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Notas de uma Magra Trincheira de Roberto DaMatta

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 Notas de uma magra trincheira 
 Roberto DaMatta 
 
As manifestações cujo término eu espero que seja o voto contra tudo isso que ai está, 
nas eleições, tem arcabouços bem marcados. Não estamos mais diante de um 
movimento milenarista embandeirado nas chamadas “grandes ideias” que carimbaram o 
século 19 e pariram pogroms, holocausto, duas guerras mundiais e ditaduras no século 
20, mas diante de um protesto pelo bom senso. Assistimos a uma convocação em rede 
para propor um novo estilo de governar. 
 
O verdadeiro significado de um mundo em rede não é o seu lado formal, como 
enfatizam alguns dos seus teóricos, mas é o que as redes circulam como drama sem o 
teste dos preconceitos. Sobretudo dos tabus teóricos segundo os quais uma coisa deve 
vir depois da outra. Mentira. O movimento mostra como coisas aparentemente pequenas 
servem de texto para grandes causas. A realidade de um mundo conectado não é a rede, 
é a impossibilidade de profetizar o futuro ao lado da certeza de que a política exige 
honradez para ser praticada. A rede somente revela que suportar a vida continua a ser — 
como dizia Freud — o primeiro dever dos vivos. 
 
O que o povo quer é ônibus confiável e barato, se possível, gratuito; menos corrupção, 
segurança, saúde e educação. Ora, esse é o programa dos partidos no poder e, no 
entanto, é essa demanda que forma o centro das manifestações. 
 
O que há de novo? Primeiro, como observa Elio Gaspari, a ausência dos famosos, dos 
santos e dos que sabem tudo. As passeatas que se alastram como um carnaval cívico não 
são englobadas por nenhuma organização poderosa: governo, partido político, sindicato, 
MST, movimento estudantil ou algum grupo cósmico-religioso clamando pelo fim do 
preconceito de gênero, do sofrimento ou do pecado. O que temos visto é a reunião na 
rua (não num palácio, universidade, assembleia e fórum político) de milhares de 
miniprotestos, os quais, mesmo quando escritos em linguagem pitoresca, falam de 
coisas práticas e são apresentados individualmente. 
 
Há uma recusa significativa aos partidos políticos justamente porque eles são o sinal do 
imobilismo e do enriquecimento em nome da mudança. O movimento traz à tona 
lugares comuns esquecidos pelos políticos no poder (e hoje, com a tal coalizão, só há 
uma minoria fora dele). A manifestação não é um manifesto contra a democracia liberal, 
mas ao estilo de como essa democracia tem se concretizado no Brasil. Ela denuncia a 
ausência de encontro da sociedade com o governo. Governo que, no Brasil de Lula e 
Dilma, tem sido muito mais um instrumento de aristocratização do que de resolução de 
problemas, o próprio sucesso que o sistema tem apresentando como o do poder de 
compra e da estabilidade monetária.O bom senso não tem partido. Ele é uma simples 
conta de chegar entre meios e fins. 
 
Não se impede uma guerra com missas do mesmo modo que não bastam leis, politicas 
públicas de redistribuição de renda e instituições, pois é preciso honestidade e 
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motivação para fazê-las funcionar e, assim, torná-las um instrumento da sociedade 
como um todo. Não adianta uma Constituição inspirada na gloriosa França da Bastilha 
sem franceses para colocá-la em prática! Por isso o bom senso faz parte das rotinas 
democráticas, conforme viu Tocqueville. Segurança, educação, transporte confiável e 
cumprimento de promessas feitas pelo próprio governo petista que está — eis um ponto 
implicitamente lembrado pelos manifestantes — no poder e que governa o Brasil. Não 
há mais como eleger um bode expiatório para incompetências (inflação, 
desmantelamento da Petrobras), escândalos, mensalão sem desfecho; obras 
superfaturadas de toda ordem, bem como os elos espúrios entre grandes empresários e 
políticos. De PECs que visam claramente a castrar o poder de apuração do povo, 
ampliando a zona cinzenta de uma intolerável impunidade, etc., etc., etc... 
 
Quando uma coisa tão básica como a rua sai de sua função normal de trânsito entre o lar 
e o trabalho, percebemos a gravidade do problema. Ao lado da passeata, houve 
vandalismo. Mas, pergunto eu com meus companheiros de trincheiras magras, Jorge 
Moreno e Luiz Werneck Vianna, quem atirou a primeira pedra? Quem disse que o 
“bicho ia pegar?” Quem errou ao mudar a data do Bolsa Família, levando milhares aos 
balcões da Caixa Econômica Federal no bojo do boato de que o beneficio ia acabar ou, 
pelo contrário — e isso não pode ser suprimido —, ia ser dado em dobro? A quem 
interessa impedir a criação de novos partidos e tem feito tudo para eles sejam 
legalmente sufocados? 
 
O que ocorreu com os 1,3 milhão de votos no sentido de impedir a posse do atual 
presidente do Senado? Como lembra Jorge Moreno, 1,2 milhão saíram às ruas, mas 
quem jogou os votos legais na lata do lixo? Quem vandaliza? Eis o que não pode calar 
se quisermos ter um mínimo de sinceridade quando, antes de dormir, nos olhamos no 
espelho. Quem, afinal de contas tem, como perguntou outro dia Dora Kramer, a faca e o 
queijo na mão? 
 
 
Roberto DaMatta é antropólogo 
(artigo publicado no Jornal O Globo,26 Junho-2013)

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