Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 ROTEIRO DE LEITURA – ALEXIS DE TOCQUEVILLE (1805-1859) – 1a Parte I. Esquema geral do livro APRESENTAÇÃO DA OBRA (Prefácio): tese, procedimentos, objetivos e pressupostos. LIVRO I: o caráter da revolução 1-) Recusa de interpretações correntes, segundo as quais a Revolução Francesa (RF) foi um evento extraordinário e inteiramente fortuito (cap. 1). 2-) Recusa da tese de que o objetivo da RF era a abolição do poder religioso e debilidade do poder político: A. Caráter religioso da RF (cap. 2); B. Caráter político da RF (cap. 3); 3-) Análise das instituições e costumes do Antigo Regime na Europa (cap. 4); 4-) Especificidade da Revolução na França (cap. 5). LIVRO II: desenvolvimento deste último ponto (o caráter da Revolução na França): processo gradual de centralização administrativa durante o Antigo Regime 1-) Os impostos e a propriedade fundiária: desaparecimento gradual dos corpos secundários (cap. 1); 2-) O edifício do poder central: A. Divisão administrativa da França no Antigo Regime: pays d’élection e pays d’élus (cap. 2); B. Dois funcionários típicos do Antigo Regime: o inspetor geral e o intendente (cap. 2); C. Governos locais versus municípios: a questão da tutela administrativa (cap. 3); D. Tribunais comuns (direito consuetudinário) versus justiça administrativa (cap. 4); E. Retomada dos capítulos anteriores e reiteração da tese do livro (cap. 5); F. Costumes administrativos do Antigo Regime: infiltração da ideia de substituição dos poderes intermediários pelo poder central (cap. 6); 3-) A onipotência de Paris (cap. 7); 4-) Análise das classes sociais durante o Antigo Regime: A. Semelhança entre aristocracia e burguesia (cap. 8); B. Isolamento das 3 principais classes, conforme avança a centralização administrativa (cap. 9); 5-) A liberdade política no Antigo Regime: A. Desaparecimento progressivo da liberdade política; (cap. 10) B. Resquícios da liberdade política em meio ao processo de centralização administrativa (cap. 11); 6-) O camponês (cap. 12). LIVRO III: causas imediatas da Revolução na França – a formação do homem revolucionário 1-) O papel dos literatos e das doutrinas abstratas (cap. 1); 2-) Influência do sentimento de irreligiosidade (cap. 2); 3-) Economistas e fisiocratas (cap. 3); 2 4-) Prosperidade pública sob o reinado de Luís XVI (cap. 4); 5-) A descoberta da pobreza no final do Antigo Regime (cap. 5); 6-) A monarquia e a divulgação de ideias revolucionárias (cap. 6); 7-) A reforma administrativa de 1787 (cap. 7); 8-) A RF como resultado espontâneo e natural de todos esses fatores: conclusão (cap. 8): A. Nobreza perde os direitos políticos, mas mantém os privilégios, transformando-se numa casta (classe apartada das demais); B. Monarquia abole liberdades provinciais, centralizando todos os assuntos públicos; C. Paris se assenhora da França; D. Eliminação das classes políticas deixa um vazio, a ser ocupado pelos literatos; E. Ataque à instituição eclesiástica; 9-) As paixões revolucionárias (cap. 8): A. Violência dos atos em contraste com a benignidade das teorias; B. Ódio pela desigualdade e amor pela liberdade (1789); C. O desejo de dependência: o retorno do poder absoluto. Com base nesse “esqueleto” do texto, nos concentraremos em algumas passagens específicas. Antes, porém, é pertinente nos perguntarmos: o que Tocqueville entende por Antigo Regime? O que entende por democracia, igualdade e liberdade? Procurem nos textos passagens que possam conter uma resposta a essas perguntas. II. Exposição da tese do livro 1-) Tocqueville enuncia a tese do livro em várias passagens. Aqui vão alguns exemplos: “[...] no século XVIII a administração pública já era muito centralizada, muito poderosa, prodigiosamente ativa”(ARR, Prefácio, p. XLIII)1. “[A centralização] não é uma conquista da Revolução. Ao contrário, é um produto do Antigo Regime e, acrescentarei, a única parte da constituição política do Antigo Regime que sobreviveu à Revolução, porque era a única que podia adaptar-se ao novo estado social que essa revolução criou” (ARR, L. II, 2, p. 41). “Se me perguntarem como essa parte do Antigo Regime pôde ser transportada assim inteiriçamente para a sociedade nova e incorporar-se a ela, responderei que, se a centralização não pereceu na Revolução, foi porque ela própria era o começo dessa revolução e seu sinal; e acrescentarei que um povo que houver destruído em seu seio a aristocracia corre rumo à centralização como que por conta própria”(ARR, L. II, 5, p. 69). “Não nos surpreendamos mais ao ver com que facilidade espantosa a centralização foi restabelecida na França no início deste século. Os homens de 1789 haviam derrubado o edifício, mas suas fundações permaneceram na alma dos que o destruíram; e sobre essas 1 Edição utilizada: Martins Fontes, 2009. 3 fundações foi possível reerguê-lo novamente de uma vez só e construí-lo mais sólido do que nunca antes”(ARR, L. II, 6, p. 80). Cabe-nos, em primeiro lugar, perguntar que tese Tocqueville está rebatendo ao enunciar e demonstrar a sua; e, em segundo lugar, investigar algumas características da Revolução. 2-) Em Pensando a Revolução Francesa (Paz e Terra, 1989, p. 36), o historiador François Furet afirma que Tocqueville criticou a representação que a revolução fez de si mesma, como ruptura radical com o passado, marco de surgimento de um tempo novo. O parágrafo que abre o livro corrobora essa interpretação: “Os franceses fizeram em 1789 o maior esforço que um povo já empreendeu, a fim de, por assim dizer, cortarem em dois seu destino e separarem por um abismo o que havia sido até então do que queriam ser dali em diante. Com esse objetivo, tomaram toda espécie de precauções para não levarem para sua nova condição coisa alguma do passado; impuseram a si mesmos toda sorte de coerções para se moldarem diferentemente de seus pais; enfim, nada esqueceram para se tornarem irreconhecíveis” (ARR, Prefácio, p. XLI). ● Tocqueville recusa a ideia, difundida mesmo entre os críticos da Revolução, como Edmund Burke, citado em ARR, L. I, p. 6., de que ela tenha sido um evento fortuito, extraordinário e até sobrenatural. Esses autores confundem a violência da revolução, seu carácter anárquico, com o longo e gradual processo histórico de destruição das instituições políticas. ● No entanto, Tocqueville reconhece a dificuldade de enxergar a Revolução (“De perto, o evento não é mais corretamente avaliado que de longe. Na França, na véspera do dia em que a Revolução vai eclodir, ainda não se tem nenhuma ideia precisa sobre o que ela fará” (ARR, L. I, I, p. 5). No restante da obra, Tocqueville procura explicar por que era difícil enxergar a Revolução: seu motor era o processo de equalização das condições ou, se preferirem, de democratização, que vinha acontecendo havia séculos e que já havia se enraizado na sociedade francesa ao ponto criar costumes igualitários. 3-) Dois aspectos da Revolução Francesa que decorrem dessa tese: A-) Caráter religioso: como as religiões monoteístas, em especial o cristianismo, a RF foi um fenômeno universal, baseada na ideia de um sujeito ou indivíduo universal, considerado em si mesmo, independentemente de seu país, de sua sociedade e de sua história. Além disso, como as revoluções religiosas, a Francesa operou pela propaganda e pela pregação, inspirando o proselitismo. B-) Caráter político: a Revolução não visou destruir a aristocracia como ordem social, muito menos toda a ordem social, isto é, a sociedade como um todo. O processo revolucionário, iniciado pelos monarcas, buscou, nivelar toda a sociedade, formar, nas palavras de Mirabeu citadas por Tocqueville, “uma única classe de cidadãos”, uma “superfície uniforme”, que “facilitao exercício de poder”, ou seja, “um poder central imenso” (ARR, L. I, 2, p. 11; minha ênfase). 4 Aqui está, segundo Furet, uma das grandes inovações de Tocqueville: para este, (i) a Revolução não deu origem a uma nova sociedade, protagonizada pela burguesia; (ii) a revolução foi um processo de continuidade, de acordo com o qual “a Revolução estende e consolida, levando a seu ponto de perfeição, o Estado administrativo e a sociedade igualitária, cujo desenvolvimento é a obra característica da antiga monarquia”(Pensando a Revolução Francesa, op.cit., p. 37). III. O surgimento do poder central: análise da sociedade administrada Para Tocqueville, portanto, os agentes da transformação da sociedade francesa foram os monarcas, que promoveram o nivelamento entre as classes, ou seja, a destruição das distinções e a igualdade de condições, ao mesmo tempo que promoveram o fim da liberdade política. Vejamos agora como isso aconteceu. 1-) Fragmentação da propriedade fundiária antecede a Revolução Francesa. A venda das terras clericais, nos primeiros anos da Revolução, dá a falsa impressão de que aumentou o número de proprietários, quando, na verdade, os camponeses já eram os proprietários. A Revolução liberou-os, isso sim, de vários tributos feudais. Isso cria uma contradição: os camponeses são proprietários de fato, mas não de direito. A cobrança dos impostos feudais alimenta o ódio dos camponeses contra a nobreza. 2-) Ao se dividirem as propriedades fundiárias, com o fim da lei de primogenitura ainda no Antigo Regime, a aristocracia abandona o campo, deixando, por consequência, de exercer seus papeis políticos como autoridades locais. Quem ocupa o lugar da aristocracia são funcionários do governo. “Até por volta do século XVIII, encontram-se cidades que continuam a formar como que pequenas repúblicas democráticas, em que os magistrados são livremente eleitos por todo o povo e responsáveis perante ele, em que a vida municipal é pública e ativa, em que a cidade ainda se mostra orgulhosa de seus direitos e muito ciosa de sua independência”(ARR, L. II, 3, p. 50). 3 -) Divisão administrativa da França no Antigo Regime (ver mapa abaixo): 5 Em amarelo, os «pays d'état», ou seja, as províncias que possuem um parlamento regional (ou estado), que vota a contribuição fiscal. Sob o Antigo Regime, um “País de estado” designa um tipo de província que conservou os estados provinciais, ou seja, as assembleias regionais realizadas nos antigos feudos e nos territórios anexados ao domínio real entre os séculos XIV e XVII. Até a Revolução, esses “pays d’Etats” mantiveram certos direitos administrativos e fiscais: os direitos deviam ser consentidos pelos “Estados Provinciais”. Eles possuíam igualmente o direito de apresentar protestos ao rei, o direito de nomear funcionários provinciais junto com os agentes do rei. Em verde, os «pays d'élection», ou seja, as províncias onde o imposto é recolhido pelos funcionários do Estado, os «élus» (eleitos), que não são de fato eleitos, porque compraram seus cargos, ou, mais tarde, os intendentes. Os eleitos, funcionários permanentes encarregados de recolher os impostos eram, na origem (1355) realmente eleitos para tomar parte dos Estados Gerais. A partir de 1360, eles se tornam funcionários nomeados. Contrariamente aos “pays d’etats”, os “Pays d’Elections” não tinham nenhuma assembleia regional para votar seus impostos e registrar os editos reais, papeis atribuídos aos parlamentos de que eram dependentes. 6 Em laranja, os «pays d'imposition», ou seja, as províncias recentemente anexadas à coroa da França e que subsistem de uma tributação direta2. 4- ) Funcionários do Antigo Regime: Conselho do rei → controlador geral→ intendente A. Conselho do rei: corpo administrativo que decide sobre regras gerais que devem dirigir os agentes do governo; é composto por “personagens de origem mediana ou baixa”(ARR, L. II, 2, p. 43); B. controlador geral: agente do conselho do rei nas províncias responsável pelas questões financeiras (“ou seja, quase toda a administração pública”. ARR, L. II, 2, p. 43). C. Intendentes (“les intendants”): funcionários do governo central escolhidos entre membros inferiores do conselho do rei, designados representá-lo numa província na qual não nasceram ou cresceram. “Essa nova organização política e administrativa) era definida como um “estado” (e o uso da própria palavra é revelador, em contraste com uma descrição alternativa como “sociedade de corte”), no qual o poder estava concentrado na burocracia. Ministros, e não cortesãos, tomavam as decisões com o próprio Luís XV num conselho de estado muito menor e mais eficiente [...]. O governo da burocracia e do conselho se tornou eficiente nas províncias com o eclipse do papel dos governantes aristocráticos da província, em face de um novo tipo de homens que seriam escolhidos no interior da burguesia (de fato, eles eram quase exclusivamente oriundos da Noblesse de Robe (nobreza de toga), os intendentes. Esses advogados empregados a serviço do conselho do estado eram obedientes e dependentes dos secretários de estado, capazes de impor a autoridade real sobre as elites provinciais recalcitrantes, privilegiadas, e sobre funcionários venais. Assim o reino viu um avanço significativo na efetividade da autoridade real, provocada por comissários reais organizados num sistema que era muito mais poderoso, burocrático e centralizado do que no regime precedente”. Campbell, Peter. Power and Politics in Old Regime’s France. Routledge, 1996. 5-) Eliminação dos “corpos intermediários”: rápida desintegração das instituições, normas e costumes associados à atuação política da aristocracia que serviam de contrapeso ao poder régio. A. O governo do Antigo Regime entrega-se ao “instinto que leva todo governo a querer conduzir sozinho todos os assuntos”(ARR, L. II, 5, p. 67): ● Para isso, coloca à venda a maior parte das funções públicas – sistema de enobrecimento que aguça o ódio do plebeu contra o fidalgo; 2 Fonte: http://faculty.georgetown.edu/spielmag/docs/legrandsiecle/france17_1.htm 7 ● As associações livres, ou poderes locais e secundários – assembleias deliberativas, paróquias, tribunais regulares - que ameaçariam a expansão do poder central são esvaziadas. B. Declínio da liberdade política, entendida como participação ativa dos cidadãos na vida política das localidades (também descrita como liberdade pública); não há, porém, comprometimento da liberdade individual, pelo contrário: a) A liberdade política criava elos entre os homens, mantendo-os “sempre ao alcance uns dos outros a fim de poderem ouvir-se quando preciso”(ARR, L. II,10, p. 108); b) Com a expansão do governo central e encolhimento dos poderes locais, toda a esfera da vida comum é invadida pela administração. Esta se caracteriza como minuciosa e tutelar, na medida em que se preocupa em garantir o conforto dos súditos e acaba os tornando apáticos – compulsão da administração por supervisionar todas as atividades dos cidadãos. “Os homens do século XVIII praticamente não conheciam esse espécie de paixão pelo bem- estar que é como a mãe da servidão, paixão frouxa porém tenaz e inalterável, que se mescla facilmente e por assim dizer se entrelaça com várias virtudes privadas – com o amor pela família, a observância dos costumes, o respeito pelas crenças religiosas e mesmo a prática morna e assídua do culto estabelecido -, que permite a honestidade, proíbe o heroísmo e esmera-se em fazer homens corretos e cidadãos timoratos” (ARR, L. II,11, p. 129). 6-) O papel de Paris: a capital se torna o centro do país e, nesse movimento, contribui para suprimir as energias das províncias. De um lado, as ideias que legitimarão a Revolução em 1789 partem de Paris para as províncias (movimento centrífugo); de outro, há um deslocamento populacional, em especial de nobres e burgueses, das províncias em direção à capital, levando a um processo de urbanização e industrialização (movimento centrípeto). 7-) A queda da monarquia é causada ... pela própria monarquia! “Mas é sobretudo nos períodos de escassez que se percebe que os laços de patronagem e dependência que outrora ligavam o grande proprietário rural aos camponeses estão frouxos ou rompidos. Nesses momentos de crise, o governo central aterroriza-se com seu próprio isolamento e fragilidade; gostaria de fazer renascerem para a circunstância as influências individuais ou as associações políticas que destruiu; chama-se em seu auxílio; ninguém vem, e geralmente ele se espanta ao descobrir mortas as pessoas das quais tirou a vida”(ARR, II,12, p. 143-144; minhas as ênfases).
Compartilhar