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1 SER E TEMPO DE MARTIN HEIDEGGER Parte I FICHAMENTO Necessidade, Estrutura e Primado da questão do “Ser” § 1. Necessidade de uma repetição explicita da questão do “Ser” Embora o nosso tempo se arrogue o processo de afirmar novamente a “metafísica”, a questão aqui evocada caiu no esquecimento. A questão referida não é uma questão qualquer. Foi ela que deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles para depois emudecer como questão temática de uma real investigação. O que ambos conquistaram manteve-se em muitas discussões e “recauchutagens”, até a Lógica de Heidegger. No solo da arrancada grega para interpretar o “Ser” formou-se de um dogma que não apenas declara supérflua a questão sobre o sentido do “Ser” como lhe sanciona a falta. “Ser” é o conceito mais universal e o mais vazio. Pois, como tal, resiste a toda tentativa de definição. No inicio dessa investigação, não se pode discutir em detalhe os preconceitos que plantam e alimenta a dispensa de um questionamento do “Ser”. Eles encontram suas raízes na própria “Ontologia”. Esta, por sua vez, pode apenas ser interpretada de modo suficiente, esclarecendo-se e respondendo à questão do “Ser”. 1 – “Ser” é o conceito mais universal: uma compreensão do “Ser” já está sempre incluída em tudo que se apreende no “Ente”. A “Universalidade do Ser” não é a do “Gênero”. “Ser” não delimita a região suprema do “Ente”, pois esse se articula conceitualmente segundo o “Gênero” e a “Espécie”. A “Universalidade” do “Ser” transcende toda a universalidade genética. Segundo a “Terminologia da Ontologia Medieval”, o “Ser” é um “Transcendens”. Quando se diz: “Ser é o Conceito mais Universal”, isso não pode significar que o conceito do “Ser” seja mais claro e que não necessite de qualquer discussão ulterior. Ao contrário, o conceito de “Ser é o mais Obscuro”. 2 – O conceito de “Ser” é indefinível: essa é a conclusão tirada de sua máxima universalidade. O “Ser” não pode ser concebido como “Ente”. 2 O “Ser” não pode ser determinado, acrescentando-lhe um “Ente”. Não pode derivar o “Ser” no sentido de uma definição a partir de conceitos superiores e nem explicá-lo através de conceitos inferiores. Pode-se apenas concluir que o “Ser” não é um “Ente”. O modo de determinação do “Ente”, legítimo dentro de certos limites não pode ser aplicado ao “Ser”. A impossibilidade de se definir o “Ser não dispensa a questão de seu sentido, pelo contrário, é justamente por isso que a exige. 3 – O “Ser” é o conceito evidente por si mesmo: todo mundo compreende o céu azul, eu sou feliz... Mas essa compreensão comum demonstra apenas uma incompreensão. Revela que um enigma já está sempre inserido a priori em todo “Ater- se” e “Ser” para o “Ente”, como “Ente”. No âmbito dos conceitos fundamentais da filosofia, e até com relação ao conceito de “Ser”, é um processo duvidoso recorrer a evidência, uma vez que o “Evidente”, ou seja, “os juízos secretos da razão comum” (Kant), deve ser e permanecer o tema explicito da analítica. O exame dos preconceitos tornou ao mesmo tempo claro que não somente falta resposta à questão do “Ser” mais que a própria questão é obscura e sem direção. § 2. A estrutura formal da questão do “Ser” Deve-se colocar a questão do sentido do “Ser”. Por isso é preciso que se discuta brevemente o que pertence a um questionamento para então, a partir daí, se poder mostrar a questão do “Ser” como uma questão privilegiada. Todo questionamento é uma procura. Toda procura retira do procurado sua direção prévia. Enquanto procura, o questionamento necessita de uma orientação prévia do procurado. Para isso, o sentido do “Ser” já nos deve estar, de alguma maneira, disponível. Nós nos movemos sempre numa compreensão do “Ser”. Nós nem se quer conhecemos o horizonte em que poderíamos apreender e fixar-lhe o sentido. Essa compreensão do “Ser” vaga e mediana é um fato. Uma investigação sobre o sentido do “Ser” não pode pretender dar este esclarecimento em seu início, pois é a partir da claridade do conceito e dos modos de 3 compreensão explicita nela inerentes que se deverá decidir o que significa essa compreensão do “Ser” obscura e ainda não esclarecida e quais espécies de obscurecimento ou impedimento são possíveis e necessários para um esclarecimento explícito do sentido do “Ser”. O “Ser” é o questionado da questão a ser elaborada, é ele quem determina o “Ente” como ente, como o “Ente” já é sempre compreendido, em qualquer que seja. O “Ser” dos entes não “é” em si mesmo outro “Ente”. Enquanto questionado, o “Ser” exige um modo próprio de demonstração que se distingue essencialmente da descoberta de um “Ente”. Em consonância, o perguntado, o sentido do “Ser”, requer também uma conceituação própria, que por sua vez, também se diferencia dos conceitos em que o “Ente” alcança a demonstração de seu significado. Na medida em que se constitui o questionado e ser diz sempre ser de um “ente”, o que resulta como interrogado na questão do “Ser” é o próprio “Ente”. Este é como que interrogado em seu ser. Para apreender sem falsificações os caracteres do seu ser, o “Ente” já deve ter feito acessível antes, tal como ele é em si mesmo. Agora quanto ao interrogado, a questão do “Ser” exige que se conquiste e assegure previamente um modo adequado de acesso ao “Ente”. “Ser” está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado, no teor e recurso, no valor e validade, na presença, no “Há”. Agora, caso a questão do “Ser” deva ser colocada explicitamente e desdobrada em toda a transcendência de si mesma, sua elaboração exige, de acordo com suas explicitações feitas até aqui, a explicação da maneira de visualizar o “Ser”, de compreender e apreender conceitualmente o sentido, a preparação da possibilidade de uma escolha correta do “ente” exemplar, a elaboração do modo genuíno de acesso a esse “Ente”. O “Ente” pode vir a ser determinado em seu ser sem que, para isso, seja necessário já dispor de um conceito explicito sobre o sentido do “Ser”. Na questão sobre o sentido do “Ser” não há circulo vicioso e sim uma curiosa repercussão ou 4 percussão prévia do questionado (o “Ser”) sobre o próprio questionar, enquanto modo de ser de um “Ente” determinado. § 3. O Primado Ontológico da questão do “Ser” O privilégio da questão do “Ser” só se esclarecerá completamente se o questionamento definir, de modo suficiente, sua função e seus motivos. O “Ser” é sempre o ser de um “Ente”. A tarefa ontológica de uma genealogia dos diversos modos possíveis do “Ser”, que não se deve construir de maneira dedutiva, exige uma compreensão prévia do que propriamente entendemos pela expressão do “Ser”. A questão do “Ser” não se dirige apenas às condições a priori de possibilidades das ciências que pesquisam os entes em suas entidades e que, ao fazê-lo, sempre já se movem numa compreensão do “Ser”. A questão do “Ser” visa às condições de possibilidade das próprias ontologias que antecedem e fundam as ciências ônticas. § 4. O Primado Ôntico da questão do “Ser” A compreensão do “Ser” é em si mesma uma determinação do ser da “Pre- sença”. O privilégio ôntico que distingue a “Pre-sença” está em ser ela ontológica. A “Pre-sença” sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ela mesma. A questão da “Existência” sempre só poderá ser esclarecida pelo próprio existir, e a compreensão de si mesma que assim se perfaz, nós a chamamos de compreensão existenciária. Na medida em que a “Existência” determina a “Pre-sença”, a analítica ontológica desse “Ente” necessita sempre de uma visualização prévia da existencialidade. A possibilidade de se realizar uma analítica da “Pre-sença” sempre depende de uma elaboração prévia da questão sobre o sentido do “Ser” em geral. O primado da “Pre-sença” frente a qualquer outro ente que aquise apresenta, embora ainda não esclarecido do ponto de vista ontológico, nada tem em comum com uma má subjetivação da totalidade dos entes. A “Pre-sença” se mostrou como o “Ente” que deve ser trabalhado e desenvolvido em seu ser, de maneira suficiente para que o questionamento torne-se transparente. 5 Com isso, revelou-se que a analítica ontológica da “Pre-sença” em geral constitui a ontologia fundamental e que, a “Pre-sença” se evidencia como o “Ente” a ser, em princípio, previamente interrogado em seu ser. A questão do “Ser” não é senão a radicalização de uma tendência ontológica essencial, própria da “Pre-sença”, a saber, da compreensão pré-ontológica do “Ser”. Referência: HEIDEGGER, M. Ser e tempo (1927), Parte I, tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2002. [Sein und Zeit, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1977.]
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