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Enegrecendo o direito - e-book completo

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ENE
GR
ECE
ND
O
O DIREITO
Q U E S T Õ E S R A C I A I S N O B R A S I L
• C O O R D E N A Ç Ã O • 
JULIO CESAR DE SÁ DA ROCHA
• O R G A N I Z A Ç Ã O • 
C A M I L A G A R C E Z L E A L
É R I K A C O S T A D A S I L V A
J O Ã O P A B L O T R A B U C O 
L Á Z A R O A L V E S B O R G E S
8 9 786586 483093
ISBN 978-65-86483-09-3
O livro Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil 
representa, de forma competente, as investigações em-
preendidas por pesquisadoras(es) negras(os) do Programa 
de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da 
Bahia (PPGD/UFBA). Mais do que isso, significa construção 
teórico-conceitual que rompe epistemologicamente com a 
“neutralidade racial” e assume a construção de uma her-
menêutica negra, o que torna a obra necessária e urgente, 
em tempos de recrudescimento do racismo em suas dife-
rentes vertentes.
Assim, esta obra é excelente contribuição acadêmica com-
prometida com o combate ao racismo e ao epistemicídio 
do pensamento negro.
Professor Dr. Julio Cesar de Sá da Rocha
(Membro do Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Direito. 
Diretor da Faculdade de Direito da UFBA.)
ANTES DE LER O LIVRO – OU MESMO DEPOIS...
Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil é um livro 
que nasceu do duplo esforço coletivo de seus autores: na elabo-
ração dos textos e no financiamento da obra.
Sua disponibilização gratuita, na forma de e-book, revela o in-
teresse do coletivo em disseminar ideias e, sobretudo, em con-
tribuir para o tão necessário e indispensável enegrecimento do 
Direito no Brasil.
Você, que já leu ou lerá este livro, pode igualmente contribuir 
para essa causa, reconhecendo os esforços, aqui materializados, 
na forma de colaboração com uma instituição que tem prestado, 
ao longo dos anos, importante contributo às causas raciais no 
Brasil.
Referimo-nos à REAJA OU SERÁ MORTA, REAJA OU SERÁ 
MORTO, que luta contra o racismo, o machismo, a homofobia e 
o genocídio do povo negro. Alguns de seus trabalhos podem ser 
conhecidos através dos seguintes meios virtuais:
- Facebook: Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto
- Instagram: @reajaouseramorta;
- Messenger: m.me/ReajaOuSeraMortaReajaOuSeraMorto;
- E-mail: reajanasruas@gmail.com;
- Blog: http://reajanasruas.blogspot.com.br.
ENE
GR
ECE
ND
OSua colaboração pode ser feita na forma de transferência ou de-pósito bancário de qualquer valor. Como a REAJA está com-
pletando 15 anos de resistência, sugerimos que, à sua colabo-
ração, seja acrescentada a soma simbólica de R$ 0,15 (quinze 
centavos), para que a REAJA saiba que partiu de alguém que leu 
e gostou do livro. Exemplos: R$ 10,15, R$ 20,15, R$ 50,15.
Estes são os dados bancários para depósito ou transferência da 
sua colaboração:
Banco do Brasil
Agência: 904-0
Conta Corrente: 96945-1
Cpf. 059.584.365-46
Silvana Santos Conceição
Seja, você também, um incentivador de projetos que visam a 
melhoria das condições de vida das pessoas negras. REAJA!!!
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GR
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O • C O O R D E N A Ç Ã O • JULIO CESAR DE SÁ DA ROCHA
• O R G A N I Z A Ç Ã O • 
C A M I L A G A R C E Z L E A L
É R I K A C O S T A D A S I L V A
J O Ã O P A B L O T R A B U C O 
L Á Z A R O A L V E S B O R G E S
O DIREITO
Q U E S T Õ E S R A C I A I S N O B R A S I L
Editora Mente Aberta
Endereço Eletrônico: editoramenteaberta.com.br
Instagram: @ed_mente_aberta
E-mail: contato@editoramenteaberta.com.br
Coordenação Editorial
Pedro Camilo de Figueirêdo Neto
Conselho Editorial
DOUTORES:
Heliete Rosa Bento
Jessica Hind Ribeiro Costa
José Rômulo de Magalhães Filho
Luciano Sérgio Ventim Bomfim
Maria João Guia
Mariana Balen Fernandes
Nadialice Francischini de Souza
Régia Mabel da S. Freitas
Ricardo Maurício Freire Soares
Sheila Marta Carregosa Rocha
Urbano Félix Pugliese do Bomfim
 Programação Visual de Capa
 Fernando Campos
Diagramação
Alfredo Barreto
A reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer modo, somente será 
permitida com autorização da editora.
(Lei nº 9.610 de 19.02.1998)
CIP – Brasil. Catalogação na fonte
Leal, Camila Garcez.
Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil [livro eletrônico] / 
coordenação Julio Cesar de Sá da Rocha / organização Camila Garcez Leal, 
Érika Costa da Silva, João Pablo Trabuco e Lázaro Alves Borges – Salvador, 
Ba: Editora Mente Aberta, Junho, 2020.
4955 Kb / pdf
174 p.
ISBN: 978-65-86483-09-3
 
1. Direito. 2. Enegrecer. 3. Questões raciais. 4. Brasil. I. Rocha, Julio 
Cesar de Sá da, apresentação. II. Vida, Samuel, prefácio. III. Título. 
 
CDD – 340
 
MESTRES:
Angelo Boreggio
Bruno Barbosa Heim
Fábio S. Santos
Geraldo Calasans Silva Júnior
Isan Almeida Lima
Laerte de Paula Borges Santos
Marcelo Politano de Freitas
Misael Neto Bispo da França
Pedro Camilo de Figueirêdo Neto
Rubens Sérgio S. Vaz Júnior
Thacio Fortunato Moreira
Revisão
Joana Cunha
 5 
SUMÁRIO
Apresentação – Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil, 7
Julio Cesar de Sá da Rocha 
Prefácio – Enegrecer o Direito: o desafio de seguir construindo a 
trajetória de luta pela emancipação no campo jurídico, 13
Samuel Vida
1 A questão quilombola – entre vulnerabilidae e resistência: breves 
considerações acerca do julgamento da ADIN n. 3.239, 29
Misael Neto Bispo da França
2 A construção do conceito de dignidade da pessoa humana em face do 
ser negro: questões de gênero e raça no Brasil, 45
João Pablo Trabuco
3 A constitucionalização tributária como ação afirmativa, 61
Aline Santana Alves
4 Liberdade de expressão e racismo: discursos discriminatórios e 
presidencialismo, 89
Lázaro Alves Borges
5 Os tiros disparados pelos homens da lei: violência policial, coronavírus 
e a reiteração do óbvio, 103
Daiane Ribeiro
6 “Nossos passos vêm de longe”: os desafios de uma advogada negra 
candomblecista no exercício da profissão, 111
Camila Garcez Leal
7 O sistema de justiça criminal e a questão racial: caminhos para a 
ocupação de pessoas negras nos espaços de poder, 121
Jonata Wiliam Sousa da Silva
6 | Diversos Autores
8 A (des)assistência das garantias previstas na Lei de Execução Penal 
enquanto vertente do genocídio antinegro, 133
Érika Costa da Silva
9 “E não sou uma mulher?”: a desumanização dos corpos negros 
femininos encarcerados sob a perspectiva do genocídio no sistema 
prisional brasileiro, 145
Lethycia Laynne Santos Pereira
Ana Luiza Teixeira Nazário
10 Entre a seletividade e a estigmatização: as potencialidades da justiça 
restaurativa, 163
Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos
 7 
APRESENTAÇÃO
ENEGRECENDO O DIREITO: 
QUESTÕES RACIAIS NO BRASIL
Fui convocado por pesquisadoras e pesquisadores do Programa de 
Pós-graduação em Direito (PPGD/UFBA) a apoiá-las(os) na presente 
publicação, Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil. Preliminar-
mente, o convite me ofereceu dupla sensação: de gratidão, por um lado, e 
de preocupação, por outro lado. 
A gratidão me faz retomar lembranças, registros de memórias do 
meu lugar no campo jurídico e na universidade. Minha infância e juven-
tude com bolsa em colégio confessional jesuíta, pouquíssimos colegas 
negros/as. Na Faculdade de Direito, nas turmas de graduação, da mesma 
maneira, poucas exceções, como os colegas Jadir Anunciação de Brito, 
Augusto Desterro e Vera Virgens. Bom lembrar da liderança de Samuel 
Santana Vida, referência que desde lá vem afirmando o legado democrá-
tico e das lutas de combate ao racismo. Ademais, a experiência de ou-
tra universidade que o movimento estudantil me proporcionou com o 
CARB, o DCE e o SAJU, descortinou-me outras vivências, estéticas e 
concepções ideológicas. Que boas memórias de Ubiratan Félix, da Enge-
nharia Civil, Olívia Santana, de Pedagogia, Célia Sacramento, de Ciências 
Contábeis, Ana Cristina Muniz Décia, de Secretariado Executivo, Sérgio 
São Bernardo, da Católica,e outros colegas do movimento estudantil. Foi 
a universidade que me deu aproximação com iniciativas plurais, como o 
Programa UFBA EM CAMPO e o Projeto SAJU/OLODUM. Entrar no 
Programa de Pós- Graduação da UFBA (PPGD/UFBA) era algo dis-
tante nas minhas expectativas à época. Depois, como docente da Univer-
sidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) tive total apoio para sair e 
complementar minha formação acadêmica no Programa de Pós-gradua-
ção em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/
São Paulo), com registro raro de colegas negros ou negras. 
Outrossim, pontuo a marcante experiência de residir e pesquisar em 
Nova Orleans, Louisiana (EUA), quando estava no Doutorado Sanduíche 
8 | Apresentação - Julio Cesar de Sá da Rocha
na Tulane University Law School. Foi na cidade mais negra dos Estados 
Unidos que várias questões me fizeram perceber e analisar a realidade 
sob perspectiva distinta da lógica da supremacia branca norte-ameri-
cana com as discussões pioneiras sobre racismo ambiental no Câncer 
Valley em meio à influência yoruba na santeria, do red bens and rice (feijão 
e arroz) toda segunda-feira, do jazz negro da Bourbon Street, do okra co-
zido (bom registrar sua origem africana, precisamente na Etiópia, tam-
bém conhecido como quiabo, quingombô, gombô, quibombô, quigombó, 
quibombó, quimbombô, quingobó) ou do carnaval do Mardi Gras. Ao 
mesmo tempo, somente observava a presença de negros/as quando eram 
atletas na Tulane University. A todo momento, reflexões sobre Salvador, a 
Bahia e o Brasil vistos de fora. Enfim, a desigualdade racial é manifesta, 
com implicações na reduzida presença negra nas universidades, inclusive 
nos Estados Unidos (lá, os black comunnity colleges cumprem relevante 
papel) e no Brasil. De fato, após toda a fase de formação e passagem como 
docente pela Universidade do Estado da Bahia (com a feliz experiência 
no Mestrado de Ecologia Humana e Gestão Socioambiental, em Pau-
lo Afonso), ingressei por concurso na Faculdade de Direito da UFBA. 
Aqui nem planejava, mas fui eleito vice-diretor e, atualmente, diretor da 
Faculdade de Direito, com seus 129 anos de criada. Aliás, os registros 
históricos nas fichas de matrícula dos primeiros discentes (1891) não 
indicavam a identificação étnico-racial, apesar de registro de ingresso da 
primeira mulher em 1908 e conclusão em 1911.1
Por sua vez, a preocupação com o convite implica na grande res-
ponsabilidade diante da proposta, mas não podia recusar o projeto como 
iniciativa e esforço do protagonismo das/os próprios discentes em aqui-
lombar pesquisadoras negras e pesquisadores negros, tendo em vista a 
presença, quase escassa, destes(as) nas instituições de ensino superior 
(IES), especialmente no nível do mestrado e doutorado. Com razão, Ab-
dias Nascimento (2020) indica, em seu livro O genocídio do negro brasi-
leiro, que uma das estratégias de extermínio foi omitir e mascarar dados 
censitários e impossibilitar o acesso a direitos, como a educação. Assim, 
em 1950, após um período de apagamento de dados de censo, o percen-
tual da população negra no ensino superior era de cerca de 0,5% (meio 
1 Informações adicionais na publicação: Julio Cesar de Sá da Rocha. Faculdade de 
Direito da Bahia: processo histórico e agentes de criação da Faculdade Livre no final do 
Séc. XIX. Salvador: Fundação Faculdade de Direito, 2015. A estudante e graduada em 
Direito foi Marietta Gomes de Oliveira Guimarães.
 Enegrecendo o Direito | 9 
por cento), já os dados atuais giram em torno de 15% (quinze por cento) 
da população negra, muito por conta da política de cotas de acesso im-
plementada pelas universidades públicas, nas quais o percentual é su-
perior. 2 
Com efeito, no universo em que a maioria da população é negra 
(56%), o déficit de presença negra em espaços públicos e implementação 
de cidadania ainda é abissal. Nesse sentido, é fundamental ressaltar a 
noção do protagonismo e da fala das pesquisadoras e dos pesquisadores 
aqui neste livro. No dizer de Grada Kilomba (2020, p. 50), em Memórias 
da Plantação, “O centro acadêmico, não é um local neutro. Ele é um espa-
ço branco onde o privilégio de fala tem sido negado para pessoas negras”. 
A elaboração dos capítulos a deste livro respondem a uma reflexão 
teórica, mas, além disso, uma reflexão sobre “raça, gênero e o próprio 
conhecimento jurídico”. A seguir, como indica Adilson José Moreira, 
no campo jurídico existe um discurso não explicitado da “celebração da 
neutralidade racial” como parâmetro de interpretação da norma jurídica 
e, porque não afirmar do conteúdo do ensino e investigação no direito. 
Assim, a presente coletânea de capítulos, redigidos por pesquisadoras 
negras e pesquisadores negros do PPGD/UFBA, aponta uma postura 
decolonial e antiracista em detrimento do saber formal apresentado nos 
cursos jurídicos com seus manuais e influência do paradigma da bran-
quitude, adotado como universal e pretensa via única do conhecimento. 
Como exemplo, cito a representação encaminhada ao Ministério Público 
Federal e o questionamento, por ofício, sobre o porquê de, em concurso 
público de História do Direito na Faculdade de Direito da UFBA, três 
dos dez pontos abordados girarem em torno das seguintes temáticas: 
“Colonialidade Jurídica e Constitucionalismo nas Américas: EUA, Haiti 
e Brasil”, “Cultura jurídica e diáspora africana. História e Racismo no 
Brasil: Direito e Relações Raciais” e “História das ideias jurídicas e intro-
dução dos discursos racialistas na Bahia”. Portanto, o que seria louvável 
e incentivado como exigência para o certame de docente em História do 
Direito, passou ser questionado, pois são temas que “fogem” à normalida-
de dos referenciais teóricos conhecidos universalmente na matriz histo-
riográfica eurocentrada. 
2 50,3% em 2018. Apesar dessa parcela da população representar 55,8% dos brasileiros, 
é a primeira vez que os pretos e pardos ultrapassam a metade das matrículas em 
universidades e faculdades públicas. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/
geral/noticia/2019-11/pela-primeira-vez-negros-sao-maioria-no-ensino-superior-
publico. Acesso em: 20 jun. 2020.
10 | Apresentação - Julio Cesar de Sá da Rocha
Por conseguinte, o livro oportuniza a retomada do debate racial 
frente a um direito embranquecido, cuja linguagem foi criada e mantida 
por pessoas brancas, redirecionando a reflexão a partir de uma epistemo-
logia negra. No meu registro, as falas e os escritos do mestre quilombola 
Antônio Bispo dos Santos (2015), com seu direito orgânico, e do mestre 
e geógrafo Diosmar Marcelino Santana Filho (2018) com sua geopolí-
tica do estado e do território negro quilombola. Desse modo, todos os 
capítulos do livro tiveram, como pressuposto, o debate racial em alguma 
área do direito, como observa-se dos capítulos aFo seguir indicados: no 
capítulo primeiro, Misael Neto Bispo da França trata da questão qui-
lombola, entre vulnerabilidade e resistência com breves considerações 
acerca do julgamento da ADI n. 3.239; no segundo, João Pablo Trabuco 
de Oliveira estabelece a análise sobre a construção do conceito de dig-
nidade da pessoa humana em face do ser negro, pontuando questões de 
gênero e raça no Brasil; adiante, Aline Santana Alves traz reflexão so-
bre a constitucionalização tributária como ação afirmativa; em seguida, 
Lázaro Alves Borges reflete sobre a liberdade de expressão e imunidade 
presidencial, indagando até que ponto um presidente da República pode 
ter discursos discriminatórios; no quinto capítulo, Daiane Ribeiro anali-
sa os tiros disparados pelos homens da Lei e reflete sobre a violência po-
licial, coronavírus e reiteração do óbvio; já no sexto, Camila Garcez Leal 
analisa a influência da ancestralidade e reflete sobre os desafios de uma 
advogada negra candomblecista no exercício da profissão; no seguinte, 
Jonata Wiliam Sousa da Silva reflete sobre o Sistema de Justiça Criminal 
e a questão racial, analisandoos possíveis caminhos para a ocupação de 
pessoas negras nos espaços de poder; no capítulo oitavo, Érika Costa 
da Silva avalia a (des)assistência das garantias previstas na Lei de Exe-
cução Penal enquanto vertente do genocídio antinegro; no penúltimo 
capítulo, Ana Luíza Teixeira Nazário e Lethycia Laynne Santos Pereira 
tratam da desumanização dos corpos negros femininos encarcerados sob 
a perspectiva do genocídio no sistema prisional brasileiro; por fim, no 
último capítulo, Caio Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos reflete sobre 
a seletividade e estigmatização, avaliando as potencialidades da Justiça 
Restaurativa.
Assim, o livro Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil, publi-
cado pela Editora Mente Aberta, representa, de forma competente, as 
investigações empreendidas por pesquisadoras(es) negras(os) do Pro-
grama de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia 
 Enegrecendo o Direito | 11 
(PPGD/UFBA). Mais do que isso, significa construção teórico-concei-
tual que rompe epistemologicamente com a “neutralidade racial” e assu-
me a construção de uma hermenêutica negra, no dizer de Adilson José 
Moreira (2019, p. 39-40, “comprometida com a promoção da igualdade 
de status entre grupos raciais”, e que enfatiza “o caráter anti-hegemônico 
dos direitos fundamentais [...] com potencial de promover a proteção de 
minorias raciais contra práticas e tradições que estabelecem a confor-
midade com identidades hegemônicas para o acesso a direitos”. E tudo 
isso torna a obra necessária e urgente, em tempos de recrudescimento do 
racismo em suas diferentes vertentes, como ensina Milton Santos (2012, 
p. 158), pois no Brasil, a “marca predominante é a ambivalência com 
que a sociedade branca dominante reage quando o tema é a existência, no 
país, de um problema negro”. Aliás, os dados oficiais revelam a gritante 
desigualdade racial, como nos índices da população negra em cárcere, no 
acesso diferenciado à educação e excessiva desistência escolar, nos dados 
de empregabilidade, na ocupação reduzida em cargos e funções públicas 
no campo jurídico (pesquisa do CNJ/2018 indica que 63% da magistra-
tura é branca e masculina, chegando a 84% nos tribunais superiores). Em 
tempos da violência policial que escancara o racismo estrutural, como 
lembra o ator afro-americano Will Smith, o “racismo não está ficando 
pior, está sendo filmado”. Como propõe Djamila Ribeiro, o “racismo no 
Brasil: todo mundo sabe que existe, mas ninguém acha que é racista”, 
propondo que “não basta só reconhecer o privilégio, precisa ter ação an-
tirracista de fato” e, no espaço acadêmico, entre outras inciativas, “ler 
intelectuais negros, colocar na bibliografia”.3 
Em suma, Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil é excelente 
contribuição acadêmica comprometida com o combate ao racismo e ao 
epistemicídio do pensamento negro, no dizer de Sueli Carneiro (2005). 
Aliás, no caminho do que tem sido proposto pelo Programa Direito e Re-
lações Raciais (PDRR/Direito/UFBA), coordenado pelo professor Sa-
muel Vida. 
Em tempos de pandemia da Covid-19, que tem dizimado despro-
porcionalmente negros e negras, intensificado pelas atitudes genocidas 
do atual governo federal, que tem descumprindo orientações da Organi-
zação Mundial de Saúde (OMS), rendo minha homenagem e luto pelas 
3 “Racismo no Brasil: todo mundo sabe que existe, mas ninguém acha que é racista”, diz 
Djamila Ribeiro. Entrevista BBC Brasil 07 de junho 2020. Disponível em: https://www.
bbc.com/portuguese/brasil-52922015. Acesso em: 22 jun. 2020.
12 | Apresentação - Julio Cesar de Sá da Rocha
famílias que perderam seus entes queridos/as. Claro que é importante 
deixar registrado que o coronavírus é ainda mais adverso diante do le-
gado histórico e perverso do racismo e da forma violenta como atinge 
corpos negros.
Por fim, quero agradecer e abraçar cada uma e cada um das/os pes-
quisadoras/es Ana Luíza Teixeira Nazário, Aline Santana Alves, Caio 
Vinícius de Jesus Ferreira dos Santos, Camila Garcez Leal, Daiane Ribei-
ro, Érika Costa da Silva, João Pablo Trabuco de Oliveira, Jonata Wiliam 
Sousa da Silva, Lázaro Alves Borges, Lethycia Laynne Santos Pereira e 
Misael Neto Bispo da França.
Salvador, 23 de junho de 2020.
Professor Dr. Julio Cesar de Sá da Rocha
(Membro do Colegiado do Programa 
de Pós-Graduação em Direito. Diretor da 
Faculdade de Direito da UFBA)
 13 
PREFÁCIO
ENEGRECER O DIREITO: O DESAFIO DE SEGUIR 
CONSTRUINDO A TRAJETÓRIA DE LUTA PELA 
EMANCIPAÇÃO NO CAMPO JURÍDICO
Samuel Vida4
Contrariando os discursos consagrados sobre a formação históri-
ca, social e institucional brasileira, pautados pela narrativa eurocêntrica 
guiada pelos interesses do colonizador e sua descendência direta ou indi-
reta,5 constitutiva das elites raciais dominantes, detentoras dos privilé-
gios, riquezas e recursos materiais e simbólicos produzidos socialmente, 
colocam-se em movimento iniciativas de resgate, visibilização e reconhe-
cimento de outras narrativas que desvelam contribuições e protagonis-
mos que foram silenciados ou menosprezados. Esse esforço, desenvolvido 
em diversos campos do saber há algum tempo, vem desafiando os sabe-
res e práticas jurídicas hegemônicas, insulados em suas torres brancas de 
marfim, seus templos egrégios, fóruns semidivinos e ilusões olímpicas, 
colocando um horizonte de inflexão, autocrítica e reorganização plura-
lizante do campo jurídico brasileiro. Cada vez menos sustentáveis, o dis-
curso unidisciplinar e a episteme monocultural6 da Modernidade Jurídica 
e suas pretensões de a-historicidade e universalidade racional vêm sendo 
rasurados por iniciativas de produção de conhecimento que começam a 
trazer para o Direito uma necessária perspectiva transdisciplinar, o que 
produz pontes com os debates teórico-epistemológicos. Esta reorientação 
4 Ogan de Xangô do Terreiro do Cobre. Professor de Direito da UFBA. Coordenador do 
PDRR – Programa Direito e Relações Raciais.
5 Por descendência indireta do colonizador, refiro-me aos imigrantes europeus acolhidos 
em larga escala entre 1870-1930 pela política pública imigrantista implementada pelo 
Estado brasileiro, tendo como sentido geral a afirmação de um vetor político, identitário 
e demográfico de fortalecimento de um projeto de hegemonia racial branca e contenção 
e negação dos estoques raciais negros, indígenas e mestiços.
6 Cf. “O nó górdio epistemológico” em: SEMPRINI, 1999.
14 | Prefácio - Samuel Vida
epistemológica reconhece o valor que outras matrizes epistêmicas e seus 
legados negados ofertam a partir da constatação da presença e ação, nos 
processos históricos, de protagonismos dos grupos raciais subalterniza-
dos, num movimento que revisita o passado, expande as possibilidades de 
reinterpretação do presente, e ressignificação e construção do futuro da 
sociedade e das instituições político-jurídicas. 
Atendendo ao generoso e honroso convite para prefaciar este livro, 
Enegrecendo o Direito: questões raciais no Brasil, formulado pelas autoras-
-pesquisadoras Camila Garcêz Leal e Érika Costa da Silva, representan-
do um conjunto de acadêmicos negros do Programa de Pós-graduação 
em Direito da Universidade Federal da Bahia, com o aval do estimado 
colega e amigo, professor doutor Júlio César de Sá da Rocha, coordena-
dor da obra, apresento, a seguir, uma sucinta e despretensiosa cartogra-
fia delineando aspectos gerais das várias empreitadas práticas e teóricas 
relacionadas ao enegrecimento do Direito brasileiro. Longe de qualquer 
pretensão de esgotar o cenário e apontar todas as iniciativas, vislumbro, 
tão somente, apresentar um quadro geral que possibilite avançar na ex-
ploração das ricas possibilidades que a temática comporta, assumindo os 
riscos pelas inevitáveis simplificações e omissões que o empreendimento 
revelará. Trata-se de uma espécie de mapeamento do rico processo de 
contribuições ao Direitodesenvolvido pela trajetória negra no Brasil, que 
precede e responsabiliza os investimentos e iniciativas atuais e seus esfor-
ços de produção intelectual voltado para o diálogo com as relações raciais 
na esfera jurídica contemporânea. Afinal, como dizem as mulheres negras 
em sua trajetória de organizações insurgentes, “Nossos passos vêm de 
longe”! (WERNECK, 2000; IRACI, 2019).
Neste prefácio, serão sumariadas algumas iniciativas referentes ao 
enegrecimento do direito no Brasil, num movimento meramente ilustra-
tivo e provocador de autorreflexão do campo jurídico e da cultura jurídica 
hegemônica, tensionando seus dogmas, sua hermenêutica e sua gramática 
ilusória de autossuficiência e descolamento das relações raciais constituti-
vas de nossa historicidade, no passado e no presente. Assim, este resgate 
reconecta o passado e o presente, num diálogo que, de certa forma, se con-
funde com a própria história da presença negra no turbulento processo de 
formação social e institucional, desde a colonização até o tempo presente.
Seus vestígios mais remotos se fazem presentes desde o início do pro-
cesso de resistência negra e desafio ao projeto de sociedade e país de-
senvolvido em torno dos pilares do genocídio (NASCIMENTO, 2016; 
 Enegrecendo o Direito | 15 
FLAUZINA, 2008) indígena e negro, do terror racial institucionaliza-
do, do apartheid normalizado e do supremacismo branco naturalizado, os 
quais atravessam a formação social e institucional do Brasil e vertebram 
as relações sociorraciais nas esferas privadas e públicas. Somente o pac-
to narcísico da branquitude (BENTO, 2002) possibilitou as tentativas de 
apagamento e desconsideração de evidências salientes, que irreversivel-
mente agora começam a ser resgatadas e reconhecidas. Uma firme aliança 
intrarracial estabeleceu o compartilhamento de privilégios por todos os 
estratos brancos da sociedade, independendo de outras clivagens distin-
tivas,7 lastreada na moeda do silêncio e do silenciamento de quaisquer 
vozes e intervenções dissidentes. Cabe bem, para caracterizar esta incrível 
situação, o trecho da canção de Caetano Veloso, “Um índio”, que diz: “E 
aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos 
não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / 
Quando terá sido o óbvio.”
A resistência indígena, o quilombismo e a insurreição individual 
inauguraram, no período colonial, a longeva trajetória de “desobediên-
cia civil” e disputa intuitiva pela juridicidade em sua inseparável conexão 
com justiça, além de fomentar a emergência de juridicidades alternativas 
ou reativas, marcando tanto experiências ético-políticas utópicas e contra 
hegemônicas de emancipação, quanto a produção jurídico-normativa con-
duzida pelos aparatos estatais e instrumentalizadora do empreendimento 
racista-colonial-capitalista desenvolvido no que chamamos de Brasil, des-
de a invasão de Pindorama, em 1500. 
Não se trata de metáfora ou “licença poética”. Somente o racismo 
epistêmico (DÍAZ, 2011) e seu produto dileto, o epistemicídio (CARNEI-
RO, 2005), podem autorizar uma abordagem histórica que silencia e busca 
apagar o protagonismo indígena e negro e suas permanentes tensões e 
disputas em todos os momentos do desenvolvimento social e institucional 
do Brasil, desde a época colonial. As relações jurídicas que pretendiam 
estruturar a suposta legitimidade da escravização e desumanização dos 
7 “Outra característica do refinado apartheid brasileiro foi a transferência, pelo Estado 
e pelas elites brancas, de parte da responsabilidade pela opressão racial para todos os 
estratos brancos da sociedade. Através de uma espécie de ‘terceirização’ da implementação 
da exclusão racista, desenvolveram-se políticas formais e informais de privilégios para 
os brancos, independentemente de origem, situação socioeconômica, crença religiosa, 
sexo ou preferência político-ideológica, que consolidaram uma inabalável aliança que 
isolou e implementou derrotas parciais ao povo negro nas tentativas de enfrentamento 
do aparato racista”. (VIDA, 2004).
16 | Prefácio - Samuel Vida
africanos e indígenas e seus descendentes se constituíram e se desenvol-
veram, desde seus fundamentos teoréticos da filosofia política e jurídica 
modernas, tensionadas pelas relações raciais e seus conflitos. Tome-se, 
como exemplo da dimensão teórica do fenômeno, o clássico debate sobre 
as guerras justas, seus desdobramentos na edificação do Estado Moderno 
e sua expansão colonial, assim como a configuração da arquitetura políti-
co-jurídica do Direito Internacional Público e Privado. Para além dos fun-
damentos teóricos (e teológicos) que oferecem uma “racionalidade racia-
lizada”, a empreitada colonial se move como engrenagem racionalizadora 
de ordem prática, operacionalizando a montagem e o desenvolvimento do 
capitalismo a partir da gestão jurídico-política do terror racial e do geno-
cídio, como condições de possibilidade para a edificação da Modernidade. 
Como exemplo desta segunda dimensão das tensões das relações raciais, 
vale a pena a releitura do Regimento do Governador-Geral, formulação 
normativa metropolitana do Estado Colonial Português, investindo Tomé 
de Souza na condição de preposto e comandante militar das incursões 
genocidas contra os povos ameríndios que ocupavam Kirymurê8 e amea-
çavam, com sua brava resistência, a ocupação permanente da região da 
Baía de Todos os Santos. A fundação de Salvador e seu desenvolvimen-
to histórico são indissociáveis do plano de tensões e disputas raciais que 
vertebram toda a história do país. Gilberto Gil, na canção “Toda menina 
baiana”, nos indica esta dimensão inafastável, quando diz: “Que Deus en-
tendeu de dar a primazia / pro bem, pro mal, primeiro chão da Bahia / pri-
meira missa, primeiro índio abatido também / que Deus deu / que Deus 
entendeu de dar toda magia / pro bem, pro mal, primeiro chão da Bahia / 
primeiro carnaval, primeiro Pelourinho também / que Deus deu”...
Mesmo na vigência da subalternidade, após a crescente consolidação 
da empreitada racista-colonial, a trajetória de resistência desenvolvida 
pelos indígenas e africanos e seus descendentes escravizados, desde os 
albores do século XVI, prosseguiu se infiltrando nas esferas das disputas 
político-jurídicas, deixando legados significativos para a sociedade e cum-
prindo papel constitutivo da juridicidade estatal. Aqui, impõe-se um “des-
locamento epistemológico” que possibilite a problematização e superação 
das formas de abordagem historiográficas que silenciam os subalterniza-
dos, reduzindo a narrativa histórica à celebração do poder público e seus 
triunfos e demiurgos, bem ao gosto da tradição juridicista capturada pelo 
estatalismo, afeita ao reducionismo do fenômeno jurídico ao fetiche da 
8 Nome originário da região batizada como Baía de Todos os Santos pelos invasores.
 Enegrecendo o Direito | 17 
norma formal, supostamente formulada pela razão e seus manejos ins-
titucionalizados pelos “sacerdotes” do direito estatal. Também se impõe 
a superação de uma matriz epistemológica supostamente voltada para a 
história dos oprimidos, quase sempre reduzindo-a aos esquemas eurocên-
tricos de inteligibilidade exclusiva dos recortes economicistas que sobre-
determinam as complexas relações sociais a meros reflexos das infraes-
truturas produtivas, favorecendo as mistificações da luta política reduzida 
às insurgências revolucionárias deliberadamente anti-estruturais e a um 
heroísmo reducionista e desumanizante, minimizando, desqualificando 
ou desconsiderando a atuação político-jurídica e seus ricos significados 
para a resistência negra, bem como os impactos na institucionalidade e 
os deslocamentos nesta produzidos pelo uso, apropriação e produção de 
juridicidades.
O quilombismo (NASCIMENTO, 1980) sempre representou um in-
solente desafio político às pretensões racistas-coloniais e ao Estado Na-cional supremacista branco, tendo suas variadas expressões e formas or-
ganizacionais produzido, pelo menos, quatro relevantes consequências 
jurídicas: a afirmação da liberdade como um direito construído pela luta 
insurgente que implodia, ainda que momentaneamente, a legalidade racis-
ta escravocrata e os instrumentos e instituições estatais que pretendiam 
capturar e monopolizar a juridicidade; a produção coletiva de juridicidades 
comunitárias alternativas, com graus variáveis de sofisticação institucio-
nal e normativa, como pode ser observado na experiência da República de 
Palmares; a produção de normas jurídicas interculturais, intercomunitá-
rias e interinstitucionais mediando a juridicidade colonial instituída e re-
presentações de juridicidades instituintes das comunidades quilombolas, 
das quais o exemplo mais emblemático se apresenta no “Tratado” firmado 
entre Palmares e a Coroa Portuguesa, estabelecendo a paz; a produção de 
normas jurídicas coloniais repressivas como resposta institucionalizada 
das frustradas tentativas de eliminação do quilombismo, das quais sobres-
sai a norma do Conselho Ultramarino que “positiva” o conceito de qui-
lombo no ordenamento jurídico colonial, de forma suficientemente ampla 
para evidenciar a amplitude do movimento quilombista, a mobilidade e 
pluralidade morfológica e situacional do fenômeno e os incômodos e ins-
tabilizações provocados na ordem jurídico-política escravista.
As insurreições urbanas e rurais, as práticas coletivas de transgressão 
e manutenção de legados civilizatórios comunitários, a exemplo da reli-
giosidade negra, a rebelião individual de homens e mulheres escravizados, 
18 | Prefácio - Samuel Vida
assim como as micro transgressões disseminadas nas variadas práticas 
insurgentes, também deixaram importantes marcas e implicações nas re-
lações jurídicas, seja na esfera difusa, implicando o desenvolvimento de 
uma complexa e espessa teia de normatividades direcionadas ao controle 
social, criminalização e repressão às movimentações e práticas sociais das 
pessoas escravizadas; seja na esfera da introdução de contradições lógico-
-formais nas pretensões de coerência e integridade do ordenamento jurí-
dico colonial e pós-colonial, a partir da independência. Aqui, talvez a mais 
significativa dessas contradições se inscreveu na solução esquizofrênica 
que negava personalidade jurídica ao escravizado na esfera dos direitos 
civis e políticos, ao tempo em que admitia a personalidade jurídica para 
figurar como réu na esfera do direito penal. Uma outra repercussão de 
extrema importância para a compreensão da cultura jurídica nacional se 
expressou na escandalosa introdução da legislação simbólica ou “legisla-
ção-álibi” (NEVES, 2007), meramente protocolar e dirigida ao atendimen-
to de interesses e razões políticas circunstancialmente inescusáveis, sem 
qualquer pretensão de efetividade ou aplicabilidade. O caso mais notório 
é o da Lei Diogo Feijó, adotada em 1831, criminalizando o tráfico escra-
vista, que de tão desconsiderada pela institucionalidade jurídico-política e 
seus sacerdotes, mereceu o jocoso epíteto de “Lei pra inglês ver”! Por fim, 
um outro exemplo emblemático pode ser extraído do medo do Haiti, for-
temente presente no processo constituinte inaugurador do ordenamento 
constitucional, resgatado com maestria pela pesquisa de Marcos Queiroz 
(2016). O fantasma do Haiti vai atravessar todo o século XIX, fortalecido 
pela onda de assombro pós-Revolta Malê, em 1835, ocasião em que, pela 
primeira vez, tivemos a supressão formal de direitos constitucionais como 
resposta da razão de estado racializada. 
Durante o desenvolvimento das instituições e cultura jurídica do Es-
tado Nacional, a partir de 1822, as tensões e movimentações das confliti-
vas relações raciais se agudizaram e ganharam novos contornos e instru-
mentos. Ao precedente inaugurado por Esperança Garcia que, em 1770, 
em Oeiras, no Piauí, apresenta a primeira petição reclamando direitos, 
formulada por uma pessoa escravizada, consagrando-se como a primeira 
advogada brasileira, somam-se inúmeras iniciativas de “ações civis de li-
berdade”, colocando pessoas escravizadas como sujeitos processuais que 
apresentam suas demandas por direitos e suas interpretações da juridi-
cidade no seio das instituições jurídico-políticas estatais. Pelo seu papel 
destacado na luta pelo acesso e uso do direito formal para a afirmação da 
 Enegrecendo o Direito | 19 
cidadania negra, Luiz Gama desponta como o mais importante jurista 
brasileiro do século XIX, deixando um imponente legado na advocacia e 
na teorização sobre o direito e o judiciário. 
Nas primeiras décadas do século XX, merecem destaque a intensa 
movimentação associativista e reivindicativa da comunidade negra, cul-
minando com uma prolífica Imprensa Negra que buscava exercer o direi-
to à informação e livre expressão, denunciando as desigualdades raciais 
e apresentando agendas reivindicativas para o Estado e a sociedade, bem 
como a organização política da Frente Negra Brasileira como um promis-
sor partido político, que teve sua trajetória interrompida pelo autoritaris-
mo do Estado Novo. Na luta por liberdade religiosa para as religiões de 
matrizes africanas, entre as décadas de 1920 e 1930, desenvolveu-se mais 
um importante capítulo do Constitucionalismo Negro (VIDA, 2018), lide-
rado pelo povo de santo como Sujeito Constitucional Insurgente (VIDA, 
2018). As lutas e mobilizações pela descriminalização da capoeira, do sam-
ba e de outras manifestações culturais negras, as iniciativas associativistas 
das trabalhadoras domésticas, combinadas com reivindicações de direitos 
e políticas públicas, também encorparam a experiência constitucionalis-
ta negra e redundaram numa histórica atuação na Constituinte de 1945, 
mediante a apresentação de proposições formais antirracistas para a ela-
boração constitucional, através da Convenção Nacional do Negro, sob a 
liderança de Abdias do Nascimento.
No período nefasto da ditadura militar, a partir de 1964, o protago-
nismo jurídico-político negro se ampliou para outras formas associati-
vas, como a formação dos Blocos Afro, em Salvador, e o revolucionário 
processo de reafricanização do carnaval (RISÉRIO, 1981); as tentativas 
de retomada do controle das Escolas de Samba (CANDEIA; ISNARD, 
1978), no Rio de Janeiro; um ensaio de ocupação de espaços acadêmicos 
universitários, especialmente por articulações negras estudantis e alguns 
intelectuais negros e aliados; a rearticulação de organizações políticas do 
Movimento Negro, a exemplo do Grupo Palmares, em Porto Alegre, e da 
aglutinação nacional de várias iniciativas na fundação do Movimento Ne-
gro Unificado, em 1978. Convém destacar que a pauta do Movimento Ne-
gro reorganizado durante a ditadura militar incluía tanto reivindicação de 
direitos sociais e culturais, quanto direitos civis e políticos diversos, como 
direito ao voto para analfabetos, criminalização da tortura, ampliação de-
finitiva do direito à liberdade religiosa, criminalização do racismo etc.
20 | Prefácio - Samuel Vida
Esse ciclo de mobilizações e intensa atuação político-jurídica do Mo-
vimento Negro redundou numa vigorosa participação no processo cons-
tituinte desencadeado com o fim da ditadura militar, atualizando e forta-
lecendo a trajetória do Constitucionalismo Negro, produzindo a consti-
tucionalização do antirracismo na CF de 1988, através da construção de 
um microssistema constitucional antirracista9 que atravessa transversal-
mente a Constituição Federal de 1988, implicando consequências norma-
tivas e hermenêuticas significativas para o constitucionalismo brasileiro. 
Numa síntese apertada, o microssistema antirracista se delineia desde o 
preâmbulo, passando pelos objetivos da República e suas prescrições de 
combate às desigualdades, vinculantes da ação estatal e de suas políticas 
públicas, atingindo o plano das relações internacionais, maximizando o 
repúdioao racismo ao equipará-lo ao terrorismo, ampliando os direitos 
e garantias fundamentais, com a supressão das restrições à liberdade re-
ligiosa, a criminalização do racismo e a eliminação da prisão arbitrária e 
sem fundamento constitucional, incorporando a agenda antidiscriminató-
ria na esfera do trabalho, inclusive com a constitucionalização do traba-
lho doméstico, reconhecendo o pluralismo étnico e cultural da formação 
social, validando o patrimônio cultural afro-brasileiro, indicando a inclu-
são da diversidade na educação e assegurando os direitos territoriais das 
comunidades quilombolas.
As mobilizações do Constitucionalismo Negro também impactaram 
os processos constituintes estaduais, a exemplo das preciosas contribui-
ções apresentadas à Assembleia Constituinte Baiana pelo Movimento Ne-
gro e incorporadas à Constituição do Estado da Bahia, com inovações 
expressivas, como a estipulação de cotas raciais para a publicidade, um 
conjunto de deveres e responsabilidades para o Estado diante das mani-
festações de religiosidade negra, uma ousada normatização da titulação 
dos territórios quilombolas, dentre outras conquistas.
Um capítulo especial dessas movimentações estratégicas do Movi-
mento Negro contemporâneo, com impacto na esfera jurídico-política, 
vem sendo desenvolvido pela articulação do Movimento de Mulheres Ne-
9 “Através de poucos, mas valorosos constituintes, como Benedita da Silva e Carlos 
Alberto Oliveira, Caó, fizeram ressoar a voz de milhões de negros e negras, inscrevendo 
na Constituição Federal promulgada em 1988, um ‘sistema normativo antirracista’ – que 
carece ser melhor considerado no âmbito jurídico-político-institucional – que guarda 
relação de articulação e complementação com o projeto de construção de uma sociedade 
democrática e de um Estado Democrático de Direito, devendo pautar a ação estatal, 
traduzindo-se em iniciativas governamentais e administrativas” (VIDA, 2004).
 Enegrecendo o Direito | 21 
gras e suas pautas disruptivas que provocam reorientação de rotas para 
o conjunto da luta negra, das formas organizacionais aos programas de 
ação, ampliando e enriquecendo o repertório de reivindicações por direi-
tos das comunidades negras em todos os domínios da vida social e fortale-
cendo um perfil de liderança institucional, bem exemplificado pela figura 
pública de Marielle Franco. Neste sentido, o assassinato de Marielle Fran-
co é revelador do desconforto que esse perfil de liderança provoca junto às 
elites brancas e seu imaginário supremacista, mobilizando o mais abjeto 
ódio racial, pois significa a subversão do papel extremo da subalternidade 
racial na arquitetura do edifício da supremacia racial brasileira, represen-
tado pela mulher negra desumanizada e confinada no mundo do trabalho 
servil e da coisificação sexual. A potência revolucionária do protagonismo 
interrompido de Marielle Franco maximizou a trajetória de insurgência 
de mulheres negras do passado, como Zeferina do Quilombo do Urubu, 
Tereza do Quariterê, Esperança Garcia, Maria Firmina Reis, Mãe Aninha 
Obá Biyi, Mãe Senhora Oxum Miwá, dentre tantas outras espalhadas pelo 
país, e de mulheres negras contemporâneas, como Stella de Oxóssi, Lélia 
González, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Benedita da Silva, Francis-
ca Trindade, Sueli Carneiro, Ana Célia Silva, Valdina Pinto, Valnízia de 
Ayrá, Conceição Evaristo e inumeráveis outras lideranças que são as mais 
legítimas porta-vozes das melhores tradições e saberes da resistência ne-
gra na diáspora.
A partir da ordem constitucional inaugurada em 1988, a ação políti-
co-jurídica da comunidade negra por intermédio do Movimento Negro 
desenvolveu-se na direção de duas prioridades: a institucionalização de 
órgãos e políticas dirigidas à promoção da equidade racial, a exemplo da 
criação da Fundação Cultural Palmares, criada em meados dos anos 1980, 
na efervescência das movimentações que deram início à transição demo-
crática na fase pré constituinte, e a SEPIR, criada no primeiro governo 
Lula, no embalo de novas expectativas de democratização e retomada da 
agenda inconclusa que se arrastava na longa e lenta transição iniciada 
com o fim do regime militar, e a densificação normativa infraconstitu-
cional através de um conjunto de normas jurídicas instrumentalizadoras 
da agenda constitucional antirracista. São exemplos desta segunda prio-
ridade: a proposição e aprovação da Lei n. 10.639/2003, estabelecendo a 
obrigatoriedade do ensino da história da África e do negro; o Decreto n. 
4.887/2003, estabelecendo o regramento da titulação dos territórios qui-
lombolas; a Lei n. 12.288/2010 – Estatuto da Igualdade Racial –; a Lei n. 
22 | Prefácio - Samuel Vida
12.711/2012, instituindo a obrigatoriedade de cotas nas universidades; a 
Lei n. 12.990/2014, estabelecendo cotas no serviço público federal. 
Essa produção legislativa teve sua origem nas agendas do Movimen-
to Negro, juridicizando formalmente, em normas estatais, uma vasta pro-
dução jurídica insurgente instituinte de novos direitos, contando com a 
intensa participação de lideranças negras nos processos de formulação 
dos projetos de lei e substitutivos, bem como na tramitação e aprovação 
no interior do Poder Legislativo.
Essa estratégia também se capilarizou para as demais entidades fe-
derativas, produzindo relevantes instrumentos normativos em Estados e 
municípios brasileiros. Merece registro o esforço produzido pelo Movi-
mento Negro baiano, através da campanha “Na Fé e na Raça”, realizada 
em 2005, sob a coordenação do AGANJU,10 que redundou na formulação e 
posterior aprovação do Estatuto Estadual da Igualdade Racial e Combate 
à Intolerância Religiosa.11 Na mesma trilha, também merece registro a 
iniciativa desenvolvida junto à SEMUR,12 durante a gestão do Secretário 
Gilmar Santiago, elaborada por Samuel Vida, na condição de consultor, 
que formulou as diretrizes para a elaboração do Estatuto Municipal da 
Igualdade Racial e Combate à Intolerância Religiosa (VIDA, 2006).
Uma outra importante trincheira do Movimento Negro na seara do 
direito desenvolveu-se a partir da Constituição de 1988 e da Lei Caó, atra-
vés da estruturação de assessorias jurídicas voltadas para a busca de efe-
tividade da aplicação da legislação antirracista. Em todo o país, diversas 
organizações negras13 mobilizaram advogados e advogadas engajados no 
atendimento às vítimas de discriminação racial e religiosa, desenvolven-
do, também, iniciativas importantes de diálogo e pressão às instituições 
jurídicas, como o Ministério Público, as Defensorias e instâncias judi-
ciais. Desta experiência rica de atuação jurídica, podem ser destacadas 
duas iniciativas marcantes: em Salvador, após um seminário organizado 
em parceria entre membros do Ministério Público Estadual e organiza-
ções do Movimento Negro, foi criada formalmente a primeira Promotoria 
10 Afro-gabinete de Articulação Institucional e Jurídica, organização do Movimento 
Negro, criado em 2001 e dedicado à intervenção jurídica.
11 Campanha “Na fé e na raça”, coordenada por Samuel Vida.
12 Secretaria Municipal da Reparação.
13 Desde o final dos anos 1980, surgiram assessorias jurídicas em organizações negras, 
como Olodum, Níger Okan, Disque-Racismo, na Bahia; CEAP, no Rio de Janeiro; 
GELEDÉS e CEERT, em São Paulo; NEN, em Florianópolis; Djumbay, em Recife; 
Escritório Nacional Zumbi dos Palmares, em Brasília.
 Enegrecendo o Direito | 23 
de Combate ao Racismo do Brasil, oportunizando uma intensificação das 
ações institucionais de uso do direito. A outra experiência marcante se 
desenvolveu através da organização da Rede Nacional de Advogados e 
Advogadas Antirracistas, iniciada em 1998 e nucleada pelo Escritório Na-
cional Zumbi dos Palmares (ENZP), com presença em quase duas dezenas 
de estados da Federação, cumprindo um papel muito ativo nas mobiliza-
ções para a participação brasileira na III ConferênciaMundial Contra o 
Racismo, organizada pela ONU e realizada em 2001, em Durban, África 
do Sul, tendo impulsionado as agendas voltadas para a adoção das ações 
afirmativas no Brasil. 
Nos últimos vinte anos, o protagonismo jurídico negro experimentou 
uma nova dimensão de alargamento e avanço nos debates e decisões ju-
risprudenciais do Supremo Tribunal Federal, nas duas primeiras décadas 
deste século, expandindo o Constitucionalismo Negro para a jurisprudên-
cia constitucional brasileira. Essa movimentação superou definitivamente 
a armadilha do confinamento da abordagem jurídica sobre o racismo na 
esfera do Direito Penal e suas aporias e impossibilidades. A previsível rea-
tividade do supremacismo branco, através de suas retóricas de negação do 
racismo e seus instrumentos institucionais de manutenção do status quo, 
conduziram o debate jurídico sobre a temática do racismo e das políticas 
públicas de ações afirmativas para a contestação da constitucionalidade 
junto ao STF. Em quatro casos emblemáticos, a jurisprudência do STF 
validou e consolidou a constitucionalidade da experiência de juridicização 
da pauta antirracista, acolhendo, em seus julgados, importantes aspectos 
das formulações jurídicas insurgentes produzidas pelo Movimento Ne-
gro, reconhecendo-o como Sujeito Constitucional Insurgente.
No primeiro caso, em 2004, a partir de episódio envolvendo a publica-
ção de material negacionista antissemita, conhecido como Caso Elwanger, 
em decisão histórica, a Suprema Corte consolidou interpretação acerca 
do caráter e formas de manifestação do racismo com razoável consonân-
cia com o entendimento sustentado pelo Movimento Negro e com a pro-
dução da pesquisa acadêmica especializada na temática, pondo um freio 
numa movimentação insidiosa que buscava esvaziar hermeneuticamente 
o alcance da normativa antirracista.
No segundo caso, em 2012, em julgamento da ADPF n. 186, inter-
posta pelo DEM, questionando a constitucionalidade das cotas raciais nas 
universidades, o STF reafirmou a constitucionalidade, recusando a inter-
pretação que sugere a contrariedade ao princípio da igualdade, firmando 
24 | Prefácio - Samuel Vida
as ações afirmativas como modalidade constitucional de políticas de cor-
reção de desigualdades raciais.
No terceiro caso, em 2018, a partir de uma ADI interposta pelo PFL/
DEM, questionando a constitucionalidade do decreto regulamentador da 
titulação dos territórios quilombolas, tivemos nova manifestação do STF 
razoável e consoante a interpretação constitucional adotada pelo Poder 
Executivo, em diálogo com as formulações produzidas pelo movimento 
quilombola e respaldado pela produção intelectual, acadêmica e não aca-
dêmica, sobre o fenômeno dos quilombos no presente.
No quarto caso, em 2019, no julgamento do Recurso Extraordiná-
rio n. 494601, interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, 
questionando a constitucionalidade do sacrifício de animais em rituais das 
religiões de matrizes africanas, o STF rejeitou a tese da inconstituciona-
lidade e reconheceu a histórica discriminação dirigida às religiões negras, 
assegurando-lhes a preservação dos ritos.
Por fim, os movimentos mais recentes do protagonismo jurídico ne-
gro se desenvolvem nos espaços jurídicos universitários recentemente 
ocupados, nas atividades de extensão e pesquisa desenvolvidas e na inci-
piente atuação no interior de instituições jurídicas na advocacia, Ministé-
rio Público, Defensorias Públicas e Judiciario.
Na esfera acadêmica, uma pesquisa produzida no Mestrado em Di-
reito da UFSC, em 1989, por Dora Lúcia de Lima Bertúlio, intitulada 
“Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica ao Racismo”, repre-
sentou um marco divisor nessa trajetória multifacetada, inaugurando um 
novo ciclo de sistematização e produção de conhecimento jurídico a partir 
de uma concepção inovadora epistemologicamente no interior da univer-
sidade brasileira. A pesquisa de Dora Lúcia de Lima Bertúlio introduz 
algumas significativas novidades, a exemplo de uma articulação entre a 
experiência militante organizada no Movimento Negro,14 um sofisticado 
deslocamento epistemológico operado pela incorporação de referenciais 
teóricos da tradição intelectual negra pan-africanista e a ousadia de pro-
por uma ampla e generalizada avaliação da experiência de produção de 
conhecimento jurídico à luz das relações raciais. A partir da obra de Dora 
Bertúlio, o debate sobre direito e racismo não cabe mais no estreito nicho 
do Direito Penal, tampouco persistem ilusões acerca da pretensa neutra-
14 A intelectual-pesquisadora teve participação orgânica no NEN, em SC, e no Jornal 
Maioria Falante, editado por Ele Semog e outros intelectuais negros vinculados ao 
Movimento Negro contemporâneo.
 Enegrecendo o Direito | 25 
lidade axiológica da dogmática jurídica ou de seu aparato instrumental 
materializado na normatividade em todos os domínios e ramos da juridi-
cidade.
Desde então, surgiram algumas iniciativas inspiradas pela pesquisa 
original e seminal desenvolvida por Dora Bertúlio, destacando-se a cria-
ção, em outubro de 2003, na Faculdade de Direito da UFBA, do Pro-
grama Direito e Relações Raciais (PDRR),15 organizado como grupo de 
pesquisa e extensão que agrupa professores e estudantes em torno de uma 
variada agenda de intervenções, reflexões e formação teórica e produção 
de pesquisas no interior do campo jurídico. Ao longo de 17 anos de fun-
cionamento, o PDRR desenvolveu parcerias com diversas organizações 
do Movimento Negro em torno de temas sensíveis e estratégicos para 
a agenda jurídica negra, a exemplo da assessoria jurídica a comunida-
des quilombolas, do enfrentamento ao racismo religioso, da introdução 
da abordagem sobre racismo ambiental no campo jurídico brasileiro, do 
desenvolvimento de pesquisa sobre o direito à literatura negra, direito 
à cidade e relações raciais, constitucionalismo negro, racismo fundiário, 
trabalho doméstico e relações raciais, militarização e violência policial em 
territórios negros, programas de TV, racismo e criminalização negra, ge-
nocídio negro, dentre várias temáticas.
O campo de intervenção e pesquisa jurídica denominado Direito e Re-
lações Raciais (VIDA, 2017) vem sendo construído por muitas mãos, em 
diversas frentes e por diversos caminhos. Implica uma rasura nas narrati-
vas e teorizações sobre a experiência jurídica moderna, seus protagonis-
tas, suas instituições e sua história. Pretende habilitar outras epistemes, 
15 Trecho da carta de apresentação do PDRR, disponível em www.pdrr.ufba.br: “A 
reflexão em torno do Direito e das relações raciais se constitui num campo novo na 
abordagem acerca do racismo e suas implicações na sociedade brasileira. A ausência 
de preocupação acadêmica com o assunto reflete o descaso político e a amplitude do 
mito da democracia racial brasileira. Coloca-se, hoje, como um desafio inadiável para 
a Universidade Pública brasileira a construção de espaços teóricos e práticos de 
articulação do acúmulo experimentado no campo dos movimentos negros e da tradição 
jurídico-institucional de resolução dos conflitos no interior da sociedade. Cumprindo 
esse papel, o PROGRAMA DIREITO E RELAÇÕES RACIAIS – PDRR, vinculado 
ao Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade Federal 
da Bahia, pretende ser um instrumento de reflexão e intervenção na realidade das 
comunidades negras, pelas comunidades negras, dentro e fora da Academia, para tanto 
objetivamos parcerias com as organizações dos movimentos negros, a exemplo da 
recém-firmada com a ACBANTU. Para o desenvolvimento de iniciativas propiciatórias à 
reversão do apartheid brasileiro, pretende-se utilizar dois fundamentais instrumentos de 
intervenção na vida social e econômica do país, o Direito e o Estado.”
26 | Prefácio - Samuel Vida
práticas jurídicas e horizontes epistemológicos e metodológicos adequa-
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 29 
1
A QUESTÃO QUILOMBOLA – ENTRE VULNERABILIDAE 
E RESISTÊNCIA: BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA 
DO JULGAMENTO DA ADI N. 3.239
Misael Neto Bispo da França16
“Na verdade, se não nos deixassem tocar os batuques 
Nós, os pretos, faríamos do corpo um tambor 
Ou, mais grave ainda 
Percutiríamos com os pés sobre a superfície da Terra 
E, assim, abrir-se-iam brechas no mundo inteiro”. 
(COUTO, 2016).
Em Direito, é comum tratar-se da questão racial sob o enfoque do 
sistema penal, como se essa fosse a única forma de abordagem do tema. 
Com efeito, uma das características da falência da pena e seus consectá-
rios é a seletividade do sistema do qual faz parte, que privilegia as classes 
hegemônicas, criminalizando as castas mais vulneráveis da sociedade. No 
Brasil, os preteridos provêm da juventude pobre e negra, cujo horizonte, 
cada vez mais próximo, tem sido a cela ou a vala.
Se, por um lado, a associação entre negritude e crime desperta para 
a necessidade de um debate a respeito da seletividade do sistema de jus-
tiça criminal pátrio, por outro acaba por gerar uma tendência ao recru-
descimento dessa mesma seletividade. É que o imaginário construído na 
sociedade brasileira, muito por conta da colonização, associa a negritude 
à delinquência, formando a base das estruturas cognitivas que movem 
as agências formais de controle – polícia, Poder Judiciário e Ministério 
Público.
16 Doutorando em Direito (UFBA). Professor efetivo de Processo Penal e Prática 
Jurídica Penal (UFBA). Analista do MPU/Direito.
30 | Misael Neto Bispo da França
Daí que, para romper estruturas cognitivas que tais, faz-se relevante 
estudar a questão racial sob o prisma de outras esferas do saber jurídico, 
para além das ciências criminais. Há, por exemplo, que se explorar a racia-
lização das relações trabalhistas, para montar uma estatística do racismo 
no ambiente laboral. Há que se analisar a presençade negros e negras no 
Poder Judiciário e no Ministério Público, para testar a idoneidade da polí-
tica de cotas, bem como para verificar o reflexo de tal presença na atuação 
dos respectivos órgãos. Também, faz-se necessário estudar o superendivi-
damento da negritude no contexto das relações de consumo, dentre tan-
tos outros enfoques que a racialização, ínsita à formação do país, permite.
A proposta do presente trabalho passa pela questão fundiária, verti-
calizada para abordar os direitos e vicissitudes por que passam os rema-
nescentes quilombolas no Brasil dos últimos anos, demonstrando como a 
referida comunidade assume perfil ambivalente, que ora expressa vulne-
rabilidade, ora resistência. 
Trata-se de um povo que combateu, por décadas, as investidas de in-
vasores europeus, rompendo os grilhões da escravidão e elevando o espíri-
to identitário que, ainda hoje, serve-lhe de guia. Sucede que a necessidade 
de resistência foi e é, para as comunidades quilombolas, necessidade de 
reclusão, de ocupação de espaços que oscilam entre o sagrado e o clandes-
tino, suscetíveis à violência da disputa por terras agrícolas e do racismo 
ambiental.
Nesse panorama, põe-se o problema: o julgamento da ADI n. 3.239 
pode ser considerado um divisor de águas em benefício da questão qui-
lombola? 
Tal como a ambivalência que marca o perfil do povo em tela, esse 
julgamento pode, de fato, ser considerado um marco na defesa do seu pa-
trimônio e, por via de consequência, um tributo à sua memória, costumes 
e origens. Sob outro ângulo, considerados os entraves políticos e admi-
nistrativos que dificultam a efetivação da justiça fundiária no Brasil, o 
julgamento da ADI n. 3.239 pode consistir em mais uma demonstração do 
caráter simbólico que ostenta a Constituição de 1988 e os diplomas legais 
devotos à sua axiologia.
A presente abordagem é robustecida com dados coletados do con-
texto sociopolítico nacional, bem como pela breve análise do processo de 
regularização fundiária das comunidades de Salinas da Margarida, São 
Tiago do Iguape e Rio dos Macacos, todas situadas no Estado da Bahia, 
visando a conferir ao tema um recorte mais nítido.
 Enegrecendo o Direito | 31 
1 ENTRE VULNERABILIDADE E RESISTÊNCIA
Menos no Direito, mais na Sociologia, têm-se constatado que a socie-
dade brasileira alicerçou-se em um estrutura heteropatriarcal que exala 
misoginia e racismo, na qual mulheres e negros ou, com maior exatidão, 
a mulher negra constitui, a um só tempo, a base explorada e oprimida e o 
ápice na escala das vulnerabilidades. No Brasil, é rica a coleção de violên-
cias que se abateram sobre o povo negro, de 1500 aos dias atuais, passando 
pela omissão do Estado no pós-“Abolição” da Escravatura, que contribuiu 
para o seu genocídio (NASCIMENTO, 2017).
No dizer de Carla Pimentel Águas, tratando dos caminhos para a 
emancipação social dos quilombos:
O sistema escravista foi um universo de silêncios. Por não existirem como 
pessoas, os povos escravizados também representaram, em grande medi-
da, uma ausência na história. De um lado do Atlântico, a invenção do afri-
cano selvagem – que ganhou grande impulso com as crônicas de viagens 
inglesas dos séculos XVIII-XIX – representou a África como um conti-
nente obscuro, uniforme e sem passado. (ÁGUAS 2013).
Tal ocorreu, apesar de o povo de África ter trazido, na mesma baga-
gem que o sofrimento, a riqueza dos seus costumes, que se disseminaram 
pelo país e resistiram à opressão da branquitude heteropatrial. Vulnerabi-
lidade e resistência como marcas de um mesmo povo.
Aqui, merece destaque a vulnerabilidade e a resistência dos negros 
remanescentes de quilombos espalhados pelo país. Vulneráveis por suas 
origens, sua cor e sua identidade. Vulneráveis, também, pelos espaços que 
ocupam, situados abaixo do campo de visão do Estado brasileiro, que in-
siste em negar a existência dessas comunidades, sem prejuízo de alguma 
boa intenção institucional em seu benefício.
Neste ponto, convém registrar importante contribuição da bioética a 
respeito do conceito de vulnerabilidade. Trata-se da susceptibilidade de 
alguém a ser ferido por outrem, de quem reclama uma postura respon-
sável diante do sujeito vulnerável. Vislumbra-se, nesta concepção, uma 
preocupação de fundo ético que diz respeito a um indivíduo ou a uma cole-
tividade, e que se vincula, ao fim, à realização da pessoa humana (ANJOS, 
2006).
Assim, a vunlerabilidade torna-se parceira da autonomia e aproxima 
a finitude humana da solidariedade entre os indivíduos. Ser vulnerável é, 
32 | Misael Neto Bispo da França
pois, característica da própria condição humana (ANJOS, 2006). Aduz-se, 
também na bioética, no sentido da existência de uma vinculação entre 
vulnerabilidade, autonomia e poder, na medida em que o reconhecimento 
da condição de vulnerável conduz (ou deve conduzir) ao exercício respon-
sável da autonomia, pautado no pleno respeito ao outro.
Em termos antropológicos, essa responsabilidade tende a desapare-
cer, diante do uso desmedido da autonomia que relativiza a vulnerabilida-
de alheia. Aqui reside uma importante chave de discussão para o presente 
trabalho: as elites governantes do país, no afã de manterem seus privilé-
gios e, assim, perpetuarem-se no poder, não enxergaram limites à sua au-
tonomia e agravaram a vulnerabilidade das comunidades remanescentes 
de quilombos, que amargam o alto custo da autoafirmação identitária.
Outro dado importante, quando se aborda a vulnerabilidade das co-
munidades remanescentes de quilombos no Brasil. De fato, o perfil desse 
povo revela, mesmo, uma ambivalência, na medida em que retira forças da 
sua própria fraqueza para, sendo vulnerável, resistir. Tratam-se de comu-
nidades que enfrentam os mais diversos matizes da discriminação institu-
cionalizada, com destaque para as mazelas do racismo ambiental. Zumbi e 
Dandara não conheceram a fraqueza e resistiram até o último grau da sua 
vulnerabilidade, fazendo de Palmares digno monumento da representati-
vidade para os seus descendentes.
No ponto, vale o registro das considerações de Milton Santos a res-
peito da “natureza do espaço”:
O investimento público pode aumentar em uma dada região, ao mesmo 
tempo em que os fluxos de mais-valia que vai permitir irão beneficiar a 
algumas firmas ou pessoas, que não são obrigatoriamente locais. Essa con-
tradição entre fluxo de investimentos públicos e fluxo de mais-valia consa-
gra a possibilidade de ver acrescida a dotação regional de capital constante 
ao mesmo tempo em que a sociedade local se descapitaliza. Da mesma 
forma, a vulnerabilidade ambiental pode aumentar com o crescimento eco-
nômico local. (SANTOS, 2006, p. 170).
Essa força, herança dos líderes aquilombados, corre nas veias dos 
seus remanescentes e lhes permite persistir na luta pelo reconhecimento 
do seu território e pela preservação dos seus costumes e de sua ancestrali-
dade. É o que lhes permite reivindicar, do Direito pátrio, a tutela dos seus 
direitos, alcançando alguma vitória, a partir de previsões constitucionais, 
como explanado no tópico seguinte.
 Enegrecendo o Direito | 33 
2 UM SOPRO DE ESPERANÇA PELA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS 
DOS REMANESCENTES DE QUILOMBOS
A Constituição Federal de 1988, a par de guindar a dignidade da pes-
soa humana ao status de fundamento da República, trouxe pulverizados, 
ao longo do seu texto, direitos fundamentais que visam a concretizar os 
valores que dimanam da concepção liberal clássica de pessoa, de fundo 
kantiano, com destaque para a promoção da igualdade material e a erradi-
cação da pobreza e da marginalização.
No concernente aos povos tradicionais, o Texto Magno proclama, 
entre os seus artigos 215 e 216-A, uma série de medidas tendentes à pre-
servação das suas manifestações culturais, valendo registrar a redação 
emblemática do §1º do artigo 215, segundo o qual “O Estado protegerá 
as manifestações das culturas populares,indígenas e afro-brasileiras, e das 
de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
Mais especificamente, quanto ao patrimônio das comunidades rema-
nescente de quilombos, a previsão do §5º do artigo 216 é no sentido de que 
“Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminis-
cências históricas dos antigos quilombos”.
Sobre a expressão “comunidade”, é interessante a abordagem dada 
por Ilka Boaventura Leite, como expressa o excerto a seguir:
As histórias se iniciam com um pequeno grupo familiar em busca 
de um lugar para viver: instalando-se em terras devolutas do Es-
tado, em áreas desvalorizadas ou inóspitas, próximas aos locais de 
trabalho, que são regularizadas pouco a pouco através da compra 
ou usucapião. O grupo cresce, torna-se uma família extensa ou vá-
rias delas vivendo como “uma comunidade”. Casa na periferia da 
cidade, perto do emprego ou lote no campo, roça para viver. Daí 
inicia-se o processo de expulsão. (LEITE, 199, p. 123).
Ocorre que a principal referência constitucional aos direitos dos po-
vos em tela, certamente, encontra-se no artigo 68 do ADCT, em razão da 
sua parca efetividade e da dificuldade que isso representa para o fim da 
sua marginalização e, por conseguinte, para a minoração da sua vulnera-
bilidade.
O dispositivo citado prevê que, “Aos remanescentes das comunidades 
dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a pro-
priedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. 
34 | Misael Neto Bispo da França
O texto econômico, composto por um único período e duas orações, não 
esconde a magnitude do comando nele contido, de grande valia para o 
reconhecimento dos povos em questão, como detentores das terras por 
eles ocupadas.
Tão emblemática quanto o sobredito comando foi a data da assinatura 
do Decreto n. 4.877, de 20 de novembro de 2003, dia criado para a reve-
rência à consciência negra no Brasil. Trata-se de decreto que, revogando 
o seu congênere de n. 3.912/200, regulamenta o processo de reconheci-
mento e demarcação de terras ocupadas por remanescentes de quilombos, 
para conferir efetividade ao artigo 68 do ADCT e regulamentar as Leis n. 
9.649/1988 e n. 7.668/1988.
A grandeza do decreto e a sua importância para as comunidades tra-
dicionais é notória, uma vez que, muito além de descrever o procedimento 
para a regularização fundiária, a norma enaltece o perfil identitário dos 
remanescentes quilombolas e a sua ancestralidade, consoante se depreen-
de do dispositivo a seguir transcrito:
Art. 2
o
 Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, 
para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de 
auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações ter-
ritoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada 
com a resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das 
comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da pró-
pria comunidade.
§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos 
quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, 
econômica e cultural.
§ 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consi-
deração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das 
comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada 
apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. (BRASIL, 
2003). (Grifos apostos).
Observa-se o cunho antipaternalista da norma, que reconhece aos re-
manescentes de quilombos o direito à sua autodefinição como tais, valo-
rizando sua autonomia perante o Estado. Tal observação vai ao encontro 
das considerações de Jurandir de Souza, segundo o qual:
 Enegrecendo o Direito | 35 
[...] quem constrói a identidade coletiva, e para que essa identidade é 
construída, é em grande medida, o conteúdo simbólico dessa identidade, 
bem como o seu significado para aqueles que com ela se identificam ou dela 
se excluem. (SOUZA, 2012, p. 16).
Destaca-se, também, a multicitada ambivalência que marca a trajetó-
ria desses povos no território nacional, uma vez que, nos termos do caput 
do dispositivo em tela, a presunção da ancestralidade negra para o reco-
nhecimento da comunidade relaciona-se com a resistência e a opressão 
histórica sofrida.
O Decreto n. 4.877/03 destaca-se, também, pelo seu caráter pluri-
focal, na medida em que impõe, a órgãos e entidades públicas diversas, 
notadamente ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária 
(INCRA) e à Fundação Palmares, a reunião de esforços no sentido de via-
bilizar a titulação das terras ocupadas pelos remanescentes quilombolas.
Nada obstante, o aludido decreto foi alvo da Ação Direta de Incons-
titucionalidade n. 3.239, ajuizada pelo então Partido da Frente Liberal, 
PFL (atual Democratas), no ano de 2004, logo após sua publicação, ques-
tionando-se, dentre outros pontos, o critério de autoatribuição para iden-
tificar os remanescentes dos quilombos e a caracterização das suas terras. 
A ADI foi julgada improcedente, por maioria de votos (oito votos a 
três), em fevereiro de 2018, reconhecendo-se a constitucionalidade do De-
creto n. 4.877/03 tal como publicado e garantindo-se, aos remanescentes 
quilombolas, o direito de propriedade sobre suas terras.
O relator, ministro Cezar Peluso, ficou vencido, tendo a ministra Rosa 
Weber aberto a divergência ao considerar que o art. 68 do ADCT é “nor-
ma definidora de direito fundamental de grupo étnico-racial minoritário, 
dotada, portanto, de eficácia plena e aplicação imediata, e assim exercitá-
vel, o direito subjetivo nela assegurado, independentemente de integra-
ção legislativa”. Quanto à opção pelo critério de autodefinição, a ministra 
considerou ter:
[...] a virtude de vincular a justiça socioeconômica reparadora, consisten-
te na formalização dos títulos de domínio às comunidades remanescentes 
dos quilombos, à valorização da específica relação territorial por eles de-
senvolvida, objeto da titulação, com a afirmação da sua identidade étnico-
-racial e da sua trajetória histórica própria.
O entendimento vitorioso no STF harmoniza-se com as diretrizes 
de órgãos e entidades públicas que, afinados com os valores preconizados 
36 | Misael Neto Bispo da França
pela CF/88, visam a tutela dos direitos das comunidades tradicionais no 
Brasil. Tal é o caso do Ministério Público da União que, por conduto da 
6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da Repúbli-
ca, tem-se dedicado à causa com destacado zelo. É o que se depreende da 
leitura do seu Enunciado n. 25, assim transcrito:
Os direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e outras comuni-
dades tradicionais têm fundamento constitucional (art. 215, art. 216 e art. 
231 da CF 1988; art. 68 ADCT/CF) e convencional (Convenção nº 169 da 
OIT). Em termos gerais, a presença desses povos e comunidades tradicio-
nais tem sido fator de contribuição para a proteção do meio ambiente. Nos 
casos de eventual colisão, as categorias da Lei 9.985 não podem se sobre-
por aos referidos direitos territoriais, havendo a necessidade de harmoni-
zação entre os direitos em jogo. Nos processos de equacionamento desses 
conflitos, as comunidades devem ter assegurada a participação livre, infor-
mada e igualitária. Na parte em que possibilita a remoção de comunidades 
tradicionais, o artigo 42 da Lei 9.985 é inconstitucional, contrariando ain-
da normas internacionais de hierarquia supralegal. 
Por seu turno, a Convenção n. 169 da Organização Internacional do 
Trabalho (OIT), promulgada no Brasil pelo Decreto n. 5.051/2004, ci-
tada no enunciado supra, dispõe acerca da responsabilidade dos gover-
nos para com as comunidades tradicionais (indígenas e tribais), valendo a 
transcrição do seu art. 2º, 1, segundo o qual: 
Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a 
participação

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