Buscar

O SURGIMENTO DO CAPITALISMO E A CRÍTICA À IDOLATRIA E AO FETICHISMO DO DINHEIRO NA LITERATURA INGLESA do século XVII

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

O SURGIMENTO DO CAPITALISMO E A CRÍTICA À IDOLATRIA E AO FETICHISMO DO DINHEIRO NA LITERATURA INGLESA do século XVII
Adriel Moreira Barbosa
1. Introdução 
Este trabalho relaciona as mudanças econômicas e sociais responsáveis pela substituição da ordem feudal pelo sistema capitalista de mercado na Europa e as críticas anti-idolátricas que aparecem na literatura inglesa do século XVII. A delimitação do fenômeno de transição do sistema feudal para o capitalista ao contexto inglês, coloca em destaque duas importantes questões: A situação dos pobres na Inglaterra e o incremento do comportamento aquisitivo, que levava os capitalistas a buscarem o fim das grandes restrições econômicas, próprias da antiga ordem medieval. Na Inglaterra, a pobreza suscitava um grande conflito entre este espírito ético cristão medieval, que concebia o Estado como responsável pelo bem-estar geral da sociedade e as novas imposições que a liberdade comercial e monetária impunha. 
Em vários estatutos daquele período, como na Lei da Pobreza, de 1601[footnoteRef:1], estava presente a ideia de que as vítimas das deficiências do sistema econômico deveriam ser alvo dos cuidados daqueles que dele se beneficiavam. No caso específico desta lei, havia o reconhecimento formal de que os pobres deveriam receber auxílio para suas necessidades e a imposição de contribuições paroquiais para esse fim, entre outras providências (HUNT, 1981). Tais exigências eram justificadas devido ao agravamento da situação da pobreza na Inglaterra, nas primeiras décadas do século XVII, e os primeiros governos dos Stuart demonstraram pouco ou nenhum interesse pelo problema. Portanto, a lei dos Pobres representava uma estrutura mínima de intervenção, com o objetivo de fornecer emprego suficiente e evitar a desordem pública. Entretanto, como já destacado, os governos não conseguiram enfrentar o problema do pauperismo e uma das formas de reagir à situação foi encorajando os mercadores e a pequena nobreza a intervir na sociedade a fim de remodelá-la da melhor forma que lhes conviesse. Assim, o incremento do comércio e da indústria, a expansão do poderio naval e a criação de grandes companhias comerciais proporcionaram avanços nas relações comerciais que permitiram uma nova etapa na monetarização da economia (HILL, 2012). [1: Esta lei teve suas primeiras edições em 1531 e 1536, e procuravam enfrentar o desemprego e a miséria generalizada na Inglaterra. Em 1572, o Estado aceitou o princípio de que os pobres teriam de ser mantidos por recursos tributários e estabeleceu um “imposto para os pobres”. Em 1576, foram autorizadas “casas de correção” para desordeiros incorrigíveis, impondo-se às paróquias a responsabilidade de comprarem matérias-primas para serem trabalhadas pelos pobres e desordeiros mais tratáveis. Desde então, foram aprovados muitos outros estatutos dos pobres (HUNT, 1981, p. 48).] 
Os monarcas buscavam o apoio da classe capitalista burguesa, no intuito de derrotar seus rivais feudais, unificar o Estado sob seu poder e como fonte necessária de receita. Em contrapartida, a coroa libertava os mercadores da confusão de regras, regulamentos, leis, pesos, medidas e moedas, que havia no período feudal, ajudando a consolidar muitos mercados, além de oferecer proteção militar aos empreendimentos comerciais. Esta coalizão entre monarcas e capitalistas – que, vale lembrar, não era específica da Inglaterra – retirou de cena o poder da nobreza feudal, principalmente na produção e comércio de mercadorias. Assim, no final do século XVII, havia um número cada vez maior de capitalistas que não aprovavam o antigo regime paternalista cristão, que condenava o comportamento ambicioso, aquisitivo e a vontade de acumular riquezas. Eles procuravam, a todo custo, livrar-se de tais restrições, e a economia de mercado capitalista necessitava de um comportamento baseado na iniciativa individual para funcionar bem. Foi a partir desta convergência de interesses e da conjunção entre as ideias dos capitalistas sobre a natureza humana e da necessidades de serem livres das grandes restrições econômicas que nasceu a filosofia do individualismo. Esta filosofia, posteriormente, serviu de base para o liberalismo clássico (HUNT, 1981).
Serão analisadas duas características das críticas anti-idolátricas. A primeira, diz respeito ao fato de que nas relações mercantis e no processo de monetarização da economia ocorreu um processo de fetichização do dinheiro. Ou seja, que nesse processo, ele deixou sua função primordial, como meio pelo qual a sociedade se apropriava de outros bens, para tornar-se um fim a ser buscado avidamente. E, a segunda, refere-se ao motivo de tais críticas aparecerem como crítica anti-idolátrica, mesmo que na maior parte dos casos, não se tratar de autores ligados à religião. 
Portanto, o objetivo deste trabalho é demonstrar que as críticas à crescente monetarização da economia eram resultado da percepção dos autores (e serão apresentados apenas casos exemplares) de que as transformações em curso representavam uma quebra da antiga ordem ética e moral, e que tal transformação introduzia a sociedade em uma forma de relacionamento com o dinheiro que seria melhor descrita no imaginário da época como idólatra. Portanto, seria possível afirmar que na opinião de muitos autores daquele período estava em curso uma grande confusão na relação dos indivíduos com o dinheiro e, ademais, embora não seja possível demonstrar no espaço deste trabalho, estima-se que havia relação entre a grave situação dos pobres da Inglaterra e o apetite desenfreado pelo dinheiro motivava tais críticas. 
O fato de processos econômicos serem tratados por linguagem teológica não é incomum, pois, para os povos de tradição judaica-cristã, a idolatria não é meramente um problema teológico, mas uma visão do mundo. Portanto, não devia surpreender que a anti-idolatria permeasse a cultura da Inglaterra com tamanha profundidade[footnoteRef:2]. Assim como o fato de escritores da época não discutirem o capitalismo apenas em termos econômicos, mas também no vocabulário da religião, mostra que é preciso repensar nossa compreensão da relação entre essas esferas no início da modernidade (HAWKES, 2001). [2: Em seu livro A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII, Christopher Hill explica detalhamente esta questão, dedicando um capítulo à discussão da idolatria (HILL, 2003). O autor David Hawkes também faz um extenso recorrido pelo tema da idolatria na literatura inglesa do século XVII (HAWKES, 2001).] 
Este trabalho dialoga com a crítica da idolatria do mercado, realizada por pensadores do DEI – Departamento Ecuménico de Investigación, de San José, Costa Rica, principalmente por Hugo Assmann e Franz Hinkelammert[footnoteRef:3]. Em A Idolatria do Mercado: Ensaio sobre Economia e Teologia (1989), eles sensibilizam o leitor para um núcleo temático que, segundo eles, constitui a melhor porta de entrada para a análise do binômio economia e teologia. Assim, falar em idolatria do mercado seria, nesse sentido, denunciar um processo de idolatria “que encontra sua expressão mais evidente na suposta auto-regulação dos mecanismos econômicos de mercado”, por isso, “essa idolatria econômica se alimenta de uma ideologia sacrificial que implica em constantes sacrifícios de vidas humanas” (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 7). [3: A principal obra sobre este tema é ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz J. A Idolatria do Mercado: Ensaio sobre Economia e Teologia. Série V: Desafios da vida na sociedade. São Paulo : Vozes, 1989.] 
É preciso ainda recordar que a crítica à idolatria (principalmente da idolatria do dinheiro) não é tema incomum no período estudado, principalmente entre pensadores do século XVI, tanto nos ambientes católicos como protestantes. Contudo, o que se quer mostrar é a forma que esta crítica ganha na literatura inglesa durante o final do século XVI até o fim século XVII, relacionada ao processo de emergência do sistema capitalista de mercado. É preciso dizer que esta pesquisa nem de perto é exaustiva dos textos
do período e coloca-se como porta de entrada para o que considera-se um importante tema a ser investigado no horizonte das ciências da religião. Pelo o que foi observado, tal investigação possui grande bibliografia na literatura inglesa, embora tenha recebido pouca atenção nos estudos de religião no Brasil.
2. O paradigma medieval e a revolução econômica 
 No início do século XVI, a teoria política e social da Europa estavam saturadas com doutrinas extraídas da esfera da ética e da religião, não sendo possível conceber explicações de mundo de outra forma que não fosse através de imagens e símbolos bíblicos. Na Inglaterra do início do século XVII, discutir problemas de organização econômica puramente em termos de lucro e perda pecuniários ainda seria considerado de um cinismo não muito respeitável. As modernas teorias social e política somente se desenvolveram a partir do momento que se deu à sociedade uma interpretação naturalista, em lugar de uma interpretação religiosa e um fato capital para o nascimento de ambas foi a mudança na concepção que se tem da natureza e das funções de uma Igreja, particularmente no período crucial é formado pelos séculos XVI e XVII (TAWNEY, 1971).
No século XVII, o paradigma ordenador da sociedade ainda era fundamentalmente religioso, legado pela Idade Média e basicamente representado pelo pensamento escolástico de Tomas de Aquino, pelo qual concebia-se as questões econômicas como parte da teologia moral. No Medievo tardio, o comércio, a indústria, o mercado e o dinheiro, isto é, tudo o que hoje chamamos de sistema econômico, não era um sistema, mas uma massa de trocas e negociações individuais. Não havia lugar na teoria medieval para a atividade econômica que não estivesse relacionada com um fim moral, e, portanto, naquele período, basear uma ciência da sociedade na suposição de que a sede do ganho econômico era uma força constante e mensurável, que deveria ser aceita como outras forças naturais, seria tido como completamente irracional e imoral[footnoteRef:4] (TAWNEY, 1971). [4: Para uma análise da transição do pensamento medieval para o moderno e da forma de legitimação ideológica da sociedade moderna, ver SUNG, 2008, capítulo 4, Utopia sacrificial da sociedade moderna.] 
Desta forma, é possível afirmar que os interesses econômicos estavam subordinados a princípios ético-morais relacionados às finalidades da vida e da salvação da alma, sendo considerados necessários, principalmente quanto à manutenção da vida, inclusive dos semelhantes. E ainda assim, os motivos econômicos eram vistos como suspeitos, devido ao poderoso apetite que eles eram capazes de despertar no indivíduo. É por isso que, segundo Tawney, Tomás de Aquino teria ensinado em sua Summa Theológica que:
O exterior é ordenado em consideração ao interior; os bens econômicos são instrumentais – sicut quaedam adminicula, quibus adjuvamur ad tendendum in beatitudinem. É lícito desejar as bênçãos temporais, não colocando-as em primeiro lugar, como se nelas assentássemos nossa tranquilidade, mas contemplando-as como ajudas para a bem-aventurança, visto que suportam nossa vida corpórea e servem de instrumentos a atos de virtude (Apud TAWNEY, 1971, p. 46-7). 
Portanto, segundo o historiador econômico Karl Polanyi (2012), é possível generalizar a afirmação de que todos os sistemas econômicos até o final do Medievo se organizavam sob os princípios da reciprocidade, da redistribuição ou da administração doméstica; ou mesmo sob algum tipo de combinação dos três. Nesse quadro, a produção e a distribuição dos bens era garantida por uma variedade de motivações individuais disciplinadas por meio de um conjunto de princípios gerais de conduta, dentre as quais o lucro não prevalecia. “Os costumes e as leis, a magia e a religião cooperavam para induzir o indivíduo a observar regras de comportamento que, em seguida, presidiam ao modo como agia no interior do sistema econômico” (POLANYI, 2012, p. 119).
É nos séculos XVI e XVII este quadro começa a se transformar e um dos elementos característicos da transição entre sociedades tradicionais (medievais) e modernas foi exatamente o aumento do comércio, que levou à monetarização da economia e à elevação do mercado ao papel central no direcionamento do sistema econômico. Houve, ademais, um rompimento da harmonia que havia entre o celestial e o terrestre, entre a teologia e as ciências humanas, e, com isso, o conhecimento foi liberto destes entraves ético-religiosos na modernidade (SUNG, 2008). Com a crescente monetarização da economia e o aumento quantitativo dos meios econômicos, as possibilidades de crescimento dos indivíduos se multiplicaram, tornando cada vez mais difícil para eles suportarem “as formas rígidas e indiferenciadas de vida prescritas pela comunidade tradicional” (SUNG, 2008, p. 141-2). Ou seja, era preciso resolver os grandes entraves que as prescrições ético-religiosas impunham ao comportamento econômico, principalmente aqueles ligados à ambição pessoal e ao crescimento individual em detrimento dos demais, muitas vezes infelizes ou incapazes de realizar sua prosperidade.
Nesse sentido, as restrições impostas pelo pensamento escolástico insistiam para que fossem impostos limites nas intervenções estatais e religiosas, não somente no sentido do desprendimento do indivíduo quanto ao todo social, mas quanto à exploração do lucro excessivo, da prática de preço justo e, sobretudo, de não se comprar dinheiro por empréstimo[footnoteRef:5]. Conforme Le Goff (2004, p. 5), a questão da usura, além de ser um fenômeno de extrema importância no cenário medieval – uma espécie de Nosferatu[footnoteRef:6] do pré-capitalismo – tornou-se uma polêmica que constituiu, de certo modo, o “parto do capitalismo”. As mudanças desse período foram responsáveis por uma grande transformação na teoria social e na antropologia. Ou seja: [5: O tema da usura aparece insistentemente nos textos analisados, contudo, o tema foi deixado de fora por questão de delimitação.] [6: Nosferatu é uma palavra moderna derivada da palavra em eslavo antigo Nosufur-atu, extraída do grego Nosophoros, Portador de Pragas, usada como sinônimo de Vampiro.] 
A burguesia legitima ideologicamente a nova sociedade em nome do progresso que realizaria a emancipação humana, a utopia moderna. Este progresso é impulsionado pelo progresso técnico, que é, por sua vez, guiado pelo critério de maximização do lucro. O lucro, um interesse particular, é apresentado como aquele que guia o progresso parra toda a coletividade na medida em que no sistema de mercado haveria uma coincidência entre o interesse geral e o particular (SUNG, 2008, p. 151, cursivas nossas).
Esta inversão, ocorrida no interior da sociedade em transição, permitiria ao indivíduo libertar-se das antigas amarras de solidariedade e culpa para explorar ao máximo sua possibilidade de ganho. Eis o papel do sistema de mercado. Portanto, não seria de se estranhar que a questão do aumento do comércio, da monetarização da economia e do protagonismo do mercado estivessem presentes nos debates internos e externos ao cenário religioso do século XVII. 
Na outra face dessa moeda, principalmente no contexto inglês, estariam os pobres, excluídos das possibilidades que se apresentavam no palco capitalista[footnoteRef:7] e, portanto, pode-se compreender como a ética cristã medieval presente no imaginário da sociedade, manifestava-se contrariamente à esse processo, buscando nas imagens bíblicas, formas de protesto. Nesse sentido, R. H. Tawney adverte que mediante o progresso das sociedades modernas, encontra-se uma grave oposição entre este modo de organização econômica e os ensinamentos atribuídos a Jesus de Nazaré. Tal oposição consistiria: [7: Em O Capital (Livro 1, capítulo 24), onde trata da “acumulação primitiva”, Marx explica o processo pelo qual proprietários fundiários e capitalistas expropriaram terras estatais e propriedades comunais, conquistando o campo para a agricultura capitalista e assim criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado,
principalmente na Inglaterra. Christopher Hill (2012), apresenta um quadro bastante detalhado da condição precária dos pobres na Inglaterra durante todo o século XVII, apesar de afirmar não haver dados estatísticos confiáveis acerca da população inglesa. ] 
Na suposição, aceita pela maioria dos reformadores com uma naïveté quase indiferenciável da dos defensores da ordem estabelecida, de que a consecução de riquezas materiais é o supremo objeto do esforço humano e o critério final do sucesso humano. (...) O certo é que ela é a negação de qualquer sistema de pensamento ou de costumes que possa, exceto por uma metáfora, ser descrito como cristão. O compromisso é tão impossível entre a Igreja de Cristo e a idolatria da riqueza, que é a religião prática das sociedades capitalistas, como o era entre a Igreja e a idolatria estatal do Império Romano (TAWNEY, 1971, p. 265. Cursivas nossas).
Ou seja, seguindo este critério, não seria estanho ao contexto da época o surgimento de questionamentos à ordem emergente e à natureza violenta com que as novas “virtudes” entregavam a sociedade aos vícios que anteriormente eram condenados. 
3. Idolatria e fetichismo do dinheiro na literatura inglesa
 É importante dizer novamente que a crítica ao processo acima descrito, encontrada na literatura inglesa do final do século XVI e durante o século XVII, não assumiram primordialmente uma forma econômica, mas no sentido das inversões que estavam em curso na sociedade e da objetificação do ser humano frente à autonomia crescente do dinheiro. Segundo David Hawkes, todos os dias, virtualmente, todos em uma sociedade capitalista trocam uma porção de suas vidas por uma representação objetificada dela. Disso decorre que o valor financeiro, ou seja, a forma objetificada da força de trabalho, nada mais é do que a forma objetificada da própria vida. Por isso, as sociedades desenvolveram historicamente formas de compreender “a luta psicológica das forças da vida subjetiva contra as forças de objetificação”, sendo que a maioria de tais sistemas de pensamento pertencem à categoria que poderíamos chamar de “religião”. No entanto, o nosso uso moderno desse termo tende a ser desnecessariamente restritivo, fazendo-nos associar e limitar a religião com o culto organizado a Deus (ou a deuses), enquanto, na maioria dos períodos históricos, e, certamente, na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, as pessoas não isolavam tão rigorosamente a “religião” do resto de suas vidas (HAWKES, 2001).
Por isso, Hawkes afirma que “na Inglaterra pós-Reforma, a conexão entre a idolatria e o fetichismo mercantil era virtualmente axiomática, um lugar-comum considerado óbvio por todos” (HAWKES, 2001, p. 23), o que, muitas vezes, pode fazer parecer que esta expressão fosse trivial ou um clichê. Mas, para o autor, “o vocabulário específico em que o fetichismo das mercadorias foi discutido durante nosso século já está firmemente estabelecido” desde o final do século XVI, como é possível perceber na obra The Faerie Queene[footnoteRef:8], no Canto V (sobre a virtude da justiça), do escritor inglês Edmund Spenser. Publicado em 1590, nele, o personagem sir Guyon destaca as tentações de Mamon: Basta então, ó Deus dinheiro (ele disse) / Que todas as tuas ofertas ociosas Eu recuso. / Tudo o que eu preciso eu tenho; o que precisa de mim? / Cobiçar mais, e então eu tenho motivo para usar? / Em vão mostra seu mundano e vil abuso... (Apud HAWKES, 2001, p. 23). [8: “A Rainha das Fadas” é um poema épico alegórico que deveria conter 12 livros, cada um deles dedicado a uma virtude. Porém, apenas seis foram publicados, pois o poeta morreu em 1599, sem terminar seu trabalho. Em uma carta enviada a sir Walter Raleigh, Spenser afirmou que o ideal de sua obra era de “formar um cavalheiro ou pessoa nobre na disciplina gentil e virtuosa”. Portanto, a obra pode ser interpretada como tendo função didática. Spenser utilizou o mítico rei Artur como modelo de virtude: “Artur é a imagem do bravo cavaleiro, perfeito nas doze virtudes privadas, como pensado por Aristóteles”. Cada um dos livros publicados está baseado numa virtude religiosa e cavalheiresca: o Livro I na Santidade, o Livro II na Temperança, o Livro III na Castidade, o Livro IV na Amizade, o Livro V na Justiça, e o Livro VI na Cortesia. Em cada livro há um personagem cavalheiresco que serve de alegoria a cada virtude (Disponível em: < https://www.britannica.com/topic/The-Faerie-Queene>. Acesso em: 29 Jun. 2017).] 
Segundo Hawkes, Spenser estaria repetindo significados que eram um lugar-comum quando os autores se referiam à avareza, pelos quais seus leitores podiam notar formas precisas e específicas, como quando usavam expressões como “da sua perversidade, seu Deus, ele fez” e “a maldita usurpação era o seu comércio” (HAWKES, 2001, p. 23). 
No texto Nossa luta é contra os ídolos, Pablo Richard analisa nos textos bíblicos a idolatria do dinheiro e afirma que o uso desta abordagem sempre se dá por meio de paralelismos, com um significado comum, ligado à vícios e tratada como um elemento destruidor das relações humanas e fraternais. Assim, avareza (ambição, avidez, acumulação, arrogância) e idolatria seriam sinônimos e “o ídolo seria o dinheiro, mas não como uma realidade em si mesma e sim, como a posse do dinheiro como poder, para desejar e extrair mais dinheiro dos outros (...) A idolatria seria então a submissão do homem a esse poder do dinheiro”(RICHARD, 1982, p. 32-3)
O mesmo ocorreria no retrato apresentado no poema Volpone, de Ben Jonson[footnoteRef:9]: [9: Volpone uma peça de comédia do dramaturgo inglês Ben Jonson, produzida em 1605-06. É considerada uma sátira implacável sobre ganância e luxúria, e está classificada entre as melhores comédias da era jacobina. Volpone é um cavalheiro veneziano que finge estar em seu leito de morte depois de uma longa doença para enganar Voltore, Corbaccio e Corvino, três homens que aspiram a herdar sua fortuna. Cada um deles chega à casa de Volpone com um presente luxuoso, com a intenção de ter seu nome inscrito no testamento de Volpone, como seu herdeiro (Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/Volpone-The-Alchemist>. Acesso em: 29 Jun. 2017).] 
Bom dia para o dia; E depois, meu ouro! / Abra o santuário para que eu possa ver meu santo. / Salve a alma do mundo e a minha... / ...deixe-me beijar / Com adoração, você e todas as relíquias / Do tesouro sagrado, nesta sala abençoada... / ...As riquezas, o deus estúpido, que dão todas as línguas dos homens: / Que não podes fazer nada, e ainda assim os homens fazem tudo. (Apud HAWKES, 2001, p. 24).
Spenser e Jonson escreveram no início do período em discussão, mas seu diagnóstico sobre a fetichização do dinheiro seria repetido incessantemente até o final do século XVII, quando se encontra o declínio deste tipo de crítica. Em Anatomy of Melancholy[footnoteRef:10], publicada em 1621, Robert Burton afirma, segundo Hawkes, a equação composta pelo abandono do telos, a mercantilização e a idolatria em um tom direto, o que indicaria que ele não encontra nada de controverso, ou mesmo contestável nisso: “Em uma palavra, cada homem para seus próprios fins. Nosso Sumumum bonum é a mercadoria [commodity], E a deusa a quem adoramos é Dea Moneta[footnoteRef:11], a Rainha Dinheiro, a quem oferecemos diariamente sacrifícios” (HAWKES, 2001, p. 24, cursivas nossas). [10: “A Anatomia da Melancolia”, diferentemente das obras apresentadas até aqui, não é um poema épico, um romance ou uma história. Ele é apresentado como um livro de texto médico em que Burton aplica seu vasto e variado aprendizado, de forma pedagógica, ao tema da melancolia, que inclui, embora não se limite, ao que hoje se denomina depressão clínica. Mas, embora apresentado como um texto médico, o livro é tanto uma obra de literatura sui generis, como um texto científico ou filosófico, e nele Burton aborda muito mais do que seu assunto declarado. De fato, A Anatomia usa a melancolia como a lente através da qual toda a emoção e o pensamento humanos podem ser examinados e praticamente todo
o conteúdo de uma biblioteca do século XVII é usado à serviço desse objetivo. É um texto enciclopédico em seu alcance e referência (Disponível em: < https://www.britannica.com/topic/The-Anatomy-of-Melancholy>. Acesso em: 29 Jun. 2017)..] [11: Do latim “Deusa Dinheiro”.] 
É importante destacar a noção (e a consciência) de Burton de que haviam “sacrifícios” sendo realizados, que reforça a tese de que estes autores perceberam o caráter de culto sacrificial resultante da entrega à persecução do dinheiro. Dentro do contexto da obra de Burton, é possível presumir que a angústia ou melancolia enfrentada por sua geração, poderia estar relacionada a tal “culto”. Conforme Sung, a idolatria consiste na fabricação de um deus pelo sistema opressor que, ao sacralizar o fundamento do sistema e o próprio sistema, “tira das pessoas a esperança da possibilidade de transcender o sistema opressor vigente” e, como consequência, sua própria subjetividade, sua capacidade de desejar e de construir uma sociedade mais humana. E com isso, “assassina-se em nome de deus e apresenta-se a morte e o sacrifício como únicos caminhos da salvação, caminhos queridos por deus” (SUNG, 1992, p. 91).
Embora não esteja explícito no texto de Burton o tipo de sacrifício prestado à Dea Moneta, é possível depreender com o auxílio das explicações de Richard e Sung que a submissão dos seres humanos ao poder do dinheiro, (poder que dá poder), de forma devocional e cúltica, seria, consequentemente promotora de sacrifícios humanos (seus e/ou de outros), pois esta é a natureza dos ídolos. Ou seja, a elevação do dinheiro e, consequentemente, do sistema econômico à um status de independência dos princípios ético-morais relacionados às finalidades da vida e da salvação da alma, promovido pela avidez do interesse próprio que era liberto de suas amarras, imergia a sociedade em um processo opressivo. Como destaca Hugo Assmann, os ídolos são deuses de opressão e o conceito de ídolo biblicamente está vinculado à manipulação de símbolos religiosos com a finalidade de “criar sujeições, legitimar opressões e apoiar poderes dominadores na organização do convívio humano” (ASSMANN, 1989, p. 11).
Em 1685 – portanto, no final do período abordado nesta pesquisa – William Clark, em sua obra The Grand Tryal, afirmou:
Para o ouro, por que também é um Minério vangloriado / Embora em suas Veias não significa nada mais / Em seguida, outros Metais, a Terra amarela na melhor das hipóteses, / Poeira colorida Rara, mas uma vez trouxe para o Teste, / Não é mais poeira, não é mais um simples Minério, / Não mais um monte de Areia, como era antes: / Mas agora ele carrega um nome muito ilustre, / Além de todos os Metais, e de fato parece / Ser o ídolo dos mundos. (Apud HAWKES, 2001, p. 24)
O texto mostra que o ouro, para Clark, tinha para dos homens de seu tempo dois sentidos ou significados. Um era natural, pelo qual o ouro não significava “nada mais” do que outros metais; ele seria como uma “Terra amarela, na melhor das hipóteses”. Mas havia outro, que lhe dava outra dimensão de significado, pelo qual ele carregava “um nome muito ilustre”, elevando como “ídolo dos mundos”. Portanto, segundo Hawkes, à medida que o valor do dinheiro se desprendia de sua encarnação física, constituía-se seu culto e a consequente idolatria[footnoteRef:12] (HAWKES, 2001, p. 24). [12: Embora não seja destacado em nossa análise, por questão de delimitação, até o final do século XVII, a nova ciência da economia política alcançaria o entendimento de que o valor não reside na presença física do ouro, mas poderia ser expresso com a mesma eficácia por meio de um sinal do ouro – um avanço que resultou no introdução de papel-moeda. Ou seja, o texto trata da adoração do ouro em sua função monetária.] 
Karl Marx, ao tratar do dinheiro em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos, explicou que o dinheiro possui “a propriedade de comprar tudo, de apropriar objetos para si mesmo”. Assim, o caráter universal dessa propriedade de comprar tudo seria de “onipotência”, sendo ele “a proxeneta[footnoteRef:13] entre a necessidade e o objeto, entre a vida humana e os meios de subsistência”. (MARX, 1985, p. 29). Neste texto Marx cita a obra Timão de Atenas, de William Shakespeare[footnoteRef:14], publicada em 1623, como tendo ele descrito acertadamente a essência do dinheiro: [13: Quem cobra para servir de intermediário em casos amorosos, ou que explora a prostituição de outrem – cafetão.] [14: David Hawkes também analisa os textos de William Shakespeare, embora não cite esta mesma obra. Hawkes se concentra nos Sonetos de Shakespeare e destaca o fato dele ser filho de um agiota
] 
Ouro! amarelo, reluzente, precioso ouro! Não, deuses, eu não faço súplicas em vão (...) Assim, um tanto disto tornaria o preto branco; o repugnante belo; o errado certo; o vil nobre; o velho jovem; o covarde valente (...) Por que isso arrancará vossos sacerdotes e servidores de vossos lados, arrebatará coxins de sob a cabeça de homens corpulentos. / Este escravo amarelo tecerá e despedaçará religiões; abençoará os amaldiçoados; fará a alvacenta lepra adorada; Levará ladrões, dando-lhes título, reverência e aprovação, ao banco dos senadores; isto é que faz com a desgastada viúva casar-se novamente; a ela, para quem o lazarento e ulcerosas feridas abririam a goela, isto perfuma e condimenta para o dia de abril novamente. Vem, elemento danado, tu, vulgar rameira da humanidade, que instalas a disputa na multidão de nações (...) Ó tu, doce regicida e caro divórcio entre filho e senhor! tu, brilhante violador do mais casto leito de Hímen! tu, Marte valente! Tu, sempre jovem, loução, amado e delicado sedutor, cujo rubor derrete a neve consagrada que já no regaço de Diana! tu, deus visível, que soldas impossibilidades e fá-las beijarem-se! que falas com toda língua para todo propósito! ó tu, contato de corações! pensa, teu escravo, o homem, se rebela, e por tua virtude eles entram em tais confusas disputas, que as bestas poderão ter o mundo sob império (Apud MARX, 1985, p. 29, cursivas de Marx).
Marx demonstra que as qualidades e forças essenciais do dinheiro são as mesmas que a pessoa possui, ou seja, “o que sou e o que posso não são determinados de modo algum por minha individualidade”, portanto, “o dinheiro é o laço que me liga à vida humana, que liga a sociedade a mim, que me liga com a natureza e com o homem (...)”[footnoteRef:15] (MARX, 1985, p. 30, cursivas do autor). Em seu poema, ainda segundo Marx, Shakespeare destaca uma propriedade essencial do dinheiro, que é a de ser uma “divindade visível, a transmutação de todas as propriedades humanas e naturais em seu contrário, a confusão e inversão geral de todas as coisas” e, portanto, “o Dinheiro é, ao realizar esta mediação, a verdadeira força criadora” (MARX, 1985, p. 31, primeira cursiva nossa; as demais, do autor)[footnoteRef:16]. [15: Marx também cita um trecho da obra O Fausto, de Goethe, que foi deixado de fora por não pertencer ao período estudado.] [16: Em Grundisse, Marx volta a se referir à forma como Shakespeare define o dinheiro (MARX, 2011, 165).] 
Hawkes, analisando este mesmo texto, destaca que o dinheiro permite mudar a identidade e que Shakespeare entendeu que o fetichismo do dinheiro era incompatível com as formas mais antigas de reverência estavam mudando, que a mercantilização era uma perversão generalizada do mundo, longe de sua condição natural e harmoniosa. Para Marx, esta seria a substituição do sujeito humano autêntico por uma paródia alienígena e reificada da subjetividade e seu principal efeito ideológico de uma economia de mercado seria a objetivação do sujeito (HAWKES, 2001). 
A fetichização das mercadorias (e nesse caso mais especificamente do dinheiro) seria responsável por esta “inversão” destacada por Marx em sua análise do texto de Shakespeare, pela qual as coisas são transformadas em sujeitos e os sujeitos em coisas[footnoteRef:17]. Para Franz Hinkelammert, por meio da teoria do fetichismo “descobre-se que, uma vez desenvolvidas as relações mercantis,
as mercadorias se transformam em mercadorias-sujeitos, ou seja, adquirem as qualidades de ‘pessoas’; adquirem ‘vida’” e, “a partir do momento em que as mercadorias começam a ‘personificar-se, o homem (produtor) tende a sujeitar-se a elas para viver”. Para Hinkelammert, nisso se baseia o impulso religioso do sistema capitalista e esta personificação leva à criação de um “outro mundo” que intervém neste, cuja essência é produzir “na fantasia religiosa as relações sociais que as mercadorias realizam no mundo mercantil”[footnoteRef:18] (HINKELAMMERT, 1983, p. 11). [17: Em O Capital, Marx explica “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”: “O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social entre objetos, existente à margem dos produtores. (...) É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias (MARX, 2013, p. 206-7).] [18: No ensaio O Uso de Símbolos Bíblicos em Marx, Hugo Assmann apresenta uma série de exemplos de como estas imagens aparecem em sua crítica. Alguns exemplos são “Deus”, “Divindade”, “Ídolo”, “bezerro de ouro”, “Baal”, “Moloch” e “Mamon”. Nesta análise, Assmann afirma que o sistema capitalista, enquanto é um sistema fetichizador da realidade, é essencialmente idolátrico (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989). ] 
Segundo Hugo Assmann, se partirmos do pressuposto de que não é possível amputar da análise que Marx faz do capitalismo a utilização de imagens idolátricas, podemos considerar com mais atenção o que, nesse sentido, seria um culto idolátrico. Ou seja, a idolatria seria um “ato de reciprocidade entre o idólatra e o ídolo”, mesmo diante da possível oposição sobre esta relação devido o fato de, nesse caso, o ídolo ser uma coisa, um objeto, não podendo exercer nenhum poder real ou ser recíproco ao idólatra. Porém, como já apontado por Marx, no processo de fetichização, as coisas viram sujeitos e os sujeitos, coisas. Portanto, a teoria do fetichismo seria, no fundo, “uma explicação do estranho poder das coisas sobre as pessoas” (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 410).
No texto anônimo The Massacre of Money, de 1602, David Hawkes destaca a forma com que seu autor expressa a compreensão popular daquela época sobre os efeitos do abuso do dinheiro, da avareza daqueles que procuravam mais seu próprio lucro:
Embora em ti mesmo não haja mistura de desastre, / No entanto, em seu uso está ou bom, ou perda. / Nunca conhecemos aquela natureza santa Natureza / Criado para um fim absurdo, / Boa em si, nós sabemos que é toda criatura, / E, a partir daí, desejam bons efeitos. / Contudo, usando a virtude em uma causa de maldade, / Nós somos culposos de infringir leis legitimas. / A prata é moldada à uma boa intenção, / Para ser reduzida à forma de moeda, / Então, para comprar milho, terra, casas, nutrientes, / Se algum homem subornar com ela ou roubar, / Transformando a boa criatura em um uso perverso, / A libertação da culpa da criatura: é o abuso do homem. (Apud HAWKES, 2001, p. 83)
Para Hawkes, a noção de abuso, como é empregada neste e em outros panfletos do período, “mistura um ataque à idolatria com uma crítica à comercialização para produzir um diagnóstico sofisticado da tendência psicológica que hoje conhecemos como fetichismo da mercadoria” (HAWKES, 2001, p. 83). 
Marx também faz um comentário ao texto de William Petty[footnoteRef:19] – Several essays in political arithmetick, the titles of which follow in the ensuing pages, de 1699, no qual Petty afirma que: [19: Sir William Petty (1623 – 1687) – economista, cientista e filósofo britânico, considerado pioneiro no estudo da Economia Política. Foi ele quem propôs a utilização da métodos quantitativos (aritmética política), como meio de análise da riqueza de um país.] 
O efeito maior e final do comércio não é a riqueza enquanto tal, mas sobretudo a abundância de prata, ouro e joias, que não são perecíveis nem tão transformáveis como outras mercadorias (...) os efeitos de tal comércio que provê um país de ouro e prata são mais vantajosos do que outros. (...) Se, mediante o imposto, o dinheiro é tomado daquele que o come e bebe, e [é] dado àquele que o utiliza no melhoramento da terra, na pesca, na exploração de minas, em manufaturas ou mesmo em roupas, há sempre um benefício para a comunidade (...) o benefício máximo, sobretudo, se investido para conseguir ouro e prata para o país, porque essas são as únicas coisas que não são perecíveis, mas são consideradas riqueza em todos os tempos e lugares (Apud Marx, 2011, p. 260, cursivas de Marx).
Marx destaca que “o culto ao dinheiro tem seu ascetismo, sua renúncia, seu autossacrifício – a parcimônia e frugalidade, o desprezo dos prazeres mundanos, temporais e efêmeros; a busca do tesouro eterno (MARX, 2011, p. 260-1, cursivas do autor). E segundo Hinkelammert (1983), Marx percebe que a perseguição ao dinheiro se transforma numa obra de piedade e o fetiche do dinheiro se transforma em objeto de devoção. 
Ainda falando sobre o contexto de Petty (final do século XVII), para Hawkes, se olharmos 30 anos à frente de Petty, ou seja, para meados do século XVIII, é possível ver como as questões éticas levantadas por ele e outros autores do seu tempo, como Nicholas Barbon e Dudley North, deram base para a afirmação de Bernard Mandeville de que os vícios privados são benefícios públicos. Em The Fable of the Bees, de 1723, Mandeville apontava a hipocrisia dos participantes no mercado que afirmavam estar agindo por altruísmo, ressaltando que muitos deles morreriam de fome em meio ano se o orgulho e o luxo fossem banidos da nação. Assim, inveja, avareza, gula, orgulho, luxúria, de acordo com Mandeville, seriam absolutamente necessários para o próspero florescimento de uma economia de mercado. Além disso, seria natural que em tal economia, os seres humanos atuassem de forma egoísta e buscassem seu próprio interesse à custa dos outros (HAWKES, 2001, p. 227).
Note-se que em 1680, a obra de ficção The Life and Death of Mr. Badman, escrita por John Bunyan, se contrapunha à essa moralidade capitalista emergente e analisava seus efeitos psicológicos. Nela, “Bunyan usa o poder da qualidade abstrata da maldade sobre o indivíduo e a personifica como uma maneira de refletir sobre a afirmação de que a busca implacável do interesse próprio é parte da natureza humana”. Mr. Badman está totalmente comprometido com uma compreensão relativa do valor e da moralidade e fala alegremente sobre a verdadeira natureza de sua própria condição. Ele se imagina um personagem, transgressor, que é capaz de trocar uma identidade por outra de acordo com os ditames das circunstâncias (HAWKES, 2001, p. 227).
4. Crítica anti-idolátrica na literatura inglesa e romantismo
A análise do surgimento do capitalismo e de seus efeitos sobre a religião e desta sobre o primeiro, leva Tawney à conclusão de que desde o Medievo até o final do século XVII, os teóricos condenavam como pecado o esforço do indivíduo por atingir um aumento contínuo e ilimitado de riquezas materiais, que nas sociedades modernas seria aplaudido como qualidade. Portanto, “o pecado imperdoável seria o do especulador ou intermediário, que arrebata lucros privados através da exploração das necessidades públicas”. Portanto, para Tawney,
desde que a sociedade moderna abandonou a orientação tomista das relações econômicas e os vícios privados foram declarados virtudes capazes de trazer o benefício público, teria sido a teoria trabalhista do valor a responsável por novamente criticar tais práticas e, nesse sentido, “o último dos escolásticos foi Karl Marx” (TAWNEY, 1973, p. 50).
A partir da tese de Tawney, que conecta o pensamento do período de transição entre a antiga ordem medieval para a moderna com as críticas à economia capitalista do século XIX, pode-se argumentar que conexão entre críticas dos pensadores do século XVII e daqueles do século XIX estão possivelmente ligadas pelo romantismo. O romantismo pode ser definido como um movimento artístico, político e filosófico surgido nas últimas décadas do século XVIII, na Europa, que estendeu-se até o final do século XIX. Mas a origem do que viria a ser conhecido como romantismo pode ser encontrada na Inglaterra do século XVII[footnoteRef:20]. Para Löwy e Sayre (2015), existe uma pré-história do romantismo, cujas raízes se encontram no desenvolvimento do comércio, do dinheiro, das cidades, da indústria, e que se manifestou ulteriormente na Renascença e como reação aos bruscos impulsos trazidos pelas transformações socioeconômicas que engendraram a modernidade. [20: Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/romantisme>. ] 
Embora não exista uma análise global do romantismo que leve em conta sua verdadeira extensão e multiplicidade e, para Löwy e Sayre (2015), este fenômeno poderia ser melhor descrito como uma visão de mundo (Weltanschauung), ou seja, como uma estrutura mental coletiva que exprimiu-se em campos culturais diversos, atingindo, inclusive, a teologia, o pensamento jurídico, a sociologia e a história, dentre outros. Este fenômeno deve ser entendido como uma resposta à transformação de ordem econômica e social, que ocorria na sociedade europeia desde os séculos anteriores à Revolução Francesa, sendo possível detectar importantes manifestações de um verdadeiro romantismo desde o início do século XVIII. Portanto, o romantismo, como uma visão de mundo, se constituiria como uma forma específica de crítica da modernidade, engendrada pela Revolução Industrial e pela generalização da economia de mercado.
O romantismo representa uma modalidade, uma tonalidade particular de crítica ao mundo moderno. De fato, na óptica romântica, essa crítica está vinculada à experiência de uma perda; no real moderna uma coisa preciosa foi perdida, tanto no nível do indivíduo quanto no da humanidade. A visão romântica caracteriza-se pela convicção dolorosa e melancólica de que o presente carece de certos valores humanos essenciais, que foram alienados (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 43, cursiva do autor).
Esta convicção dolorosa e melancólica sobre a modernidade e suas perdas teriam sido intuídas pelos escritores do século XVII? Tal “experiência de perda” seria responsável pelo desejo de reencontro com uma passado, cuja característica essencial é sua diferença em relação ao presente, ou seja, o passado se refere a um período em que as alienações modernas ainda não existiam, é pré-capitalista, ou pelo menos um passado em que o sistema socioeconômico moderno ainda não estava plenamente desenvolvido (LÖWY; SAYRE, 2015).
No caso de Marx, para Löwy e Sayre (2015), o romantismo é uma das fontes de influência que foram esquecidas, que provavelmente foi tão importante para seu trabalho quanto o neo-hegelianismo alemão e o materialismo francês. Isso se explica pelo fato de que em sua juventude, enquanto seu pai lia com ele Voltaire e Racine, seu futuro sogro, o barão Von Westphalen buscava entusiasmá-lo pela escola romântica, introduzindo-o aos escritos de Homero e Shakespeare. Estes autores permaneceram como seus prediletos, durante toda a vida. Mas após converter-se à dialética hegeliana, ao materialismo e à filosofia da práxis, Marx rompeu com esse romantismo juvenil, parecendo não haver mais lugar para qualquer nostalgia do passado em sua nova filosofia da história. O anti-capitalismo de Marx não visa a negação abstrata da civilização burguesa moderna, mas sua abolição, conservando-se, contudo, suas grandes conquistas e sua superação por um modo de produção superior. Entretanto, em uma atitude Marx não ignorava o reverso dessa “moeda” que era a civilização capitalista, numa atitude tipicamente dialética, pela qual ele via o capitalismo como um sistema que transformava todo progresso econômico em uma calamidade pública. Por fim, para estes autores:
A concepção marxiana do socialismo está intimamente ligada à crítica radical da civilização burguesa moderna. Pressupõe uma mudança qualitativa, uma nova cultura social, um novo modo de vida, um tipo de civilização diferente, que restabeleceria o papel das “qualidades sociais e naturais” da vida humana e o papel do valor de uso no processo de produção (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 43, cursivas nossas).
Conforme esses próprios autores alertam, apesar de tais constatações, seria errado afirmar que Marx fosse um romântico, mas é fato que as críticas românticas da civilização industrial ajudaram-no a perceber os limites e as contradições do sistema capitalista. Ademais, sua análise do modo de acumulação primitiva de capital e a utilização de imagens bíblicas relacionadas à idolatria permitem-nos uma importante aproximação entre as percepções dos críticos ingleses do século XVII e Max.
Considerações finais
Esta análise procurou relacionar a transição do sistema socioeconômico medieval para o e moderno com a crítica econômica na literatura inglesa do final do século XVI até o final do século XVII, tendo como suspeita que tais críticas apontavam para a percepção dos autores de um processo idolátrico nas atividades econômicas. A questão dos pobres em relação à estas críticas não foi adequadamente aprofundada, sendo deixada como possibilidade para trabalhos futuros. Contudo, está subjacente ao caráter idolátrico do comportamento aquisitivo, a fetichização do dinheiro e o consequente sacrifício de vidas humanas nesse processo.
Como já explicado anteriormente, teólogos latino-americanos têm-se dedicado a criticar nas teorias e nos processos econômicos uma estranha metamorfose dos deuses e um ingente processo de idolatria que está vinculado à maneira como se concebem e se organizam tais processos. Portanto, buscou-se nesta análise uma aproximação entre a crítica atual do capitalismo como religião e aquela produzida no contexto da modernidade emergente, onde a transição não estava completa e, portanto, os autores poderiam apenas intuir suas consequências. Parece certo que desde o triunfo do capitalismo encontra-se na epistemologia moderna a negação da existência de pressupostos mítico-teológicos na teoria e nos processos econômicos, responsáveis pelo caráter sacrificial e sedutor do capitalismo.
REFERENCIAS 
ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz J. A Idolatria do Mercado: Ensaio sobre Economia e Teologia. Série V: Desafios da vida na sociedade. São Paulo : Vozes, 1989.
HAWKES, David. Idols of the Marketplace: Idolatry and Commodity Fetishism in English Literature, 1580 – 1680. New York, N.Y. : Hampshire, England, Palgrave TM, 2001.
HILL, Christopher S. A Bíblia inglesa e as revoluções do século XVII. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2003.
___________. O século das revoluções, 1603-1714. São Paulo : Editora Unesp, 2012.
HINKELAMMERT, Franz. As armas ideológicas da morte. São Paulo : Edições Paulinas, 1983.
HIRSCHMAN, Albert O. As paixões e os interesses. Rio de Janeiro : Record, 2002.
LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida : economia e religião na Idade Média. São Paulo : Brasiliense, 2004.
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia : o romantismo na contracorrente da modernidade. 1a. ed. São Paulo : Boitempo, 2015.
MANDEVILLE, Bernard. The Fable of the Bees, or Private Vices. Publick Benefits. Com um comentário crítico, histórico e explicativo de F.B. Kaye Liberty Press, Indianapolis, [1723] 1988.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos.
3. ed. São Paulo : Abril Cultural, 1985.
___________. Grundisse : Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica econômica política. São Paulo : Boitempo Editorial, 2011.
___________. O Capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo : Boitempo Editorial, 2013.
POLANYI, Karl. A Grande Transformação : As Origens Políticas e Econômicas do nosso Tempo. LISBOA : Edições 70, 2012.
RICHARD, Pablo et al. Nossa luta é contra os ídolos. In: A luta dos deuses: Os ídolos da opressão e a busca do Deus libertador. São Paulo : Edições Paulinas, 1982.
SUNG, Jung Mo. Deus numa economia sem coração. Pobreza e neoliberalismo: um desafio à evangelização. São Paulo : Paulus, 1992.
___________. Teologia e Economia : Repensando a Teologia da Libertação e as utopias. São Paulo : Fonte Editorial, 2008.
TAWNEY, R. H. A religião e o Surgimento do Capitalismo. São Paulo : Editora Perspectiva, 1971.
1

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?

Continue navegando