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7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 1/139 UERJ UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA CURSO DE MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA POR GILMARA SANTOS MARIOSA PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA MESTRADO PROCESSOS SOCIOCOGNITIVOS E PSICOSSOCIAIS 1 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 2/139 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA MESTRADO PROCESSOS SOCIOCOGNITIVOS E PSICOSSOCIAIS MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA GILMARA SANTOS MARIOSA ORIENTADOR: RICARDO VIEIRALVES DE CASTRO Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção de grau de Mestre em Psicologia Rio de janeiro, 2007 2 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 3/139 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese. M341 Mariosa, Gilmara Santos Memória e representações sociais de práticas religiosas de matriz africana / Gilmara Santos Mariosa- 2007. 135 f. Orientador: Ricardo Vieiralves de Castro. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 1. Cultos afro-brasileiros - Teses. 2. Negros – Brasil – Religião - Teses. 3. Representações sociais – Teses. I. Castro, Ricardo Vieiralves de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título. CDU 299.6(81) 3 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 4/139 ___________________________________________ _______________ Assinatura Data 4 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 5/139 MARIOSA, Gilmara Santos. Memória e Representações Sociais de Práticas Religiosas De Matriz Africana. Rio de Janeiro, 20 de junho de 2007. Dissertação de Mestrado (137p.) apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esta dissertação de mestrado realizou um estudo sobre a identificação de memórias e representações sociais das práticas religiosas de matriz africana na população negra do bairro Dom Bosco situado no município de Juiz de Fora - MG. Foram entrevistados 60 sujeitos, de ambos os sexos, que se auto identificavam como negros, pardos, mulatos e outras denominações que caracterizam a ascendência negra. Através dos dados levantados na pesquisa concluímos que as representações sociais que esta população possui, são de que as práticas de matriz africana são demoníacas, feitiçarias para o mal e ações que causam prejuízo para as pessoas. As lembranças se mesclam com esquecimento, e as representações e memórias dos sujeitos da pesquisa estão associados com as práticas de sincretismo religioso existentes no Brasil. Os entrevistados não possuem lembrança dos líderes religiosos negros e nem dos locais de memória do bairro. Os participantes da pesquisa não se associam com estas práticas religiosas e têm em relação a elas uma visão de distanciamento e desinteresse. Constatamos que isto ocorre devido à dificuldade de aceitação pela sociedade em geral que as desvaloriza e discrimina, sempre atribuindo negatividade a elas e aos praticantes. Estas práticas são estereotipadas, folclorizadas e menosprezadas socialmente. O que faz com que a população afro-descendente não queira ser identificada com as tradições históricas, culturais e religiosos dos seus ancestrais 5 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 6/139 ABSTRACT This dissertation is a study that aimed at identifying memories and social representations of African religious practices among the population of the neighborhood called Dom Bosco in the city of Juiz de Fora – MG. 60 black subjects , both male and female, were interviewed. Through the data collected during this research, we concluded that subjects identified African religious practices with either witchcraft or satanic rites. Subjects’ recollections were not quite clear and memories and representations were associated with the existing religious syncretism in Brazil. Subjects were unaware of the black religious leaders and of the places that were important to African culture in the neighborhood. Subjects don’t associate with these religious practices and show no interest in them. We verified that this occurs due to society’s non-acceptance of these practices, and because people despise them and attribute a negative value to them and to the followers of these religions. These practices are stereotyped, socially despised and associated with folklore. All that keeps Afro-Brazilians from identifying with the historical, cultural and religious traditions of their ancestors. 6 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 7/139 7 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 8/139 8 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 9/139 Sumário Resumo Abstract Introdução.................................................................................................................01 1 – As práticas religiosas de matriz africana no Brasil e em Minas Gerais......05 1.1 – Breve Relato sobre os Africanos no Brasil..................................................05 1.2 – Religiões e práticas religiosas dos negros africanos.................................07 1.3 – A tradição africana em Minas Gerais e em Juiz de Fora.............................17 1.4 – Os cultos afro-brasileiros em Minas Gerais e em Juiz de Fora..................21 2 – A teoria das representações sociais e a memória social...............................34 2.1 – Sobre o conceito de representações sociais...............................................34 2.2 – O fenômeno das representações sociais.....................................................40 2.3 – Representações e práticas sociais................................................................41 2.4 – Sobre memória social.....................................................................................45 2.5 – Memória e psicologia sócia............................................................................45 2.6 – O esquecimento como memória....................................................................50 2.7 – Memória social e religiões de matriz africana..............................................52 3 – Metodologia........................................................................................................55 3.1 – Considerações metodológicas......................................................................55 3.2 – Análise e descrição dos dados......................................................................61 3.2.1 –Sobre os sujeitos da pesquisa....................................................................61 3.2.2 – Sobre a identificação de práticas religiosas de matriz africana..............62 3.2.3 – As práticas religiosas de matriz africana em Juiz de Fora......................64 3.2.4 – Tipologia das práticas religiosas................................................................65 3.2.5 – Memória e valores........................................................................................72 3.2.6 – Sincretismo.................................................................................................101 3.2.7 – Lideranças negras em Juiz de Fora.........................................................106 3.2.8 – Os lugares de memória..............................................................................109 3.2.9 – Relatos e histórias sobre práticas religiosas de matriz africana..........110 4 – Considerações finais e conclusão.................................................................113 Referências bibliográficas.....................................................................................119 Anexo......................................................................................................................123I 9 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 10/139 ntrodução Esta dissertação realizou um estudo sobre a memória social e as representações sociais das práticas religiosas de matriz africana entre os negros da cidade de Juiz de Fora, especificamente do bairro Dom Bosco que possui grande concentração de população negra na cidade. Este bairro, no passado, foi localização de um quilombo e próximo a ele se encontraria um cemitério de escravos. Sabe-se que os primeiros negros chegaram em terras brasileiras, como escravos, por volta do século XVI. Entre eles existiam nobres, reis, rainhas, caçadores, sacerdotes. Não trouxeram nenhuma riqueza material, mas muita riqueza cultural. Dentre estas destaco o culto aos Orixás, divindades africanas que representam as forças da natureza. Em Minas Gerais encontramos uma diversidade de cultos. Destacamos: candomblé, umbanda, benzeções, folias de reis, irmandades e congados. Eles consistiram o nosso universo de pesquisa, com exceção dos congados, dos quais não encontramos registros na cidade. Consideramos como práticas religiosas de matriz africana aqueles ritos que, mesmo sendo identificados pelos seus praticantes como cristãos, têm características da tradição africana, tais como os reisados, as danças, os toques de tambor, banhos de ervas e oferendas. O objetivo desta pesquisa foi identificar memórias e representações sociais na população do bairro Dom Bosco. Investigar as lembranças, esquecimentos e o que foi perdido desta tradição. Quais as representações que eles possuem, como vêem estas religiões e que tipo de atribuição de valor dão a elas. Dentre os principais fatores que me motivaram a realizar esta pesquisa está a necessidade que senti, desde muito cedo, de saber quem sou, de onde vim. Participando do movimento negro, percebi que o desejo por busca de raízes não era só meu, não era individual. Notei a grande importância social e psicológica do que representava aquilo que buscava. No caminho, me deparei com o universo religioso e descobri que ali estava a chave. O universo africano era permeado pelos ritos e cultos, que foram deixados de herança. Esta se perdeu no tempo, se misturou com outras crenças, outras práticas, diferentes tribos foram fundidas. Meus antepassados tiveram que não somente unir suas crenças, entre as diferentes etnias, como recriar esta crença dentro do espaço brasileiro, para sua sobrevivência. Os cultos foram 10 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 11/139 reprimidos, mas, mesmo recriados, sobreviveram, sob o manto do sincretismo religioso. A população negra brasileira é órfã de suas raízes. Não tem a devida participação na história e cultura do país assumida pelos órgãos oficiais, inclusive os acadêmicos. Dentro do meu interesse por psicologia social descobri o quanto este tema é essencial para a população negra. O quanto é vital para o desenvolvimento psicossocial deste grupo, ter sua memória mais valorizada e estudada de uma forma que seus integrantes sejam tratados enquanto agentes atuantes na construção da sua história, sua cultura e do povo brasileiro. A grande ausência de acesso a uma história, não contada pelos meios oficiais, provoca nos negros sentimentos de baixa auto-estima, além de falta de identidade, de referências sociais e históricas. Outro ponto que justifica a realização deste estudo é a grande lacuna dentro dos estudos de psicologia. Poucos psicólogos se interessam por este tema, mais explorado por antropólogos e sociólogos. Acredito que há ainda muito por se explorar dentro do fenômeno da religiosidade afro-brasileira sob o ponto de vista da psicologia social. Também relevante é o fato de quase inexistirem estudos sobre estes aspectos em Juiz de Fora. A maior parte dos autores que investiga o tema relata que a tradição afro na cidade é dispersa e pouco conhecida. A importância deste estudo é demonstrada nos censos demográficos do município, que revelou 60% de sua população de negros, no passado. Na época de sua fundação, o município concentrava a maioria dos escravos da província de Minas Gerais que, por sua vez, foi, no período cafeeiro, considerada a maior província escravista do país. Chama a atenção a aglutinação tamanha de afrodescendentes em uma mesma região e, concomitantemente, a ausência de memória dos mesmos. Um último, porém não menos importante fator, que aponto para a relevância social do trabalho, é o inovador fato da história do negro ser contada pelo próprio negro. Poucos estudos são realizados onde se dá voz aos verdadeiros autores da história, da memória e da representação construída. A história dos negros em nosso país é pouco contada do seu ponto de vista e, em se tratando de Juiz de Fora, a maioria dos estudos ressalta a importância da grande contribuição dos imigrantes 11 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 12/139 portugueses, alemães, italianos e sírio-libaneses. Dos negros se sabe que foram escravos, que sofreram, que apanharam, que fugiram, que foram exploradas. Mas o que construíram, o que realizaram de concreto para a construção da memória da cidade, pouco se sabe, pouco se fala, pouco se ouve. Como eles se vêem, do que sabem, do que lembram, do que esquecem. Disso constituirá, basicamente, este trabalho, na tentativa de lançar luz sobre uma memória rica e pouco conhecida pelos descendentes daqueles que a fizeram, que acabam por não ter histórias para contar sobre si mesmos e nem se dão conta do que esta ausência representa. No capítulo um apresentaremos um relato histórico sobre os africanos no Brasil e as tradições afro-brasileiras no país até chegar a Juiz de Fora. Explanaremos a forma como os africanos aqui chegaram, as principais etnias localizadas em Minas Gerais, como se processou a recriação cultural e religiosa desta população, no que se transformou para que conseguisse sobreviver. Quais os principais cultos de origem africana que existiram em Minas no passado, como calundus e canjerês, até os existentes nos dias atuais, tais como candomblé, umbanda, congados, irmandades, folias de reis, benzeções. No capítulo dois abordaremos a teoria das representações sociais e a memória social. Trataremos o conceito de representações sociais, como ela se apresenta enquanto fenômeno, quaisas relações entre representações e práticas sociais. Apresentaremos, também, o conceito de memória social, a relação da psicologia social com a memória e algumas terminologias de memória social relacionadas ao nosso objeto de pesquisa tais como: memória pessoal, memórias comuns, memórias coletivas, memórias históricas, históricas documentais e históricas orais, memórias práticas e memórias públicas. Analisamos o conceito de esquecimento social e a importância de seu estudo para a compreensão da construção da memória social, definindo esquecimento não como vazio, mas como espaço cheio de conteúdos representacionais, assim como as representações sociais, construído no cotidiano de forma dinâmica, sempre em transformação. Terminamos o capítulo relacionando as memórias e as religiões de matriz africana, abordando a reconstrução sócio-cultural dos africanos no Brasil e a contínua dinâmica destas religiões com um processo de memória social. No capítulo três encontra-se a metodologia utilizada na pesquisa. Os 12 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 13/139 métodos e as técnicas com as quais trabalhamos, o campo e os participantes. Demonstramos como procede a metodologia de pesquisa em representações sociais, a forma de coleta de dados, os procedimentos utilizados, a forma de análise e a apresentação dos dados coletados na pesquisa empírica. A seguir apresentamos como os dados foram interpretados e o perfil dos participantes, as análises quantitativas feitas por frequência simples e análise de conteúdo das questões qualitativas. Além disso, são anunciados os resultados aos quais chegamos após as análises e interpretações. No capítulo final estão as conclusões a que chegamos com base nos resultados obtidos. Identificamos quais as memórias e representações existem nesta população oriunda de uma comunidade de descendentes de escravos. Apresentamos questionamentos e perspectivas futuras a respeito da importância do tema à luz da psicologia social. Esperamos que estudos como estes possam contribuir para uma melhor compreensão das religiões afro-brasileiras dentro da psicologia social. Também para que possamos compreender melhor qual visão a população negra possui sobre seus referenciais de ancestralidade, como vê as tradições religiosas trazidas por seus antepassados, recriadas em solo brasileiro e qual a influência que estas memórias e representações têm na vida cotidiana. Acreditamos estar abrindo perspectivas para que novos estudos sejam realizados posteriormente sobre esta temática. 13 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 14/139 1 - As práticas religiosas de matriz africana no Brasil em Minas Gerais Neste capítulo trataremos do corpo teórico do trabalho, referente a fundamentação teórica específica sobre práticas religiosas de matriz africana. Faremos uma breve trajetória da história destas práticas considerando as bases de sua reconstrução cultural em solo brasileiro, através das influências católicas e ameríndias, dentre outras. O breve histórico em Minas Gerais e Juiz de Fora torna-se necessário. Através dele poderemos compreender como estas práticas chegaram e se desenvolveram e de que forma se transformaram até o que encontramos hoje. É importante considerar que, de acordo com as condições de cada região, estas práticas tiveram uma trajetória diferenciada, especialmente em Minas Gerais, devido principalmente a três fatores: ter sido a maior província escravista do país, ter sido vigiada pela coroa portuguesa, por conta da mineração do ouro e diamantes, e, também, por sua riqueza acompanhada da forte presença da Igreja Católica. Estes fatores promoveram uma transformação religiosa muito característica e marcada pela mistura com o catolicismo popular, representado principalmente pelas irmandades do Rosário e dos santos pretos, os congados, as folias de reis e as benzedeiras, práticas que são ainda hoje difundidas, apesar de não mais acontecerem com intensidade. As práticas religiosas de matriz africana como umbanda e candomblé, são pouco conhecidas, apesar de praticadas. Elas são muito marcadas por representações negativas, como poderemos observar melhor no capítulo da análise e interpretação dos dados da pesquisa. 1.1-Breve relato sobre os africanos no Brasil Os africanos chegaram ao Brasil no século XVI. Foram trazidos como mercadoria escrava nos navios negreiros e pertenciam a várias etnias, mas as principais são os bantos - das regiões de Angola, Moçambique e Congo - e os iorubás ou nagôs - das regiões de Nigéria, Benin e Togo. Segundo Lody (1987), o continente africano tornou-se alvo de uma série de investidas por parte dos portugueses, para a escravização de homens e mulheres, que vão desde a metade 14 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 15/139 do século XVI até a metade do século XIX. De acordo com Lody (op. cit.), o comércio escravagista pode ser compreendido por quatro grandes ciclos: ciclo da Guiné, segunda metade do século XVI; ciclo de Angola-Congo, por todo o século XVII; ciclo da Costa Mina, até o início da segunda metade do século XVIII; ciclo de Benin, até a metade do século XIX. Lody (op. cit.) informa ainda que o total de escravos africanos no Brasil chegou à cifra de quatro milhões. A escravidão era justificada pela inferioridade dos negros em relação aos brancos como podemos constatar na declaração de Nina Rodrigues (2004), na qual afirmava a inferioridade até mesmo por características físicas e culturais. O autor acreditava que os negros jamais alcançariam o estágio de evolução dos brancos europeus, pois além de estarem muito atrasados, evoluíam de forma muito lenta. O autor ressalta ainda que os negros trazidos pelo tráfico possuíam diferenças culturais e étnicas, que tornavam a influência destes na formação dos povos americanos mais nociva quanto mais inferior fosse o elemento africano introduzido. Isso devido ao fato de haver diferenças entre os negros, que se encontravam em graus distintos de cultura e de capacidade. Nina Rodrigues (2004) entendia que alguns povos introduzidos no Brasil eram mais degradados, brutais e selvagens que outros. Augras (1983) relata que a primeira leva de africanos escravizados, que se tem notícia, desembarcou em 1538 e era de origem de São Tomé, marcando o início do tráfico das chamadas “peças da Guiné”. Esta definição da Guiné era considerada geograficamente imprecisa, pois o próprio vice-rei Conde dos Arcos dizia não saber ao certo de que país se tratava. Os primeiros negros que aqui chegaram eram Peules e Mandigas, parcialmente islamizados. Segundo Carneiro (1991), os bantos eram originários do sul da África e foram distribuídos no Maranhão, Pernambuco e Rio de Janeiro. Dali migraram para Alagoas, litoral do Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Os iorubás eram originários da zona do Niger, África Ocidental e foram introduzidos, conforme este autor, principalmente na Bahia. Silva (1994) conta ainda que no Brasil houve uma grande mistura de etnias. Grupos familiares foram separados, clãs, linhagens se perderam, inimigos e aliados se misturaram nas senzalas. A partir disto, não restava muita alternativa aos negros, já que muito do que conheciam e viviam lhes foi tirado. Era necessário reconstruir. Os africanos 15 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 16/139 necessitavam recriar todo um universo cultural e religioso.Devemos considerar como foi reconstruída essa realidade no Brasil, o que o negro produziu de história, de memória cultural e religiosa. 1.2 - Religiões e práticas religiosas dos negros africanos Em se tratando do negro africano, é difícil separar a cultura da religiosidade. Os dois fatores andavam juntos em seu universo primário e a reconstrução desse universo cultural e religioso na realidade brasileira também se iniciou permeada por esta unidade. Silva (op. cit.) constatou que o desamparo social em que se encontraram os negros no país criou a necessidade de reconstruírem sua identidade no espaço brasileiro, nas condições adversas da escravidão, tendo como referência as matrizes religiosas de origem africana que traziam dentro de si. Segundo mesmo autor, o branco europeu tentava, à princípio, catequizar o negro. A coroa portuguesa determinava que os escravos deviam ser batizados, adotar um nome cristão, e a Igreja Católica oficiava tais práticas religiosas e não combatia os maus tratos que sofriam os negros escravos no Brasil. As relações entre a Igreja e as práticas negras eram ambíguas, já que os padres toleravam os batuques realizados nas senzalas. Verger (2002) ressalta que o Governo encorajava os negros africanos a se encontrar aos domingos para realizar “batuques”, organizados por suas nações de origem. Assim aquelas nações inimigas na África manteriam sua rivalidade. Os senhores de escravos tinham interesse político na manutenção das práticas religiosas dos negros, porque acreditavam que se os escravos mantivessem suas tradições, também permaneceriam as rivalidades entre os grupos. Tratava-se de uma estratégia para dificultar a formação de rebeliões e impedir a criação de laços entre os grupos rivais. Porém, os cultos unificaram Orixás e Voduns, divindades dos povos nagôs e do Daomé. Silva (1994) assinala que os cânticos e rezas, realizados nos terreiros das fazendas, eram justificados pelos negros como homenagens aos santos católicos, feitas em sua língua natal, com danças de sua terra. Havia, por outro lado, certas práticas de magia africana combatidas. Rituais como de sacrifício de animais, manipulação de objetos, pedras e ervas, 16 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 17/139 transformação do destino das pessoas, eram vistos como diabólicos. Os transes de incorporação de deuses eram tidos como demonstração de possessão demoníaca. As adivinhações, matança de animais, dentre outras práticas consideradas como bruxarias e magia negra, vinculadas ao mal. Dentro deste contexto, o negro praticava sua fé nos deuses africanos e disfarçava cultuando os santos católicos, como ordenava o senhor. Assim foi recriado todo o seu universo religioso, o que hoje denominamos religiosidade afro- brasileira. As práticas católicas dos negros, de acordo com Silva (op. cit.), eram procissões, folguedos, cavalhadas. Eles cultuavam irmandades de santos pretos e de outros santos com os quais identificavam semelhanças. Augras (1983) relata que nas cidades, a Igreja Católica organizava Confrarias de Pretos, que possuíam suas capelas e seus folguedos. Essas confrarias permitiam, às vezes, a reconstituição de grupos africanos da mesma origem. As festas eram: congo, congada, ticumbi, moçambique, coroação do rei de Congo, todas com predomínio do elemento banto, o que permitiu que, em muitos casos, estes africanos e seus descendentes celebrassem seus ritos sob o manto de Nossa Senhora do Rosário. Assim se originou o sincretismo. Por não lhes ser permitido cultuar seus deuses, eles tinham que se submeter ao modelo católico de religião. Dançavam, por exemplo, para São Benedito ao ritmo do toque de Oxumaré, conclui Augras (op. cit.). Nas regiões norte e nordeste, de predomínio indígena, os cultos aos espíritos dos caboclos e aos seus deuses também se misturou à crença dos africanos, dando origem ao candomblé de Caboclo, uma síntese de elementos bantos, católicos e indígenas. Conforme a autora, no sudeste, onde o elemento banto predominou, foi registrada a origem de dois tipos de cultos: o candomblé de Angola ou candomblé de Congo, que recebeu também certa influência posterior dos nagôs; e a macumba, que integra modelos de origem variada e posteriormente originou a umbanda. Esta última congrega elementos africanos, indígenas, católicos, espíritas, ocultistas. Silva (1994) fala dos negros participando de procissões nas ruas das cidades, nos louvores a Corpus Christi, Cinzas, São Francisco, dentre outros. Porém sempre participavam dos desfiles afastados, de maneira a não se misturarem com os brancos. Os negros acrescentaram às cerimônias a música, a dança e a utilização 17 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 18/139 de instrumentos de percussão. Alguns narradores, como o viajante Saint-Hilaire, que esteve no Brasil por volta de 1816, relata como a procissão das cinzas em Minas Gerais tornava-se irreverente com “ridículas palhaçadas”. Os alemães Spix e Martius, em Salvador neste período, revelaram que, por conta dos negros reunidos nos festejos do Bonfim, a festa tomava feição estranha e excêntrica. Segundo Silva (op. cit.), nos autos de ventos bíblicos e histórias do cristianismo, os negros sempre participavam, porém representando os inimigos da fé. Nas cavalhadas, representavam os mouros (os islamizados considerados do mal), e os brancos, os cristãos (que expulsaram os mouros, considerados do bem). Os negros eram impedidos de participar das irmandades dos brancos, por isso se organizavam em irmandades próprias, separadas segundo a cor da pele e condição de escravo ou liberto. A mais conhecida e difundida pelo Brasil foi a de Nossa Senhora do Rosário. Os escravos tinham estas organizações como importantes associações de apoio mútuo. Através das contribuições dos filiados, tentava-se formar um pecúlio suficiente para comprar alforria dos seus membros e assegurar um enterro cristão aos filiados, geralmente feitos misturando as ladainhas católicas aos ritos funerários da nação africana do morto. As irmandades também tinham como objetivo a construção de igrejas próprias, o que era considerado sinal de prestígio. Verger (2002) relata que as mais conhecidas em Salvador eram a “Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do Carmo”, fundada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Pelourinho, frequentada por angolanos. Os daomeanos jejes reuniram-se na igreja do Corpo Santo, na Cidade Baixa. Lá fundaram a confraria de “Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redenção dos Homens Pretos”. As mulheres nagôs-iorubás encontravam-se na Igreja da Barroquinha, fundando a confraria de “Nossa Senhora da Boa Morte”, mais tarde elas fundariam a primeira casa de Candomblé “Ilê Axé Iyá Nassô”. Nas regiões onde os nagôs predominavam, segundo Augras (1983) particularmente em Salvador, é mais difícil falar em sincretismo, pois se trata de justaposição mais do que fusão. Houve sincretismo do ponto de vista das religiões originárias da Costa dos Escravos. Deuses daomeanos foram assimilados às divindades iorubás. As divindades das diversas cidades iorubás misturam-se. O mesmo mito é encontrado, com nomes diversos. 18 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 19/139 De acordo com Silva (1994), as religiões de origem africana eram nomeadas durante o século XVIII como calundu, termo de origem banto. Juntamente com batuque ou batucajé, reuniam uma diversidade de ritos, cultos, danças coletivas, cantos e músicas acompanhadas por toques de atabaques e tambores, invocação de espíritos,sessões de possessão, práticas divinatórias e cura mágica. O autor afirma que, até o século XVIII, os calundus foram uma forma urbana de culto africano relativamente organizado, antecedendo às casas de candomblé do século XIX e aos atuais terreiros. Silva (op. cit.) afirma que os primeiros calundus eram restritos aos espaços das fazendas. Devido às contingências da escravidão, os rituais eram realizados secretamente nas matas ou nas senzalas. Contudo, o crescimento dos centros urbanos, juntamente com o número de libertos e escravos circulando pelas cidades com maior liberdade, favoreceu o desenvolvimento das manifestações religiosas dos negros. Moradias localizadas em velhos casebres coletivos eram ponto de encontro para a prática dos cultos. Era comum, naquele período, o uso do mesmo espaço para moradia e para culto dos deuses, característica que destacou o início da tradição religiosa afro-brasileira, preservada até os dias atuais pela maioria dos templos de candomblé. Santos (2001) esclarece que, no século XIX houve implantação, reformulação e transporte de elementos de um complexo africano, que se expressa atualmente através de associações bem organizadas, nas quais são mantidos e renovados os cultos de adoração aos orixás e aos ancestrais, os eguns. As associações religiosas se instalaram em roças que ocupam um determinado terreno, o “terreiro”, termo que acabou tornando-se sinônimo de lugar onde se pratica a religião afro-brasileira tradicional e onde se constituem comunidades que apresentam características especiais. Uma parte dos membros habita o “terreiro”, formando, às vezes, um bairro, um arraial ou um povoado. Outra parte mora distante, mas freqüenta o terreiro com certa regularidade, passando até períodos prolongados dispondo, muitas vezes, da própria casa. O terreiro ultrapassa os limites materiais dos praticantes. Seus membros têm vínculos com a sociedade global, mas constituem uma comunidade “flutuante” que se concentra e expressa sua própria estrutura nesses locais. Segundo Santos (2001), “Na diáspora, o espaço geográfico da África genitora e seus conteúdos culturais foram transferidos e restituídos no terreiro”. 19 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 20/139 (p.33) As primeiras famílias de santo que se tem notícia, como relata Silva (1994), foram formas de organização que estruturaram os terreiros de candomblé. Negros e mestiços se reuniam destituídos de seus grupos de referência pela escravidão e reconstruíam seus vínculos baseados em laços de parentesco religioso. Pelas narrativas dos antigos, parecem ter sido africanos de uma mesma etnia que se reuniram e fundaram os primeiros terreiros, onde receberam e iniciaram negros de outras etnias. Com o passar do tempo, com a entrada inclusive de brancos, a característica étnica das famílias foi se perdendo, todos passando a ser ligados por vínculos religiosos. Augras (1983), assinala que a primeira casa de candomblé, que se tem notícia foi fundada na primeira metade do século XIX. A autora ressalta que elas nasceram em solo urbano. O primeiro grande templo foi fundado no centro de Salvador, ao lado da Igreja da Barroquinha. Silva (op. cit.) faz um relato sobre as mulheres originárias da cidade de Keto, antigas escravas libertas, pertencentes à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, da Igreja da Barroquinha, exclusivamente de mulheres de origem nagô, que teriam fundado o terreiro de Candomblé chamado “Iyá Omí Asé Aira Intilé”. Este, logo depois, tomaria o nome de “Ilê Axé Iyá Nassô” e seria transferido para o subúrbio do Engenho Velho, passando a ser conhecido como Casa Branca. As fundadoras eram Iyá Detá, Iyá Kalá e Iyá Nassô. Esse terreiro foi berço de todas as casas mais tradicionais de candomblé Keto, formando uma imensa família de santo. A proliferação da religião se deu mesmo por volta do final do século XIX e no século XX se expandiu pelo país. De acordo com Bastide (2001), os candomblés possuem “nações” diversas e, através delas, buscam manter as diferentes tradições: angola, congo, jeje, nagô. As distinções entre estas nações, conforme este autor, se dão tanto pela maneira de tocar os tambores, com as mãos ou com varetas, como pelas vestimentas típicas, pelo tipo das músicas, cânticos, e até mesmo pelos nomes das divindades. No Rio de Janeiro não há registro de candomblé antes do século XIX, afirma Augras (1983). Os bairros da zona portuária eram pontos de atração para os africanos recém chegados e também para os escravos libertos. O grande número de negros oriundos da Bahia contribuíram decisivamente para a expansão do 20 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 21/139 candomblé e do samba na região chamada “Pedra do Sal”. O local fica no Morro da Conceição, bem no centro da cidade, importante núcleo de famílias baianas. Augras (op. cit.) ainda indica um movimento de ida e volta para a África de sacerdotes e sacerdotisas, aprofundando conhecimentos religiosos e trazendo objetos necessários aos cultos, também neste período. De acordo com Lody (1987), na relação memória milenar e grandes transformações, os modelos africanos encontram sustentação na história oral, forte e predominante em que regras e papéis de homens e mulheres são geralmente determinados pelos cargos e funções, que vão do ser agricultor, artesão ou sacerdote a ser um alafim (rei), por exemplo. A produção cultural realiza uma eficaz aliança entre os planos sagrado e humano. Conforme este autor, o candomblé é “uma congregação de sobrevivências étnicas da África” (p. 8). A palavra candomblé é originária do termo Kandombile, que significa culto e oração. A religiosidade tem uma centralidade na vida do africano tanto no aspecto material como nos seus múltiplos microssistemas de poder, tanto temporais como religiosos. Uma força vital é transmitida de maneira permanente denominada de axé, seja na cultura material, na música, na dança, no canto, no gesto, na preparação de alimentos. A energia da natureza e os reis e heróis divinizados são os aspectos mais importantes do plano do sagrado, cotidiano na vida dos africanos. A presença destes aspectos está em todos os espaços da vida destes homens e mulheres, tanto na natureza quanto na matéria construída, nas atividades lúdicas, nos relacionamentos familiares e amorosos, constituindo cultural e religiosamente a essência destes seres. Os terreiros de candomblé tiveram importância como focos de resistência cultural, com ativa participação até mesmo como resistência armada, nas rebeliões e nos quilombos, assinala Augras (1983). Carneiro (1991) informa que os negros maometanos, também chamados de malês, tiveram importante participação na história dos africanos no Brasil, pois participavam ativamente das revoltas, levantando armas contra a opressão dos senhores. O autor relata o desaparecimento quase total dos aussás, ou malês, devido à reação governamental à insurreição dos escravos, liderada por eles na Bahia. Seu culto islamizado não era puro, mas diferenciava-se dos demais existentes na época. Carneiro (op. cit.) afirma que se caracterizavam por serem 21 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 22/139 negros orgulhosos e de poucas palavras. Os candomblés se dividiram posteriormente por “nações”. De acordo com Carneiro (op. cit.), os negros bantos da Bahia parecem ter esquecido os seus próprios orixás, tendo absorvido os do povo nagô, criando os candomblés de caboclo. Só restaram alguns como Zambi e outros poucos originários de Congo e Angola e a designação calunga.Não tendo orixás próprios a adorar, conforme Carneiro (op. cit.), os africanos de origem banto adaptaram às suas práticas religiosas os orixás dos cultos jêjes-nagôs. O autor fala sobre os candomblés de caboclo, na Bahia, como resultado da fusão da mitologia dos negros bantos, já sobre influência forte dos jeje-nagôs e malês, com a mitologia dos índios da América portuguesa. Segundo ele, existem diferenças marcantes entre os candomblés puramente bantos e os mesclados por influências ameríndias. Lody (1987) alerta sobre a exclusão dos bantos, em geral, da própria literatura, o que é inexplicável dada à sua contribuição para a constituição da civilização brasileira. Além disso, as poucas referências são feitas com alguma inferioridade. De acordo com Pereira (2005), a inter-relação de tradições bantos e iorubás gerou um quadro múltiplo para a realidade sócio-cultural dos afro-brasileiros, uma vez que através do intercâmbio de elementos sagrados foram organizadas maneiras próprias de vida e percepção do mundo. Ainda segundo o autor, o modelo iorubá sofreu influência da herança banto na construção de um universo afro-brasileiro, na medida em que se modifica e também é modificado por ele, expressando a reelaboração de um modelo religioso. Isso pode ser constatado em várias casas de candomblé da região fluminense, formando as linhas dos candomblés Angola. Referindo-se a Pernambuco, Augras (1983) fala sobre inúmeras casas de santo denominados de Xangôs. Em Recife, o primeiro templo teria surgido no centro da cidade, em meados do século XIX, no Pátio do Terço, sendo alvo de perseguições constantes. Augras (op. cit) revela o encontro de uma solução “conciliatória”. Para receberem licença da Secretaria de Segurança Pública os templos foram inscritos no Serviço de Higiene Mental da Assistência aos Psicopatas. Ser enquadrado com psicopata era melhor que ser tratado como marginal. Por volta da segunda década do século XX, surge a umbanda, período este favorável devido aos modernistas apregoarem o retorno às raízes, expressão da 22 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 23/139 cultura nacional, e ressaltarem os índios, os negros e mestiços. Neste contexto, Silva (1994) explica que as religiões afro tornaram-se conteúdo indispensável para a compreensão do processo de construção da cultura popular. Conforme este autor, kardecistas de classe média, no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, passaram a mesclar suas práticas com elementos das tradições religiosas afro- brasileiras, passando a defender publicamente esta mistura, com intuito de que se tornasse reconhecida e aceita com status de nova religião. As origens afro- brasileiras da umbanda, portanto, remontam ao culto às entidades africanas, aos cultos de caboclos, santos do catolicismo popular e influências do kardecismo europeu. O kardecismo, aponta Silva (op. cit.), é uma religião que chegou ao Brasil em meados do século XIX. Criado na França por Allan Kardec, doutrina filosófica e religiosa, teve pouco sucesso em seu local de origem, mas obteve grande repercussão no Brasil, principalmente entre as famílias da classe média. O kardecismo estabelece a presença de um Deus criador e crença na reencarnação. Caracteriza-se ainda por buscar métodos e explicações científicas no entendimento dos fenômenos espirituais. Silva (op. cit.) relata que não se consegue precisar em que momento as entidades dos cultos afro começaram a “baixar” nas sessões do espiritismo kardecista. Mas ao que tudo indica, praticantes do espiritismo, insatisfeitos com o kardecismo, consideravam os ritos estáticos e insípidos e passaram a preferir espíritos que encontraram em centros de “macumba”, considerados por eles mais eficazes na cura e tratamento de doenças. Entretanto, certos aspectos da macumba os incomodavam, tais como sacrifício de animais, presença de espíritos “diabólicos” (exus) e exploração econômica de clientes. Portanto, de acordo com Silva (1994), as características mais marcantes da umbanda, inicialmente, foram a depuração estabelecida sobre os cultos afro, pois acredita-se que na sua origem, possuíam práticas bárbaras. As principais entidades da umbanda são: os caboclos, que representam os índios brasileiros, e os pretos-velhos que representam os negros. Estes revelavam a missão de irmanar todas as raças e classes sociais que formavam o povo brasileiro. Augras (1983) ressalta que, por volta dos anos 30, a umbanda chega o Rio de Janeiro. Na maioria dos casos se tratava de sacerdotes e sacerdotisas que se 23 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 24/139 refugiavam de perseguições e fundavam casas nos subúrbios da então capital da república. A década de 40 é marcada pelo aumento significativo de nordestinos na capital, povoando então a Baixada Fluminense, multiplicando os templos, na sua maioria de umbanda. De acordo com Silva (1994), a umbanda mesclava elementos da cabula, no qual o chefe era chamado de embanda. A cabula também possuía o cargo de cambone, auxiliar do culto assim como na umbanda. O emba ou pemba, pó sagrado utilizado para os rituais na macumba, também era encontrado na umbanda. A cabula era culto de forte influência banto, praticado na região do Espírito Santo, basicamente por negros, realizado nas florestas secretamente à noite. Da macumba, de origem banto e jejê nagô, herdou orixás, caboclos e santos católicos. No Rio de Janeiro, os cultos eram divididos em linhas, muito aproximado das práticas da cabula, também com culto dos espíritos ameríndios, os caboclos. Os kardecistas misturaram suas práticas a estas denominadas, na época, de primitivas. Houve então um processo de “embranquecimento” das práticas afro-brasileiras e um “enegrecimento” das práticas espíritas kardecistas. O culto tornou-se mais facilmente aceito por pessoas de classe mais elevada. A umbanda então, Silva (op. cit.) relata, era tratada como culto religioso intermediário entre os populares que já existiam. Por um lado, aceitava a concepção do karma dos espíritas, da evolução espiritual, por outro praticava os ritos africanos, porém tornando-os mais aceitáveis. Algumas práticas, consideradas bárbaras, como sacrifício de animais, fumo, pólvora foram retiradas ou então explicadas cientificamente, conforme o racionalismo kardecista. A umbanda, de acordo com Silva (op. cit.), embranqueceu os valores religiosos da macumba, os quais eram considerados pelos kardecistas como atrasados e primitivos e, por outro lado, empretecia os valores do kardecismo, considerados europeus demais para a realidade brasileira. Através da identificação com os cultos afro os umbandistas tinham como proposta uma religião brasileira, que reconhecesse os anseios das populações marginalizadas (negros, índios, estivadores, prostitutas, pobres). A organização dos terreiros de umbanda se inspiraram nas associações civis, como ordem sócio-religiosa. Os terreiros possuíam estatutos que regiam seu funcionamento, definindo cargos e funções. Inspirada nas 24 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 25/139 federações kardecistas, a umbanda também criou suas próprias federações, a primeira foi fundada no Rio de Janeiro em 1939. Trata-se da União Espírita da Umbanda do Brasil, principal articuladora do “Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda”, ocorrido em 1941, quando as principais diretrizes da religião foram traçadas. Os principais objetivos das federações eram fornecer assistência jurídica contra a perseguição policial, patrocinar cerimônias religiosas, organizareventos religiosos, regulamentar as práticas religiosas, através de cursos e fiscalizações. Com o tempo, alguns seguimentos reivindicaram uma maior aproximação com os valores africanos, criticando a umbanda por tornar-se branca demais. Esses dissidentes pertenciam às classes mais baixas. Eram negros e mestiços, retomando algumas das práticas consideradas, pelos pioneiros, como primitivas e brutais. Castro (2005 a) explica uma das razões da umbanda ter se expandido mais no Rio de Janeiro do que o candomblé. O fato se deu pela umbanda ser considerada uma religião menos trabalhosa, com menos rigores e restrições, permitindo aos adeptos uma vida religiosa mais individualizada, com menos interdições. Castro (2005 a) aponta que: “ A Umbanda não se tornou branca, fez-se mestiça. Os pretosvelhos lembram o sofrimento da escravidão, mas aconselham complacência, tolerância e piedade para com os brancos e negros. Os caboclos mostram a força da natureza indígena brasileira e recuperam o mito da força e exuberância do país. São Cosme e São Damião, brancos, crianças, renasceram sem crueldade, dominância e usura. A umbanda veio para ser uma religião de conciliação e, assim, mestiça como o Rio de Janeiro e o Brasil, traduzir o próprio país.” (p.73) A umbanda, de acordo com Castro (2005 a), deixa de cumprir seu papel de conciliadora e integradora entre as raças quando surgem os exus e pomba-giras. Por se caracterizarem como seres amorais, chamados de “povo da rua”, têm, em suas histórias, marcas de tragédias humanas nas ruas das cidades, sendo marginais, prostitutas, ladrões, assassinos. É a incorporação ao rito dos menos desvalidos da população, os pobres e marginalizados. Augras (1983) ressalta que a umbanda é uma religião marcada essencialmente pelo sincretismo, pois as divindades e ritos não somente se 25 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 26/139 justapõem, como no candomblé, mas fundem-se, transformando e reconstruindo um culto no qual santos católicos, espíritos do kardecismo, caboclos, pretos velhos, crianças brancas e figuras marginais, como exus e pomba-giras, convivem e reconstroem todo um universo religioso novo, mais parecido com o que seus adeptos atribuem à realidade brasileira. 1.3 - A tradição africana em Minas Gerais e Juiz de Fora Minas Gerais foi, no período do século XIX, a maior província escravista do país. De acordo com Oliveira (1994), o período de maior desenvolvimento do Estado foi referente à mineração aurífera, que marcou grande crescimento das cidades no início do século XVIII. Por volta de 1703, conforme Oliveira (1994), foi construída a estrada do Caminho Novo que permitia o escoamento da mineração para o Rio de Janeiro. A estrada passava pela Zona da Mata Mineira, aumentando a circulação de pessoas pela região. Segundo Guimarães e Guimarães (2001), por volta de 1709 houve obras de melhoramento na estrada, que passou a permitir o trânsito regular de tropas de animais. As margens do Caminho Novo surge o povoado de Santo Antônio do Paraibuna, em função das hospedarias e armazéns que abrigam tropeiros. Em 1850, surge o município de Juiz de Fora. Por volta da segunda metade do século XVIII, conforme Guimarães e Guimarães (op. cit.), a economia mineradora entrou em decadência transformando a região de mineradora em agrícola. O Governo do Império passou a distribuir terras na região para pessoas de origem nobre (sesmarias), facilitando o povoamento e a formação de fazendas, como relata Oliveira (1994). A produção de café, inicialmente de subsistência, tornou-se economia mercantil, gerando recursos aplicados na expansão cafeeira da Zona da Mata Mineira, entre 1850 a 1870. Com a expansão cafeeira, a área de Juiz de Fora passou a concentrar, de acordo com Guimarães e Guimarães (2001), a maioria dos escravos da província. Juiz de Fora foi o único município a concentrar, em uma mesma ocasião, 20.000 escravos usados, em sua maioria, em lavouras de café. Oliveira (1994) afirma ter sido Juiz de Fora a maior cidade escravista de Minas e a maior província escravista do país. Oliveira (1994) informa ainda que em 1860 cerca de 60% da população da cidade era composta por escravos. Guimarães e Guimarães (op. cit.) acrescentam que um grande contingente se originou do tráfico 26 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 27/139 interno, já que o tráfico de escravos africanos foi proibido em 1850. Os escravos do município vinham em quase sua totalidade das regiões mineradoras e do nordeste, onde as lavouras tradicionais entraram em decadência. Rodeada por fazendas de café, Juiz de Fora era o escoadouro natural de toda a produção da região, servindo de grande entreposto comercial, devido, principalmente, às facilidades de comunicação com o Rio de Janeiro. Considerando as dificuldades no escoamento da produção cafeeira e as vantagens da concessão para a construção de uma estrada de rodagem, como as da Europa e dos Estados Unidos, Mariano Procópio Ferreira Lage propôs ao Imperador D. Pedro II a construção de uma moderna via ligando Minas Gerais ao Rio de Janeiro. Assim, por volta de 1856 chegaram os primeiros alemães. Mão-de-obra especializada, que veio trabalhar na obra, com contrato de dois anos. Eram especialistas em pontes de ferro, mecânicos, carpinteiros, ferreiros, construtores. Embora o governo imperial proibisse a utilização de escravos em serviços públicos de maior importância, Guimarães e Guimarães (op. cit.) relatam que eles trabalharam na Cia. União Indústria, juntamente com imigrantes alemães e outros trabalhadores livres. Os escravos eram empregados nos mais diversos tipos de trabalho, de acordo com Guimarães e Guimarães (op. cit.), tanto nas lavouras como outras atividades tais como: ferreiro, pedreiro, marceneiro, parteiras e também serviços domésticos. Existiam também os escravos de ganho que serviam de galés (serviços públicos prestados por escravos criminosos ou prisioneiros). De acordo com Oliveira (2000), Santo Antônio do Paraibuna possuía em 1833/35 uma população de 1.532 pessoas, das quais 583 eram livres e 949 cativas. Já em 1855, com a população de 6.466 habitantes, a cidade possuía 2.441 habitantes livres e 4.025 escravos cativos. Em 1872, tinha 18.775 habitantes, dos quais 11.604 livres e 7.171 escravos. No último período, houve uma elevação da população livre devido ao crescimento das funções urbanas e, também, ao surgimento da colônia de imigrantes alemães, destinada a construção da rodovia União Indústria, que acrescentou 20% à população original da cidade. Falando sobre o período, Oliveira (2000) esclarece que os negros se afirmavam através de oposição aos senhores, muitas vezes em fugas individuais, formação de quilombos e resistência cultural. A sua condição de despossuídos era 27 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 28/139 amenizada pela preservação de valores e recriação de tradições. Estas aconteciam tanto nos momentos de lazer, com os batuques e capoeiras, como nas práticas religiosas. Porém, na cidade de Juiz de Fora, durante o período escravagista, existem verdadeiras lacunas na compreensão das formas de resistência cultural dos negros. Oliveira (2000) se refere aos muitos cativos com posse de pedaços de terra de seus senhores para o cultivo de roça particular e, também, faz observação sobre os que não residiam em senzalas coletivas. Existem registros de que alguns possuíam suas moradias individuais, quando casados. Estes fatores demonstram uma elaboração mais estruturada de famílias escravas, marcada também porum aumento gradativo de casamentos entre os escravos no período do século XIX. Com o reflexo do fim do tráfico, observa-se uma tendência, conforme Oliveira (2000), para casamentos endogâmicos, ou seja, nativos africanos preferiam se unir a nativos africanos e nascidos no Brasil com nascidos no Brasil. Havia poucos casamentos entre libertos e cativos. O casamento e a formação de uma família estável significava uma moradia individual, acesso a economia própria em terra cedida dentro da própria fazenda, venda dos excedentes da produção e recebimento de salários por tarefas extras. A união estável também possibilitava a consolidação de laços de parentesco, não necessariamente consangüíneos, mas estabelecidos por compadrio, partindo das experiências compartilhadas, memórias e valores. Minas Gerais não sofreu grande impacto com a abolição, afirma Oliveira (2000), pois já contava com um grande contingente de ex-escravos, somados aos trabalhadores livres e pobres. A produção agro-exportadora se recuperou rapidamente e houve uma tímida política imigratória de 52 mil trabalhadores italianos, em sua maioria. Os fazendeiros davam preferência para os ex-escravos no plantio das lavouras, o espaço para os imigrantes não era grande. A grande maioria dos imigrantes se concentrou, então, na zona urbana da cidade. Os ex-cativos, porém, sofriam com a repressão ao trabalho livre, tendo sua capacidade sempre questionada. Também, segundo Oliveira (2000), são encontrados registros de conflitos entre negros e imigrantes. Nos registros criminais, os negros são associados à desonestidade e violência, os imigrantes são tidos como honestos e leais. Como no caso de Juiz de Fora, o impacto da abolição não levou os negros aos centros urbanos, estes ficaram a cargo dos imigrantes. Somente com a decadência 28 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 29/139 das lavouras de café, no período de 1920, é que começam a fluir em direção a cidade em busca de emprego e moradia. No entanto, como este movimento ocorreu tardiamente, os centros urbanos já estavam ocupados pelos imigrantes e não ofereciam mais espaço para a mão-de-obra e moradia dos negros. Eles partiram então em direção às periferias, o que levou a formação de bairros inteiramente de pessoas negras, como o São Benedito (antigo arado) e Dom Bosco (antiga serrinha). Estas regiões não possuíam a mínima infra-estrutura, como acesso a rede de água, esgoto, iluminação pública, etc. Este fator proporcionou uma segmentação racial marcante na cidade. Segundo Oliveira (2000), a identidade étnica constituía as bases para a coesão interna das comunidades negras no período do pós-abolição. Na zona rural, o viver em comunidade promovia costumes solidários de sobrevivência, tais como a divisão dos alimentos, dos primeiros socorros aos recém- chegados, ajuda aos menos favorecidos. Uma família negra se apoiava na outra para que pudesse sobreviver. A marginalização das famílias negras nas periferias e na zona rural viabilizava sua organização a partir de certas instâncias de cultura, como a religião e lazer. Na cidade existia uma espécie de apartheid . A Rua Halfeld, entre a Avenida Rio Branco e a Batista de Oliveira (trecho mais central e comercial até os dias atuais), só era freqüentada por brancos. Entre a Batista de Oliveira e a Avenida Getúlio Vargas (trecho mais marginal), a passagem era para negros. No que diz respeito especificamente à religião, segundo Oliveira (2000), esta apresentava uma outra instância de legitimação de uma identidade negra e de convivência social. As diferentes crenças e práticas mágico-religiosas representavam verdadeiros ingredientes da formação comunitária. Os cultos formais, as missas, a adoração aos santos, articulando conteúdos culturais diversos, sustentavam a vida religiosa dos negros, principalmente nas festas de Santo Antônio, São Pedro e São João, quando as comunidade se reuniam e atualizavam seus laços de reciprocidade. As rezas, curas e benzeduras eram entranhadas no universo cultural das populações. Conforme Oliveira (2000), a fé católica, construída com novos significados, apresenta-se como única entre os negros naquele período, fato que leva ao questionamento de uma presença das religiões africanas. Ainda assim as práticas católicas representavam, conforme a autora, fatores de coesão dos grupos sociais negros, nos quais encontravam sua igualdade e praticavam sua 29 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 30/139 liberdade, permitindo o exercício da sua criatividade, possibilidade de auto-afirmação e de se auto-reconhecerem como sujeitos, construindo sua identidade negra própria. 1.4 - Os cultos afro-brasileiros em Minas Gerais e Juiz de Fora Uma das presenças religiosas mais marcantes e tradicionalmente reconhecidas no estado de Minas Gerais são os congados. As manifestações misturam religiosidade católica com práticas afro-brasileiras e irmandades do Rosário e santos pretos. Segundo Pereira (2005), trabalhos realizados por lingüistas historiadores e folcloristas identificam forte influência da etnia banto na região de Minas Gerais, apesar de alguns pesquisadores darem notícia da presença de iorubás. De acordo com Silva (1994), em Minas Gerais, os primeiros cultos africanos identificados foram os calundus. Estes cultos tinham origem étnica banto. Em período posterior, as práticas identificadas são associações destes cultos ao catolicismo, fato marcado pelos congados e moçambiques. O sincretismo foi a forma que o negro encontrou de manter viva sua tradição no espaço dominado pelo cristianismo. Sem alternativa, o negro reinventou suas práticas em conjunto com as práticas católicas. Herança africana e cristã foram reelaboradas, novos modelos construídos. Segundo Martins (1982), a congada é um ritual de devoção sagrado, embora com aspectos profanos. Os registros mais antigos são de 1705 e 1706, do costume de negros e negras de criarem reis e rainhas, juízes e juízas, por ocasião das festas de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. A devoção por Nossa Senhora do Rosário é muito antiga. Desde os tempos de 1552, já se tem notícia de negros organizados em confrarias do Rosário, de acordo com Martins (op. cit). Missionários franciscanos na África, antes mesmo do descobrimento do Brasil, confundiram, propositadamente, o oráculo de Ifá, com o rosário, tendo por fim a catequese. A fraternidade de Nossa Senhora do Rosário e dos santos pretos, entre os quais São Benedito e Santa Efigênia, é constituída em Minas por oito guardas: candombe, moçambique, congo, vilão, marujos, catopês, cavaleiros de São Jorge e caboclinhos. Conforme a tradição, partiram do candombe todas as guardas, sendo este o pai de 30 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 31/139 todas. O congo é a irmã mais velha, depois vindo moçambique, marujos e as demais. O candombe é uma guarda fechada, esotérica. Não sai, exceto para tocar e cantar em casa de reis congos, durante grandes ocasiões. Ligado a tais guardas, o reinado se sobressai pelo colorido e ostentação. Lembra passagens históricas de Chico Rei e da Rainha Ginga e comunicações de guerra e paz. Todas as guardas formam a Congada, denominação genérica da grande família coreográfica em torno de Nossa Senhora do Rosário e dos santos pretos. O ritual das festas começa com o levantamento do mastro, por vezes dois: um no adro da Igreja e outro na casa do festeiro. De manhã, a escolta conduz a coroa (reinado) da residência dos reis ao altar. No trajeto, os versais cantam e dançam. Tavares (2003)afirma que a história da tradição afro-brasileira da Zona da Mata mineira e, particularmente, de Juiz de Fora ainda está por ser contada, pois existem muitas lacunas sobre a verdadeira participação da religiosidade africana na história e na memória regionais. As poucas informações registradas em estudos atuais foram obtidas através de depoimentos de informantes, colhidos por pesquisadores. Pereira (2005) assinala que a herança religiosa dos bantos encontrou em Minas Gerais solo fértil e entre os afro-descendentes um universo de simbolismos formados pelos valores do catolicismo. Mesmo com a evidente predominância banto no congado, referências dos elementos lingüísticos e simbólicos da cultura iorubá também são encontrados no espaço mítico deste seguimento cultural/religioso. Xangô e Nanã são citados em repertórios e cantos que realizam uma ligação étnica e religiosa com a Bahia, por exemplo. A importação dos bantos e a sua fixação em Minas Gerais refletem sobre as recentes memórias africanas na população local. De acordo com Pereira (2005), a ordem familiar entre os bantos se estrutura segundo a lógica de um grupo de parentesco que traça a origem partindo de ancestrais comuns, o que pode ser observado em grupos de candombe, tais como os Arturos (que têm como marco ancestral Artur Camilo Silvério), Mato do Tição (que tem como ancestral Constantina Augusta dos Santos), dentre outros. Por conta do deslocamento dos bantos de uma região para outra, criou-se um roteiro segundo o qual seus ancestrais acompanhavam seus descendentes. Como a noção de terra sagrada acompanhava estes ancestrais, terra sagrada era aquela na qual se 31 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 32/139 instalavam. Desta maneira, as raízes familiares dos bantos não se prendiam a um determinado lugar, mas no grupo de parentesco, nos ancestrais. Pereira (2005) aponta que a necessidade de criar mecanismos de mediação entre Deus e os homens fez com que os grupos, através da vivência religiosa, manifestassem sua consideração pelos antepassados. Para chegar à casa de Deus era preciso manter os vínculos de pertencimento entre os vivos e os mortos, uma vez que sem esses vínculos os homens estariam privados da comunicação com Deus e com os seus semelhantes. O monoteísmo e a mediação dos ancestrais forneceram aos bantos dados para realizarem leitura da realidade que o tráfico escravista os obrigou a conhecer. Por conta disso, estreitavam-se os vínculos entre a experiência histórica e a vivência religiosa dos que desembarcaram no Brasil. No novo contexto, os bantos tiveram que desvendar um campo religioso no qual se destacavam o catolicismo ibérico, as tradições indígenas e, sobretudo, as tensões resultantes desse contato. Nesse campo religioso, as negociações entre as diferentes vivências do sagrado abriram espaço para o surgimento de novas configurações das práticas e dos valores que permitiram ao devoto relacionar-se com as forças divinas. O candombe exemplifica uma dessas configurações, pois reverencia, simultaneamente, os ancestrais negros e os santos do catolicismo. Além disso, durante as rodas do candombe canta-se para Calunga e para Nossa Senhora do Rosário. A invocação de Zambi e Calunga nos cantos registrados em Minas Gerais demonstra o contínuo cultural que espelha as heranças de procedência banto. Pereira (2005) relata que o universo cultural e religioso relacionado às heranças no estado permitiu que os afrodescendentes mantivessem a percepção de Zambi como força maior e deus protetor. Segundo Pereira (2005), o congado atualmente constitui uma prática importante na trajetória histórica dos afro- brasileiros, vinculando-as às experiências da diáspora protagonizadas pelos ancestrais e aos esforços de construção de uma sociedade mais democrática. Apesar da marcante e incontestável presença dos congados em Minas Gerais, na cidade de Juiz de Fora não existem nem se tem registros de grupos e rituais, apenas da existência de uma Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Do período escravista, a manifestação religiosa negra típica registrada na cidade é a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. De acordo com Pereira (2003), 32 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 33/139 o fato do catolicismo, no início da fundação do município, ser de origem leiga tem como conseqüência sua base em manifestações populares, não se diferindo das demais cidades brasileiras. A presença das Irmandades, associações religiosas nas quais os leigos se reuniam em torno de um santo, era comum. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário era somente de negros, libertos e escravos. Seu registro de compromisso data de 22 de abril de 1888, 21 dias antes da abolição. O fator que a diferenciava era a coroação de um rei e de uma rainha, que marcavam o traço africano do movimento. Esta tradição remonta à figura de Francisco Natividade, o famoso Chico Rei, de Vila Rica. Além do compromisso com a Nossa Senhora do Rosário, os irmãos festejavam também São Benedito, São Eslebão e Santa Efigênia. Esta representou a fase inicial da construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, hoje localizada no bairro Granbery, com ativa participação dos membros da irmandade. Após o processo de romanização da igreja católica no pós-abolição, Pereira (2003) revela o desaparecimento da Irmandade do Rosário e não se encontram mais registros do que teria ocorrido, em seguida, com os seus membros. Aparentemente a centralização do vaticano a teria enfraquecido por afastar as práticas da religiosidade popular. Fato marcado também pelo falecimento do Padre Tiago, (Primeiro padre da cidade, negro, e que defendia as tradições do catolicismo popular) que representa uma ruptura com o catolicismo tradicional. Após o falecimento do pároco, a ação reformadora de Dom Viçoso consegue penetrar na cidade, reformando o clero, conforme era o desejo da diocese de Mariana. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e dos santos pretos religavam os negros às suas origens de uma forma simbólica, diz Pereira (2005). Tinhorão (2000) acrescenta que os negros, no período colonial, cultuavam santos com os quais se sentiam semelhantes pela cor tais como São Benedito, São Gonçalo, Virgem de Guadalupe, Santa Efigênia. A única exceção era Nossa Senhora do Rosário. Neste caso a identificação, segundo este autor, reside no fato de o rosário lembrar o oráculo africano de Ifá feito de sementes. Pereira (2005) assinala a coroação de reis e rainhas como identificação de uma ligação histórica dos africanos com as suas regiões de origem. Por isso, adquiriu um peso político dentro da sociedade escravista brasileira. Os ritos de coroação foram vistos como forma de acirrar rivalidades entre grupos africanos aqui 33 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 34/139 instalados. Aos olhos da sociedade escravista, valores ambivalentes aos batuques e coroações de reis e rainhas desuniam os grupos mantendo vivos seus conflitos. Por outro lado permitiam uma perigosa aproximação de pessoas igualadas pelo sofrimento. O aspecto sagrado da coroação ampliou a sua significação no cenário social, já que, por sua conta, eram articulados diferentes interesses dos senhores, escravos e devotos. O caráter sagrado que cercava a coroação justificava o respeito que os seus súditos lhes dedicavam. Para os negros, que retomavam a linha histórica de sua ancestralidade, a coroação era mais do que uma encenação permitida pelos senhores. A confirmação disso estava no fato de que o ato representou, em diversas localidades,caminho para a obtenção da alforria. Em Minas Gerais, essa cerimônia passou a ter um aval das Irmandades de negros, muitas das quais regulamentavam em seus compromissos a eleição e as funções dos reis. Além disso, o costume de se alforriar o rei eleito anualmente deu grande prestígio à instituição do Reinado. De acordo com Pereira (2005), a coroação possuía um caráter político forte, na medida em que ela relembrava esquemas de poder de sociedades africanas dentro do escravismo brasileiro. Para os negros, essa cerimônia possuía uma função simbólica, pois reis e rainhas representavam o estabelecimento do grupo familiar ampliado, que se tornava responsável pela sustentação da memória dos ancestrais. A função política da coroação se revelava quando os negros respondiam à ordem social escravista com atitudes que permitiam dialogar com os seus valores sociais, os seus padrões estéticos e suas experiências afetivas. Estabelecia-se assim, de maneira explícita ou velada, a confrontação entre ordens sociais diferentes, que se exprimiam a partir dos relacionamentos entre brancos e negros, senhores e escravos, dominantes e dominados. Segundo Pereira (2005), as ações dos escravos atribuíam expressividade particular às idéias liberais, pois as expressavam através das heranças culturais de origem africana reelaboradas no Brasil. A coroação de reis e rainhas tinha, na África, o sentido de preservação de determinada linhagem, possuindo caráter conservador, ainda que na aparência indicasse a dinâmica de substituição de um soberano pelo seu sucessor, no contexto do escravismo brasileiro. Pereira (2005) aponta que o aspecto conservador é a religação com o mundo dos antepassados, permitindo que os negros mantivessem sua memória política, social e afetiva, apesar do processo de 34 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 35/139 coisificação estabelecido pelo modelo escravista. O aspecto liberal se exprimiu na forma de escolha dos reis, pois passou a privilegiar pessoas diferentes em diferentes épocas. O tráfico havia dispersado famílias inteiras, impossibilitando a manutenção da linhagem nas cerimônias. Os negros tiveram na coroação dos reis e rainhas das Irmandades fonte de formação de uma ideologia, na medida em que o rito sustentava o vínculo afetivo entre as gerações e estabelecia, no sagrado, uma organização social dos negros no Brasil. Tavares e Floriano (2003), em pesquisa realizada sobre a tradição afro- brasileira em Juiz de Fora, mostram que a memória da tradição afro-brasileira na cidade é bastante difusa e pouco conhecida. De acordo com depoimento de informantes, esta tradição é acentuada pela antiguidade da umbanda. Alguns a associam a uma continuação de tradições anteriores, como cabula ou canjerê. Existem, no entanto, algumas contradições. Para alguns, o canjerê seria uma prática religiosa distinta da umbanda, para outros as raízes da Umbanda da cidade estão no canjerê. Este seria um nome antigo que a designaria. Tavares e Floriano (op. cit) indicam ter sido sob o nome de canjerê, que as práticas denominadas de “baixo espiritismo” eram identificadas pela elite local. Há ainda o fato do nome “canjerê” ter sido utilizado pelo clero católico e pela polícia da época, para designar os praticantes da umbanda de forma pejorativa. Tavares e Floriano (2003) ressaltam que o canjerê seria a prática mais antiga, atribuindo à Dona Mindoca, sua fundação na cidade. Há, contudo, aqueles que dizem que a prática no centro de Dona Mindoca era umbanda. O canjerê teria um altar, como os do culto da jurema, com mesa branca, um jarro com água, flores brancas, para invocar os espíritos. Mesmo não havendo consenso entre o que se praticava no centro, Tavares e Floriano (op. cit.) concordam sobre o caráter precursor da mesma. A falecida Amerinda, mais conhecida como Dona Mindoca, era uma mulher branca, nascida em cidade próxima, falecida na década de 40. Teria fundado, de acordo com os informantes de Tavares e Floriano (op. cit.), a casa mais antiga de Juiz de Fora , no início do século XX. O seu centro ainda existe e está em funcionamento. Chama a atenção o fato destes informantes identificarem uma mulher branca como precursora das tradições afro-brasileiras num espaço, que chegou a abrigar o maior contingente de negros do país. Porém, como os próprios pesquisadores 35 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 36/139 definem, esta questão constitui verdadeira lacuna nos estudos sobre religiosidade do município e pauta para estudos futuros. Por volta da década de 60, houve uma tentativa de politização do movimento umbandista na cidade, inspirada no fenômeno identificado no Rio de Janeiro e São Paulo. Este fato ficou marcado com a entrada de líderes umbandistas para a política partidária. O movimento foi liderado por Hélio Zanini que, entre 1972 e 1984, elegeu-se vereador por diversas vezes, chegando à Presidência da Câmara Municipal em 1981. Tavares e Floriano (op. cit.) relatam que Zanini realizava reuniões no Legislativo com os praticantes do culto interessados na organização do movimento, o que deu visibilidade a umbanda local. O vereador fornecia alvarás de funcionamento para os terreiros até que conseguissem registro definitivo no cartório de registro civil. Apesar disso, a Federação Umbandista de Juiz de Fora passou a adquirir personalidade jurídica somente em 1979. Atualmente a entidade encontra- se desativada. Tavares e Floriano (2003) registram a chegada do candomblé a Juiz de Fora no final dos anos 80, através da feitura de sacerdotes de umbanda em terreiros da baixada fluminense e em Niterói. Os autores declaram ter sido um processo conturbado. Em primeiro lugar, devido à reorientação pessoal de suas trajetórias religiosas e, consequentemente, do perfil estabelecido para os terreiros. Em segundo lugar, pelo fato de a cidade ter pouquíssima familiaridade com o candomblé, já que os recém iniciados eram de terreiros de umbanda. Todos tentavam estabelecer-se dentro da nova iniciação sem abandonar a antigas práticas umbandistas. Na verdade ainda há uma tentativa de conciliar as duas práticas, inclusive adaptando o seu tempo de feitura no candomblé ao seu tempo de iniciação na umbanda. Uma característica ressaltada pelas autoras é que os neo- candomblecistas não deixaram de ser umbandistas e declaram a umbanda como raiz da sua tradição em Juiz de Fora. Manifestação religiosa do catolicismo popular, alguns autores consideram a folia de reis como uma prática religiosa de matriz africana. Porto (1982) cita as folias como união da nostalgia do africano ao apego do português às tradições da mãe- pátria. Uniu-se o folclore português às tradições de origem africana. Segundo o autor, as folias de reis são os cortejos de caráter religioso popular que se realizam 36 7/10/2019 MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE PRÁTICAS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA http://slidepdf.com/reader/full/memorias-e-representacoes-sociais-de-praticas-religiosas-de-matriz-africana 37/139 em vários estados do Brasil entre o Natal e a Festa de Reis, no dia 6 de janeiro, reproduzindo a viagem dos Magos de Belém, para adorar o Menino Jesus. De acordo com a tradição cristã, os Magos seriam Gaspar, Belchior e Baltazar, que vieram por inspiração divina, conforme o evangelho de São Mateus, do Oriente até a gruta onde se achava o Menino Jesus, para adorá-lo como Rei dos Judeus e oferecer-lhe, como presentes, ouro, incenso e mirra. A partir das confusas noções dos fatos bíblicos, os foliões compõem versos e cantigas e utilizam músicas tradicionais, unindo criatividade e tradição. Porto (op. cit.) indica que a origem da folia de reis não é muito especificada e certamente
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