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1 Liberdade e igualdade nos direitos humanos: fundamentos filosóficos e ideológicos1 Clodoaldo Meneguello Cardoso2 Introdução O mundo contemporâneo tem como marca a evidência da diversidade da cultura humana. Vivemos tempos de uma consciência cada vez mais clara de que ideias como bem comum, liberdade, felicidade e dignidade humana, dentre outras, têm paradigmas culturais e ideológicos diversos. Não é mais possível ocultar nossas diferenças étnico-culturais, nossas crenças religiosas diversas e convicções conflitantes, em suma, não podemos olvidar a existência da pluralidade de significados dos valores que norteiam a convivência social. No presente texto, propõe-se analisar os conceitos de liberdade e igualdade, explicitando os diversos significados ideológicos que assumiram no curso da modernidade. Em específico, busca-se fundamentar a idéia de liberdade em sua versão liberal e os vários sentidos do conceito de igualdade dela decorrentes. Na mão inversa, será objeto de análise o sentido socialista do conceito de igualdade, bem como o sentido de liberdade que ele engendra. Será possível, assim, evidenciar duas leituras distintas e parciais do conjunto dos direitos humanos. A título de considerações finais, argumenta-se que a luta pela efetiva realização do conjunto dos direitos humanos tem no seu horizonte a possibilidade de conciliação entre os direitos individuais (civis e políticos) e os direitos coletivos (sociais, econômicos e culturais), os dois grandes legados do liberalismo e do socialismo, respectivamente. Inicia-se este percurso com os direitos dos indivíduos, marca distintiva da sociedade moderna ocidental. Liberdade e igualdade no pensamento liberal Os fundamentos do liberalismo moderno estão claramente postos no pensamento de John Locke. Nele, o sentido dos valores liberdade e igualdade, bem como de outros como a vida, a segurança e a propriedade, encontram-se no interior da doutrina dos direitos naturais: o 1 O presente texto foi publicado em dezembro de 2009 na coletânea Direitos humanos na formação universitária: textos para seminários, pela Cultura Acadêmica Editora (Unesp). 2 Professor de Filosofia da Unesp, campus de Bauru-SP, Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação. 2 jusnaturalismo3. Locke estabelece como pressuposto filosófico para compreender a origem e os limites do poder político frente ao indivíduo, a existência de um estado natural vivido inicialmente pela humanidade. No capítulo II do Segundo Tratado sobre o Governo, ele faz uma reconstrução fantasiosa do um suposto estado originário dos seres humanos, em que havia perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem [...]. O estado de natureza tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que (...) nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses (LOCKE, 1978, p. 35-36). Como se vê, a liberdade do indivíduo em estado natural não sofre qualquer restrição social, apenas o bom senso ditado pela razão estabelece uma norma básica de convivência: não prejudicar o outro naquilo que não se quer também ser prejudicado. No arcabouço argumentativo de Locke, os homens constituíram a sociedade por força de flagelos naturais e pelos ataques de seus inimigos. Ameaçados em suas individualidades, estabeleceram, por um contrato, a ordem social delegando seu controle ao poder político, com o único objetivo de garantir as liberdades individuais e os demais direitos naturais. Dessa forma o Estado liberal é um Estado limitado e a serviço do indivíduo. Portanto a liberdade, na tradição liberal, é liberdade do indivíduo em relação ao Estado, ou seja, há sempre uma oposição entre liberdade e poder. A interface necessária dessa liberdade é a igualdade. Qual igualdade? Na tradição liberal, a igualdade das pessoas refere-se ao relacionamento entre elas na oposição entre liberdade e poder. À medida que se amplia o poder de uma pessoa, diminui a liberdade da outra e vice-versa. Daí por que, no estado natural, todos são iguais no sentido de que ninguém se sujeita a qualquer poder e jurisdição, isto é, todas as pessoas são iguais sem subordinação ou sujeição (LOCKE, 1978, p. 35). É a lei da natureza extensiva igualmente para todos os seres humanos. Somente quando se desobedece a esta lei, ou seja, quando os homens comportam-se contra os próprios ditames da razão, quebra-se a igualdade e dissolve-se a liberdade. Diante dos perigos do estado de natureza, os homens se juntam formando a sociedade política, não abrindo mão dos direitos naturais de liberdade e igualdade, mas transferindo para 3 “Pode-se definir o jusnaturalismo como a doutrina segundo a qual existem leis não postas pela vontade humana – que por isso mesmo precedem à formação de todo o grupo social e são reconhecíveis através da pesquisa racional – das quais derivam, como em toda e qualquer lei moral ou jurídica, direitos e deveres que são, pelo próprio fato de serem derivados de uma lei natural, direitos e deveres naturais.” (BOBBIO, 2005, p. 12). 3 o representante político a tarefa de proteção de tais direitos e o poder de executar a lei da natureza. Não existe aqui sujeição, pois não se obedece ao governante como poder em si, mas como poder delegado para garantir e proteger os direitos individuais. A partir da ideia de liberdade como direito natural, o liberalismo constrói um conceito de democracia, em que a igualdade tem um sentido bastante específico. Noberto Bobbio (2005, p. 37-8) mostra o vínculo intrínseco entre democracia e igualdade, mas não entre democracia e liberdade. Democracia, como próprio nome anuncia, trata-se distribuir o poder político entre a maior parte dos cidadãos. Entretanto ele chama a atenção para a necessidade de distinguir dois sentidos de democracia ao tratar do sentido do valor igualdade. Para o liberalismo, a democracia tem um significado jurídico-institucional, pois formalmente as leis são as mesmas para todos e elas garantem, a todos os cidadãos, a participação política na livre escolha dos governantes. É esse o sentido liberal de democracia como o governo do povo. Numa outra concepção, de caráter social, democracia assume um significado mais substancial, uma vez que seu objetivo principal é promover efetivamente a igualdade sócio-econômica e cultural entre todos. Esse enfoque será abordado mais adiante. Na democracia liberal, o valor igualdade refere-se a dois princípios: a igualdade perante a lei e a igualdade dos direitos civis e políticos. Eles abrem solenemente os textos das cartas e declarações de direitos provenientes das revoluções burguesas e de muitas constituições das democracias ocidentais, afirmando que ‘todos os seres humanos nascem livres e são iguais perante as leis’. A igualdade de direitos remonta aos direitos naturais e posteriormente aos direitos sociais constituídos a partir deles. Por natureza, todos os seres humanos são igualmente dotados de razão e têm direito à liberdade, à vida, à segurança e à propriedade. Na sociedade, portanto, todos têm o direito à proteção, à educação, ao tratamento de saúde, à moradia etc. Por sua vez, o princípio da igualdade perante a lei pode se interpretado restritivamente como uma diversa formulação do princípio que circula nos tribunais: `A lei é igual para todos’. Nesse sentido significa simplesmente que o juiz deve ser imparcial na aplicação da lei e (...) que todos os cidadãos devem ser submetidos às mesmas leis... (BOBBIO, 2005,p. 40). Não se trata, portanto, do direito à igualdade sócio-econômica como propõe as sociedades igualitárias. Tal sentido de igualdade, para o pensamento liberal, confronta com o valor liberdade. Para o liberal, o fim principal é a expansão da personalidade individual, mesmo se o desenvolvimento da personalidade mais rica e dotada puder se firmar em detrimento do desenvolvimento da menos dotada; para o igualitário, 4 o fim principal e o desenvolvimento da comunidade em seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de liberdade dos singulares. (IDEM, p. 39) Em resumo, ao falar de igualdade, o pensamento liberal estava especificamente referindo-se ao acesso à jurisdição comum. Trata-se, pois, de um ideal jurídico e não social, como entende o pensamento socialista. O sentido de igualdade perante a lei é compatível com a ideia liberal de liberdade, ou seja, pode-se fazer tudo aquilo que não prejudique a igual liberdade do outro. Como se vê, no pensamento liberal o valor liberdade, concebido do ponto de vista do indivíduo, é o centro gerador dos significados de todos os outros valores. Em sua Carta acerca da tolerância, de 1690, Locke aplica esse sentido de liberdade à esfera religiosa. A vivência autêntica da fé implica uma escolha livre e individual de uma determinada doutrina, o que exclui toda imposição externa e violência como método de conversão. (LOCKE, 1978, p. 3). A liberdade resulta necessariamente na pluralidade de posições, daí a exigência da tolerância. Assim, A Carta de John Locke torna-se um marco paradigmático da defesa da liberdade de consciência e expressão. A exemplo de Locke na Inglaterra, Voltaire empunhou, na França, a bandeira da liberdade religiosa com o Tratado sobre a tolerância, publicado em 1783. Em pleno iluminismo, os argumentos a favor do respeito ao direito natural de liberdade de consciência e expressão apoiam-se fundamentalmente na racionalidade humana. “Essa razão é suave, humana, inspira a indulgência, abafa a discórdia, fortalece a virtude, torna agradável a obediência às leis, mais ainda do que a força é capaz.” (VOLTAIRE, 1993, p. 37) É, portanto, pela superação da ignorância que se viabiliza a existência de uma sociedade esclarecida, onde todos possam expressar livremente suas posições, tendo assegurado o bem comum. A liberdade de pensamento e expressão significou o grande referencial ético-político das revoluções burguesas, tornando-se valor obrigatório e explicitado em suas cartas, como na Declaração dos direitos do homem e do cidadão da Revolução Francesa, marco histórico do pensamento liberal: “A livre comunicação de pensamentos e opinião é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode pois falar livremente, sob condição de responder pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei.” (art. XI). Entretanto foi com Stuart Mill no século XIX, que os valores liberdade e igualdade ganharam sua forma mais completa enquanto expressão da ética, da economia e da política liberal clássica. Mill retoma e assume o empirismo do século XVII enquanto posição epistemológica, porém avança quando aborda as questões éticas e políticas no limite do mundo fenomênico, dispensando qualquer argumentação transcendental para a liberdade. 5 Essa postura Stuart Mill revela de forma nítida em sua obra Sobre a liberdade, de 1859, em que o valor liberdade é tratado como liberdade civil e não como livre arbítrio. Em outros termos, sua preocupação central é discutir os limites entre a independência individual e a legítima interferência da autoridade social. Aqui três pressupostos liberais são reafirmados radicalmente: valorização do indivíduo; inserção do homem na diversidade do mundo fenomênico e a crença numa razão iluminista emancipadora. (MILL, 1991, p. 53-61). Em síntese: individualismo, diversidade e racionalismo são os principais ingredientes do ideal de liberdade de expressão desenhado por Stuart Mill que, por consequência, equivalem extensivamente ao conceito de igualdade no sentido liberal: a igualdade de direitos civis. O pensamento liberal, ao reduzir o sentido da igualdade aos direitos civis e políticos, desloca o foco da argumentação do coletivo para o individual e acaba por justificar a existência das desigualdades sócio-econômicas entre indivíduos e entre nações. É o que faz Adam Smith, em A riqueza das Nações, de 1776, ao explicar como a riqueza, produto do trabalho, é naturalmente distribuída entre as diferentes classes sociais. Como pensador liberal, em sua investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, Adam Smith vai arrolar, para a desigualdade sócio-econômica, razões de ordem individual, tanto na pessoa quanto na nação, afastando aquelas que apontam para a relação de dominação entre os seres humanos. Todo homem é rico ou pobre de acordo com o grau em que possa suportar ou desfrutar das necessidades, conveniências e dissabores da vida humana. Mas após a implantação definitiva da divisão do trabalho, é de fato pequena a quantidade de coisas que um homem sozinho pode produzir para si próprio. A grande maioria dessas necessidades é suprida pelo trabalho de outras pessoas e será rico ou pobre de acordo com a capacidade de comando de trabalho que poderá ter, ou comprar. O valor de cada mercadoria para a pessoa que a possui e não vai consumi-la ou usá-la, mas sim trocá-la por outra mercadoria é consequentemente, igual à quantidade de trabalho que o capacita a comprar ou a comandar. (SMITH, 1980, p. 32) E esse maior poder de compra ou de comando vem do fato de o indivíduo produzir mais do que o outro e, portanto, ter mais produtos excedentes às suas necessidades, o que lhe possibilita mais troca e, assim mais riqueza. Também a maior capacidade de produção tem sua explicação no âmbito pessoal. Não há, porém, diferenças inatas. Ao nascerem, os seres humanos são iguais, mas os hábitos e a educação posteriores vão determinar o talento de cada um, o qual será desenvolvido mais ou menos, segundo o interesse e a dedicação pessoal. Adam Smith aceita, pois, que o desenvolvimento dos talentos individuais de capacidade de produção estão vinculados não 6 apenas à educação mas também ao cultivo e ao aperfeiçoamento pessoal de uma habilidade específica na divisão do trabalho. Assim o pensamento liberal não ultrapassa as fronteiras da individualidade ao apontar as causas das desigualdades sócio-econômicas. É o indivíduo o sujeito do aperfeiçoamento dos talentos que a educação lhe creditou e, portanto, o responsável por sua riqueza ou pobreza. Alguém é rico porque consegue, devido a seus talentos, produzir mais e melhores produtos para trocar. Cada homem terá então maior interesse em cultivar aquele talento que sua educação e seu hábito lhe conferiram, aplicando-o do melhor modo possível, posto que quanto mais consiga produzir, graças a seu gênio, mais excedentes terá para trocar por outras coisas que necessite para a subsistência. (SMITH, 1980, p. 17) Sendo esta a origem das desigualdades, o liberalismo vê que a igualdade social possível somente poderá ocorrercomo conquista pessoal dos indivíduos em situação de pobreza. Essa possibilidade existe se a sociedade garantir a igualdade diante dos direitos fundamentais, como a educação por exemplo. Vale frisar que o pensador liberal, em nenhum momento analisa possíveis causas externas à vontade e ao caráter do indivíduo para explicar as desigualdades entre um rico e um pobre. Que tipo de educação cada um recebeu? Quais as circunstâncias sociais em que cada um foi educado? A ambos foi oferecido o mesmo tempo e condições para o cultivo de seus talentos e habilidades? Em resumo: a riqueza para o pensamento liberal é sempre fruto da dedicação e do esforço pessoal e não de circunstâncias. A pobreza, em contrapartida, também tem sua causa no próprio indivíduo. A maior parte das desigualdades sócio-econômicas são consequências das diferenças de talentos desenvolvidos pelo caráter e esforço pessoal. A riqueza de uns não tem origem na situação de pobreza de outros ou vice-versa. Assim como as desigualdades entre indivíduos, também as estabelecidas entre as nações serão explicadas pelo liberalismo como conquistas individuais. Em A riqueza das Nações, Adam Smith (1980, p. 19-24) explica o processo de enriquecimento de determinados centros urbanos. O desenvolvimento significa uma maior e melhor produtividade decorrente do aperfeiçoamento das habilidades específicas na divisão do trabalho. Isso é determinado pela força das trocas, ou seja, pela extensão do comércio. Assim, ao contrário dos núcleos rurais, as grandes cidades, localizadas à beira do mar ou de rios, tiveram grande desenvolvimento industrial devido ao forte comércio. Além de serem mais populosos, a maior produtividade 7 desses centros deve-se principalmente à facilidade de escoamento de seus produtos para mercados mais distantes, pela econômica via marítima ou fluvial. Por isso, conclui Smith que, segundo fontes dignas de crédito, da história mundial, as nações que primeiro atingiram um estágio que pode ser chamado civilizado, foram as que circundavam o Mar Mediterrâneo. (SMITH, p. 22) [Entretanto] Todas as regiões interiores da África e toda parte da Ásia que fica a uma considerável distância do Mar Cáspio, a antiga Scytia, a moderna Tartária e a Sibéria, parecem ter, em todas as idades do mundo se mantido no mesmo estado bárbaro e incivilizado no qual se encontram ainda hoje. (SMITH, 1980, p. 23) Esses argumentos de ordem geográfica determinam uma leitura reducionista da origem da riqueza ou pobreza das nações, buscando justificar as desigualdades entre os povos como um processo natural. Além dos fatores de ordem física, facilitadores do comércio, os grandes centros urbanos litorâneos da Europa enriqueceram-se com esse comércio, que possuía outros ingredientes, como a expropriação das riquezas naturais de outras regiões e a mercantilização dos povos dominados como escravos. O breve percurso feito pelo pensamento liberal parece suficiente para seu propósito: demonstrar os fundamentos do sentido liberal dado ao valor ético-político da liberdade e de como decorre dele necessariamente um significado específico do valor igualdade. Numa palavra: para o liberalismo, que vê a realidade unicamente do ponto de vista do indivíduo, liberdade é um direito natural e individual de expressão, autodeterminação e associação e igualdade, o acesso de todos aos direitos civis e políticos. Igualdade e liberdade no pensamento socialista Um dos livros que encantou o jovem Marx foi escrito por um liberal: Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de Jean-Jacques Rousseau, publicado em 1754. Era um pensador liberal, porém com posições diferenciadas. Suas ideias liberais incluem também a teoria do jusnaturalismo, a qual reconhece certos direitos fundamentais de todos os seres humanos em um suposto estado pré-social, o da natureza. Em Locke, o estado de natureza tem como bens inalienáveis a vida, a liberdade e, por extensão, a propriedade. E para protegê-los das ameaças dos inimigos, os homens criaram a sociedade civil e o Estado. Entretanto, Rousseau vê na instituição da propriedade a origem das desigualdades sociais. E isso chamou a atenção de Karl Marx. Onde? Em que obra? 8 Como outros liberais, Rousseau também concebe um estado de natureza imaginário, em que os seres humanos teriam originariamente vivido em perfeita liberdade e igualdade. Robusto, simples, solitário errante e feliz, o homem esteve entregue aos cuidados da própria natureza. Ele não tinha a idéia de posse, nem sentimentos de egoísmo, vaidade e ambição; vivia alheio a seu semelhante sem necessitar dele para a sobrevivência, porém sem desejo de prejudicá-lo. (ROUSSEAU, 1978, p. 256) No estado da natureza havia apenas diferenças naturais entre os homens, marcadas pela idade, força, saúde, qualidades do espírito, etc., denominadas por Rousseau de “desigualdade natural ou física” (IDEM, p. 235). Todavia, o objetivo de sua investigação era analisar as origens da desigualdade moral e política surgida na vida em sociedade e que maculou a convivência humana. Inicialmente a liberdade do homem significou aquela de que todos os animais compartilham: a capacidade natural e individual de movimento e interação com o meio ambiente. Suas limitações físicas, porém, fizeram com que ele se associasse ao semelhante para facilitar a sobrevivência. Assim Rousseau imagina a passagem do estado da natureza para o estado social, pela própria capacidade natural de aperfeiçoar-se, a que chamou de perfectibilidade (IDEM, p. 243). Num primeiro momento, a convivência humana teria sido de auxílio e compaixão mútua. Nesse contexto a liberdade sofre apenas alguns ajustes e passa a ser comunal, ou seja, a liberdade de cada um é protegida pela força do grupo. Nascem assim as primeiras comunidades, como as famílias e com elas "... os mais doces sentimentos que são conhecidos do homem, o amor conjugal e o amor paterno." (IDEM, p. 262) Todavia, transformação do homem não parou nessa feliz etapa em que predominava a convivência harmônica. A vida em sociedade desencadeou um processo de ampliação da consciência de si mesmo e dos outros. Os homens passaram a fazer comparações entre si, medindo forças e disputando posições de comando. Ainda sem leis, cada um julga a si e aos outros pela própria consciência e inicia-se potencialmente a guerra de todos contra todos. Ao mesmo tempo, aperfeiçoa-se a luta para a sobrevivência de todos com a agricultura, a metalurgia e a divisão do trabalho. Explicita-se a noção de propriedade e com ela a existência de ricos e pobres, provocada pela dominação e exploração do trabalho do outro. Para Rousseau, a degeneração do homem inicia-se quando alguém muito forte, cercando um pedaço de terra, disse: “´isto é meu’ e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” (IDEM, p. 259). Dominação e servidão são, portanto, faces opostas da mesma moeda. 9 Em outras palavras, a instituição da propriedade é o divisor de águas que marca definitivamente a formação da sociedade civil, cujas características básicas são a dominação e a desigualdade. Isso ocorre porque os mais fortes passam a explorar o trabalho dos outros em suas terras, não mais para suprir as próprias necessidades, mas para lucrar e ter mais poder de troca e de comando. E assim, com a ambição humana, tem-se a origem das desigualdades sociais e de inúmeros conflitos entre ricos e pobres. É nesse contexto que, segundo Rousseau, são estabelecidas as leis e os governos, supostamente para proteger os mais fracos, mas na realidade as leis são feitas pelos mais fortes para proteger suas propriedades. (IDEM, p. 268). Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças aos ricos, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei dapropriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. (IDEM, p. 269). Caracterizada a origem da desigualdade e dos conflitos, Rousseau apresenta no Contrato Social uma nova fórmula de administração legítima, capaz de restabelecer a ordem e assegurar a igualdade e a liberdade, por consequência restaurar no convívio social a dignidade humana. Trata-se de um pacto social e político buscando garantir a todos, de modo articulado, a liberdade e a igualdade na convivência social. Os indivíduos livremente limitam sua liberdade natural e passam a obedecer à vontade geral da sociedade a fim de proteger sua pessoa e os bens que possui. “O que o indivíduo perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui” (ROUSSEAU, 1978, p. 36). E direito à propriedade é um direito de todos. Assim, quando Rousseau fala de liberdade civil e igualdade de direitos, na vida social, ele está opondo-se ao estado de dominação que surge com a instituição da propriedade como riqueza e poder. Portanto, o Contrato Social contém novas leis para a propriedade. Não se trata de eliminá-la, pois ela tem importância no contrato social concebido no liberalismo, porém, de resgatar sua única função: suprir as necessidades humanas básicas. A propriedade no novo pacto não mais será determinada pela força ou pelas leis dos poderosos, mas pelo direito enquanto expressão da vontade geral. Desse modo, o Contrato Social propõe restabelecer a liberdade e a igualdade na nova ordem social, estabelecendo um novo direito de propriedade. 10 Rousseau não propõe uma sociedade socialista, todavia a vinculação que faz entre a propriedade, dominação e desigualdade social será o principal fundamento em que Marx, no século XIX, se apoiará para construir seu conceito de igualdade e, em decorrência, o sentido socialista de liberdade. Contrariamente ao liberalismo, em que a liberdade individual constitui-se no fundamento principal dos valores, o pensamento socialista entra pela porta da igualdade social para pensar a liberdade e os direitos humanos em geral. Para Marx, em sintonia com Rousseau, a causa das desigualdades sociais está na instituição da propriedade como acumulação e poder. A propriedade, entretanto, não se refere apenas à posse de terras como se pensava nos séculos anteriores, mas à propriedade dos meios de produção e à exploração da força de trabalho. Portanto, é no interior modo de produção, a infra-estrutura da sociedade, que se estabelecem as desigualdades entre os homens pelo processo de exploração do trabalho alheio e, por conseqüência, os conflitos entre dominadores e dominados. Marx e Engels abrem o Manifesto do partido comunista afirmando de modo categórico: A história de toda a sociedade até hoje é a história de luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burguês da corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante antagonismo entre si... [...]. A nossa época, a época da burguesia, distingue-se, contudo, por ter simplificado os antagonismos de classe. Toda a sociedade está a cindir-se, cada vez mais, em dois grandes campos hostis, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado. (MARX-ENGELS, 1987, p. 35) Em particular em O Capital, Marx demonstra – pela teoria da mais-valia, sobejamente conhecida – o mecanismo da exploração do trabalho na sociedade moderna burguesa, que gera e aprofunda as desigualdades. Marx não segue apenas a trilha rousseauniana, que vincula a desigualdade à propriedade, mas coloca-a como ponto central de explicação e de solução das lutas de classe. Não é necessário apresentar aqui os vários aspectos da teoria da mais-valia, como prova da exploração que gera a desigualdade. O que importa nesta linha de reflexão é registrar que o pensamento marxista desloca o eixo axiológico da produção de significados éticos e políticos. Em outras palavras, o valor igualdade – e não mais o valor liberdade – passa a ser o elemento referencial e a base semântica de todos os outros valores. Obviamente Marx e Engels referem-se à igualdade no sentido de que todos têm o mesmo direito a condições humanas e dignas na vida social (trabalho, educação, saúde, moradia etc). A conquista desses direitos sociais pelo proletariado passa por um processo 11 revolucionário com etapas bem definidas, segundo o marxismo. O socialismo, primeira fase da revolução, (...) não propõe nenhum nivelamento absoluto dos indivíduos, mas envolve um respeito por suas diferenças específicas, e permite pela primeira vez que tais diferenças se realizem. È desta maneira que Marx resolve o paradoxo do individual e do universal: para ele, o último termo significa não algum estado de ser supra-individual, mas simplesmente o imperativo de que cada um deva estar incluído no processo de desenvolver livremente suas identidades pessoais. Porém, enquanto homens e mulheres ainda precisarem ser recompensados de acordo com seu trabalho, as desigualdades inevitavelmente persistirão. (EAGLETON, 1999, p. 49-50) Igualdade significa, portanto, que todos têm igualmente o direito de desenvolver suas potencialidades e receber um salário digno para suprir todas as suas necessidades básicas. Para o pensamento marxista, a igualdade social, na fase socialista, articula-se necessariamente com a ideia de liberdade. Sendo a igualdade nos direitos sociais decorrente de um processo de transformação do modo de produção e das relações de produção da sociedade capitalista, a ideia de liberdade aparecerá também, na fase socialista, como um processo de libertação. Estamos falando de um mesmo processo: a supressão da propriedade privada burguesa é o próprio movimento de emancipação do homem dessa estrutura de exploração e, por consequência, de todas as outras formas de dominação e alienação que ocorrem no plano da cultura simbólica, a superestrutura. Marx leva às últimas instâncias sua posição em A questão judaica: Antes de poder emancipar os outros, precisamos emancipar-nos. A forma mais rígida da antítese entre o judeu e o cristão é a antítese religiosa. Como se resolve uma antítese? Tornando-a impossível. E como se torna impossível uma antítese religiosa? Abolindo a religião. (MARX, 1969, p. 15) Assim, liberdade é emancipação no processo revolucionário, e não um estado absoluto do existir humano no originário mundo da natureza como imaginado pelo liberalismo. Enquanto no liberalismo, liberdade é um direito natural e individual de consciência, de expressão, de propriedade, no socialismo a liberdade insere-se num processo de emancipação política sendo, portanto, coletiva. Ela implica suprimir todas as formas de alienação e dominação, enfim, transformar as estruturas de toda a sociedade burguesa. Em síntese, a emancipação constitui-se no processo de afirmação do homem como sujeito e na superação das situações que o tornam objeto. Daí o sentido antagônico entre as duas visões de liberdade, como mostra Marx, ao criticar os direitos humanos concebidos nas revoluções burguesas: “Por conseguinte, o homem não se libertou da religião, isto sim liberdade religiosa. Não se 12 libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial” (MARX, 1969, p. 50)4. Por fim, na sociedade comunista, meta final da revolução, desaparece o binômio desigualdade x igualdade. Com a emancipação política da sociedade, o homem atinge a emancipação humana quando o outro não é mais a limitação de sua liberdade individual, mas o a realização de sua liberdade. Numa sociedadesem estruturas opressivas (portanto, sem classes sociais), com grande desenvolvimento, abundância material e com pessoas moralmente evoluídas para além do egoísmo, o trabalho de cada um não será determinado pela necessidade. Assim o homem terá superado a alienação de si mesmo e encontrado sua real natureza, que o distingue dos outros animais. Somos livres então, quando como artistas, produzimos sem o aguilhão da necessidade física; e esta natureza é para Marx a essência de todos os indivíduos. Ao desenvolver minha personalidade individual dando forma ao mundo, estou também realizando o que tenho de mais profundo em comum com os outros, de tal maneira que o ser individual e o genérico são em última análise o mesmo. Meu produto é minha existência para o outro, e pressupõe a existência do outro para mim. (EAGLETON, 1999, p. 29-30). Em resumo, no marxismo, igualdade e liberdade são valores processuais que se constroem coletivamente, com a emancipação econômica, política e moral do ser humano. O que move o processo emancipatório é a busca de superação de todas as estruturas opressivas que, partindo do mundo do trabalho, causam as desigualdades e a miséria na vida social. Eis porque o referencial dos valores éticos e políticos, no pensamento socialista, é a igualdade social, enquanto no liberalismo, como foi visto, é a liberdade individual que fundamenta a ideia de igualdade e outros valores dela decorrentes. Essa distinção tem implicações decisivas na compreensão dos valores liberdade e igualdade, pois oferece leituras diferentes do conjunto dos direitos humanos e aponta caminhos diferentes para a educação ética e política. Liberdade e igualdade: duas leituras dos direitos humanos 4 Este é um ponto critico da relação marxismo e direitos humanos: se a religião é uma alienação deve ser abolida, daí em lugar da tolerância religiosa liberal teremos o ateísmo de Estado, que persegue a religião e, portanto, viola a direito humano de liberdade individual. O mesmo ocorre com o Estado religioso que impõe um único sistema de crença. 13 Como foi visto, no liberalismo a defesa da liberdade é extensiva aos seguintes domínios: a liberdade de consciência (pensamento e expressão), a liberdade de autodeterminação (gostos e preferências), a liberdade de associação e a liberdade de propriedade. No estado da natureza, liberdade significou total possibilidade de ação, apenas restringida pelas suas limitações naturais e, por sua vez, na vida em sociedade, liberdade é fazer tudo que se quer desde que o outro não prejudicado. Esse sentido de liberdade constitui- se o núcleo determinante dos chamados valores de 1a geração, em torno dos quais foram concebidos os direitos universais do homem, ideário das revoluções burguesas, presentes na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776): Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. A fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens...5 E na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: I - Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser baseadas senão na utilidade comum. II - O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem; esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. (...) IV - A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique a outrem. Assim, o exercício dos direitos naturais do homem não tem limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos; seus limites não podem ser determinados senão pela lei.6 Como se pode notar, nas duas principais Declarações das revoluções burguesas, o fim último da sociedade humana é assegurar a liberdade como o direito natural primeiro e fundamental. No início do artigo IV, fica explícito o sentido liberal do valor liberdade. Mas o direito à propriedade surge como elemento definidor do caráter individual e econômico da própria liberdade. O homem é livre para possuir. O direito à segurança e o direito à resistência, à opressão são desdobramentos naturais da liberdade de propriedade. O Estado, em situação de conflito de interesses pessoais, deve sempre garantir a segurança da 5 Declaração de Independência dos Estados Unidos , in: http://www.arqnet.pt/portal/teoria/declaracao_vport.html. 6 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), in: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/declaracao.htm. http://pt.wikipedia.org/wiki/Independ%C3%AAncia_dos_EUA http://pt.wikipedia.org/wiki/Independ%C3%AAncia_dos_EUA http://www.arqnet.pt/portal/teoria/declaracao_vport.html 14 propriedade e o indivíduo tem o direito de se rebelar contra o governo que ultrapassar esta função. Em História social dos direitos humanos, José Damião de Lima Trindade (2002) chama a atenção, na Declaração de 1789, para a grande ausência da igualdade entre os direitos naturais e imprescritíveis citados no artigo 2º. Além disso, quando mencionada depois, o foi com certo sentido: os homens são iguais – mas “em direitos” (artigo 1º), perante a lei (artigo 6º) e perante o fisco (artigo 13). Assim a igualdade de que cuida a Declaração é a igualdade civil (fim da distinção jurídica baseada no status de nascimento). Nenhum propósito de entendê-la ao terreno social, ou de condenar a desigualdade econômica real que aumentavas a olhos vistos no país. (TRINDADE, 2002, p. 54-5) A Declaração estava nitidamente voltada para os interesses da burguesia: rejeitava a sociedade hierarquizada medieval, porém não apontava para uma sociedade democrática igualitária. Assim, na Constituição Francesa de 1791, o sentido da igualdade foi distorcido e restrito. Apenas os cidadãos ativos (contribuintes e proprietários) desfrutavam dos direitos políticos. Não havia o voto universal. Aos demais cabiam apenas os direitos naturais e civis7. Nem mesmo a igualdade civil havia nas colônias, onde a escravidão ainda era mantida. Todavia a oposição (dos jacobinos, liderados por Robespierre) às idéias liberais esteve presente, buscando ampliar os direitos das classes populares. A 2a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão / Constituição de 1793, revela o avanço das idéias progressistas rousseaunianas a favor da superação das desigualdades sociais. Além de todos os direitos, deveres e liberdades previstos na Constituição de 1789, a nova Declaração, introdutória desta Constituição iniciava-se com a afirmação solene, já no artigo 1º, de que “o fim da sociedade é a felicidade comum”, e colocava a igualdade (artigo 2º) entre os direitos naturais imprescritíveis – no mesmo nível da propriedade, liberdade e segurança. (TRINDADE, 2002, p. 66). Com isso foi possível colocar, na forma de lei, diversos direitos sociais: proibição da compra e venda de seres humanos, abolição da servidão doméstica, instituição da assistência social como dívida sagrada, reconhecimento do trabalho como direito, instrução pública como direito de todos e a legitimação da insurreição em caso de violação dos direitos do 7 A Constituição garante como direitos naturais e civis que: 1o Todos os cidadãos são admissíveis aos cargos e empregos sem outra distinção senão aquela decorrente das suas virtudes e das suas aptidões; 2o Todas as contribuições serão igualmente repartidas entre todos os cidadãos proporcionalmente aos seus recursos; 3o Os mesmos delitos serão punidos pelas mesmas penas sem distinção de alguma de pessoas. (Constituição Francesa de 1791) Fonte: MATTOSO, Kátia M. de Q. Textos e documentos para o Estudo da História Contemporânea. São Paulo: Edusp, 1976.15 povo.8 Todavia essa Constituição democrática e socialmente avançada não saiu do papel, por interesses da burguesia conservadora que retornou ao poder e promulgou um novo texto constitucional. A Constituição de 1795 retoma e radicaliza as posições liberais da Constituição de 1791 e, por consequência, reafirma a visão dos direitos humanos como eixo central da liberdade e propriedade individuais. E o valor igualdade volta a ser restrito à esfera civil, como observa Trindade: Tinha 377 artigos, continuava buscando legitimidade nos “direitos naturais” e cristalizava um recuo em relação aos avanços experimentados pelos direitos humanos na Constituição de 1793. Começava com uma declaração de direitos e deveres que desde logo, contemplava no artigo 5º a propriedade com uma definição de sentido individualista e sem limitações, como nas constituições anteriores: “A propriedade é o direito de desfrutar e dispor de seus bens, rendas do fruto de seu trabalho e da indústria”. (...) O enunciado solene do artigo 1º da Declaração de 1798 (“Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”) foi abandonado, na Constituição de 1795, substituído (art. 3º) por “A igualdade consiste no fato de a lei ser igual para todos”. (2002, p. 70-1) Por sua vez a esquerda também avança em sua posição de defender os direitos humanos, com base na igualdade social. Em 1796, o líder popular desde a Revolução Francesa, Gracchus Babeuf, contribui para construir o sentido de liberdade e igualdade na visão socialista lançando o “Manifesto dos Iguais”, considerada a 1a declaração política de caráter socialista. Todo o Manifesto fala do sentido socialista da igualdade como fundamento da convivência social. A igualdade! – primeira promessa da natureza, primeira necessidade do homem e elemento essencial de toda a legítima associação! (...) Desde tempos imemoriais se vem repetindo hipocritamente: os homens são iguais. Mas desde há longo tempo que a desigualdade mais vil e mais monstruosa pesa insolentemente sobre o gênero humano.9 Desse modo o Manifesto critica a igualdade perante a lei da burguesia liberal como “bela e estéril ficção da lei” e uma “quimera”. Fala de uma “Republica dos Iguais”, em que não deve haver poder absoluto e autoridade arbitrária. A igualdade real significa serem supridas “todas as necessidades sem provocar vítimas“, desfrutar coletivamente dos frutos da terra”, “única educação para todos”, “um idêntico regime de alimentação, sem exploração do 8 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793), in: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1793.htm. 9 Manifesto dos Iguais, in: http://www.marxists.org/portugues/babeuf/1796/misc/manifesto-iguais.htm#t1n. http://www.dhnet.org.br/ http://www.marxists.org/portugues/babeuf/1796/misc/manifesto-iguais.htm#t1n 16 trabalho” e “fazer desaparecer, finalmente, essas odiosas distinções de classes entre ricos e pobres, entre grandes e pequenos, entre senhores e servos, entre governantes e governados”.10 Esse movimento, que entrou na história como o nome de “Revolta dos Iguais”, foi o marco inicial de um longo processo de transformação das consciências dos trabalhadores, no sentido de passarem a exercer uma ação política independente da burguesia. Desta forma, as duas visões sobre os valores liberdade e igualdade atingiram o status de ideologias antagônicas – expressas em movimentos políticos organizados na luta pelo poder – durante o processo revolucionário francês. Cada confronto ou alternância de poder foi marcado com choques sangrentos, prisões, torturas e execuções de ambos os lados. Nesta disputa, a ética burguesa de direitos humanos, centrada na liberdade individual, deteve a hegemonia. Na primeira metade do século XIX, a Restauração11 e a Revolução Industrial estabeleceram uma vala ainda mais profunda entre a liberdade do lucro e a igualdade social. É nesse panorama que surgem as críticas de Karl Marx aos direitos humanos como ideologia burguesa. Há uma linha teórica que liga e aproxima Rousseau, Robespierre e Marx, no que tange à defesa da igualdade social como porta de entrada necessária para o processo de libertação. Nesse particular, as críticas de Marx aos direitos humanos são particularmente dirigidas à Declaração de 1789, sem considerar os avanços teóricos da Declaração jacobina de 1793, da qual Robespierre foi precursor. No plano histórico, o pensamento de Marx, que buscou teorizar a dura realidade social do século XIX, e os movimentos sociais de resistência à exploração da classe trabalhadora contrastavam com tudo aquilo que preconizava a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa. Assim, como contrapartida, surge a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (1918) da Revolução Russa de 1917. Ela registra explicitamente os meios revolucionários para “abolir toda a exploração do homem”, superar as desigualdades sociais e legitimar o poder da classe trabalhadora.12 Não se trata de discutir aqui a efetiva viabilidade das diretrizes do documento. O objetivo da investigação se limita a fundamentar as duas leituras dos direitos humanos, em especial, no que diz respeito aos valores liberdade e igualdade para, de um lado, ampliar a 10 Ibid. 11 Com a derrota definitiva de Napoleão em 1815 perante os exércitos da coligação anti-francesa (principalmente Áustria, Inglaterra, Rússia e Prússia), iniciavam-se quinze opressivos anos em que foram abolidos da Europa continental quase todos os vestígios de liberdade – exceto, evidentemente, a liberdade de empreendimento e de lucro. Foi o período conhecimento como “Restauração”. (Cf. TRINDADE, 2002, p. 79) 12 Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, in: http://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/decaracaodosdireitosdopovotrabalhadoreexplorado.html. http://www.marxists.org/portugues/ 17 consciência das contradições do discurso contemporâneo sobre os direitos humanos e, de outro, enfatizar a interdependência desses valores. Nesse sentido, segundo o posicionamento crítico da tradição marxista aos direitos universais do homem, os movimentos populares e as exigências históricas dramáticas desencadearam um processo de ressignificação e ampliação do campo dos direitos humanos. Organizaram-se a partir do pensamento socialista os direitos econômicos, sociais e culturais de âmbito coletivo (direitos humanos de 2a geração), em acréscimo aos direitos civis e políticos, anteriormente surgidos nas revoluções burguesas (direitos humanos de 1a geração). Com a hegemonia capitalista, predomina nas declarações internacionais e constituições nacionais do século XX a visão liberal dos direitos humanos. De outro lado, as reuniões da Internacional Socialista e os congressos sindicais, desde o século XIX, vêm reivindicando a incorporação dos direitos de igualdade social aos textos das Declarações e à ordem jurídica dos Estados. A conquista se faz a passos lentos. É o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, proclamada como desdobramento da vitória dos aliados – capitalistas e comunistas – na 2a Guerra Mundial e da criação da ONU. Em seus 30 artigos contemplando as cinco categorias de direitos: civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, apenas sete tratam dos direitos de igualdade.13 Mesmo assim, não se pode negar o avanço da presença dos direitos econômicos, sociais e culturais em relação à Declaração de 1789. No período pós-guerra acirrou-se o embate ideológico entre o ocidente liberal e o bloco socialista, impossibilitando a construção de um pacto internacional único entre os Estados signatários, abrangendo os direitos de liberdade e os de igualdade. Observa Lindgren Alves (1994), em Os direitos humanos como tema global, que a resistência ao acordo ficou por conta dos EUA e alinhados europeus, que insistiram em defender a visão liberal dosdireitos humanos, centrada nas liberdades individuais. Por sua vez, a resistência dos países do bloco soviético em aceitar os direitos civis e políticos também tem registro na história da Guerra Fria. Diante desse impasse, em 1966, foram firmados pela ONU dois pactos distintos: Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais14 e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos15, cada um reconhecendo a existência do outro, porém reafirmando seu posicionamento ideológico. Apesar dessa aparente cisão, o que se torna cada vez mais um 13 Declaração Universal dos Direitos Humanos, in: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm#01. 14 Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, in: http://www.aids.gov.br/legislacao/vol1_3.htm. 15 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, in: http://www.aids.gov.br/legislacao/ vol1_ 2. htm. http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm#01 18 consenso teórico e prático é que os direitos humanos somente têm sentido se seu conjunto for visto na sua “interdependência" e "indivisibilidade". É nessa perspectiva que a Declaração e Programa de Ação de Viena (1993) proclamou solenemente: "Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados."16 Pelo fato de constarem num mesmo documento, com o mesmo discurso, os direitos de liberdade e os de igualdade, é comum serem entendidos apenas como dois campos distintos de direitos que se referem a diferentes dimensões da pessoa humana ou aos momentos históricos de reconhecimento de cada um deles. Entretanto uma investigação conceitual e histórica traz à luz as interferências semânticas entre os conceitos de liberdade e igualdade. São duas diferentes visões de homem e de sociedade e da própria concepção de direitos humanos. A liberal vê o homem e a sociedade pela ótica da liberdade individual, acreditando ter fundamento absoluto na própria natureza humana.17 A partir daí, dá à igualdade na convivência social um sentido jurídico-formal. Já para o pensamento socialista, a natureza humana se constrói na vida social, portando seus valores são construções históricas. Neste prisma, a dignidade humana passa pela superação das desigualdades sociais e a liberdade é entendida como emancipação social, política e moral. A dificuldade de tratamento dos direitos humanos não está, portanto, em simplesmente divulgar e defender nominalmente os direitos de 1ª e 2ª gerações (e hoje de outras gerações). O desafio que agora se nos impõe é ter uma consciência clara dos diversos significados de liberdade e igualdade, para articulá-los coerentemente, segundo as exigências históricas em que vivemos neste início de século. Acreditamos a possibilidade de articulação entre o sentido liberal e o socialista dos direitos humanos, em especial os referentes aos valores de liberdade e igualdade, passa pela aceitação de dois pressupostos: um de ordem factual, outro de natureza conceitual. Em primeiro lugar, não há como negar que a realidade latino-americana, marcada por profundas desigualdades socioeconômicas, constitui a base principal das violações da dignidade humana. Nesse sentido, a Declaração de Teerã, de 1968, alerta em seu artigo 13: Como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais resulta impossível. A realização de um progresso duradouro na aplicação dos direitos humanos depende de boas 16 Declaração e Programa de Ação de Viena, in: http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/ Onu/ Confere_cupula/texto/texto_3.html. 17 Em A era dos direitos, Noberto Bobbio (1992) analisa criticamente, demonstrando por diversas razões, a ilusão dos jusnaturalista, que aceitavam a existência de fundamento absoluto para os direitos do homem: a própria natureza humana. (Cf. capítulo Sobre os fundamentos dos direitos do homem, p.15-24.) http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Confere_cupula/texto/texto_3.html http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Confere_cupula/texto/texto_3.html 19 e eficientes políticas internacionais de desenvolvimento econômico e social. 18 Assim, podemos afirmar que na América Latina, como em outras regiões de pobreza e miséria, existe uma íntima relação entre os direitos humanos e os direitos dos pobres e indigentes. Uma segunda condição, a nosso ver, está na possibilidade de pensar os direitos humanos para além dos paradigmas ideológicos da modernidade: liberalismo e socialismo, atendo-se, porém, às contribuições conceituais que os dois pensamentos nos legaram para a compreensão do ser humano. Este é um novo caminho epistemológico ainda por se construir no século XXI. Um exercício de ensaio filosófico, com tal objetivo, nos faria aceitar primeiramente a natureza do ser humano como algo em processo de construção histórica, tanto como individuo quanto como coletividade. Em outras palavras, a natureza do ser humano não nasce pronta como nos animais, mas sua humanidade será construída ao longo da vida, no processo educacional e na auto-reflexão sobre suas relações com o outro e com a natureza. A construção do humano se dá num afastamento progressivo do que chamamos de natureza animal. Há dois movimentos aparentemente contraditórios de formação do humano em cada um de nós: um processo de individualização e outro, de socialização. O humano contém uma dupla polaridade: é um ser psicossocial. O humano tem uma identidade pessoal, com marcas de singularidade no ser e no agir, enquanto no mundo animal o comportamento caracteriza-se pelo coletivo. Numa manada de elefantes ou num cardume de peixes, a dimensão de indivíduo é quase imperceptível. Já nos humanos, a imprevisibilidade do comportamento individual está sempre presente. Nessa bipolaridade, construída ao longo da vida, assenta-se o valor da liberdade de pensamento, de expressão e de opção, enquanto direito inalienável. Por outro lado, a construção do humano se dá, ao mesmo tempo, por um processo de socialização. O ser humano é o único animal que tem consciência do coletivo e do universal, por isso ultrapassa aquele comportamento individual e imediatista de sobrevivência biológica de si e da espécie, próprio dos outros animais. O humano é capaz de construir uma ética fundada no bem comum e na felicidade coletiva, com inclusão de todos. Essa dimensão social justifica a existência dos valores de igualdade nas condições dignas de vida para todos, no ambiente de trabalho, moradia, saúde, educação e outros. 18 Declaração de Teerã, in: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/teera.htm. 20 A dignidade humana passa pela realização articulada dessa dupla polaridade. Se de um lado os valores morais coletivos nos constroem como humanos, de outro, quem sente a alegria e o sofrimento é o individuo. E sempre, na história, quando se enfatizou um dos polos em detrimento do outro, violou-se de alguma forma a dignidade humana. Ao priorizar, por exemplo, a liberdade individual subestimando os valores coletivos, transforma-se a individualização em individualismo. Por sua vez, eleger os valores sociais como meta, colocando em segundo plano, o indivíduo, transforma-se o coletivo humano em massa homogênea. A luta pelos direitos humanos não se coloca, portanto, como opção de escolha entre liberdade individual e igualdade social. E mais, além dessas contradições no interior da cultura ocidental, Boaventura nos estimula a novas reflexões, ao colocar o princípio de igualdade e o princípio de reconhecimento das diferenças como base de um imperativo transcultural: “temos o direito ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 2009, p. 18) . Fontes documentais Declaraçãode Independência dos Estados Unidos (1776). Disponível em http://www.arqnet.pt/portal/ teoria/ declaracao_vport.html. Acesso em: 15 mar. 2006. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/ voltaire/mundo/declaracao.htm. Acesso em: 15 abr. 2007. Constituição Francesa de 1791. In: MATTOSO, Kátia M. de Q. Textos e documentos para o Estudo da História Contemporânea. São Paulo: Edusp, 1976. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1793). Disponível em: http://www.dhnet. org.br/direitos/anthist/ dec1793.htm. 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Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966). Disponível em: http://www.aids.gov.br/legislacao/ vol1_ 2. htm. Acesso em: 07 nov. 2005. Declaração de Teerã (1968). Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/teera.htm. Acesso em: 15 dez. 2005. Declaração e Programa de Ação de Viena (1995). Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/ Onu/ Confere_cupula/texto/texto_3.html. Acesso em: 10 nov. 2005. Referências bibliográficas BOBBIO, N. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus.1992. _____. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2005. EAGLETON, Terry. Marx e a liberdade. Trad. de Marcos B. de Oliveira. São Paulo: Editora UNESP, 1999. (Coleção: grandes filósofos) HUME, D. Investigação sobre o entendimento humano. In: Os pensadores. 2. ed. Trad. de Leonel Vallandro. São Paulo: Abril Cultural, 1980. LOCKE, J. 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