugere. Fazer isso envolve, automaticamente, descartar a visão da América Latina como possuidora de um passado feudal para pôr no lugar, tal como feito pelas Teoria (s) da Dependência (s), a perspectiva de que a economia latino-americana é fruto do desenvolvimento do capital comercial, que se funde posteriormente com o industrial europeu. A obra de Marini (2011a), nesse sentido, vislumbra a América Latina surgindo, primeiramente, como exportadora de metais preciosos e gêneros exóticos devido à expansão comercial europeia promovida no séc. XVI. Deste modo, tal região contribui com o aumento do fluxo de mercadorias e a expansão dos meios de pagamento que promovem o desenvolvimento do capital comercial e bancário na Europa; sustentam o sistema manufatureiro europeu; e propiciam a criação da grande indústria. A Revolução Industrial, que ocorre concomitante às independências políticas ocorridas na América Latina no início do séc. XIX, efetiva a criação dessa grande indústria na Inglaterra e, consequentemente, faz com que a América Latina entre na DIT como produtora e exportadora de bens primários, consumidora de manufaturas e fazedora de dívidas.17 Por sua 17 Em relação a esta última situação, tal coisa se dá de forma significativa, caracterizando transferência de excedente, somente a partir do momento que a economia latino-americana obtêm um excedente comercial, por meio das exportações, suficiente para fazer e arcar com somas cada vez maiores de tais dívidas. Marini, vez, é dessa sua posição na DIT e das implicações daí decorrentes que configura-se a dependência no sentido do que aqui já foi exposto. O sentido de ser desse fenômeno, no entanto, está para além do fato de propiciar o crescimento quantitativo das economias desenvolvidas. Mais precisamente, ele está em contribuir “para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta para a de mais-valia relativa”. De outro modo, “que a acumulação passe a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador”18. Essa última tarefa, em contrapartida, nesse primeiro momento, ficará a cargo dos países dependentes que, por meio de suas típicas tarefas, se utilizam dos mecanismos de aumento e/ou intensificação da jornada de trabalho; e de remuneração do trabalhador abaixo do valor de sua força de trabalho19. Nisso consiste uma maior exploração do trabalhador, a que Marini chamará de superexploração do trabalho e que nós preferimos chamar de superexploração da força de trabalho20. citando Sodré (1964), atesta isso mostrando o caso do Brasil que “a partir da década de 1860, quando os saldos da balança comercial se tornam cada vez mais importantes, o serviço da dívida externa aumenta: dos 50% que representava sobre esse saldo nos anos de 1960, se eleva para 99% na década seguinte”. E citando Barboza-Carneiro (1920), mostra ainda que, entre 1902-1913, pari passu ao aumento das exportações brasileiras em 79,6%, a dívida externa apresentou crescimento de 144,6%, representando em 1913, 60% do gasto público da nação. (MARINI [1973], 2011a, p. 134). 18 MARINI, R. M. Dialética da dependência, op. cit., p 138. 19 Com isso, não se quer dizer, tal como faz a crítica de Fernando Henrique Cardoso a Marini logo após a publicação inicial das ideias que conformaram o Dialética da Dependência (1973), que a superexploração da força de trabalho se restrinja a ser mais-valia absoluta, ou seja, um mero aumento da exploração em termos quantitativos, sendo superada com o avanço das forças produtivas na região que geraria mais-valia relativa. O fenômeno da superexploração da força de trabalho pode se identificar, através dos diferentes mecanismos que a expressam, com a mais-valia absoluta, porém ele não implica o não desenvolvimento das forças produtivas. Vera respeito a resposta de Marini a essa crítica em Sobre a Dialética da Dependência (1973). Num primeiro momento, no que se refere à economia exportadora, os mecanismos de superexploração da força de trabalho se identificam predominantemente, na aparência, com a mais-valia absoluta, o que pode explicar o fato de Cardoso dizer que ela era somente isso, dado que, inicialmente, ele só teve acesso à parte do Dialética da Dependência que versava sobre a economia exportadora e não lidava com o avanço das forças produtivas na região advindo da industrialização. Sobre isso, ver Memórias (1990) de Marini. Entretanto, a industrialização tem seus efeitos analisados e relatados nos últimos capítulos de Dialética, tanto nos seus impactos causados ao ciclo econômico do capital em uma economia dependente, como na própria estrutura de produção dessa economia. Aqui, a superexploração da força de trabalho não se resumirá mais a uma diferença quantitativa da exploração, mas a uma diferença de grau que convive com o avanço das forças produtivas na região. 20 Esta precisão é imperiosa de ser feita para que não corra o risco de cair numa concepção ricardiana que confunde trabalho e força de trabalho, e acaba por cair numa visão moralista a respeito da exploração e da geração de mais-valor, que não é a de Marx e nem cremos ser a de Marini. Contrariamente a isto, Marx deriva o mais-valor em sua teoria a partir da troca de equivalentes, fornecendo uma visão científica da exploração no capitalismo. Como diz Carcanholo, M. (2013a, p. 75-6), “tratar os dois [superexploração do trabalho e superexploração da força de trabalho] como sinônimos equivale a tratar a força de trabalho (mercadoria) como sinônimo de trabalho (o valor de uso da mercadoria) e, portanto, perder de vista a dialética da mercadoria força de trabalho. […] o rigor teórico e metodológico exige utilizar o termo superexploração da força de trabalho, uma vez que explorar – no sentido de usar, utilizar, consumir, realizar – aquilo que já é o resultado desta exploração (utilização), o trabalho, não parece fazer muito sentido”. Para Marini, cabe explicar, primeiro, com base na lei do valor, como esse mecanismo que integra a economia dependente à divisão internacional do trabalho opera mais exatamente, fazendo surgir o fenômeno da troca desigual. Antes de tudo, cabe dizer que na medida que cresce o montante de mais-valor apropriado pelas economias centrais através do mecanismo da mais-valia (ou mais-valor) relativa (o), cresce também o montante de capital constante aí acumulado, decrescendo, em contrapartida, a taxa de lucro dessas economias devido o aumento da composição-valor do capital.21 Essas contradições vem a ser contraposta por diversos procedimentos que, de um ponto de vista estritamente produtivo, “[...] se orientam tanto no sentido de incrementar ainda mais a mais-valia, no intuito de compensar a queda da taxa de lucro, quanto no sentido de induzir uma baixa paralela no valor do capital constante, com o propósito de impedir que o declínio se apresente.”22. Por isso, o fornecimento de matérias primas industriais em larga escala por parte das economias dependentes, ao baratear o capital constante que é composto, em parte, por essas matérias- primas, servirá como contratendência à queda da taxa de lucro nas economias centrais.23 No entanto, a deterioração dos termos de intercâmbio em desfavor das economias dependentes que daí se segue, conforme Marini (2011a), não achava sua explicação na maior produtividade dessas economias, já que esta caminhava aí a passos lentos; e ainda não desestimulava a incorporação da América Latina na economia internacional. Sendo assim, se tentássemos explicar tal fenômeno pela lei da demanda e da oferta, operando esta de forma límpida, não haveria porque continuar a produzir tanto diante de uma baixa generalizada de preços, como bem continuou a fazer esse continente. Marini (2011a) prevê, nesse sentido, que poderia tentar se argumentar que a explicação para isso estaria na força militar com que os países desenvolvidos dispunham para forçar as economias dependentes a, depois de incorporadas à DIT, continuarem produzindo para o benefício da expansão daqueles primeiros. É certo, no entanto, que mecanismos de força se fazem cruciais num primeiro momento em que a lógica das relações capitalistas devem começar a se impor a territórios livres dela, porém, posteriormente, isso se torna por 21 A lógica dessa dinâmica se encontra melhor fundamentada n’O capital III de Marx, em que se prevê que, devido o capital constante não gerar mais-valor na produção, transferindo somente o seu custo de produção para o produto final, o aumento de seu montante na economia provoca o decrescimento relativo do capital variável, que é a verdadeira fonte do mais-valor, tendendo a causar, por fim, um decrescimento da taxa de lucro na economia. 22 MARINI, R. M. Dialética da dependência. Op. cit., p. 141. 23 A vinculação que se estabelece, a partir daí, entre economias dependentes e economias centrais é uma vinculação, portanto, de cunho imperialista, explicada em suas leis mais gerais, não sem divergências, pelas obras de Lenin, Hilferding, Bukharin e Rosa Luxemburgo. A TMD, nesse sentido, é tributária das teorias do imperialismo, configurando-se como um prolongamento necessário destas, no sentido que confere centralidade às leis que regem as economias dependentes. Sobre isso, ver Dos Santos (1978, p. 357). demais dispendioso, e é necessário que as nações subjugadas por essa lógica a adotem como se fossem sempre suas e a façam funcionar da forma mais natural possível, como bem mostra o desenrolar da história mundial. Para Marini (2011a), portanto, essas explicações simplistas ocultavam a verdadeira razão do processo que se encontrava na base econômica de suas relações. As transferências de valor que daí advinham, segundo o autor, se davam, em verdade, pela permissão que o desenvolvimento das relações mercantis concede ao capital, aparentemente, de burlar a lei do valor, mesmo que a partir da aplicação desta lei em sua dimensão essencial24. As transferências de valor, desse modo, se dariam na fixação dos preços de mercado e dos preços de produção das mercadorias. Naquilo que foi descoberto por Marini, existiriam diferentes mecanismos que possibilitavam tal coisa. Alguns destes operariam no interior de uma mesma esfera de produção, seja essa esfera de manufaturados ou de matérias-primas, e outros se dão em distintas esferas que se inter-relacionam. No primeiro caso, temos o exemplo do mecanismo de transferência de valor que opera pela obtenção de um lucro extraordinário por parte das nações que ostentam maior produtividade e menores preços de produção, através de mecanismo semelhante a como os capitais individuais mais produtivos podem se apropriar de um mais-valor extraordinário em um mesmo setor de produção.25 Esse mecanismo, porém, pressupõe que as nações produzam produtos semelhantes e disputem no mercado internacional, seja produzindo matérias-primas, seja produzindo manufaturados.26 Quanto ao segundo caso, ilustram-se através dele a transgressão da lei da troca de equivalentes, separando economias dependentes e economias desenvolvidas. Segundo Marini, nessa situação, o mero fato de que umas produzam bens que as outras não produzem, ou não o fazem com a mesma facilidade, permite que as primeiras iludam a lei do valor, isto é, vendam seus produtos a preços superiores a seu valor, configurando assim uma troca desigual. Isso implica que as nações desfavorecidas devem ceder gratuitamente parte do valor que produzem, e que essa cessão ou transferência seja acentuada em favor daquele país que lhes venda mercadorias a um preço de produção mais baixo, em virtude de sua maior produtividade. (MARINI, 2011a, p. 145). 24 Para esclarecera diferença entre a essência e a aparência das relações capitalistas, recomenda-se a obra em dois volumes de Reinaldo Carcanholo: Capital: essência e aparência (2011, 2013) publicada pela editora Expressão Popular. 25 No caso, Marx explica esse mecanismo no capítulo 10 d’O Capital I, através da diferença entre custos de produção envolvendo capitais mais e menos produtivos, e a possibilidade dos primeiros em vender seus produtos abaixo do valor de mercado. 26 Ver mais sobre isso em CARCANHOLO, Marcelo Dias. O atual resgate crítico da Teoria Marxista da Dependência. Em: Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 191-205, jan./abr. 2013a. Dessa forma, temos o mecanismo do monopólio agindo isoladamente como mecanismo de transferência de valor; e o mecanismo do monopólio aliado a maior produtividade de certas empresas, fazendo com que a transferência de valor ocorra duplamente. Segundo M. Carcanholo (2013a, 2013b), no entanto, Marini estaria, na verdade, se referindo a três mecanismos. O primeiro, que diz respeito a maior produtividade das empresas, estaria em maior nível de abstração e é explicado a partir da obtenção de um mais- valor extraordinário. Concentrando-se tais empresas nos países centrais, os países dependentes acabam por transferir valor para estes últimos. O mecanismo de monopólio, por sua vez, num menor nível de abstração, se dividiria em dois. Num primeiro, transferiria valor a partir da obtenção de um lucro extraordinário por parte dos setores com maior produtividade pertencentes aos países centrais. Esse lucro extraordinário está calcado na concepção de Marx desenvolvida no capítulo 9 e 10 d’O Capital III, que tem nas trocas mercantis e na diferença da composição orgânica entre setores da produção o fundamento deste lucro. Temos, então, para os setores de maior produtividade, preços de produção de mercado acima dos seus valores de mercado, permitindo com que eles se apropriem de um valor maior do que o que efetivamente produziram. Como os setores de menor produtividade concentram-se nas economias dependentes, enquanto os de maior produtividade ficam nas economias centrais, ocorre transferência de (mais-) valor, daquelas para essas últimas, que lhes propicia a obtenção de um lucro extraordinário.27 Num último nível de abstração (num nível mais concreto), o mecanismo de monopólio aparece como simplesmente sendo a venda de mercadorias com preços de mercado acima de seus preços de produção por parte das empresas que detêm o monopólio de certos produtos, o que configura um terceiro mecanismo de transferência de valor das nações dependentes àquelas que detêm o monopólio de produtos manufaturados, dando-se isso na forma de um lucro efetivo acima do médio novamente favorável a estas últimas. É como forma de compensar tais mecanismos de transferência de valor que, como nos esclarece a obra de Marini, a superexploração da força de trabalho, nos seus diversos mecanismos, comparece como elemento central, estruturante e definidor da dinâmica de desenvolvimento do capitalismo dependente. Tal é a forma que as classes dominantes da 27 Podemos obter a síntese do fundamento destes dois primeiros mecanismos de transferência de valor na seguinte fala de Marx: “A produtividade particular do trabalho numa esfera particular ou num negócio particular no interior dessa esfera interessa unicamente aos capitalistas que deles participam diretamente, na medida em que possibilita a essa esfera particular a obtenção de um lucro extraordinário com relação ao capital total ou ao capitalista individual um lucro extraordinário com relação a sua esfera.” (MARX, K. [1894] 2017, p. 233). economia dependente, tendo de aceitar a perda de mais-valor para o exterior por meio das relações de mercado como fato inevitável, buscam a solução do problema no âmbito da produção interna. Como já mencionamos, a exposição de Marini (2011a) desta categoria redunda em apresentá-la como a junção de três mecanismos que, em síntese, fazem com que a força de trabalho seja remunerada abaixo de seu valor, o que significa que, para manter o afã por mais- valor desmedido28 das classes dominantes dos territórios dependentes, a classe trabalhadora dos países dependentes deve ter um múltiplo do tempo de suas vidas dedicado ao trabalho, em comparação ao que é dedicado pela classe trabalhadora das economias centrais.29 Situação essa, por sua vez, reforçada pela menor produtividade vigente nas economias dependentes. Assim, podemos concluir, nesse primeiro momento, que a obra de Marini analisa, antes de tudo, “[…] em que condições a América Latina havia-se integrado ao mercado mundial e como essa integração: a) funcionara para a economia capitalista mundial e b) alterara a economia latino-americana.”.30 Já nesse período, a economia exportadora aparece como tendo as transferências de valor não como uma anomalia ou estorvo, mas sim, como diz Marini, uma “consequência da legalidade própria do mercado mundial e como um acicate ao desenvolvimento da produção capitalista latino-americana, sobre a base de duas premissas: a abundância de recursos naturais e superexploração do trabalho (que pressupunha abundância de mão de obra).”31. 2.1 O ciclo do capital na economia exportadora e o padrão agromineiro exportador a que está atrelado Tendo em vista a captação da lógica da economia exportadora e de seu padrão agromineiro exportador à luz do seu ciclo, com base em Marini ([1973] 2011a), é preciso estabelecer a diferença que há entre tal ciclo e o ciclo do capital nas economias industriais centrais. Para isso, é preciso deixar clara a contradição do duplo caráter do trabalho que confere ao trabalhador, concomitantemente, a posição de produtor e consumidor na economia, 28 Desmedido porque pautado no quanto as classes dominantes dos países centrais se apropriam. 29 Os três mecanismos em questão, no entanto, não impedem que não hajam tantos outros, a depender da conformação específica do capitalismo em cada economia dependente, como é o caso de um quarto mecanismo (não mencionado no Dialética da Dependência) em que sobe o valor da força de trabalho, entretanto o salário não acompanha tal subida. Em toda pesquisa empírica e histórico-concreta de economias dependentes é necessário, portanto, que se esteja aberto à possibilidade da existência de outros tantos mecanismos que impliquem em superexploração da força de trabalho. 30 Cf. Marini (2011b, p. 86). 31 Cf. Marini (2011b, p. 86-87). posto que tal contradição se resolve na economia industrial central de forma diferente da que se dá na economia exportadora dependente. Assim, enquanto naquela primeira, a fratura entre produção e circulação originada do duplo caráter do trabalho é remediada com o barateamento das mercadorias destinadas aos trabalhadores32, nessa última, tal artifício não se verifica devido ela está voltada para satisfazer o mercado externo e, com isso, o consumo provindo de sua classe trabalhadora não ser essencial para a realização das mercadorias aí produzidas. Isto, por sua vez, impede a existência de possíveis barreiras na esfera da circulação dessa economia ao uso indiscriminado da superexploração da força de trabalho, no que colaboram fatores como a quantidade abundante de mão de obra na região33. Nesse sentido, diz Marini que A economia exportadora é, portanto, algo mais que o produto de uma economia internacional fundada na especialização produtiva: é uma formação social baseada no modo capitalista de produção, que acentua até o limite as contradições que lhe são próprias. Ao fazê-lo, configura de maneira específica as relações de exploração em que se baseia e cria um ciclo de capital que tende a reproduzir em escala ampliada à dependênciaem que se encontra frente à economia internacional. (MARINI, 2011a, p. 157).34 Como efeito de tal “maneira específica” das relações de exploração, a economia dependente exportadora apresenta uma cisão no mercado interno, no qual as classes altas satisfazem-se via produtos importados sofisticados, possibilitados pela soma de lucros que acumulavam, frutos da superexploração; enquanto as classes exploradas devem contentar-se com a produção interna restringida e que não remunera sua força de trabalho pelo seu valor.35 Temos então que, em trabalhos como Dialética da Dependência (1973) e O ciclo do capital na economia dependente (1979), em essência, como bem fala Osorio, fica estabelecido que “entre centros e periferias não apenas existe uma diferença de magnitude de alguns processos – como acontece com a pobreza (mais na periferia do que no centro) –, mas há 32 Fato este possibilitado pelo aumento da capacidade produtiva nessa economia que se orienta pela busca do mais-valor relativo. 33 Quantidade esta propiciada, segundo Marini (2011a), dentre outras fontes, pela oferta de mão de obra indígena do México e dos fluxos migratórios europeus, que eram produtos do avançar tecnológico desse continente até o início do século XX. 34 O que importa assinalar, portanto, é que a economia dependente, desde então, não segue o percurso comum clássico do desenvolvimento capitalista da economia central. Na situação de dependência, a fórmula de Gunder Frank (1965) do “desenvolvimento do subdesenvolvimento” ganha amplo sentido, podendo-se dizer, para atualização dessa expressão, que temos um desenvolvimento do capitalismo peculiar em economias nessa situação. Um desenvolvimento, nesse sentido, dependente. 35 Nesse sentido, diz Marini (2011a, p. 158) que “A harmonia que se estabelece, no nível do mercado mundial, entre a exploração de matérias-primas e alimentos, por parte da América Latina, e a importação de bens de consumo manufaturados europeus, encobre a dilaceração da economia latino-americana, expressa pela cisão do consumo individual total em duas esferas contrapostas”. também, e isso é mais importante, uma diferença qualitativa”. Esta diferença qualitativa se refere a que, no capitalismo central, o padrão de reprodução do capital, em linhas gerais, incorporou “massiva e ativamente sua população assalariada ao consumo, integrando-a ao mercado interno”; enquanto no capitalismo dependente ou periférico o mercado interno se fez um “elemento absolutamente secundário em sua reprodução”.36 Com a industrialização, diferente do que era esperado, esta situação persiste, e as economias dependentes, não deixando de se voltarem para o âmbito externo, estabelecem como prioridade as camadas sociais internas ligadas ao capital. A partir de então, havendo ficado para trás o tempo em que tinha sentido para o sistema mundial capitalista o papel que a América Latina desempenhara como “região produtora de metais preciosos, matérias-primas e alimentos”, o que caracterizou a sua etapa colonial e o padrão agromineiro exportador; agora, com a “crise do mercado mundial derivada da longa etapa que vai da Primeira Guerra Mundial à Crise de 1929 e à Segunda Guerra Mundial”, ganha maior sentido a existência de um padrão industrial na América Latina37. Ambos os padrões, no entanto, conferiram centralidade à superexploração da força de trabalho em sua reprodução. Vejamos, no entanto, os fundamentos lógicos daquele último pela exposição de seu ciclo. 3 O PADRÃO INDUSTRIAL, SEU CICLO E A PERMANÊNCIA DA SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO Em Marini (2011a), a industrialização de economias dependentes se mostra, substancialmente, produto da interrupção do antigo ciclo do capital que caracterizavam essas economias em sua fase exportadora e que se limitava a refletir mais diretamente o ciclo do capital da economia mundial. No novo momento, se engendra um novo ciclo, modificado e com relativo grau de autonomia, que impacta na produção e, em seguida, volta a alterar a circulação, conformando um padrão novo de reprodução do capital na economia dependente.38 O importante a assinalar, entretanto, é que esse novo padrão de reprodução do capital continua 36 OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização, op. cit., p. 184-185. 37 Ibid., p. 79. Ver, por sua vez, em Bambirra (2013) a explicação de como o processo de industrialização na América Latina se valeu grandemente dos eventos de âmbito mundial aí citados, não se podendo pensar tal processo sem eles. 38 A perspectiva dos ciclos econômicos latino-americanos na análise do processo histórico de conformação das economias dependentes é, pioneiramente, introduzida por Theotônio Dos Santos em sua obra O novo caráter da dependência (1967). Ali, se destaca que os ciclos econômicos das economias dependentes, que antes refletiam os ciclos da economia mundial e seus efeitos sobre a produção agrícola e mineira, após a interiorização de uma indústria de maquinarias com dinâmica tecnológica própria, passam a ter um aspecto próprio relativamente autônomo que lhes permitem possuir modalidades endógenas próprias que duram de 4 a 10 anos. a se pautar na superexploração da força de trabalho, significando que a passagem da economia exportadora para a economia industrializada, nesse caso, não faz com que se abandone seu caráter dependente, mesmo que a indústria siga agora como seu principal eixo de acumulação.39 Dois pontos aqui merecem destaque para a compreensão do padrão industrial na economia dependente: i) a separação que menciona Marini (2011a) entre esfera alta e esfera baixa da circulação; ii) e os fatores que atuam na economia capitalista clássica que, contrapondo-se a essa separação, a limitam e fazem com que o seu processo de industrialização difira do da economia dependente. No que diz respeito à separação entre baixa e alta esfera, justamente por na economia capitalista clássica ela está calcada no aumento da capacidade produtiva, este fenômeno se faz possível de ser contornável, cabendo pontuar que ele primeiro se efetiva porque o aumento da capacidade produtiva é produto do aumento do mais-valor relativo que faz o valor da força do trabalho baixar pelo barateamento dos seus meios de reprodução40. Este mecanismo, da feita que aumenta a taxa de mais-valor, aumenta o consumo das classes altas que vivem da apropriação desse mais-valor. Ou seja, no terreno da circulação, percebe-se um aumento da alta esfera de consumo em contraste com a redução proporcional, em relação à apropriação do total do valor produzido, das esferas mais baixas. Eis, então, que se expõe a fratura, a que se refere Marini, entre as diferentes esferas da circulação do capital, ao menos no que se refere à economia capitalista clássica. Entretanto, a própria lógica desse mecanismo acaba por possibilitar o contorno dessa contradição. Primeiramente, o fato de que o aumento da alta esfera de consumo se realize com o barateamento dos meios de reprodução da força de trabalho significa não precisar diminuir o consumo das classes inferiores em termos absolutos, mas somente em termos relativos ao das classes mais altas, indicando que a ligação entre essas duas esferas é distendida, mas não se rompe. Em segundo lugar, ajuda na resolução das contradições geradas por essa distensão a forma limitada com que se amplia o mercado mundial, no qual se verifica certa dificuldade em comercializar bens de luxo ou supérfluos entre nações industriais que competem no mercado internacional; e com nações que têm deprimida a demanda por esses bens, já que 39 Tal situação implicou na necessidade do abandono das ilusões de que a industrialização poderia converter os países “subdesenvolvidos” em “desenvolvidos”. Ilusões estas nutridas pelas diversas correntes do pensamento desenvolvimentista que compunhamdesde a Cepal até mesmo o PCB. Ver Dos Santos (2015). 40 A Produção do mais-valor relativo é o título da seção IV do Livro I d’O Capital, com seu capítulo 10 revelando mais especificamente o significado da categoria mais-valor relativo com que Marini (2011a) aí trabalha. possuem a renda muito concentrada, fruto da superexploração da força de trabalho em seus territórios. Tal limitação básica tem como resultado a necessidade de tornar parte dos bens supérfluos (ou de luxo) das economias capitalistas centrais em bens populares, resultando no aumento do salário real e na possibilidade dos trabalhadores passarem a consumir maior soma e diversidade de bens manufaturados. Entretanto, no que se refere à economia dependente, a fratura das suas esferas de consumo prossegue a partir da fratura que já se tinha engendrada pelo ciclo do capital da economia exportadora. Nesse sentido, a industrialização da América Latina, como economia dependente, se efetiva, diferentemente, não preocupada com o consumo de seus trabalhadores, mas preocupada em atender uma demanda existente provinda das classes altas que, no período do entreguerras, se viu impossibilitada de importar como antes. Aproveitando-se, então, das altas rendas acumuladas pela economia exportadora, a industrialização é capaz, por um bom tempo, de contar com uma demanda cativa que dispensa a preocupação com os salários dos trabalhadores, posto que sua produção é independente desses salários de dois modos: i) pelo fato de que, ao não compor o consumo do trabalhador, o valor dessa produção não determina o valor da força de trabalho (v) e, logo, não determina também a taxa de mais-valor relacionada a este último (m/v), desestimulando o capitalista de investir na produtividade de trabalho com o fim de reduzir o valor dos bens que compõem essa produção, sendo-lhe mais atrativo seguir com o uso dos mecanismos de superexploração; ii) a produção faz-se independente dos salários e conduzem à superexploração, novamente, por conta deste mecanismo não constituir-se em empecilho a sua circulação, posto que a produção se destina às altas esferas de consumo e não aos trabalhadores. Diante disso, podemos ver que o ciclo do capital na economia dependente industrializada desestimula a mudança qualitativa desta economia com base na maior capacidade produtiva do trabalho. Diferente do que se verificara nas economias industrializadas centrais, o processo de industrialização dependente, amparado na superexploração da força de trabalho, impedia a superação do “subdesenvolvimento”. A industrialização, portanto, não se mostrava como superação das mazelas da economia dependente, mas como aprofundamento destas. No momento, porém, que a oferta se iguala à demanda nas economias dependentes, tem-se a oportunidade, tal qual nas economias capitalistas centrais, de generalização do consumo de manufaturas para as classes populares41. No entanto, essa opção foi adiada até o 41 Cabe lembrar que, nas economias centrais, esse momento havia significado um marco, dada a necessidade de novos mercados, o que levou a concentração por parte dos capitalistas em obter lucros a partir do limite em que não se precisasse mais dela, situação para que colaborou: i) a posição monopolista dos capitalistas que aqui atuavam e que lhes permitiam operar sem buscar novos mercados, fazendo uso simplesmente do aumento arbitrário dos preços de mercado acima de seus preços de produção; ii) os mecanismos de superexploração da força de trabalho levados até o limite, para o que, como já vimos, o modo de circulação do capital peculiar dessa economia colaborava ao não ter o trabalhador como elemento de grande importância para sua realização. Esgotadas essas alternativas, sobravam duas saídas para a economia dependente face à igualdade da oferta e da demanda em seus domínios: i) a ampliação do consumo das camadas médias, provindo aí do mais-valor não acumulado; ii) e o aumento da produtividade do trabalho com o fim de baratear suas mercadorias e atender novos mercados. Este segundo mecanismo42 é, no entanto, neutralizado pelo primeiro, posto que o funcionamento deste supunha uma compressão do nível salarial dos trabalhadores. Atravancada, assim, a passagem das economias industriais dependentes para a acumulação capitalista com base no mais-valor relativo, a necessidade que se requeria do aumento da produtividade a fim de baratear os produtos passa a ser satisfeita por um outro recurso: o da tecnologia estrangeira. Com ele, se dispensará a necessidade de se generalizar o consumo de manufaturados à grande massa da população e se elevará a dependência a um novo grau de complexidade, denominada por Marini como o novo anel da espiral. 4 O CICLO DO CAPITAL NA ECONOMIA DEPENDENTE DIANTE DO NOVO ANEL DA ESPIRAL Cabe agora tecermos algumas palavras sobre essa nova fase da dependência, denominada por Marini como o novo anel da espiral, e do impacto que, com este, se tem no ciclo do capital da economia dependente, sem deixar de conferir centralidade à presença da superexploração da força de trabalho na região. Como já antecipado na seção anterior, essa nova fase é produto da interferência direta da tecnologia estrangeira nas economias latino-americanas como forma de aumentar a capacidade produtiva do trabalho num momento em que, nessas economias, a demanda igualava-se à oferta e surgia a necessidade de popularizar o consumo das manufaturas para aumento do mais-valor relativo, logo, do aumento da capacidade produtiva. 42 Se este atuasse sozinho, haveria a possibilidade de mudança qualitativa dessa economia da feita que passasse a incorporar os trabalhadores à esfera de consumo de produtos manufaturados. que a economia continuasse ampliando-se. Os efeitos disso sobre o ciclo do capital e sobre a produção que se calca na superexploração constituem a transição para o padrão vigente na economia dependente até então.43 Tal recorrência ao capital estrangeiro, por sua vez, na impossibilidade de se sustentar na mera troca comercial, se dará com base no financiamento de investimentos diretos na indústria, facilitados pela grande concentração de capital no exterior, fruto do reestabelecimento da economia mundial a partir do pós-segunda guerra, e que procurava se reproduzir de alguma forma. Sua maior concentração encontrava-se nos Estados Unidos, deixando a Europa e o Japão para trás em termos de produção de capital, sobretudo no que diz respeito a máquinas e equipamentos. Com a introdução nas economias dependentes desse capital estrangeiro acumulado, dada sua constituição ser de um novo padrão tecnológico, tem-se uma brutal economia de força de trabalho, que diminui a quantidade de trabalhadores empregados na esfera produtiva e, em contrapartida, aumenta as camadas sociais não produtivas.44 Somado a isso, Marini (2011a) destaca que, especificamente na economia dependente, o progresso técnico intensifica o ritmo de trabalho do trabalhador, eleva sua produtividade e, simultaneamente, sustenta a tendência a remunerá-lo abaixo do valor de sua força de trabalho, ou seja, a continuar superexplorando-o. Isso é possível porque os aumentos de produtividade aí se concentram em bens que, mesmo já convertidos em bens de consumo popular nas economias capitalistas centrais, continuam a serem destinados exclusivamente para as esferas altas da circulação, não constituindo bens que compõem o valor da força de trabalho. Logo, o aumento dos lucros nessa economia se pauta não no aumento da taxa de mais-valor, para o qual a diminuição do valor da força de trabalho é fundamental, mas no aumento da massa de mais-valor, no que o aumento da superexploração do trabalhador se faz indispensável. Eis que, diante dessa situação, o ciclo do capital na economiadependente se vê com problemas de realizar-se internamente, posto que uma massa cada vez maior de produtos, originária dos ganhos de produtividade possibilitados pelo capital estrangeiro, não se volta para a grande massa de trabalhadores que o produzem por serem bens supérfluos. A saída que 43 Mencionamos aqui de passagem que, na periodização dos padrões de reprodução do capital na América Latina feita por Osorio (2012), o chamado padrão industrial possui duas fases: uma que se inicia na segunda metade dos anos 1930, internalizada e autônoma, que vai até os anos 1940; e outra que constitui a de integração ao capital estrangeiro, iniciada nos anos de 1950 e que se prolonga até o momento de transição (de meados dos anos 1970 até início dos anos de 1980) para o padrão de exportador de especialização produtiva vigente atualmente. 44 Como bem Marx (1867) já alertava sobre o sentido de ser do desenvolvimento tecnológico numa sociedade, como a capitalista, que se fundamenta na exploração da força de trabalho. se apresentou para isso, segundo Marini (2011a), foi a intervenção do Estado ampliando o aparato burocrático, as subvenções aos produtores e o financiamento ao consumo supérfluo; assim como a intervenção em mecanismos de inflação, com o propósito de transferir poder de compra da esfera baixa para a esfera alta da circulação. Portanto, em síntese: A produção baseada na superexploração do trabalho voltou a engendrar assim o modo de circulação que lhe corresponde, ao mesmo tempo em que divorciava o aparato produtivo das necessidades de consumo das massas. A estratificação desse aparato no que se costuma chamar “indústrias dinâmicas” (setores produtores de bens supérfluos e de bens de capital que se destinam principalmente para estes) e “indústrias tradicionais” está refletindo a adequação da estrutura de produção à estrutura de circulação própria do capitalismo dependente. (MARINI, 2011a, p.170). A contradição básica que esse processo engendra só é limitada pelos limites da superexploração da força de trabalho que, agravando o problema da realização do ciclo do capital, não permite que este seja de todo solucionado pelos mecanismos de transferência de renda que se fizera em favor das classes médias. Isso cria a necessidade da economia voltar-se para o estrangeiro, reconstruindo a velha economia exportadora, mas agora sob a base de um capital intensivo. Como diz Marini (2011a), “A exportação de manufaturas, tanto de bens essenciais quanto de produtos supérfluos, converte-se então na tábua de salvação de uma economia incapaz de superar os fatores desarticuladores que a afligem”. 5 O CICLO DO CAPITAL, A SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO E O PADRÃO DE REPRODUÇÃO DO CAPITAL NA ECONOMIA DEPENDENTE Na apresentação formal presente no Livro II d’O Capital de Marx, da qual parte Marini ([1979] 2012), o ciclo do capital tem sua exposição na forma do ciclo do capital monetário: D-M… P… M’-D’. Aqui expressa-se a ideia de que o capital representa um processo ininterrupto de circulação que tem na expansão de seu valor o objetivo central de seu movimento. Desse ponto de vista, tal formulação, nas suas sucessivas repetições enquanto ciclo, constitui também o processo de circulação do capital. Este tem como essencial o fato da totalidade do modo de produção capitalista ser reproduzida, além do fato de subsumir em seu processo a relação social entre capitalista e trabalhador que obtêm mais-valor, e que já havia sido exposta no Livro I d’O Capital pela fórmula do capital em geral D-M-D’. Em Marini, temos a concepção teórica de como este ciclo se faz presente na economia dependente no artigo O ciclo do capital na economia dependente (1979). Aqui, no entanto, pressupõe-se que a economia dependente não é mais aquela caracterizada como economia exportadora, na qual seu ciclo estava subordinado à dinâmica externa. Diferente disso, se parte do pressuposto que a indústria já é o eixo central de acumulação da economia dependente, onde já se verifica um ciclo relativamente “autônomo” do capital. Como bem aponta o autor a respeito desse marco temporal, “[…] se conformou um setor de produção para o mercado interno que assumiu progressivamente o papel hegemônico na dinâmica econômica”.45 Nesse sentido, cabe relembrar que o ciclo do capital a que nos referimos inicialmente pode ser tido como contendo três fases: circulação, produção e circulação. Na primeira fase da circulação (D-M), que Marini ([1979] 2012) chama de C1, se estuda o capital sob a forma dinheiro que se troca por meios de produção (Mp) e força de trabalho (Ft). Em sua segunda fase (...P...), que corresponde à acumulação e à produção, o capital já se encontra na forma de meios de produção e força de trabalho para realizar seu processo de valorização por meio da exploração dessa força. Por fim, sua terceira fase (M’-D’), que é ao mesmo tempo a segunda fase da circulação (ou C2), o capital já se encontra sob a forma de mercadorias contendo seu valor inicial mais o mais-valor gerado na fase da produção mediante a exploração, e precisa se realizar vendendo-se e transformando-se na sua forma dinheiro, que representa uma magnitude superior ao dinheiro investido no início do ciclo. No trato teórico do ciclo do capital na economia dependente, feito por Marini (2012), se expõe que esse ciclo sofre interferência direta e indireta do Estado (através dos impostos, gastos e investimentos feitos por este), ao mesmo tempo que articula-se diretamente com o exterior de maneira subordinada. Nesse sentido, o capital estrangeiro está fora do controle da economia dependente e dele esta economia se faz dependente no estabelecimento de sua dinâmica de acumulação. Desde a primeira fase da circulação (C1), através dos investimentos diretos e indiretos feitos, esse capital se internaliza e se coloca como fator direto do ciclo do capital na economia dependente. Parte dele compra meios de produção e força de trabalho do próprio país dependente, mas outra parte sai de imediato desta nação na medida que compra meios de produção do exterior. Isso não acontece apenas na economia dependente, mas nela ocorre de forma mais aguda, ao mesmo tempo em que responde, segundo Marini (2012, p. 27), “[…] à própria estrutura de seu processo histórico de acumulação de capital”. 45 MARINI, R. M [1979]. O ciclo do capital na economia dependente, op. cit., p. 21. Como resultado de tal situação, a fase da acumulação e produção deste tipo de economia segue grandemente determinada por esse capital estrangeiro, conduzindo-a aos processos de concentração e/ou centralização, que resultam na monopolização da economia dependente. Isso porque, da feita que adentra o território dependente, a tecnologia mais sofisticada se dirige à empresa melhor alinhada com o capital externo (ou mesmo pertencente a ele), fazendo com que os custos de produção dessa empresa baixem para além dos custos de produção médio dessa economia, garantindo-lhe um lucro extraordinário. Resta, diante dessa situação, às empresas pequenas e médias da economia dependente recorrerem à superexploração da força de trabalho para compensar a perda de mais-valor que aí sofrem. No entanto, o achatamento da massa salarial que daí advém possibilita que se pague menores remunerações à força de trabalho por parte dos setores monopolistas também, o que acaba por, novamente, favorecê-los tanto na remuneração de seus funcionários, quanto no fato de lidarem com custos menores de insumos e matérias-primas oriundos da baixa salarial. A posição dos setores monopolistas em nada é afetada, portanto. Ao contrário do que se poderia esperar, ela é fortalecida. É nesse sentido que a análise do ciclo do capital na economia dependente não pode prescindir, tal como nos aponta Osorio (2012), do processo de compra e venda da força de trabalho (D-Ft), no quese destaca a diferença entre o valor diário e o valor total da mesma46. Para o nível de análise da categoria padrão de reprodução do capital, ganha destaque a historicidade e particularidade com que tal processo se dá em cada lugar e momento histórico em específico, nos autorizando a falar em um padrão de reprodução do capital na economia dependente caracterizado por diferentes mecanismos de violação do valor da força de trabalho que conformam sua superexploração.47 Desse ponto de vista, diz Osorio (2012, p. 51) que “a ideia de remunerar a força de trabalho por seu valor não pode ser reduzida a um assunto puramente salarial”. Isso porque “O trabalhador deve encontrar o conjunto de condições indispensáveis para produzir e reproduzir sua força de trabalho, e dentro delas o salário é importante, mas não é o único 46 O valor diário, naturalmente, é aquele montante diariamente necessário ao trabalhador para que reproduza a si e a sua família como ofertantes de força de trabalho no mercado. O valor total, em contrapartida, deve levar em conta o tempo de vida útil do trabalhador, ou seja, o total de dias em que o trabalhador vende a mercadoria força de trabalho no mercado em condições normais de produção, além do tempo em que ele estará aposentado e não poderá mais fazer isso. Nesse sentido, o valor total determina o valor diário da mercadoria força de trabalho, posto que este último está pautado no tempo de vida médio do trabalhador, assim como no seu desgaste médio. 47 Os mecanismos aqui já foram citados e encontram-se melhores desdobrados no nível de abstração que pede a categoria padrão de reprodução do capital em Osorio (2012). elemento.”. Frise-se, por exemplo, o fato de não ter salário que pague as horas de descanso que o trabalhador deve ter para reproduzir sua força de trabalho em condições normais. Depois de concluída a análise da primeira fase da circulação, é preciso partir para a análise da fase do capital produtivo (…P…). Aqui, para a apreensão do padrão de reprodução do capital na economia dependente, ressaltam-se as formas que o capital se utiliza para aumentar a exploração da força de trabalho no próprio processo de produção, como: o prolongamento da jornada de trabalho como meio de aumentar mais-valia absoluta, até os limites físico-mentais do trabalhador evidenciados, comumente, nos sucessivos acidentes de trabalho que este sofre; o incremento da produtividade do trabalho, que rebaixa o valor da força de trabalho por meio do investimento em tecnologia e organização da produção, capaz de aumentar o montante de valor e mais-valor produzido em um mesmo período de tempo, isto é, em uma mesma jornada de trabalho48; e a intensificação do trabalho decorrente, geralmente, do incremento de produtividade, que pode ser sintetizada como a otimização do tempo de trabalho feita com fins capitalísticos de valorização. Mais especificamente, nas “atuais condições de mundialização”49, como diz Osorio (2012), o prolongamento da jornada de trabalho, ou seja, o expediente da obtenção de mais- valor absoluto passa a constituir um mecanismo regular das economias dependentes junto a salários muito inferiores ao valor da força de trabalho50. Tendo como premissa altas taxas de desemprego impulsionadas justamente pelo aumento da jornada de trabalho – que dispensa força de trabalho do processo de produção –, os salários nessas economias se mantêm em baixa ajudando a constituir os mecanismos que geram o fenômeno da superexploração da força de trabalho.51 48 Como vimos, este mecanismo é mais difícil de se suceder na economia dependente, devido às barreiras do monopólio tecnológico impostas pelas economias centrais. 49 Condições estas caracterizadas por “revoluções na microeletrônica, que multiplicam e aceleram as comunicações, redução nos preços dos transportes de mercadorias e um novo estágio do capital financeiro” que, por sua vez, propiciam “integrações mais intensas do mercado mundial, […] novas possibilidades de segmentação dos processos produtivos, de relocalização de indústrias e serviços, bem como uma elevada mobilidade do capital” (OSORIO, 2012, p. 79). Para ver em mais detalhes as características da mundialização, cf. OSORIO, J. O Estado no centro da mundialização, op. cit., p. 169-173. 50 O que não significa, como já pontuamos, que as economias dependentes não possam conviver com aumento de produtividade e inclusive com a produção de mais-valor relativo ao mesmo tempo em que fazem uso regular da superexploração. Como Osorio (2012, p.57) mesmo sinaliza “O capitalismo [...] não existe para oferecer melhores condições de vida. Seu objetivo é a valorização, fazendo dos novos avanços na tecnologia e na organização do trabalho formas não de liberação, mas de maior submissão e exploração.”. A isto se soma o expediente da maior intensidade do trabalho que não deixa de constituir um mecanismo que pode ser usado para violar o valor da força de trabalho, ajudando a compor o fenômeno da superexploração. 51 Tal situação também sofre contribuição direta da introdução do capital estrangeiro que se insere na economia dependente sempre em busca de lucros extraordinários. Ao fazer isso, como fora projetado para uma realidade exterior, costuma desempregar trabalhadores em massa, aumentando o exército industrial de reserva e aprofundando as mazelas da economia dependente, gerando uma situação favorável para superexplorar mais ainda os trabalhadores. Por fim, na segunda fase da circulação (M’-D’), na chamada realização das mercadorias na economia dependente, a superexploração da força de trabalho generalizada reduz a capacidade de consumo dos trabalhadores, dificultando tal fase do ciclo. Também uma parte dos lucros/mais-valor é transferida para o exterior, não atuando na realização das mercadorias nas economias dependentes, o que também reduz o mercado interno e dificulta, mais uma vez, a execução dessa fase. Assim, a parte do mais-valor que fica no país se divide em duas partes. Uma se transforma em investimento/acumulação; e a outra se destina a gastos improdutivos (consumo individual dos capitalistas e setores de classes vinculados a eles). Resta, com essa situação, que a estrutura do consumo individual reflita a distribuição de renda (produto do mais-valor não acumulado e do capital variável). Com a superexploração da força de trabalho ocorre uma elevação do mais-valor em relação ao salário. Em função disso, a distribuição de renda se mostra enormemente concentrada. Marini (2012) então conclui que o setor dinâmico da economia dependente se constitui por aqueles voltados a satisfazer o consumo dos que têm rendimentos decorrentes de mais-valor não acumulado, lucros e proventos. Nestes termos, a estrutura de produção tende a voltar-se para este setor, secundarizando ainda mais a maior parcela dos trabalhadores, expondo uma realidade em que a produção da economia está grandemente dissociada do consumo básico de sua população.52 A dificuldade de realização das mercadorias daí advinda, por sua vez, obrigam a economia dependente a buscar tal realização no exterior, voltando-a para o mercado mundial. Com isso, segundo Marini (2012, p. 35), “se fecha o círculo da dependência do ciclo do capital com relação ao exterior”, e reafirma o velho caráter exportador com que essa economia nascera, o que nos dá o chamado padrão exportador de especialização produtiva53. Conclui-se, portanto, que entender o padrão de reprodução do capital na economia dependente implica assumir a superexploração da força de trabalho como elemento central. O que, por sua vez, só se faz possível de ser feito com uma perspectiva integradora que perpassa pela consideração do ciclo do capital na economia dependente em sua totalidade. Como diz Marini (2012, p. 35), “É, pois, o conjuntodas fases consideradas que nos permite entender o ciclo do capital com as características particulares que assume na economia dependente”. E 52 A este fenômeno é que Marini se refere quando aponta o divórcio da estrutura de produção da necessidade de consumo do consumo das massas na economia dependente. 53 Tal padrão, segundo Osorio, é caracterizado “pelo regresso a produções seletivas, seja de bens secundários e/ou primários, seja de relocalização de segmentos produtivos, novas organizações da produção, em geral qualificadas como 'toyotismo', flexibilidade laboral e precariedade, economias voltadas à exportação, drásticas reduções e segmentação do mercado interno, fortes polarizações sociais, aumento da exploração e da superexploração e níveis elevados de pobreza e indigência” (OSORIO, 2012, p. 85). nessa tarefa, a categoria de padrão de reprodução do capital, ao abarcar o modo como a lei do valor mundializada se conforma em espaço e tempo particular, junto à categoria superexploração da força de trabalho, que confere qualidade especial à contradição capital- trabalho no seio do capitalismo dependente, se fazem cruciais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegamos ao fim deste trabalho crendo termos deixado clara a razão do fenômeno da superexploração da força de trabalho assumir um lugar central no padrão de reprodução do capital da economia dependente latino-americana, não somente hoje, mas desde sua plena integração à DIT. Fizemos isso a partir da exposição da descoberta da Teoria Marxista da Dependência de como as leis gerais do modo de produção capitalista, na forma de uma lei do valor mundializada, aqui se conformam de modo particular, originando uma dialética da dependência, que se expressa na configuração especial dos ciclos do capital na economia dependente e nos seus distintos padrões de reprodução do capital que se sucedem ao longo da história. Temos assim, na base de formação da economia dependente, uma economia exportadora que nos dá o padrão agromineiro exportador; um padrão industrial, com a industrialização dessa economia; e, com o fenômeno da mundialização do capital mais recentemente, um padrão exportador de especialização produtiva. Todos esses padrões têm em comum, conforme vimos neste trabalho, o fato de serem pautados pela superexploração da força de trabalho, dado que todos aí se referem a padrões de reprodução da economia dependente, cuja realidade incômoda inclui tentarem constantemente compensar as transferências de valor que sofrem em benefício da dinâmica de acumulação dos países imperialistas centrais. O reconhecimento dessa realidade, no entanto, só foi possível pelo método materialista histórico e dialético legado por Marx e Engels; e pela Teoria Marxista da Dependência, que, através da aplicação deste método, descobriu as legalidades próprias do capitalismo dependente, nos revelando como, tendencialmente, a lei do valor opera na periferia do sistema mundial capitalista. Portanto, consideramos imprescindível a apropriação desse acervo teórico para que, tomando conhecimento de nossa situação e defronte às leis do capitalismo dependente vigentes em nossos territórios, possamos forjar as armas que garantam nossa emancipação futura. REFERÊNCIAS AMIN, S. Os desafios da mundialização. São Paulo: Ideias e Letras, 2006. BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. 2. ed. Florianópolis: Editora Insular, 2013. BOTTOMORE, T. (org.). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. BUKHARIN, N. O imperialismo e a economia mundial. 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