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"Por que, nos dias que correm, filhos encetam a morte dos pais, ou pais jogam nenes contra o para-brisa de carros? Por quo nao ha mais referencias eticas em criminosos absolutamentc indiferentes a lei? Enfim, quais causas ensejam o crescimento tao agudo da criminalidade? A yiolencia urbana e unia situacao vivenciada em muitos paises, de maneiras distintas, mas asscmelhadas, com multiplos fatores de risco dos quais muitos teóricos apontam desde a disparidade social atć a vulnerabilidade adaptativa dos homens. Os mais yulnerayeis sao os que tiveram a personalidade formada num ambiente desfavoravel ao desenvolvimento psicológico pleno. Da mesma forma, causas sociais sao vetores de criminalidade antes desconsiderados nas iiwestigacócs cientificas explicativas do crime. A conyergencia entre fatores pessoais e sociais forma urna quimica extremamente deleteria no descncadeamento de atos delituosos. (...) Associados a falta de acesso aos recursos materiais, a desigualdade social, a corrupcao policial, ao pessimo exemplo de impunidade dado pelos criminosos de colarinho-branco, a falta de possibilidade de ascensao social ou mesmo de urna vida digna para essas pessoas, esses fatores de risco criam urn caldo cię cultura quc alimenta a yiolencia crescente nos grandes centros urbanos." (Da Introdufńo, do AUTOR. ISBN 85-203-2619-6 9 7 8 8 5 2 0 3 2 6 1 9 0 re?EDITORA REYISTA DOS TRIBUNAIS SUMARIO PREFACIO-ALYiNoAuGUSTODESA 7 NOTA DO AUTOR 15 INTRODUgAO 17 PARTE PRIMEIRA NOgÓES INTRODUTÓRIAS 1. Conceito, objęto e metodo da criminologia 31 1.1 ConsideracSes preliminares 31 1.2 Conceito 36 1.3 Objęto da criminologia: delito, delinąiiente, yftima e con- trole social 43 1.3.1 O delito 43 1.3.2 O criminoso 47 1.3.3 A yftima 50 1.3.4 Controle social do delito 55 1.4 Metodo da criminologia 60 2. Nascimento da criminologia 73 2.1 Aportes iniciais 73 2.2 Estudo dos precursores 77 2.3 O Iluminismo easprimeiras escolas sori<>loj ', ir: i,s ')() f 2(1 CRIMINOLOGIA2.4 Consideracoes criticas ąuanto aos marcos cientificos da criminologia 103 2.5 Notas conclusivas 127 PARTE SEGUNDA AS ESCOLAS SOCIOLÓGICAS DO CRIME 3. Criminologia do consenso e do conflito 133 4. Escola de Chicago 139 4. l Antecedentes históricos 139 4.2 Importancia metodológica da escola de Chicago 146 4.3 Elementos conceituais adotados pela escola de Chicago . 151 4.4 A ecologia criminal 160 4.5 As propostas da ecologia criminal 166 4.6 A discussao recente do problema e as intervenc5es atuais . 172 4.7 Pondera^ao critica sobre a ecologia criminal 179 4.H Notas conclusivas 182 .V li-oiiadaassociacaodiferencial 187 5 l N ol as introdutórias 187 5 ' Aiik-cedcntesdateoriadaassociacaodiferencial 188 5 ( A .issodacaodiferencialeocrimedocolarinho-branco .. 193 ."> l A I j M i m a s Ibrmulaęóes posteriores 202 *> ' < < )hsi-i v;n;ocs conclusivas, criticas e releyancia da teoria.. 209 (l l i - i t t l.l <l. l .IIKIIIIIII 213 < . l Nd.i:; i n l r o t l i i l ó r i a s 213 < • ' < > p . i i ' , . i n k - i i i o de limile Durkheim 215 '• l < • IM i i : . . i i n c i i l o de Robert Merton 224 d l < H r . i i \ . n , ( K - s n i l i r a s c notas conclusivas 229 SUMARIO 27 7. Teoria da subcultura delinąuente 241 7.1 Notas introdutórias 241 7.2 Noticia histórica 246 7.3 Definięao e modalidades 249 7.4 Notas conclusivas 267 8. Labelling approach 271 8.1 Notas introdutórias 271 8.2 Ofermentodaruptura 273 8.3 O labelling approach 287 8.4 A influencia do labelling approach no pensamento juridi- cobrasileiro 311 9. Teoria critica 327 9.1 Notas introdutórias 327 9.2 As ideias centrais da teoria critica 330 9.3 Um enfoąue finał e notas conclusivas: a contribui9ao da teoria critica 357 CONCLUSOES 363 BIBLIOGRAFIA 369 PARTE PRIMEIRA NOgÓES INTRODUTORIAS . CONCEITO, OBJĘTO E METODO DA CRIMINOL SUMARIO: 1.1 Consideragoes prcliminares - 1.2 Conceito - 1.3 Objęto da criminologia: delito, delinąiiente, vitima e con- trole social: 1.3.1 O delito; 1.3.2 O criminoso; 1.3.3 A vitima; 1.3.4 Controle social do delito -1.4 Metodo da criminologia. 1.1 Considera^oes preliminares Criminologia e um nome generico designado a um grupo de temas estreitamente ligados: o estudo e a explicacao da infragao legał; os meios formais e informais de que a sociedade se utiliza para lidar com o crime e com atos desviantes; a natureza das postu- ras com que as vitimas desses crimes serao atendidas pela socieda- de; e, por derradeiro, o enfoąue sobre o autor desses fatos desvian- tes. O estudo dos criminosos e de seus comportamentos e hoje um campo fertil de pesąuisas para psiąuiatras, psicólogos, sociólogos e antropólogos, bem como para os juristas. Nas diferentes esferas de investigacao muitos escreveram sobre o comportamento anti- social como se fosse sempre, ou em geral, atribufvel a anormalida- des da personalidade, constitutiyas ou adąuiridas. No entanto, o profissional da area medica, hoje, tem limitado sua observacao aos inlralorcs q u e sofrem de distiirbios com sinlomas incqufvocos. Estcs sao unia minoria, a i i u l a qiie' se i i i c l i i a i n dculre os "distiirbios anti-sociais da porsonalidade". ' l a l obsei V;K;;H), dc'sdc logo, ta/-se 32 CRIMINOLOGIA necessaria para se entender a perspectiva que se adotara neste traba- Iho: urna visao macrocriminal, sob o enfoąue das ciencias sociais. Qualquer observacao conceitual sobre a criminologia esbar- ra nas diferentes perspectivas existentes nas ciencias humanas. Definir criminologia sob a perspectiva critica e algo totalmente diferente do que faze-lo sob a ótica do positiyismo italiano. Ao se mencionar ser ela urna ciencia, parte-se da ideia da neutralidade cientifica e, eyidentemente, prescinde-se da ideologia. De outra parte, ao se ignorarem os padróes de desenvolvimento do pensa- mento criminológico, com suas diferentes posturas metodológi- cas, impede-se que se tenha como referenda o estagio atual de "objetivagao" de seus resultados. Dai por que, necessariamente, esbarra-se em um terreno minado que esta a depender das perspec- tivas pessoais de quem enfrenta o tema. Nao se deixara de voltar ao assunto, oportunamente. Segundo Hilario Veiga de Carvalho, autor que influenciou urna geragao de estudiosos da criminologia na Faculdade de Direito da USP, "a criminologia define-se, geralmente, como sendo o estudo do crime e do criminoso, isto e, da criminalidade".1 Mesmo fazen- do uma crftica a definięao inaugural de seu livro e ao próprio nome - Criminologia - que atribui a essa ciencia,2 nao deixa de destacar que seu estudo volta-se, precipuamente, ao campo das ciencias antropológicas e, mais nuclearmente, das ciencias medicas e psi- cológicas. Partindo- se da ideia de que conceituar algo e dizer oąuea coisa e, nao se tem, com o conceito acima expendido, unia exata dimen- (2) Compendio de criminologia. p. 11. "O nome e consagrado pelo uso e ja entendemos o que ele quer signi- ficar. Se ainda nao e uma ciencia autonoma e perfeitamente consti- tuida, o denominamo-la como tal, quando menos, obrigar-nos-a a lutar por esse alvo. Mantenhamos, pois, o nome de Criminologia, ąuando mais nao seja para nos constranger a, um dia, assim corretamente po- dermos denominar a ciencia que professamos" (Op. cit. p. 12). j CONCEITO, OBJĘTO E METODO .< *• sao do que venha a ser criminologia. E que tanibem o direito penal nao deixa de ser o estudo do crime e do criminoso e, na essencia, da criminalidade. De resto, a politica criminal tambem nao prescinde de indagar quanto ao estudo do crime e do criminoso, bem como da criminalidade. Estamesma observacao quem afaz e Ernst Seelig, ao asseverar que "criminologia e, como o nome indica, a ciencia do crime. Mas a ciencia do direito penal trata igualmente do crime e, todavia, estas duas ciencias sao diferentes nao só no objęto como tambem no metodo".3 Seriam, entao, a mesma coisa a criminolo- gia, o direito penal e a politica criminal? Parece evidente que nao. Mas quais as diferencas - bem como pontos de semelhanca - que tem entre si tais distintasesferas de estudos do fenómeno crimi- nal? Ou, indagando de outra forma, pode-se fazer o estudo da cri- minologia sem que, ao mesmo tempo, venha a se examinar o direi- to penal e a politica criminal? Tais indagaęóes remetem o estudo da criminologia a um pe- riodo anterior em que aportava a discussao quanto as ciencias inte- gradas criminais ou a condięao de ser a criminologia uma "ciencia auxiliar" do direito penal. De outra parte, nao se pode deixar de atribuir relevancia ao fato de que, no Brasil, raramente, o estudo da criminologia integra o curriculo minimo das Faculdades de Direito, dentro de uma velha visao posithdsta e isolacionista do direito. O nao-estudo da criminologia nas faculdades brasileiras - o que e a regra, em termos gerais - cria um vies ąuanto a aborda- gem do fenómeno criminal. Para a compreensao cientifica da tare- fa de aplicac. ao do direito penal nao basta o conhecimento das nor- mas postas, mas e indispensavel o dominio das contribuięoes cor- relatas existentes naquilo que se convencionou denominar "cien- cias criminais". Como nas nossas faculdades normalmente nao se ensinam tais disciplinas, nao raro o estudante que queira investi- gar tais assuntos acaba por recorrer ao professor de direito penal no que nem sempre e bem atendido, posto que a criminologia, alem (3) Manual de criminologia. vol. l, p. 1. CRIMINOLOGIA de reąuerer consideraveis esforcos, reąuer profundos conhecimen- tos psicológicos e sociológicos, por ser urna disciplina que traba- Iha com metodos diferentes daąueles normalmente utilizados na esfera juridico-penal.4 Assim, as ciencias humanas, dentro da vas- ta gama das ciencias autónomas relacionadas com o crime (socio- logia criminal, antropologia criminal, psicologia e medicina foren- se, psiąuiatria criminal etc.), consubstanciam-se naąuilo que se pode denominar da vasta visao de ciencias criminais, que se inte- gram em um unico bloco do conhecimento. Dai por que, nos tem- pos que correm, cada urna dessas modalidades de conhecimento pode aspirar a certa autonomia, e a dogmatica penal nao ha de ter urna ascendencia sobre as demais formas de estudo da criminali- dade, ainda que venha a conservar caracteristicas próprias, dife- renciadoras dessas paralelas formas de conhecimento.5 A criminologia, se nao fosse por seu próprio interesse, rela- cionado com seu objęto e finalidade, tambem estaria a merecer um estudo mais acurado dos juristas. Em primeiro lugar, porque, se existe uma curiosidade daquele que estuda o ordenamento penal, impoe-se que venha a estudar quais razoes levam os homens a de- linqiiir, o que tambem significa dizer por que realizam atiyidades que o direito penal proibe. De outra parte, nao pode ser indiferente a politica criminal, posto que indicaria tal disciplina o estudo das CONCEITO, OBJĘTO E METODO \5 (4) (5) GIMBERNAT ORDEIG, Enriąue. Conceito e metodo da ciencia do direito penal. p. 34. Interessante notar que as revistas cientificas brasileiras nem sempre exprimiram tal pensamento. A antiga Revista Ciencia Penal, em suas diversas fases, discutia ąuestoes criminológicas como tambem de Politica Criminal. Por sua vez, a Revista Brasileira de Ciencias Cri- minais, órgao oficial do Instituto Brasileiro de Ciencias Criminais, nao tinha, em suas primeiras edięSes, uma secao especifica para dis- cussao da sociologia criminal ou da psicologia criminal; isto se deu um pouco mais tarde, exatamente para poder fazer jus a ideia de cien- cias criminais, o que era resultado do próprio nome desse importante periódico. medidas que poderiam ser tomadas para impedir, ou diminuir, m > futuro, o cometimento de novos delitos. Ademais, nao só por cu riosidade deveria o jurista estudar tal ciencia. Com efeito, as con- sidera§oes criminológicas sao absolutamente imprescindiveis para que o jurista possa levar a cabo sua própria tarefa dogmatica. Nao e crivel que se possa compreender o conteudo da norma sem recor- rer a criminologia, ciencia que Ihe da o substrato ultimo de conhe- cimento pre-juridico. Segundo Figueiredo Dias, foi merito de Franz von Lizst ter criado entre os varios pensamentos do crime uma relaęao que po- deria ser denominada de modelo tripartido da "ciencia conjunta" do direito penal. "Uma ciencia conjunta, esta que compreenderia como ciencias autónomas: a ciencia estrita do direito penal, ou dogmatica juridico-penal, concebida, ao sabor do tempo como o conjunto dos principios que subjazem ao ordenamento juridico- penal e devem ser explicitados dogmatica e sistematicamente; a criminologia, como ciencia das causas do crime e da criminalida- de; e a politica criminal, como 'conjunto sistematico dos princi- pios fundados na inyestigagao cientifica das causas do crime e dos efeitos da pena, segundo os quais o Estado deve levar a cabo a luta contra o crime por meio da pena e das instituicoes com esta rela- cionada' ".6 Tal concepęao foi objęto de acerbas criticas de autores que se ancoravam no positivismo juridico e que mencionavam que as concep9oes globais desse tipo faziam com que o estudo da cri- minalidade entrasse em uma area moyediga, abandonando o solo firmę da lei e do seu tratamento dogmatico-juridico especifico. (6) DIAS, Jorge de Figueiredo. Questoes fundamentais do direito penal revisitadas. p. 24. No original: "A politica criminal, em seu novo sen- tido, apóia-se, como exigencia metódica, em uma investigaęao cau- sal do delilo c das pcnas, (|iier dizer, na Criminologia (Garófalo), e l Vi i«>loj>,ia (LiclicT). I',nlio a polflira cr iminal c o direito penal, dao-se l i m i l f s iiisupi'niveis, como ON qur r x i s l i - i i i i-ul io a polilica r o tlirei- lo". In: VON LIS/,'l', han/,. 'Iniiiido tli' ilfirclio i>,'iiul. p. 63 64. 36 CRIMINOLOGIA Assim, o direito penal deveria ser reservado exclusivamente aos juristas, enąuanto as outras esferas de estudo deveriam ser analisa- das por seus especialistas.7 1.2 Conceito Alguns autores consideram que conceito e definigao sig- nificam a mesma coisa. Outros afirmam que o conceito expri- me somente urna visao geral do objęto, levando em conta os tra- cos globais do que se pretende conceituar, ao passo que a defi- nigao exprime a determinacao exata, ou seja, que as expressoes definidas implicam a explicac. ao precisa sobre alguma coisa ou objęto.8 Em outras palavras, definir um objęto e dar a oracao reveladora do que a coisa e; enquanto o conceito e apresentar urna visao global, nao reduzindo a urna oracao, do que essa mesma coisa seja. Nao querendo entrar napolemica, parece-nos mais relevante indagar sobre quais dados sao necessarios para conceituar a criminologia, tendo sempre como parametro com- parativo o direito penal, imediata referenda de todos quantos operam na area juridica. A maior parte dos autores define a criminologia como urna ciencia. Ainda que tal premissa nao seja absoluta na doutrina, nao ha como negar que, em sua grandę maioria, esta ve um metodo próprio, um objęto e urna funcao atribuiveis a criminologia. Mes- mo entendendo a ciencia como uma forma de procurar o conhe- cimento, diversa daquela que pode existir a partir do senso co- mum, nao se tem duvidas em afirmar que a criminologia e uma ciencia. Tambem nao se ignora a discussao segundo a qual as cien- cias humanas ou sociais nao sao realmente ciencias, porque nao trazem teorias de validade universal, nem dispoem de metodos (7) DIAS, Jorge de Figueiredo, op. cit. p. 24-25. (8) FERNANDES, Newton; FERNANDES, Yalter. Criminologia inte- grada. p. 26. CONCEITO, OB JĘTO E METODO .17 unitarios ou especificos.9 Emnosso entender, no entanto, cre-sf ( | i n• a criminologia reune uma informacao valida e confiavel s o b i x - « > problema criminal, que se baseia em um metodo empirico de im;i lise e obseryaęao da realidade. E claro que tal informacao nao lra/„ necessariamente, uma forma absoluta, concludente e definitiva cle ver toda realidade fenomenica. Como ciencia do "ser", nao e uma ciencia "exata", que traduz pretensoes de seguranca e certeza ina- balaveis. Nao e considerada uma ciencia "dura", comosao aque- las que possuem conclusSes que as aproximam das universais. Como qualquer ciencia "humana" apresenta um conhecimento parciał, fragmentado, provisório, fluido, adaptavel a realidade e compativel com evolucoes históricas e sociais. De sorte que o sa- ber empirico, subjacente ao conhecimento da criminologia, nao deixa de apresentar certa dose de inexatidao em oposicao as ferre- as leis universais das ciencias "exatas".10 De outra parte, relevantes sao as consideracoes que apontam para a nao-neutralidade das ciencias humanas, dentre as quais se inclui a criminologia. O velho metodo positivista ve a existencia de um mundo que existe, ainda que nao se saiba como explicd-lo. A escola positivista de pensamento separa o sujeito cognoscente do objęto cognoscwel. Isto e, ha um mundo fisico que esta fora do obseryador. Assim, deve este procurar que o conhecimento seja objetivo, como se pudesse fracionar a relacao entre o sujeito e o objęto. Isto e importante, porque sobre estas bases e que se assen- tam as presumidas neutralidades da ciencia. O sujeito cognoscen- te descobre, de forma objetiva e neutra, o mundo a sua volta. Sua atividade nao e reflexiva (e, portanto, nao pode ser transformado- ra). Ele esta fora da realidade, nao se analisa e nao se observa.'' A '"' Nesse sentido o pensamento de Carlos Alberto Elbert, Manuał h<isi~ co de criminologia, p. 31. (iARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, L i i i : ; l b v i . . ( 'liniinologia p. 43-44. ( l l ) A N I Y A U DE CASTRO, Lola. Criminologia da inn;,i,< .v,-, / , / / |. ' .ł. 38 CRIMINOLOGIA partir do pensamento critico da realidade fenomenica, o observa- dor cientifico se insere na própria realidade a ser observada. Ele busca alternativas para transcende-la e transforma-la. Isto e, seu conhecimento se insere em urna forma de concepęao de mundo que pressupóe a transformaęao de seu objęto de estudo. Passa, pois, acomporumconceitodepraxis. Nao secontentacomaexis- tencia, mas sini com a essencia, pois pretende urna ampla com- preensao do fenomeno estudado para servir de guia transforma- dor da realidade posta. Partindo dessa mesma critica ao positi- vismo aparentemente neutro, merece destaąue o pensamento de Eugenio Raul Zaffaroni ąuando afirma que "o poder e o saber se vinculam mediante estes pensamentos de maxima abstragao, que sao os que nos permite visualizar, em toda sua dimensao, o signi- ficado de urna ideia referida a um campo particular do saber. Se perdermos esta necessaria semantica orientadora, ficaremos total- mente confusos".12 Feitas essas observacoes releyantes sobre a natureza da cien- cia criminológica, convem precisar seu objęto. Ocupa-se a crimi- nologia do estudo do delito, do delinquente, da yftima e do contro- le social do delito e, para tanto, langa mao de um objęto empirico e interdisciplinar. Diferentemente do direito penal, a criminologia pretende conhecer a realidade para explica-la, enquanto aquela ciencia valora, ordena e orienta a realidade, com o apoio de urna serie de criterios axiológicos. A criminologia aproxima-se do fe- nomeno delitivo sem prejuizos, sem mediacSes, procurando obter urna informacao direta deste fenomeno. Ja o direito limita interes- sadamente a realidade criminal, mediante os principios da fragmen- tariedade e seletividade, observando a realidade sempre sob o pris- ma do modelo tipico. Se a criminologia interessa saber como e a realidade, para explica-la e compreender o problema criminal, bem como transforma-la, ao direito penal só Ihe preocupa o crime en- quanto fato descrito na norma legał, para descobrir sua adequagao (12) Criminologia: aproximación desde un margen. p. 6. ( " CONCEITO, OBJĘTO E METODO 39 tipica. O direito penal versa sobre normas que interpretam em suas conex5es internas, sistematicamente. Interpretar a norma e aplica- la ao caso concreto, a partir de seu sistema, sao os momentos cen- trais da tarefa juridica. Por isso, ao contrario da criminologia, que e urna ciencia empirica, o direito tem um metodo juridico-dogma- tico e seu proceder e dedutivo sistematico. O direito penal tem na- tureza formal e normativa. Ele isola um fragmento parciał da rea- lidade, com criterios axiológicos, e a intervengao estatal tem por imperativo o principio da legalidade. A criminologia reclama do investigador urna analise totalizadora do delito, sem mediaęoes formais ou valorativas que relativizem ou obstaculizem seu diag- nóstico.13 Interessa a criminologia nao tanto a qualificacao formal correta de um acontecimento penalmente relevante, senao a ima- gem global do fato e de seu autor: a etiologia do fato real, sua estru- tura interna e dinamica, formas de manifestaęao, tecnicas de pre- venęao e programas de intervenęao junto ao infrator. O direito penal c a criminologia aparecem assim como duas disciplinas que tem o mesmo objetivo com meios diversos: a criminologia com o conhe- cimento da realidade, e o direito penal com a yaloraęao interessa- da dessa mesma realidade. Hoje e possfyel precisar, perfeitamen- te, a autonomia de ambas as disciplinas e, ao mesmo tempo, firmar sua interdependencia reciproca. O direito penal nao esta em con- di§6es, como se pensava antigamente, de circunscrever o conteu- do da criminologia, pois isso significaria que a criminologia nao podcria como o faz - estudar urna serie de mecanismos de con- 1 1 oli- social que, de qualquer modo, assemelha-se ao direito penal. Mais aiiula, a criminologia, na atualidade, erige-se em estudos cri- l "K-OS do próprio direito penal, o que evita qualquer ideia de subor- (liii;n,;ao dc inna ciencia em cotejo com a outra.14 " ( i , \ K ( ' I A I V \ H I < >N l > l ; M< ) l . I N A , A i i l o n i o ; (lOMIiS, Luis Flavio. < V i n |> l x i l h n i i 1 , i < >', K- \ M i i v i / I M . n i l .1 c ii..!..••! i Elptnsamtentocrimi- / / I ' / < M ; / , , . / I N I . l l l . l l l - . l ' , l l l l l l I I | > 2 4 , ; CRIMINOLOGIA Como postulafao provisória pode-se afirmar que a ciencia do direito e valorativa e normativa, ao passo que a criminologia e empirica e causal-explicativa. No que concerne ao seu objęto de estudo - o delito -, o direito se ocupa de suas caracteristicas nor- mativo-sistematicas, de suas consequencias juridicas e dos sujei- tos que participam dessa relacao substancial, todos como compo- nentes do conjunto de normas que constituem o direito positivo. Tem, pois, por finalidade o conhecimento de um direito penal po- sitivo que tangencia o estudo da vitima e do criminoso; para a cri- minologia seu objęto e o estudo do delito, do delinquente, da viti- ma e do controle social. Quanto ao metodo, tem-se a distin9ao en- tre o lógico-dedutivo, dogmatico para o direito e o empirico, indu- tivo e interdisciplinar para a criminologia.15 Estabelecidos os conceitos que constituem a base do pensa- mento criminológico, trata-se agora de definir a criminologia. Seguindo o pensamento de Antonio Garcia-Pablos de Molina, e a criminologia "urna ciencia empirica e interdisciplinar, que se ocu- pa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vitima e do contro- le social do comportamento delitivo, e que trata de subministrar urna informacao valida, contrastada, sobre a genese, dinamica e variaveis principais do crime - contemplado este como problema individual e como problema social -, assim como sobre os progra- mas de preyenfao eficaz do mesmo e tecnicas de intervencao posi- tiva no homem delinqiiente".16 Outras nao sao as principais defini- coes, mais ou menos na mesma linha que a exposta acima.17 Se a criminologia traz urna realidade objetiva constituindo- se em um substrato teórico que pode ser utilizado pelo direito pe- (15) MORILLAS CUEYA, Lorenzo. Metodologia y ciencia penal. p. 316. (16) Op. cit. p. 33. (17) Vide, dentre outras: MORILLAS CUEYA, Lorenzo. Op. cit. p. 312; FERNANDES, Newton; FERNANDES, Yalter. Op. cit. p. 26-27; REYES ECHANDIA, Alfonso. Criminologia. p. 1-2. ALBERGA- RIA, Jason. Nocoes de criminologia. p. 33. CONCEITO, OBJĘTO E METODO 41 nal, qual o papel desempenhado pela politica criminal narelaęao entre aquelas ciencias? A politica criminal e urna disciplina que oferece aos poderes publicos as opgoes cientificas concretas mais adequadas para controle do crime, de tal forma a servir de ponte eficaz entre o direito penal e a criminologia, facilitando a recepęao das investigaęoes empiricas e sua eventual transforma9ao em pre- ceitos normativos. Assim, a criminologia fornece o substrato em- pirico do sistema, seu fundamento cientifico. A politica criminal, por seu turno, incumbe-se de transformar a experiencia crimino- lógica em opęoes e estrategias concretas assumiveis pelo legisla- dor e pelos poderes publicos. O direito penal deve se encarregar de converter em proposięoes juridicas, gerais e obrigatórias o saber cri minológico esgrimido pela politica criminal.'8 Assim, a diferenęa entre a politica criminal e criminologia e que aquela implica as estrategias a adotarem-se dentro do Estado no que concerne a cri- minulidade e a seu controle; ja a criminologia converte-se, em face da politica criminal, em urna ciencia de referenda, na base mate- r i a l , no substrato teórico dessa estrategia. A politica criminal, pois, nao pode ser considerada urna cien- cia igual a criminologia e ao direito penal. E urna disciplina que nao lem um metodo próprio e que esta disseminada pelos diversos poderes da Uniao, bem como pelas diferentes esferas de atuaęao do próprio Estado. Assim, quando a Prefeitura, diante da ocorren- i i ; i dr sucessivos crimes de estupro, em um lugar mai iluminado t l . i « idadr, resolve prevenir a ocorrencia de novos delitos, com a n r . i a l a c a t ) ile inwos postes de luz, esta fazendo urna politica crimi- 1 1 . 1 1 1 >i went i va. Tambem o faz quando elege a seguran9a dos muni- ( i | H - S t ( t n i o unia de suas prioridades ao criar aSecretaria de Segu- / , / / / ( < / Urhiiiiti.1" Da inesina forma, ao implementar politicas pu- l ' h < .r. tnitigadoras dos ronlrasles soc-iais, estant implantando urna < . \|.'( l \ l' \HI < > ' . l >l M< >l INA. Ani.i ( J ( )MI',S, l ,iiis l''l;ivio. i > | . olti p l ' < • l.il.i, nJi> < IM ' I .HI r.inln im .Min ilr '(III1 42 CRIMINOLOGIA CONCEITO, OBJĘTO E METODO 43 politica com repercussao na esfera criminal. Tambem o Poder Executivo na esfera do Estado faz politica criminal. A Secretaria da Seguranga Piiblica do Estado de Sao Paulo, ao adotar urn siste- ma informatizado de mapeamento da criminalidade, rua a rua, denominado Infocrim, agiu conforme urna politica criminal. Evidentemente que o Poder Legislativo implementa politicas cri- minais.20 Faz isso todos os dias, especialmente por estar pressiona- do pela própria midia.21 Da mesma forma, os operadores do direi- to e, em especial, aąueles do Poder Judiciario fazem suas politicas criminais em decisóes cotidianas. Ainda que busąuem fundamen- tos intradogmaticos, nao deixam de atender "as boas razóes de politica criminal" para absolverem com fundamento nos principios da insignificancia ou da adeąuaęao social. Enfim, a constatacao cientifica pela criminologia de que nao se deve usar a prisao e o próprio sistema punitivo, posto que instancias criminógenas e que motivam os operadores do direito a utilizaęao da chamada politica criminal em seu cotidiano. Assim, para concluir este tópico, pode-se asseverar que o direito penal, a criminologia e a politica criminal sao os tres pila- res de sustentaęao do sistema integrado das chamadas ciencias criminais. (20) Ha urna certa duvida se o Estado brasileiro, nos ultimos anos, teve urna ou diversas politicas criminais. E que, ao mesmo tempo em que adotou leis mais repressoras, em atendimento ao chamado "Movimen- to da Lei e da Ordem", de cujo paradigma a Lei de Crimes Hedion- dos (Lei 8.072/1990) e a principal referenda, e que se insere no fir- mę propósito denominado de "expansao do direito penal", tambem teve iniciatiyas mitigadoras, consubstanciadas nas Leis 9.099/1995 e9.714/1998, que tem nitidos objetivos de fazer diminuir a carga pu- nitiva do Estado. (21> Em um próximo capitulo voltar-se-a ao tema com urna abordagem mais incisiva sobre o poder da midia na determinacjo de algumas aęóes estatais. Objęto da criminologia: delito, delinąuente, vitima e con- trole social , -,1.3.1 O delito 0 conceito de delito nao e exatamente o mesmo para o direito penal e para a criminologia. Para o direito penal o crime e a a$ao tipica,ilfcitaeculpavel.22Pode-senotar,dessadefmi5ao,queavisao que o direito penal tem do crime e unia visao centrada no compor- tamento do individuo. Ainda que o conceito contemple fatores que se voltam para a generalidade das normas - e por via de conseqiien- cia para a generalidade das pessoas -, como e o caso da ilicitude, nao se pode deixar de mencionar que tal conceito aponta para o caminho natural e cotidiano feito pelos operadores do direito em relaęao aos fatos delituosos: um purojuizo de subsun9ao do fato a norma, juizo esse que e puramente individual. Para a criminolo- gia, no entanto, como o crime deve ser encarado como um fenó- meno comunitario e como um problema social, tal conceituaęao e insuficiente. Ademais, que fatores levam os homens, vivendo em sociedade, a "promover" um fato humano corriqueiro a condięao de crime? E evidente que a evoluęao de novas tecnologias sempre esta a demandar novas intervenęoes nas esferas penais. E assim com a criminalidade que envolve as questoes de bioetica ou aquela re- lativa a informatica. No entanto, o que fez com que os homens, em dado momento de sua evolu$ao histórica, resolvessem criminali- /ar a conduta de corte de certas arvores, algo que a humanidade vinha fazendo por muitos seculos, sem qualquer aęao dos gover- nos que visasse a coibir tal atitude? Ou, ainda, por que durante se- culos e seculos os homens foram inamistosos caęadores e agora pas- s;u ani a punir aqueles que ca9am certos animais, desregradamente? '"' l l , i ( | i u - n i , i l i i MU- i | i u - ;i i n l | i ; i h i l i ( l ; i ( l i - ć u11) IIKTO prc-ssuposlo paraapli- 1 . i ^ . H M h i pcn;i. ( M U c x c n i | ) l ( > H v S l l S , |).un;isio Iwangclisla. Direito l>,n,il p . i i i c p - i . i l \ < i l l | > l t ' i . M I K A I ł l ' 1 , ' ! ' ! 1 ' , , l i i l i n l ' ' : i h h i i i i i . Ma- llllill tli'ilinili'/'<n.il \»\ l |> 'H '» l t 44 CRIMINOLOGIA Em outras palavras, o que se quer saber e: quais sao os criterios ensejadores de cristalizaęao de urna conduta como criminosa? Um dos primeiros autores a enfrentar o problema de se ter um conceito pre-penal de delito foi Garofalo. Em seu intento de criar um conceito materiał de crime, que pudesse sobreviver as trans- formaęoes temporais e espacial, criou um conceito de "delito na- tural" como: "urna lesao daquela parte do sentido morał, que con- siste nos sentimentos altruistas fundamentais (piedade e probida- de) segundo o padrao medio em que se encontram as rac. as huma- nas superiores, cuja medida e necessaria para adaptaęao do indivi- duo a sociedade".23 Se o objetivo do mestre positivista era criar um conceito atemporal, o simples fato de circunstanciar sua de- finięao "segundo os padroes medios das racas humanas superio- res" ja foi o suficiente para eliminar a atemporalidade do concei- to. Na realidade, melhor seria se procurasse criterios adaptaveis segundo o desenvolvimento histórico e social de cada povo, para fazer formulacoes variaveis, conforme o estagio de matura9ao de cada sociedade. Encarando como um problema social e tendo como referen- da os atos humanos pre-penais, alguns criterios sao necessarios para que se reconhe9am nesses fatos condicóes para serem compreen- didos coletivamente como crimes. O primeiro ponto e que tal fato tenha urna incidencia massiva napopulacao. Nao ha que reconhe- cer a condięao de crime a fato isolado, ocorrido em distante local do pais, ainda que tenha causado certa abje9ao da comunidade. Se o fato nao se reitera, desnecessario te-lo como delituoso. Um exem- plo disso aconteceu, anos atras, no litoral do Rio de Janeiro. Houve um encalhe de um filhote de baleia em urna praia carioca e umdos banhistas, que por ali passava, introduziu um palito de sorvete no orificio de respiraęao do animal. Pouco tempo depois, por pressao de entidades ambientalistas, o Congresso Nacional aprova urna lei (23) GAROFALO, Rafaele. Criminlogie. p. 3-4. CONCEITO, OBJĘTO E METODO -O de cinco artigos (Lei 7.643/1987) em que se descrevia a suposta conduta praticada por aquele banhista: molestamento intencional de cetaceo (art. 1.° com a atribuięao de urna pena de 2 a 5 anos). Nem se pretende fazer a critica do verbo utilizado para descrever a conduta praticada por aquele agente, mas tao-somente destacar a impropriedade de, por ocorrencia unica no Pais, promover aquele fato a condięao de crime. O segundo elemento, a concorrer com os demais, e que haja incidencia aflitiva do fato praticado. E natural que o crime produ- za dor, quer a vitima, quer a comunidade como um todo. Assim, e desarrazoado que um fato, sem qualquer relevancia social, seja punido na esf era criminal. Exemplo da inexistencia da dor, que deve ser insita ao crime, e a lei que pune todos aqueles que utilizam, ina- dequadamente, a expressao "couro sintetico".24 E evidente que o vocabulo couro sintetiza a ideia da procedencia animal. No entan- to, provavelmente atendendo aos interesses económicos de empre- sarios dessa area de produęao, convencionou-se punir aqueles que, para descreverem os tecidos sinteticos assemelhados ao couro, passassem a denomina-lo de "couro sintetico". Qual a incidencia aflitiva para a comunidade em denominar um tecido que nao e de procedencia animal como o sendo? Terceiro elemento constitutivo do conceito criminológico de crime e que hajapersistencia espaco-temporal do fato que se quer imputar de delituoso. Nao ha que ter como delituoso um fato, ain- (24) Nos termos da Lei 4.888/1965: "Art. l .° Fica proibido por a venda ou vender, sob o nome de couro, produtos que nao sejam obtidos exclu- sivamente de pele animal. Art. 2.° Os produtos artificiais de imitagao terao de ter sua natureza caracterizada para efeito de exposicao e venda. Art. 3.° Fica tambem proibido o emprego da palavra couro, mesmo modificada com prefixos ou sufixos, para denominar prochi- los nao enąuadrados no art. 1.°. Art. 4.° A infraęao da presenU- l ,i-i constitui o crime previsto no art. 196 e seus paragrafos do ( 'o 1'cnal". 46 CRIMINOLOGIA da que seja massivo e aflitivo, se ele nao se distribui por nosso ter- ritório, ao longo de um certo tempo. Isto ocorreu com os furtos de yeiculos. Sua reiteraęao, sua lesividade ao bem juridico, sua per- sistencia espaęo-temporal, fizeram com que o legislador aumen- tasse a pena desses fatos, ąuando o veiculo fosse transportado para outros Estados ou ąuando transpusesse as fronteiras do Pais (art. 155, § 5.°, do CP). No entanto, muitos outros fatos nao tiveram o mesmo tratamento. Uma moda fugaz, exatamente por sua fugaci- dade, nao deve ser considerada mais do que urna simples moda. Lembram-se, muito mais atitulo de curiosidade, as transformacSes efetivadas pelo movimento da Jovem Guarda nos anos 60. Umas das influencias deitadas por aąuela geraęao de cantores foi a mu- danęa da indumentaria para algo pouco convencional. A utiliza- £ao de colares, roupas coloridas, aneis, nao era muito comum na- ąueles tempos. Certo dia, um daąueles cantores apresenta-se com um "anel de brucutu"; tratava-se de um peąueno materiał, pareci- do com um rosto, e que era retirado dos para-brisas dos velhos "fusąuinhas" e que tinha a finalidade de direcionar a agua para a limpeza dos para-brisas. Foi uma verdadeira febrę. Muitas pessoas passaram a desatarraxar os brucutus dos carros parados, causando grandę desconforto aos proprietarios daąueles veiculos. No entanto, por nao haver persistencia espaęo-temporal, ninguem imaginou ampliar a pena para tal conduta, como se fez com o furto dos Yei- culos, mais recentemente. Por derradeiro, o ąuarto elemento a exigir-se para a configu- ragao de um fato como delituoso e que se tenha um inequivoco consenso a respeito de sua etiologia e de ąuais tecnicas de inter- vencao seriam mais eficazes para o seu combate. Tomemos como exemplo o uso do alcool. Seguramente poderiamos qualificar o alcool como uma droga licita, mas uma droga que produz profun- das consequencias nao somente para todos os dependentes, bem como para todos quantos tem que se relacionar com o adicto. Nao se tem diivida, pois, de que o uso indiscriminado de bebidas alcoó- licas produz conseqiiencias massivas, aflitivas, e de que tais con- CONCEITO, OBJĘTO E METODO 47 seqiiencias tem uma persistencia espago-temporal. Mas ąuantos estudiosos serios proporiam a criminalizagao do uso ou contrabando do alcool? Quantos cometeriam o mesmo erro do passado, no pe- riodo da Lei Seca nos Estados Unidos? Sem duvida, nao sao todos os fatos que, aflitivos e massivos, com persistencia espaęo-tempo- ral, devem ser considerados crimes. Na realidade, qualquer refor- ma penal deveria averiguar o preenchimento dos criterios acima elencados para a verifica$ao do juizo de necessidade da existencia de cada fato delituoso. 1.3.2 O criminoso Desde os teóricos do pensamento classico, o centro dos inte- resses investigativos estava no estudo do crime, definido por aque- les pensadores como um ente juridico. Na realidade, o foco nao se voltava ao estudo do criminoso, ate que surge a perspectiva da es- cola positiva. A partir dai nasce uma especie de dicotomia: crime/ criminoso. Mencionar-se-ao, sucintamente, algumas das perspec- tivas surgidas após esse periodo, pois no decorrer do trabalho tais perspectivas serao aprofundadas pelo estudo das escolas. A primeira grandę perspectiva era a dos chamados classicos, que entendiam ser o criminoso um pecador que optou pelo mai, embora pudesse e devesse respeitar a lei. Tal aporte advem, natu- ralmente, das ideias de Jean Jacąues Rousseau, firmadas em seu O contrato social. Para Rousseau, a sociedade decorria na suas ori- gens da fixa9ao de um grandę pacto. Por meio deste, as pessoas abriam mao de parcela de sua liberdade e adotavam uma conven- 9ao que deveria ser obedecida por todos. Como a premissa natural de todos ąuantos fizeram aquela avenga era a capacidade de com- preender e de querer, supunha-se que qualquer um que quebrasse o pacto fa-lo-ia por seu livre-arbitrio. Assim, se uma pessoa come- tcssc um crime - o cometimento do crime e, evidentemenlc, inna ąuebra do pacto - deveria ser punida pelo deliberado nial causado a comunidadc. A punięao deveria ser proporcional a<> mai causa- 48 CRIMINOLOGIA CONCEITO, OBJĘTO E METODO 49 -• do, a partir da lógica formulaęao dialetica hegeliana segundo a qual a "pena era a nega9ao da negaęao do direito". Tal concep9ao foi duramente criticada pelos autores positi- vistas, que representam uma segunda ordem de visao sobre o mes- mo tema. Para eles o livre-arbitrio era uma ilusao subjetiva, algo que pertencia a metafisica. O infrator era um prisioneiro de sua própria patologia (determinismo biológico), ou de processos cau- sais alheios (determinismo social). Era ele um escravo de sua car- ga hereditaria: um animal selvagem e perigoso, que tinha uma re- gressao atavica e que, em muitas oportunidades, havia nascido cri- minoso. A critica feita pelos positiyistas aos classicos marcou to- das as discussoes e a literatura do finał do seculo XIX e inicio do seculo XX. Muitos se dhddiram entre a pena proporcional ao mai causado (proposta pelos classicos) e a medida de seguranęa com ; finalidade curativa, por tempo indeterminado, enquanto persistis- se a patologia (proposta pelos positivistas). Tambem muitas legis- laęoes adotaram postulados concebidos em tais assertivas, como foi o caso de nosso ordenamento de 1940. Terceira perspectiva quanto ao crime foi a visao correciona- lista, que nao teve grandę importancia no Brasil, mas que influen- ciou, a partir da Espanha, todos os paises da America espanhola.25 Para os correcionalistas o criminoso e um ser inferior, deficiente, incapaz de dirigir por si mesmo - livremente - sua vida, cuj a debil yontade requer umaeficaz e desinteressada intervenęao tutelar do Estado. Assim, o Estado deve adotar em face do crime uma postu- ra pedagógica e de piedade. O criminoso nao e um ser forte e embrutecido, como diziam os positivistas, mas simum debil, cujo ato precisa ser compreendido e cuj a vontade necessita ser direcio- : nada. Embora em nossa doutrina tal perspectiva nao tenha sido tao importante, nao se pode deixar de verificar que os fundamentos para (25) Vide, nesse sentido, a obra de Pedro Dorado Montero, Derecho protector de los criminales. punir, adotados pelos correcionalistas, nao sao muito diversos da visao hoje dominantę para a reproyagao dos atos infracionais pra- ticados por adolescentes, em face da doutrina da proteęao integral. , Outra visao da criminalidade foi aquela concebida pelo mar- xismo que considera a responsabilidade do crime como uma de- correncia natural de certas estruturas economicas, de maneira que o infrator se torna mera vftima inocente e fungfyel daquelas. Quem e culpavel e a sociedade. Cria-se, pois, uma especie de determinis- mo social e económico. E importante ressaltar que Marx jamais se debruęou sobre a materia juridica.26 Tinha sua atenęao voltada para a explicaęao dos fenómenos associados ao modo de producao ca- pitalista. Segundo sua visao, existia uma base de produ9ao (ou infra- estrutura) sobre a qual se assentava uma superestrutura. Esta se constituia em reflexo daquela e, havendo modificaęao da base, naturalmente a superestrutura estaria alterada. Assim, o direito, parte integrante da superestrutura, restaria modificado se a base fosse mudada. O crime, definido pelo chamado "direito burgues", tambem se modificaria com a natural transformac. ao da sociedade, dai por que desnecessario um estudo mais aprofundado do direito pelos marxistas. Dadas as diferentes perspectivas, e em face de todas as dis- cussoes posteriores as concepcoes originais acima formuladas, entende-se que o criminoso e um ser histórico, real, complexo e enigmatico. Embora seja, na maior parte das vezes, um ser absolu- tamente normal, pode estar sujeito as influencias do meio (nao aos determinismos). Se for verdade que e condicionado, tem vontade própria e uma assombrosa capacidade de transcender, de superar o legado que recebeu e construir seu próprio futuro. Esta sujeito a um consciente coletivo, como todos estamos, mas tambem tem a capacidade impar de conservar sua própria opiniao e superar-se, (26) Escreveu poucas passagens, comentarios muito sucintos, oni A ideo- logia alemd e em Critica ao programa de Goliia. 50 CRIMINOLOGIA transformando e transformando-se. Por isso, as diferentes perspec- tivas nao se excluem; antes, completam-se e permitem um grandę mosaico sobre o qual se assenta o direito penal atual. 1.3.3 A vitima Edgard deMouraBittencourt, destacando as dificuldades para estabelecer um conceito unico de vitima, pondera haver "o sentido origindrio, com que se designa a pessoa ou animal sacrificado a divindade; o geral, significando a pessoa que sofre os resultados infelizes dos próprios atos, dos de outrem ou do acaso; ojuridico- geral, representando aquele que sofre diretamente a ofensa ou amea9a ao bem tutelado pelo direito; o juridico-penal-restrito, designando o ihdividuo que sofre diretamente as conseqiiencias da violac.ao da norma penal; e, por firn, o sentido juridico-penal-am- plo, que abrange o indivfduo e a comunidade que sofrem direta- mente as consequencias do crime".27 A vitima, nos dois ultimos seculos, foi totalmente menospre- zadapelo direito penal. Somente com os estudos criminológicos e que seu papel no processo penal foi resgatado. Tem-se convencio- nado dividir os tempos em tres grandes momentos, no que concerne ao protagonismo das vitimas nos estudos penais: a "idade de ouro" da vitima; a neutralizaęao do poder da vitima; e a reyalorizaęao do papel da vitima. Mesmo que tais perfodos encontrem um cer- to questionamento, essa classificaęao e aceita pela maioria dos autores. A idade de ouro da vitima e aquela compreendida desde os primórdios da civiliza9ao ate o firn da Alta Idade Media. Com a adocao do processo penal inquisitivo, a vftima perde seu papel de protagonista do processo, passando a ter uma fungao acessória. "Com o inicio da Baixa Idade Media (seculo XII), periodo marca- do pela crise do feudalismo, pelas Cruzadas e surgimento do pro- (27) Vitima,p. 51. CONCEITO, OBJĘTO E METODO 51 cesso inquisitivo, a yftima inicia seu caminho ramo ao ostracismo, sendo substituida, no conflito de natureza criminal, pelo sobera- no. E, de f ato, um periodo histórico extremamente largo, o que, por si só, faz temeraria qualquer classificaęao e dificulta a exata com- preensao da eyoluęao."28 O fato e que, com o firn da autotutela, da pena de taliao, da composic, ao e, fundamentalmente, com o decli- nio do processo acusatório, ha uma certa perda do papel da vitima nas relaęoes processuais decorrentes de delitos. Na segunda fasę histórica, tem-se uma neutralizaęao do po- der da vitima. Ela deixa de ter o poder de reaęao ao fato delituoso, que e assumido pelos poderes publicos. A pena passa a ser uma garantia de ordem coletiva e nao yitimaria (principalmente a partir do Código Penal frances e com as ideias dominantes do liberalis- mo moderno). A partir do momento em que o Estado monopoliza a reaęao penal, quer dizer, desde que proibe as yitimas castigar as lesSes de seus interesses, seu papel vai diminuindo, ate quase de- saparecer. Mesmo institutos, como o da legitima def esa, aparecem, hoje, minuciosamente regrados. Pode haver reaęao desde que esta seja proporcional a aęao e que respeite certos limites, sem o que havera alguma responsabilidade penal.29 Na realidade, por muito tempo o foco de interesse mais intenso foi em detrimento da viti- ma. Foi centrado nas perspectivas doutrinarias de politica penal; este fato, inclusive por parte de alguns teóricos radicais, demons- trou uma nao declarada solidariedade, nos conflitos, com o reu e um total esquecimento da vitima.30 Em um terceiro momento, revaloriza-se o papel da vitima no processo penal. Desde a escola classica, ja se tem a intuigao da re- levancia desse processo. Carrara chega a afirmar nao ser morał que (28> OLIYEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vitima e o direito penal. p. 19. <29) LANDROYE DIAZ, Gerardo. Yictimologia. p. 23. (30) PONTI, Gianluigi. A vitima. Uma divida a ser paga. Ensnius crimi- nológicos. p. 83. 52 CRIMINOLOGIA CONCEITO, OBJĘTO E METODO 53 os governos se enriąuegam com os valores das multas impostas pelos delitos que nao conseguiram evitar; e morał, ao contrario, que a sociedade, da qual os bons cidadaos tem o direito a exigir prote- cao, repare os efeitos da fracassada vigilancia.31 De outra parte, desde logo, e bom que se observe ser facil surgirem alguns equivo- cos ao enveredar-se pelo estudo de um tema tao envolvente quanto o da Yitimologia. Nao raro surgem propostas em que se tem penas muito severas ou duras prisoes como medidas supostamente com- pensatórias as vitimas. Na realidade, nao se propugna um código mais punitivo, mas sim que os operadores do direito eliminem certos desvios comuns aqueles que se ocupam das coisas da Jus- tięa.32 Este movimento, iniciado ha dois seculos, ainda esta em eyoluęao e encontrou eco em inumeros dispositiyos recentemen- te editados, em que se tem urna grandę preocupaęao com a viti- ma do delito.33 Todavia, a questao da vitima só tem um contorno sistematico em sua abordagem pela criminologia, algo que e muito mais re- cente.34 Seu estudo, feito de maneira mais pronunciada, aparece logo após a 2.a Guerra Mundial, especialmente em face do marti- rio sofrido pelos judeus nos campos de concentraęao comandados por Adolf Hitler. E considerado como fundador do movimento criminológico o advogado israelita Benjamim Mendelsohn, pro- fessor da Universidade Hebraica de Jerusalem, em funcao de urna famosa conferencia proferida em Bucareste, em 1947, intitulada (31) CARRARA, Francesco. Programma del corso di diritto cńminale. Parte generale. vol. l, p. 493.02) Neste sentido, especialmente, o pensamento de Gianluigi Ponti, op. cit, p. 83. (33) Note-se, por exemplo, as recentes reformas feitas no Código Penal, com o advento da Lei 9.714/1998 que adotou medidas indenizatórias as yitimas (art. 45, §§ l.° e 2.°, do CP); bem como o art. 297 do CTB (Lei 9.503/1997) e art. 12 da Lei 9.605/1998. "4) CALHAU, Lelio Braga. Vitima e direito penal. p. 26. Um horizonte novo na ciencia biopsicossocial: a vitimologia.35 Tambem merece destaque o primeiro trabalho de folego a falar de forma sistematica sobre o tema. Trata-se do livro de Hans von Hentig, de 1948, divulgado na Universidade de Yale, intitulado O cńminoso e sua vftima, em que esboęou o autor conjugar uma aju- da da psicologia com o estudo do binómio "ofensor/vitima".36 Al- guns anos mais tarde, sob a presidencia de Israel Drapkin, e reali- zado o 1.° Simpósio Internacional de Yitimologia, em Jerusalem, no Van Leer Jerusalem Foundation Building, de 02 a 06.09.1973, com o patrocfnio da Sociedadc Internacional de Criminologia, do GoYerno de Israel e da Universidade Hebraica de Jerusalem.37 A essc seininario seguiram-se outros, tendo sido o VII Simpósio In- ternacional de Yitimologia realizado no Brasil, em 1991, no Rio de Janeiro.38 A particularidade essencial da vitimologia reside em questionar a aparente simplicidade em relagao a vitima e mostrar, ao mesmo tempo, que o estudo da vitima e complexo, seja na esfera do individuo, seja na inter-relagao existente entre autor e vitima. Os estudos vitimológicos sao muitos importantes, pois per- mitem o exame do papel desempenhado pelas vitimas no desenca- deamento do fato criminal. Ademais, propiciam estudar a proble- (35) OLIYEIRA, Edmundo. Yitimologia e direito penal: o crime precipi- tado pela vitima. p. 7. <36) CALHAU, Lelio Braga. Op. cit. p. 35-36. Hans von Hentig volta ao tema, no ano de 1962, ao escrever um longo capitulo sobre a vitima, em seus aspectos dogmaticos, biológicos e em suas rela9oes com o mundo circundante, inserido no livro El delito: el delincuente bajo la influencia de las fuerzas del mundo circundante, vol. 2, p. 408-570. (37) PELLEGRINO, Laercio. Yitimologia: historia, teoria, pratica e juris- prudencia. p. 3. <38) Neste seminario, muitos estudiosos europeus ficaram vivamente in- teressados na experiencia brasileira da Delegacia da Mulher. A dole gaęao holandesa, especialmente, teve sua aten9ao voltada para o trma por entender ser a experiencia brasileira muito inovadora. ("In.-}',;!! ani a elaborar um relatório a ser encaminhado ao Ministro da . l u s l i v ; i » la Holanda para que pudesse adotar tal medida naąuele- p:us. 54 CRIMINOLOGIA matica da assistencia juridica, morał, psicológica e terapeutica, especialmente naąueles casos em que ha violencia ou grave amea- ?a a pessoa, crimes que deixam marcas e causam traumas, even- tualmente ate tomando as medidas necessarias a permitir que tais Yltimas sejam indenizadas por programas estatais, como ocorre em inumeros paises (Mexico, Nova Zelandia, Austria, Finlandia e em alguns Estados americanos). De outra parte, os estudos vitimoló- gicos permitem estudar a criminalidade real, medianie os informes facilitados pelas yftimas de delitos nao averiguados (cifra negra da criminalidade). Este ultimo aspecto e muito relevante, pois a pri- meira pesąuisa de yitimizaęao norte-americana, de 1966, desco- briu que os crimes relatados eram mais que duas vezes maiores que as estimativas produzidas pelas estatisticas oficiais.39 Ha casos em que a diferenga entre os fatos delituosos ocorridos e os comunica- dos as agencias de controle social e de 99% (para os crimes de da- nos em veiculos) e em crimes sexuais esta em torno de 90%.40 A existencia maior ou menor de comunicagao dos delitos depende da percepcao social da eficiencia do sistema policial; da seriedade ou do montante envolvido no crime; do crime implicar ou nao uma situagao socialmente vexatória para a vitima (estupro, "conto do yigario" etc.); do grau de relacionamento da vitima com o agres- sor; da coisa furtada estar ou nao segurada contra furto; da expe- riencia preterita da vitima com a policia etc. Algumas classificaęoes chegaram a ser imaginadas para com- portar as diferentes perspectivas que se tem sobre o assunto. Tais classificagoes, muitas das quais exaustivas, tentamdelineartodo o arcabouęo existente acerca do fenómeno vitimológico. Nao nos cabe, aqui, enveredar por tal seara, posto nao ser este o objetivo deste trabalho.41 No entanto, parece ser necessario, apenas para (39) KAHN, Tulio. Pesąuisas de yitimizaęao. Revista do Ilanud, n. 10, p. 8. (40) Idem, ibidem, p. 12. (41) Ha farta literatura sobre o assunto. Podem-se mencionar, dentre outros: FERNANDES, Antonio Scarance. Opapel da vitima noprocesso cri- CONCEITO, OBJĘTO E METODO 55 adotar um parametro consagrado na literatura especifica, estabe- lecer a diferenęa entre vitimizacao primaria, secundaria e terciaria. Considera-se haver Yltimaprimaria quando um sujeito e diretamen- te atingido pela pratica de ato delituoso.42 A vftima secundaria e um derivativo das relaęoes existentes entre as yitimas primarias e o Estado em face do aparato repressivo (policia, burocratizaęao do sistema, falta de sensibilidade dos operadores do direito envolvi- dos com alguns processos bastante delicados etc.). Ja a vitima terciaria e aqucla que, mesmo possuindo um envolvimento com o falo delituoso, tem um sofriinenlo excessivo, alem daquele deter- minado pcla lei do pafs. li o caso do acusado do delito que sofre seyfcias, torluras ou oulios l ipos dc violćncia (as vezes dos pró- prios presos), ou c|uc icspoiuk- ;i |Moccssosqueevidentementenao Ihe devcriam ser impi i tados (ex.: caso da Escola Base). l >' / Controle social do delito No anibi lo da sociologiade origemnorte-americana a expres- sao conlrole social e familiar desde o inicio do seculo XX, com o advento de alguns artigos escritos por Edward A. Ross.43 Toda so- ciedade (ou grupo social), desde que Max Weber introduziu a ideia de "monopólio da forca legitima", necessita de mecanismos disci- plinares que assegurem a convivencia interna de seus membros, razao pela qual se ve obrigada a criar uma gama de instrumentos que garantam a conformidade dos objetivos eleitos no piano so- minal; BUSTOS RAMIREZ, Juan; LARRAURI, Elena. Yictimologia: presente y futuro; KOSOYSKI, Ester; SEGUIN, Elida (Org). Temas de vitimologia; NEUMAN, Elias et al. Yictimologia. (42) Segundo Gerardo Landrove Diaz, tais Yltimas podem ser divididas em: fungiveis, acidentais, indiscriminadas, participantes, alternati- vas, yoluntarias, familiares, especialmente vulneraveis, simbólicas ou falsas yitimas (Op. cit. p. 40 e ss). (43) BERGALLI, Roberto. Contml socialpunitivo: sistema pciuil c instandas de aplicación (połicia, jurisdicción y carcel). p.0(). r 56 CRIMINOLOGIA CONCEITO, OBJĘTO E METODO 57 ciał. Este processo ira pautar as condutas humanas, orientando posturas pessoais e sociais. Dentro desse contexto, podemos defi- nir o controle social como o conjunto de mecanismos e sangoes sociais que pretendem submeter o individuo aos modelos e normas comunitarios. Para alcangar tais metas as organizacoes sociais lan- gam mao de dois sistemas articulados entre si. De um lado tem-se o controle social informal, que passa pela instancia da sociedade ci- vil: familia, escola, profissao, opiniao publica, grupos de pressao, clubes de seryigo etc. Outra instancia e a do controle social formal, identificada com a atuagao do aparelho politico do Estado. Sao con- troles realizados por intermedio da Policia, da Justiga, do Exercito, do Ministerio Publico, da Administragao Penitenciaria e de todos os consectarios de tais agencias, como controle legał, penal etc. Quando as instancias informais de controle social falham, entram em agao as agencias de controle formais. Assini, se o indi- viduo, em face do processo de socializagao, nao tem urna postura em conformidade com as pautas de conduta transmitidas e apren- didas na sociedade, entrarao em agao as instancias formaisque atua- rao de maneira coercitiva, impondo sancoes qualitativamente dis- tintas das reprovagoes existentes na esfera informal. Este controle social formal e seletivo e discriminatório, pois o status prima so- bre o merecimento. Ademais, e ele estigmatizante, desencadean- do desviacoes secundarias e carreiras criminais, o que sera apro- fundado em capitulo posterior. A efetMdade do controle social formal e muito menor do que aquela exercida pelas instancias in- formais. E isso que explica, por exemplo, ser a criminalidade mui- to maior nos grandes centros urbanos do que nas pequenas comu- nidades (onde o controle social informal e mais efetivo e presen- te). De outra parte, nas grandes cidades, onde os mecanismos de controle informais nao sao tao presentes, ha de se buscar urna me- Ihor integragao das duas esferas de controle.44 (44) O permanente interesse na busca das policias comunitarias, forma de policiamento em que se entrelacam as duas esferas de controle so- cial, decorre da (teórica) melhor articulaęao dessas duas esferas. A efetividade do controle social e sempre relativa. Com razao Jeffery, citado por Antonio Garcia-Pablos de Molina e Luis Flavio Gomes, afirmava que "mais leis, mais penas, mais policiais, mais juizes, mais prisóes significam mais presos, porem nao necessa- riamente menos delitos. A eficaz prevengao do crime nao depende tanto da maior efetividade do controle social formal, senao da melhor integragao ou sincronizacao do controle social formal e informal".45 Tal relatMsmo e, em tudo e por tudo, aplicavel as res- postas penais, dai por que sao do interesse geral respostas nao tao (aparentemente) duras - com a utilizacao dos efeitos meramente simbólicos dapena-como as que o Pais vivenciou nos ultimos anos (Lei de Crimes Hediondos, do Crime Organizado etc.). A pena, nas sociedades avangadas, implica um vfnculo de autoridade entre quem reprova e quem e reprovado. O primeiro diz ao segundo: voce e o responsavel, vale dizer, culpavel, por um de- terminado fato delituoso e por isso ha de ser condenado; o segundo aquiesce e, ao faze-lo, anui a sua culpa e reconhece o vmculo de autoridade. Instaura-se, dai, o reconhecimento de que o direito penal e um instrumento de controle social que trabalha no niesmo senti- do de outros instramentos controladores. Diferencia-se de outros instramentos de controle social em face de seu aspecto formal, urna vez que carrega consigo a ameaęa concreta e racional da sancao. As outras formas de sancao - como o controle etico - manifestam- se informal e espontaneamente. As de direito penal, ao contrario, ajustam-se a um procedimento determinado, limitado por parame- tros definidos pela consagracao do princfpio da legalidade, e só atuam quando todas as outras instancias de controle social nao atua- rem. Numa terminologia moderna, "o direito penal, junto com outros instramentos de controle social medianie sangoes, forma parte do controle social primario, por oposicao ao controle social <45) JEFFERY, C. P. Criminology as an interdisciplinary behavioral science. Criminology,n. 16, p. 149-169, apudGARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, Luis Flavio. Op. ci i . p. 105. 58 CRIMINOLOGIA secundario, que trata de internalizar as normas e modelos de com- portamento social adeąuados sem recorrer a san9&o nem ao pre- mio (por exemplo, o sistema educativo)".46 O conceito acima expendido remete-nos ao pensamento dual de Estado, compreendendo sociedade civil e sociedade polltica, que foi consagrado por Antonio Gramsci, e que serve de fonte de estu- dos do Estado moderno. A sociedade civil e um conjunto comple- xo e abrangente, tendo em seu campo: a ideologia da classe diri- gente, das artes a ciencia, incluindo a economia; a concepgao de mundo difundida por toda a sociedade e que advem da filosofia, da religiao, do senso comum, do folclore etc. Atuam como elementos multiplicadores dessa hegemonia existencial os instrumentos tec- nicos de difusao da ideologia, como o sistema escolar, a midia em suas diferentes esferas, as bibliotecas, os artistas de rua etc. Em contrapartida, a sociedade polltica concentra o aparato juridico- coercitivoparamanter,pelaforca, aordemestabelecida. Compreen- de o exercito, a polfcia, o aparelho burocratico, as esferas de go- verno etc. Dessa concepęao dual surge o conceito de Estado, com novas determinacóes, comportando duas formas de dominagao: urna representada pela hegemonia (sociedade civil) e outra pelo poder coercitiyo (sociedade polltica). A complexidade do Estado moderno faz com que a dominagao habitual, em decorrencia da hegemonia, seja a usada diuturnamente. Nos momentos de crise organica, a classe dirigente perde o controle da sociedade civil e apóia-se na sociedade polltica para lograr manter sua dominaęao.47 Nas sociedades menos diferenciadas e em torno da sociedade po- litica que a luta se concentra; nas sociedades mais complexas, o essencial do combate ideológico se da no ambito da sociedade ci- vil. Na esfera e por meio da sociedade civil, as posięoes controver- sas buscam exercer sua hegemonia mediante a direęao polltica e o (46) BACIGALUPO, Enriąue. Manual de derecho penal. p. l. w pORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. p. 31. CONCEITO, OBJĘTO E METODO 59 consenso; por meio da sociedade polltica, ao contrario, as classes exercem urna dominacao mediante a coeręao.48 No piano juridico-penal, a analise sociológica tem mostrado que esse sistema penal nao atua de forma isolada. Ele deve ser vis- to como um subsistema encravado dentro de um sistema de con- trole social e de selecao de maior amplitudę existente dentro do Estado. Identificar esse sistema de penas com a repressao extre- mada da criminalidade e aproximar o direito penal do sistema coer- citivo das sociedades politicas. Ao contrario, distanciar a repres- sao penal da pratica corriqueira dos ilicitos e contextualizar a pena dentro do processo dialógico inerente a sociedade civil. A contra- digao entre o controle penal absoluto e o direito penal, usado como ultima instancia de controle, e reflexo direto da dualidade existen- te entre sociedade polltica e sociedade civil, entre o regime ditato- rial e o regime democratico. Pretender utilizar a pena como meio de ordenar condutas dos cidadaos, alem do minimo essencial, irre- mediavelmente levara a arbitrariedade e ao autoritarismo do regi- me. Nao e por outra razao que as ditaduras extremaram as formas de controle social - e penal - em detrimento das formas de dissuasao, acentuaram o interesse de proteęao da sociedade em prejuizo da assecuraęao da liberdade individual. A pena privativa de liberdade e a forma mais extremada de controle penal. E sabido que o regime penitenciario reguła de modo minucioso todos os momentos da vida do condenado, podendo despersonaliza-lo e converte-lo num automato. A própria arquite- tura prisional visa a induzir no detento um estado consciente e per- manente de visibilidade, que assegura de forma plena o controle de suas aęoes. Dentro do contexto do carcere, "a punięao e urna tecnica de coer9ao dos indiyfduos; ela utiliza processos de treina- mento do corpo - nao sinais - com os traęos que deixa, sob a forma de habitos, no comportamento; ela supóe a implantaęao d^ um poder (48) COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. p. 92. 60 CRIMINOLOGIA especifico de gestao da pena. O soberano e sua forca, o corpo so- cial, o aparelho administrativo. A marca, o sinal, o trafo. A ceri- monia, a representaęao, o exercicio. O inimigo vencido, o sujeito de direito em vias de reąualificaęao, o individuo submetido a urna coeręao imediata".49 A pena privativa de liberdade (como de resto todas as penas) tem um vmculo umbilical com o próprio Estado que a criou. A pena e um instrumento assecuratório do Estado, a reafirmacao de sua existencia, urna necessidade para sua subsistencia. A pena surge ąuando fracassam todos os controles sociais, e por isso mesmo e mais que um controle: e expressao absoluta de seu carater repres- sivo. E, dessa forma, como controle e como repressao do Estado, manifesta-sena especificacao de determinadas relacóes concretas que aparecem desvaloradas pelo próprio Estado.50 Nao e por outra razao que só deyemos utilizar os mecanismos formais de controle social, entre os quais as penas se incluem, quando falharem as de- mais formas de controle social. E o que o direito chama de ultima ratio regum, principio informador de todo o direito penal consubs- tanciado no chamado direito penal minimo. 1.4 Metodo da criminologia A reflexao sobre o metodo da criminologia permite identifi- car um extenso conjunto de questocs e materias que integram o problema criminológico. O que hoje denominamos saber cientifi- co esta diretamente ligado ao ideał iluminista, fonte de nossos co- nhecimentos e base de nossas instituicóes. A ciencia como forca relevante para o homem comecou com Galileu Galilei (1564-1642), existindo ha mais de trezentos e cinqiienta anos. Se na primeira (49) FOUCAULT, Michel. Yigiarepunir: historia da violencianasprisoes. p. 116. (50) BUSTOS RAMIREZ, Juan. Bases cńticas de un nuevo derecho pe- nal. p. 143. CONCEITO, OBJĘTO E METODO 61 metade desse periodo nao houve qualquer modificacao no cotidia- no do ser humano comum, o esforęo dos sabios traduziu-se em grandes transformac.5es para toda a humanidade, no periodo pos- terior. Nesta ultima metade, em que acentuadamente se cultuou a ciencia, as transforma9oes foram mais revolucionarias que cinco mil anos de cultura pre-cienttfica. Este processo, acelerado pelo ideał da Ilustracao, colocou os cidadaos no centro do sistema, fa- zendo com que os processos investigatórios abarcassem todas as pessoas que vivem em comunidade. A ciencia trata em primeiro lugar de conhecimentos, que sao de determinado tipo, procurando leis gerais que liguem certo numero de fatos particulares. Na rea- lidade, a ciencia nao passa de urna forma de procurar o conheci- mento; e, em outras palavras, um metodo de busca cientifica, dai por que muitos chegam a afirmar que os conceitos de ciencia e metodo51 sao empregados como sinónimos. Assim, o que mais in- teressa nessa forma de conhecimento e o dominio da natureza e da realidade, o que se faz por meio de urna tecnica, cuja importancia pratica sera abordada. "O metodo cientffico, embora nas formas mais perfeitas pos- sa parecer complicado, e, em essencia, notavelmente simples. Consiste na observacao de fatos que permitam a descoberta de leis gerais que os goyernem."52 E, em outras palavras, um instrumento capaz de levar seu espirito a conquista da verdade.53 Na origem, especialmente na area das ciencias da natureza (exatas ou duras), os primeiros cientistas partiam da obseryaęao de fatos particulares chegando ao estabelecimento de leis quantitativas exatas, e, por meio dessas, fatos particulares futuros poderiam ser preditos. Des- cartes chegou a mencionar quatro preceitos que deveriam neces- sariamente ser observados para chegar-se ao conhecimento cientf- (51) ELBERT, Carlos Alberto. Manual..., cit., p. 30. (52) RUSSEL, Bertrand. A perspectiva cientifica. p. 13. <53) DESCARTES, Renę. Discurso do metodo, p. 3 J, 62 CRIMINOLOGIA fico e, pois, a verdade: "o primeiro consistia em nunca accitar, por verdadeira, coisanenhuma que nao conhecesse como evidcnte; isto e, devia evitar cuidadosamente a precipitaęao e a prevencao; e nada incluir em meus juizos que nao se apresentasse tao clara e tao dis- tintamente ao meu espirito que nao tivesse nenhuma ocasiao de o por em duvida. O segundo - dividir cada urna das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas pudessem ser e fossem exi- gidas para melhor compreende-las. O terceiro - conduzir por or- dem os meus pensamentos, comecando pelos objetos mais simples e mais faceis de serem conhecidos, para subir, poucoiipouco, como por degraus, ate o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo certa ordem entre os que nao precedem naturalmente uns aos outros. E o ultimo - fazer sempre enumeracoes tao completas e revisoes tao gerais, que ficasse certo de nada omitir".54 As regras elencadas por Descartes sao a da evidencia; a da divisao ou anali- se; a da ordem ou deducao; a da enumerac. ao. Desse procedimento regrado chega-se a conclusao de que urna opiniao sera considera- da cientifica quando ha urna razao para acreditarmos que seja ver- dadeira; e uma opiniao, ao contrario, nao o e quando emitida por motivo diverso que o de sua provavel verdade.55 A semelhanca do que ocorre com as demais ciencias, particu- larmente as ciencias humanas, a investigac.ao criminológica nao obedece a um unico principio nem se atem a metodos que possam ser enclausurados em uma unica perspectiva. A investigacao pode ser definida como o uso de processos padronizados e sistematicos na procura do conhecimento.56 O destaque dessa forma especifica e metódica de conhecimento cientlfico esta exatamente nos elemen- tospadronizaędo e sistematizagdo. No entanto, mesmo estando este conhecimento em consonancia com determinados padroes siste- <54> DESCARTES, Renę. Discurso do metodo, p. 85-86. (55) RUSSEL, Bertrand. Op. cit. p. 15. (56) MANNHEIM, Herman. Criminologia comparada. vol. I, p. 117. CONCEITO, OBJĘTO E METODO !> 1 maticos a serem seguidos, nao se pode deixar de mencionai sn cm eles muito pouco obj etivaveis na esfera das ciencias hu m a 11; i s. N a s ciencias duras - de onde as ciencias do homem buscaram sen pa drao, por analogia - a ideia de ciencia imparcial, pura, objęli v; i , ainda pode ser sustentavel. Nao o e, no entanto, nas ciencias d « « homem, salvo sob o enfoque positivista que aqui nao se adota. N;J realidade, nas ciencias humanas - e, em particular, na criminolo gia - tem o saber um valor intimamente ligado ao jogo do poder. As relacoes de forca que se dao entre esses elementos se condicio- nam mutuamente e contribuem para a estrategia do conhecimen- to. Assim, tal conhecimento e uma forma de vida, uma concepgao do mundo, o que aponta para umaprdxis.51 Nao obstante reconhe- cer tal parcela de subjetividade nesse conhecimento, nao se deve, só por isso, descurar a visao segundo a qual a possibilidade de se atingir uma "verdade cientifica" só sera posswel com alguns pro- cedimentos e cuidados nessa investigacao. Na criminologia, ao contrario do que acontece com o direito, ter-se-ao a interdisciplinaridade e a visao indutiva da realidade. A analise, a observacao e a induęao substituiram a especulagao e o silogismo, distanciando-se, pois, no metodo abstrato, formal e dedutivo dos pensadores iluministas, chamados de classicos. Tal metodo - observe-se - ainda hoje e utilizado pelos operadores do direito. Assim, pode-se afirmar que a abordagem criminológica e empirica, o que significa dizer que seu objęto (delito, delinquente, vitima e controle social) se insere no mundo do real, do verifica- vel, do mensuravel, e nao no mundo axiológico (como o saber nor- mativo). Yale dizer, ela se baseia mais em fatos que em opinióes, mais na observacao que nos discursos ou silogismos. Como os fa- tos humanos encontram uma riqueza incomensuravel, muitas ve- /es nos limites do imperscrutavel, demanda-se alargar a esfera do conhecimento, fazendo com que muitas pesquisas sejam feitas - i i * ( V / ) Nesse sentido o pensamento de Lola Aniyar de Castro, < 'nm/n, •/. - gia..., cit., p. 9, e Carlos Alberto Elbert, Manual..., c i i . , p • l 64 CRIMINOLOGIA eąuipes, com visoes diferenciadas da realidade, em face das for- magoes distintas e que possam contemplar diferentes perspectivas interpretativas. Dai a necessidade da interdisciplinaridade, em que se acomodam sob a mesma investigacao psiąuiatras, psicólogos, ass;stentes sociais, estatisticos, juristas etc. Iiwestigando em faixa própria, as ciencias que subsidiam a criminologia inter-relacionam- se, interpenetram-se, interagem-se e completam-se, e e desse rico contexto que a criminologia sorvera suas conclusSes.58 De outra parte, a explicagao do fenomeno criminal nao pode prescindir de dados, de informagoes, sem as quais nao se pode inferir nada, e concluir sobre resultados que possam vir a ser generalizados. Toda pesquisacontempla algumas dificuldades inerentes ao seu objęto. O acesso ao materiał de investigacao pode ser dificil emmuitas disciplinas, mas e particularmente complexo quando se lida com questoes que envolvem a criminalidade. Ha o medo da estigmatizacao dos condenados; os envolvidos com f atos delituosos nao se sentem a vontade para dar entrevistas para pesquisadores que nao sao seus conhecidos; muitos pais ou professores sao refra- tarios a perguntas sobre delinqiiencia de seus filhos ou alunos; au- toridades policiais e da administracao prisional tendem a nao for- necer informacoes sobre fatos considerados "sigilosos" etc. Mui- tas destas situaęoes concorrem quando se investigam areas sensi- veis da criminalidade. Grandę parte dessas experiencias, por exem- plo, foi vivenciada pela excelente pesquisa levada a cabo por Kiko Goifman, junto a penitenciaria de Campinas. Tendo trabalhado na esfera antropológica com a imagem do preso, o autor narra quao arredio era o interno a qualquer tipo de abordagem que priyilegiasse a imagem como forma de registro. "Yarios internos, envolvidos em problemas com outras quadrilhas fora dos muros da cadeia, nao concordaram em mostrar suas imagens. Outros tinham parentes ou (58) Quanto a relevancia dos trabalhos em eąuipe, veja-se: ALBERGA- RIA, Jason. Op. cit. p. 39; FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter.Op.cit. p. 31. CONCEITO, OBJĘTO E METODO 65 amigos que nao sabiam que estavam presos e assim preferiram nao aparecer no video. Alguns ainda temiam um reconhecimento fu- turo, optando por esconder sua situagao para nao sofrerem com o rótulo estigmatizante de ex-presos."59 Por outro lado, mesmo aque- les que se negaram a aparecer no video com depoimentos acaba- ram solicitando que fossem filmados trabalhando nas oficinas, la- vanderias etc.60 De outra parte, nao raro, a própria diregao do pre- sidio cria algumas dificuldades, colocando empecilhos a livre cir- culacao dos pesquisadores, receosa de que estes venham a denun- ciar eventuais faltas de carcereiro, atos de corrupgao de guardas de presidio etc. Ademais, ha certos interesses na limitacao da infor- magao por parte das pessoas que Udam com o sistema prisional. Isso ocorreu no Brasil, logo no inicio da divulgacao de fatos acerca da epidemia de Aids realizadapor varios órgaos de imprensa. Muitos governos estaduais sonegaram informagoes sobre o preocupante avango da epidemia, quer para ocultar os alarmantes indices da doenca, quer por nao ter recursos suficientes para urna efetiva po- litica de saiide dentro do sistema prisional. A segunda dificuldade na investigaęao metodológica resulta da existencia de ideias preconcebidas na pessoa do investigador. Urna pessoa que, conscientemente ou nao, e possuidora de deter- minados valores esta, provavelmente, inclinada a tomar urna certa direęao e isto, como premissa do trabalho, pode determinar um resultado que nao expresse a realidade. Em minha dissertacao de mestrado cheguei a incorrer em urna dessas falhas. Enfatico de- fensor da prestacao de seryigos a comunidade, como alternativa a pena privativa de liberdade, cometi a impropriedade de dizer que a aplicaęao daquela pena, pelos dados por mim coletados sobre rein- c-idencia, quando cotejados com os indices gerais de reincidencia no Brasil, diminuia a criminalidade secundaria, algo que deman- ' '" (5OIFMAN, Kiko. Yaletes em slow motion. p. 98. """ Idem, ibidem, p. 53. 66 CRIMINOLOGIA CONCEITO, OBJĘTO E METODO 67 daria outros dados nao colhidos empiricamente na pesąuisa, só visualizaveis por meio de tecnicas de grupo de controle.61 Tambem se traduz em grandę dificuldade o filtro que se deve ter sobre as opcoes ideológicas da pesąuisa. Isto e, deve o homem assumir a natureza de membro social e, portanto, participante ativo das deci- s5es sociais vinculadas ao exercicio da cidadania. Como ja se disse anteriormente, as ciencias humanas, por sua própria natureza, nao podem ter um carater neutro como os autores positMstas afirma- vam. De outra parte, nao se pode deixar que as concepcoes pes- soais e ideológicas do pesquisador sirvam como um mero instru- mento de demonstracao de um fato inexistente, por razoes meno- res, em face da ideia de ciencia. Outros problemas decorrem da necessidade de resultados pra- ticos imediatos, seja em funcao dos interesses da agencia financia- dora, seja pelos prazos (nao raro) exiguos para apresentaęao dos resultados. Muitas vezes, a sociologia, como investigacao "pura", cede espaco a criminologia, como investigacao "aplicada". E que, muitas vezes, a investigacao criminológica esta associada a uma pronta intervencao na realidade, que Ihe sucedera. Dificuldade muito grandę a ser enfrentada e a de se ter um perfeito trabalho organizado em torno de uma equipe. Embora seja necessaria a utilizacao de grupos interdisciplinares, com diferen- tes saberes, aparticipacao de individuos possuidores de diferentes capacidades ou f ormacóes cientfficas, com diversos interesses, por si só ja traduz uma grandę dificuldade nas abordagens criminoló- gicas. Os Gluecks, no classico trabalho Unravelling Juvenile Delinąuency, leyaram a cabo uma pesquisa com um enorme grupo de apoio, com diferentes investigadores sociais, contemplando psicólogos, psiquiatras, especialistas em teste de Rorschach, an- (61) SHECAIRA, Sergio Salomao. Prestaęao de servięos a comunidade: alternativa a pena privativa de liberdade. p. 71 e ss; sobre as tecnicas de grupo de controle veja-se sua explica9ao neste mesmo capitulo. (ropólogos e peritos de estatistica, nao tendo, porem, nenhum so- dólogo, omissaoja varias vezes criticada.62 Dentre os metodos empiricos consagrados, e necessario um scntido de replica para dar ao trabalho a possibilidade de cotejo. Duas sao as formas basicas: estudos diacrónico e sincronico. Pelo primeiro, o projeto tende a investigar ate que ponto tal pesquisa tlilere, no seu escopo, de elementos, tecnicas e conclusoes das dos sens predecessores. E muito pouco provavel que, dentro de uma clcterminada investigaęao de cunho histórico, e dentro de um con- texto evolutivo, tenham-se rompimentos epistemológicos signifi- cativos. Isto e, se, em determinado pais, sempre houve violencia l^olicial, os estudos que apontam questoes como a tortura dentro de distritos policiais nao podem ser feitos sem que haja uma comparacao com estudos equivalentes anteriores. De outra parte, tambem nao se deve prescindir de estudos sincrónicos, para que os resultados sejam comparados com estudos interculturais, colhidos em outros paises ou em outras regiSes do mesmo pais. Tais abor- dagens dao ensejo a uma possivel "sintonia fina", nos dados colhi- dos, por meio da chamada replica.63 Desde 1989 o Unicri (United Nations International Crime and Justice Research Institute) reali- za pesquisas de yitimizacao que envolvem mais de cinquenta pai- ses em todo o mundo. No Brasil, tais pesquisas sao realizadas por intermedio do Ilanud - Instituto Latino Americano das Nacóes Unidas para a prevencao do delito e tratamento do delinqiiente - e permitem um cotejo com outros paises, essencial para o conheci- mento da nossa realidade criminal. Apenas a titulo de mencao, pode- se lembrar a pesquisa feita em 1992, mostrando os dados compa- rativos entre crimes praticados em diversos paises europeus e ame- ricanos. Dessa simples constatacao empirica varias conclusoes ("2) MANNHEIM, Hermann. Criminologia..., cit., vol. I, p. 145. "'•'' Os cotejos sincrónicos e diacrónicos recebem, no direito, os nonies dedireito comparado e historia, respectivamente, e sao muito cominis nas teses doutorais mais academicas. 68 CRIMINOLOGIA podem ser tiradas: a relacao existente entre a pobreza e a crimina- lidade; a maior utilizacao das agencias de controle social formal, sempre que o pais tenha sólidas instituicoes policiais com credibi- lidade; indices de comunicacao de delitos sexuais mais ou menos homogeneos em diversos paises do mundo, mesmo naąueles mais desenvolvidos, o que mostra que alguns crimes nao tem urna liga- cao direta com problemas economicos do pais
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