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AMOR DE SALVAÇÃO

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AMOR DE SALVAÇÃO (Camilo Castelo Branco)
Conclusão
(...)
"Há dez anos que vivo em Ruivães. Neste longo espaço, apenas tenho acompanhado minha mulher a observar a cultura das suas quintas, que ela teima em chamar minhas. Mafalda tem vagas ideias do que é um baile, e eu pude esquecer as ideias que tinha. Dizem que a convivência de anos entre esposos, que muito se amam, traz consigo de seu natural uns silêncios significativos do esfriamento das almas. Eu não 84 sei o que seja esse arrefecer. O Céu e a Terra estão continuamente abertos ante meus olhos; de cada vez que os contemplo, a cada alvorecer, e fim da tarde, os maravilhosos poemas dão-me sempre a ter uma página nova, e Mafalda traduz mais pronta que eu os hieroglíficos da Divindade. Falamos de Deus e dos filhos, contemplamos o boi que nos encara soberbo, a avezinha gemente que pipila, a fonte que suspira e a catadupa do ribeiro que ruge. A natureza é a terceira voz dos nossos colóquios, umas vezes amor, outras vezes ciência, e sempre admiração e perfumes ao Eterno, que nos encheu de delícias e enflorou o caminho da velhice. 
"Ecos do mundo nenhum chega ao nosso ermo. A mim, os homens que me viram consideram-me morto uns, outros porventura me lastimam embrutecido entre os meus fraguedos. Tive cartas a que não respondi; fui procurado por ociosos, a quem recebi na minha sala de visitas, com uma cerimónia que os afugentou. Afligiam-me as testemunhas do meu vilipêndio e temia que elas proferissem um nome que soaria como blasfémia no santuário de minha família.
 "Aspei todos os vestígios que pudessem recordar Teodora. Entre os papéis de meu tio Fernão, numa gaveta secreta, encontrei o copiador das cartas dela. Minha mulher surpreendeu-me neste descobrimento, viu e compreendeu, sorriu-se e disse: "Meu pai nunca me deixou ver isto, bem que eu soubesse da existência deste livro - Triste sorte a desta senhora!, mal diria a mãe que tão virtuosamente a educou!" Únicas palavras que Mafalda proferiu com referência a Palmira! 
"Aqui tens a minha vida, a vida dos dois homens que na curta passagem de quarenta anos tocaram as duas extremas do infortúnio pela desonra e da felicidade pela virtude. Uma mulher me perdeu; outra mulher me salvou. A salvadora está ali naquele ermo, glorificando a herança que minha mãe lhe legou: o anjo desceu a tomar o lugar da santa: a um tempo se abriu o Céu à padecente que subiu e à redentora que baixou no raio da glória dela. A mulher de perdição não sei que destino teve." 
- Pois ignoras o destino de Palmira? - interrompi eu, desconsolado, como todo o romancista, que desadora invenções. 
- Como queres tu que eu saiba o destino de Palmira?! - replicou Afonso de Teive.
 - Quem há-de vir contar-me a Ruivães os desastres que lá vão no seio apodrentado da sociedade?!... Mas, se te rala a curiosidade de saber em que lamaçais a deves encontrar, lança a tua espionagem, diz alto e bom som, que a fama te confiou a tuba pregoeira dos escândalos, e não faltará quem te ilumine e esclareça. Do viver da mulher virtuosa é que baldadamente procurarás notícias; dá-se a virtude numa obscuridade, que chega a incomodar a atenção dos que a observam como coisa curiosa de ver-se(...)

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