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ANTOLOGIA ELEMENTAR DO CONTO BRASILEIRO

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BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário de. O peru de Natal e outros contos de Mário de Andrade. São Paulo: Editora do Brasil, 2017.
ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
AZEVEDO, Álvares. Noite na taverna. Porto Alegre: Novo Século, 2001. 
BARRETO, Lima. Contos completos de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010. 
CAMPOS, Moreira. p. 218-221. Obra completa: contos II. São Paulo: Maltese, 1996.)
LISPECTOR, Lispector. Laços de família. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. 
LOBATO, Monteiro. Negrinha. São Paulo: Revista do Brasil, 1920.
RAMOS, Graciliano. Insônia. Rio de Janeiro: Record, 2008. ROSA, Guimarães. Ficção completa: volume II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
TELLES, Lygia Fagundes. Histórias de mistério. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ANTOLOGIA ELEMENTAR DO CONTO BRASILEIRO
ROMANTISMO
NOITE NA TAVERNA
Álvares de Azevedo
How now, Horatio? You tremble, and look
pale. Is not this something more
than phantasy? What think you of it?
Hamlet. Ato I. Shakespeare
I
UMA NOITE DO SÉCULO
Bebamos! nem um canto de saudade!
Morrem na embriaguez da vida as dores!
Que importam sonhos, ilusões desfeitas?
Fenecem como as flores!
José Bonifácio
— SILÊNCIO MOÇOS! Acabai com essas cantilenas horríveis! Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos? Não sentis que o sono da embriaguez pesa negro naquelas pálpebras onde a beleza sigilou os olhares da volúpia?
— Cala-te, Johann! enquanto as mulheres dormem e Arnold — o louro, cambaleia e adormece murmurando as canções de orgia de Tieck, que música mais bela que o alarido da saturnal? Quando as nuvens correm negras no céu como um bando de corvos errantes, e a lua desmaia como a luz de uma lâmpada sobre a alvura de uma beleza que dorme, que melhor noite que a passada ao reflexo das taças?
— És um louco, Bertram! não é a lua que lá vai macilenta: e o relâmpago que passa e ri de escárnio as agonias do povo que morre... aos soluços que seguem as mortalhas do cólera!
— O cólera! e que importa? Não há por ora vida bastante nas veias do homem? não borbulha a febre ainda as ondas do vinho? não reluz em todo o seu fogo a lâmpada da vida na lanterna do crânio?
— Vinho! vinho! Não vês que as taças estão vazias bebemos o vácuo, como um sonâmbulo?
— É o Fichtismo na embriaguez! Espiritualista, bebe a imaterialidade da embriaguez!
— Oh! vazio! meu copo esta vazio! Olá taverneira, não vês que as garrafas estão esgotadas? Não sabes, desgraçada, que os lábios da garrafa são como os da mulher: só valem beijos enquanto o fogo do vinho ou o fogo do amor os borrifa de lava?
— O vinho acabou-se nos copos, Bertram, mas o fumo ondula ainda nos cachimbos! Após os vapores do vinho os vapores da fumaça! Senhores, em nome de todas as nossas reminiscências, de todos os nossos sonhos que mentiram, de todas as nossas esperanças que desbotaram, uma última saúde! A taverneira ai nos trouxe mais vinho: uma saúde! O fumo e a imagem do idealismo, e o transunto de tudo quanto ha mais vaporoso naquele espiritualismo que nos fala da imortalidade da alma! E pois, ao fumo das Antilhas, a imortalidade da alma!
— Bravo! bravo!
Um urrah! tríplice respondeu ao moço meio ébrio.
Um conviva se ergueu entre a vozeria: contrastavam-lhe com as faces de moço as rugas da fronte e a rouxidão dos lábios convulsos. Por entre os cabelos prateava-se-lhe o reflexo das luzes do festim.
Falou:
— Calai-vos, malditos! a imortalidade da alma!? pobres doidos! e porque a alma é bela, por que não concebeis que esse ideal posse tornar-se em lodo e podridão, como as faces belas da virgem morta, não podeis crer que ele morra? Doidos! nunca velada levastes porventura uma noite a cabeceira de um cadáver? E então não duvidastes que ele não era morto, que aquele peito e aquela fronte iam palpitar de novo, aquelas pálpebras iam abrir-se, que era apenas o ópio do sono que emudecia aquele homem? Imortalidade da alma! e por que também não sonhar a das flores, a das brisas, a dos perfumes? Oh! Não mil vezes! a alma não é como a lua, sempre moça, nua e bela em sue virgindade eterna! a vida não e mais que a reunião ao acaso das moléculas atraídas: o que era um corpo de mulher vai porventura transformar-se num cipreste ou numa nuvem de miasmas; o que era um corpo do verme vai alvejar-se no cálice da flor ou na fronte da criança mais loira e bela. Como Schiller o disse, o átomo da inteligência de Platão foi talvez para o coração de um ser impuro. Por isso eu vo-lo direi: se entendeis a imortalidade
pela metempsicose, bem! talvez eu a creia um pouco; pelo platonismo, não!
— Solfieri! és um insensato! o materialismo é árido como o deserto, é escuro como um túmulo! A nós frontes queimadas pelo mormaço do sol da vida, a nós sobre cuja cabeça a velhice regelou os cabelos, essas crenças frias? A nós os sonhos do espiritualismo.
— Archibald! deveras, que é um sonho tudo isso! No outro tempo o sonho da minha cabeceira era o espírito puro ajoelhado no seu manto argênteo, num oceano de aromas e luzes! Ilusões! a realidade é a febre do libertino, a taça na mão, a lascívia nos lábios, e a mulher seminua, trêmula e palpitante sobre os joelhos.
— Blasfêmia! e não crês em mais nada? teu ceticismo derribou todas as estátuas do teu templo, mesmo a de Deus?
— Deus! crer em Deus!?... sim! como o grito íntimo o revela nas horas frias do medo, nas horas em que se tirita de susto e que a morte parece roçar úmida por nós! Na jangada do náufrago, no cadafalso, no deserto, sempre banhado do suor frio do terror e que vem a crença em Deus! Crer nele como a utopia do bem absoluto, o sol da luz e do amor, muito bem! Mas, se entendeis por ele os ídolos que os homens ergueram banhados de sangue e o fanatismo beija em sua inanimação de mármore de há cinco mil anos... não creio nele!
— E os livros santos?
— Miséria! quando me vierdes falar em poesia eu vos direi: aí há folhas inspiradas pela natureza ardente daquela terra como nem Homero as sonhou, como a humanidade inteira ajoelhada sobre os túmulos do passado nunca mais lembrará! Mas, quando me falarem em verdades religiosas, em visões santas, nos desvarios daquele povo estúpido, eu vos direi:
miséria! miséria! três vezes miséria! Tudo aquilo é falso: mentiram como as miragens do deserto!
— Estas ébrio, Johann! O ateísmo é a insânia como o idealismo místico de Schelling, o panteísmo de Spinoza — o judeu, e o esterismo crente de Malebranche nos seus sonhos da visão em Deus. A verdadeira filosofia e o epicurismo. Hume bem o disse: o fim do homem é o prazer. Daí vede que é o elemento sensível quem domina. E pois ergamo-nos, nos que amanhecemos nas noites desbotadas de estudo insano, e vimos que a ciência é falsa e esquiva, que ela mente e embriaga como um beijo de mulher.
— Bem! muito bem! é um toast de respeito!
— Quero que todos se levantem, e com a cabeça descoberta digam-no: Ao Deus Pã da natureza, aquele que a antiguidade chamou Baco o filho das coxas de um deus e do amor de uma mulher, e que nos chamamos melhor pelo seu nome — o vinho!...
— Ao vinho! ao vinho!
Os copos caíram vazios na mesa.
— Agora ouvi-me, senhores! entre uma saúde e uma baforada de fumaça, quando as cabeças queimam e os cotovelos se estendem na toalha molhada de vinho, como os braços do carniceiro no cepo gotejante, o que nos cabe é uma historia sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos como Hoffmann os delirava ao clarão dourado do Johannisberg!
— Uma história medonha, não, Archibald? falou um moço pálido que a esse reclamo erguera a cabeça amarelenta. Pois bem, dir-vos-ei uma historia. Mas quanto a essa, podeis tremer a gosto, podeis suar a frio da fronte grossas bagas de terror. Não é um conto, é uma lembrança do passado.
— Solfieri! Solfieri! aí vens com teus sonhos!
— Conta!
Solfieri falou: os mais fizeram silêncio.
II
SOLFIERI
...Yet one kiss on your pale clay
And those lips once so warm — my heart! my heart!
Cain. Byron
— Sabei-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia, no leito da vendida se pendurao Crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença!
Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no verão pôr aquele céu morno, o fresco das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de... 
As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se fazias ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca. — A face daquela mulher era como a de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.
Eu me encostei a aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento a noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte. 
Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu a ninguém: saiu. 
Eu segui-a. 
A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu, e a chuva caía as gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces caírem-me grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos de órfão.
Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estávamos num campo.
Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar:
em torno dela passavam as aves da noite.
Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo a criatura pálida não fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma 	cruz.
O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo...
Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da saciedade me vinha aquela visão...
Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Bárbara. Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: nos lábios daquela criatura eu bebera até a última gota o vinho do deleite...
Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta! ... e aqueles traços todos me lembraram uma ideia perdida. . — Era o anjo do cemitério? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo...
Sabeis a historia de Maria Stuart degolada e o algoz, “do cadáver sem cabeça e o homem sem coração” como a conta Brantôme? — Foi uma ideia singular a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela.
A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso — cevei em perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, à febre de meus lábios, à convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito abriu os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço havia contudo alguma coisa de horrível. O leito de lájea onde eu passara uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a custo soltar-me daquele aperto do peito dela... Nesse instante ela acordou…
Nunca ouvistes falar da catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que sentem-se os membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas alheias sem poder revelar a vida!
A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário como uma criança. Ao aproximar-me da porta topei num corpo; abaixei-me, olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aí dormira de ébrio, esquecido de fechar a porta .
Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha.
— Que levas aí?
A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrão.
— É minha mulher que vai desmaiada...
— Uma mulher!... Mas essa roupa branca e longa? Serás acaso roubador de cadáveres?
Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.
— É uma defunta...
Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. — Era a vida ainda.
— Vede, disse eu.
O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um beijo... o punhal já estava nu em minhas mãos frias...
— Boa noite, moço: podes seguir, disse ele.
Caminhei. — Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo; e eu sentia que a moça ia despertar.
Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço.
Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de
medo...
Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos meus companheiros que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse.
Fechei a moça no meu quarto, e abri.
Meia hora depois eu os deixava na sala bebendo ainda. A turvação da embriaguez fez que não notassem minha ausência.
Quando entrei no quarto da moça vi-a erguida. Ria de um rir convulso como a insânia, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor o ouvi-la.
Dois dias e duas noites levou ela de febre assim... Não houve como sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.
A noite saí; fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera, e paguei-lhe uma estátua dessa virgem.
Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto, e com as mãos cavei aí um túmulo. Tomei-a então pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito muda e fria, beijei-a e cobri-a adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele.
Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam. Um dia o estatuário me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo...
Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te respondi que era uma virgem que dormia?
— E quem era essa mulher, Solfieri?
— Quem era? seu nome?
— Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho lhe queima assaz os lábios? quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia e que sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele mister por escrever-lho na lousa?
Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa quando um dos convivas tomou-o pelo braço.
— Solfieri, não é um conto isso tudo?
— Pelo inferno que não! por meu pai que era conde e bandido, por minha mãe que era a bela Messalina das ruas, pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés na sua cova de terra, eu vô-lo juro — guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Hei-la!
Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.
—Vede-la murcha e seca como o crânio dela! (AZEVEDO, 2001, p.23-33)
VII
ÚLTIMO BEIJO DE AMOR
Well Juliet! I shall lie with thee to night!
Romeu e Julieta. Shakespeare.
A NOITE IA ALTA: a orgia findara. Os convivas dormiam repletos, nas trevas.
Uma luz raiou súbito pelas fisgas da porta. A porta abriu-se. Entrou uma mulher vestida de negro. Erapálida; e a luz de uma lanterna, que trazia erguida na mão, se derramava macilenta nas faces dela e lhe dava um brilho singular aos olhos. Talvez que um dia fosse uma beleza típica, uma dessas imagens que fazem descorar de volúpia nos sonhos de mancebo. Mas agora com sua tez lívida, seus olhos acesos, seus lábios roxos, suas mãos de mármore, e a roupagem escura e gotejante da chuva, disséreis antes — o anjo perdido da loucura.
A mulher curvou-se: com a lanterna na mão procurava uma por uma entre essas faces dormidas um rosto conhecido.
Quando a luz bateu em Arnold, ajoelhou-se. Quis dar-lhe um beijo, alongou os lábios... Mas uma ideia a susteve. Ergueu-se. Quando chegou a Johann, que dormia, um riso embranqueceu-lhe os beiços, o olhar tornou-se-lhe sombrio.
Abaixou-se junto dele, depôs a lâmpada no chão. O lume baço da lanterna dando nas roupas dela espalhava sombra sobre Johann. A fronte da mulher pendeu e sua mão passou na garganta dele. Um soluço rouco e sufocado ofegou daí. A desconhecida levantou-se. Tremia; e ao segurar na lanterna ressoou-lhe na mão um ferro... Era um punhal... Atirou-o ao chão. Viu que tinha as mãos vermelhas, enxugou-as nos longos cabelos de Johann...
Voltou a Arnold; sacudiu-o.
— Acorda e levanta-te!
— Que me queres?
— Olha-me... não me conheces?
— Tu! e não é um sonho? És tu! oh! deixa que eu te aperte ainda! Cinco anos sem ver-te! E como mudaste!
— Sim, já não sou bela como há cinco anos! É verdade, meu loiro amante! É que a flor de beleza é como todas as flores. Alentai-as ao orvalho da virgindade, ao vento da pureza, e serão belas... Revolvei-as no lodo... e, como os frutos que caem, mergulham nas águas do mar, cobrem-se de um invólucro impuro e salobro! Outrora era Giorgia — a virgem, mas hoje e Giorgia — a prostituta!
— Meu Deus! meu Deus!
E o moço sumiu a fronte nas mãos.
— Não me amaldiçoes, não!
— Oh! deixa que me lembre: estes cinco anos que passaram foram um sonho. Aquele homem do bilhar, o duelo à queima-roupa, meu acordar num hospital, essa vida devassa onde me lançou a desesperação, isto é um sonho? Oh! lembremo-nos do passado! Quando o inverno escurece o céu, cerremos os olhos; pobres andorinhas moribundas, lembremo-nos da primavera!...
— Tuas palavras me doem... É um adeus, é um beijo de adeus e separação que venho pedir-te: na terra nosso leito seria impuro, o mundo manchou nossos corpos. O amor do libertino e da prostituta! Satã riria de nos. É no céu, quando o túmulo nos lavar em seu banho, que se levantará nossa manhã de amor...
— Oh! ver-te e para deixar-te ainda uma vez! E não pensaste, Giorgia, que me fora melhor ter morrido devorado pelos cães na rua deserta, onde me levantaram cheio de sangue? Que fora-te melhor assassinar-me no dormir do ébrio, do que apontar-me a estrela errante da ventura e apagar-me a do céu? Não pensaste que, após cinco anos, cinco anos de febre e de insônias, de esperar e desesperar, de vida por ti, de saudades e agonia, fora o inferno ver-te para te deixar?
— Compaixão, Arnold! É preciso que esse adeus seja longo como a vida. Vês, minha sina é negra: nas minhas lembranças há uma nódoa torpe... Hoje! é o leito venal... Amanhã!... só espero no leito do túmulo! Arnold! Arnold!
— Não me chames Arnold! chama-me Artur, como dantes. Artur! não ouves? Chama-me assim! Há tanto tempo que não ouço me chamarem por esse nome!... Eu era um louco! quis afogar meus pensamentos e vaguei pelas cidades e pelas montanhas deixando em toda a parte lágrimas... nas cavernas solitárias, nos campos silenciosos, e nas mesas molhadas de vinho! Vem, Giorgia! senta-te aqui, senta-te nos meus joelhos, bem conchegada a meu coração... tua cabeça no meu ombro! Vem! um beijo! quero
sentir ainda uma vez o perfume que respirava outrora nos teus lábios. Respire-o eu e morra depois!... Cinco anos! oh! tanto tempo a esperar-te, a desejar uma hora no teu seio!... Depois... escuta... tenho tanto a dizer-te! tantas lágrimas a derramar no teu colo! Vem! e dir-te-ei toda a minha história! minhas
ilusões de amante e as noites malditas da crápula e o tédio que me inspiravam aqueles beiços frios das vendidas que me beijavam! Vem! contar-te-ei tudo isto, dir-te-ei como profanei minh’alma e meu passado... e choraremos juntos... e nossas lágrimas nos lavarão como a chuva lava as folhas do lodo!
— Obrigada, Artur! obrigada!
A mulher sufocava-se nas lágrimas, e o mancebo murmurava entre beijos palavras de amor.
— Escuta, Artur, eu vinha só dizer-te adeus! da borda do meu túmulo; e depois contente fecharia eu mesma a porta dele... Artur, eu vou morrer!
Ambos choravam.
— Agora vê, continuou ela. Acompanha-me: vês aquele homem?
Arnold tomou a lanterna.
— Johann! morto! sangue de Deus! quem o matou?
— Giorgia! Era ele um infame. Foi ele quem deixou por morto um mancebo a quem esbofeteara numa casa de jogo. Giorgia — a prostituta! vingou nele Giorgia — a virgem! Esse homem foi quem a desonrou! desonrou-a, a ela que era sua... irmã!
— Horror! horror!
E o moço virou a cara e cobriu-a com as mãos.
A mulher ajoelhou-se a seus pés.
— E agora adeus! adeus que morro! Não vês que fico lívida, que meus olhos se empanam e tremo... e desfaleço?
— Não! eu não partirei. Se eu vivesse amanhã haveria uma lembrança horrível em meu passado...
— E não tens medo? Olha! é a morte que vem! é a vida que crepúscula em minha fronte. Não vês esse arrepio entre minhas sobrancelhas?...
— E que me importa o sonho da morte? Meu porvir amanhã seria terrível: e à cabeça apodrecida do cadáver não ressoam lembranças; seus lábios gruda-os a morte; a campa é silenciosa. Morrerei!
A mulher recuava... recuava. O moço tomou-a nos braços, pregou os lábios nos dela... Ela deu um grito e caiu-lhe das mãos. Era horrível de se ver. O moço tomou o punhal, fechou os olhos, apertou-o no peito, e caiu sobre ela. Dois gemidos sufocaram-se no estrondo do baque de um corpo...
A lâmpada apagou-se. (p.88-91)
REALISMO
PAI CONTRA MÃE
A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. 
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. 
Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. 
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha aquantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem. 
Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos. 
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito. 
Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras. 
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi-- para lembrar o primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas. 
–Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. 
–Não, defunto não; mas é que... 
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade. 
–Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha. 
–Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. 
Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. 
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo. 
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos. 
–Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe. 
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade. 
–Vocês verão a triste vida, suspirava ela. 
–Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara. 
–Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco... 
–Certa como? –Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo? 
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer. 
–A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... 
–Bem sei, mas somos três. 
–Seremos quatro. 
–Não é a mesma cousa. 
–Que quer então que eu faça, além do que faço? 
–Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém. 
–Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo. 
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado. 
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão. 
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis. 
Clara não tinha sequer tempode remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem. 
–É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas consequências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa. 
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos. 
–Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca! 
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. 
–Titia não fala por mal, Candinho. 
–Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim... 
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,-- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua. 
–Quem é? perguntou o marido. 
–Sou eu. 
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse. 
–Não é preciso... 
–Faça favor. 
O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais. 
–Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo. 
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança. 
A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem. 
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte. 
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata. 
Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos. 
Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. 
–Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. 
Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante;viria buscá-la sem falta. 
–Mas... 
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. 
–Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. 
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus. 
–Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! 
–Siga! repetiu Cândido Neves. 
–Me solte! 
–Não quero demoras; siga! 
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, - coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites. 
–Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves. 
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor. 
–Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. 
–É ela mesma. 
–Meu senhor! 
–Anda, entra... 
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta milréis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. 
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as consequências do desastre. 
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. 
–Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. (ASSIS, 2007, p. 466-475.)
A CARTOMANTE
HAMLET OBSERVAVA a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. 
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... 
— Errou! interrompeu Camilo, rindo. 
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... 
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois... 
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. 
— Onde é a casa? 
— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca. 
Camilo riu outra vez: 
— Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe. 
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita. 
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando. 
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. 
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo. 
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor. 
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe deCamilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. 
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di feminina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. 
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. 
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato. 
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. 
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível. 
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a... 
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem , em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas. 
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera. 
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel. 
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a ideia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. 
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. 
"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..." 
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino. Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a ideia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: 
— Anda! agora! empurra! vá! vá! 
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar . Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se... ? Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve ideia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio. 
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe: 
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... 
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. 
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não... 
— A mim e a ela, explicou vivamente ele. 
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela. curioso e ansioso. 
— As cartas dizem-me... 
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta. 
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. 
Esta levantou-se, rindo. 
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... 
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. 
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar? 
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela. 
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. 
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... 
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. 
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. 
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro. 
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. 
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. 
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela. 
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? 
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão. (p. 351-358)
PRÉ-MODERISMO
NEGRINHA
NEGRINHA era uma pobre órfã de sete anos. Preta?? Não. Fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. 
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos de vida, vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre farrapos de esteira e panos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças. 
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada pelos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo no céu. Entaladas as banhas no trono uma cadeira de balanço na sala de jantar, — ali bordava, recebendo as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora, em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o padre. 
Ótima, a D. Inácia. 
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da sua carne, e por isso não suportava o choro da carne escrava. Assim, mal vagia, longe na cozinha, a triste criança, gritava logo, nervosa: 
— Quem é a peste que está chorando aí? 
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos?? O pilão?? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e corria com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões desesperados: 
— Cale a boca, peste do diabo!! 
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer... 
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, ficou por ali, feita gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas não andava, quase. Com pretexto de que, às soltas, reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão de porta.
 — Sentadinha aí, e bico!! Hem?? 
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. — Braços cruzados, já, diabo!!
Cruzava os bracinhos, a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. O relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha,arrufando as asas. Sorria-se, então, feliz um momento. 
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.
Que ideia faria de si essa criança, que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi — bubônica. A epidemia andava à berra, como novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal, achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida, nem esse de personalizar a peste... 
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais roxos, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa, todos os dias, houvesse ou não motivo. A sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. 
Mão em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça, de passagem. Coisa de rir, e ver a careta... 
A excelente D. Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos e daquelas ferozes, amigas de ouvir contar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regímen novo — essa indecência de negro igual a branco; e qualquer coisinha, a polícia!! “Qualquer coisinha”; uma mucama assada ao forno, porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho, porque disse: — “Como é ruim, a sinhá!”.... 
O 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava, pois, Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Simples derivativo. 
— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!... 
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade: cocres, mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar!) e o a duas mãos, o sacudido. A gama dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, a torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões à uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para doer fino, nada melhor. 
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente. 
Não sabem?? Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela guardava para o fim. A criança não sofreou a revolta e atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam, todos os dias. 
— “Peste”?? Espere aí!! Você vai ver quem é peste. E foi contar o caso à patroa. 
D. Inácia estava azeda, e necessitadíssima de derivativo. Sua cara iluminou-se. 
— Eu curo ela! disse, desentalando as banhas do trono e indo para a cozinha, qual uma perua choca, a rufar as saias. 
— Traga um ovo!! 
Veio o ovo. D. Inácia mesma pô-lo na chaleira de água a ferver e, de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, trêmula, olhar esgazeado, aguardava alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora exclamou: 
— Venha cá!! Negrinha aproximou-se. — Abra a boca!! 
Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, prática que era D. Inácia nesse castigo, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois: 
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez!! Ouviu, peste?? 
E voltou contente da vida para o trono, a virtuosa dama, a fim de receber o vigário que chegava. 
— Ah! Monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha de Cesária; mas que trabalheira me dá! 
— A caridade é a mais bela das virtudes! exclamou o padre. 
— Sim, mas cansa... 
— Quem dá aos pobres, empresta a Deus! A virtuosa senhora suspirou piedosamente: 
— Inda é o que vale... 
Certo dezembro vieram passar as férias com “Santa” Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas. 
Negrinha, do seu canto, na sala do trono, viu-as irromperem pela casa adentro como dois anjos do céu, alegres, pulando e rindo numa vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir sobre os anjos invasores o raio dum castigo tremendo. 
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era um crime brincar?? Estaria tudo mudado e findo o seu inferno — e aberto o céu??! 
No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos. 
Mas logo a dura lição da desigualdade humana chicoteou sua alma. Beliscão no umbigo e nos ouvidos o som cruel de todos os dias: 
— Já, para o seu lugar, pestinha!! Não se enxerga?? Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral — sofrimento novo que se vinha somar aos já conhecidos, a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre. 
— Quem é, titia? perguntou uma das meninas, curiosa. — Quem há de ser?! disse a tia num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus.. Uma órfã... Mas, brinquem, filhinhas!! A casa é grande. Brinquem por aí a fora!!
“Brinquem!!” Brincar! Como seria bom brincar! refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco! 
Chegaram as malas; e logo: 
— Meus brinquedos!! reclamaram as duas meninas. Uma criada abriu-as e tirou-os fora. 
Que maravilha! Um cavalo de rodas!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim, tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que fala “papá”... que dorme... 
Era de êxtase, o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial. 
- É feita??... perguntou extasiada. 
E, dominada pelo enlevo, um momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criaturinha de louça. Olhou-a com assombro e encanto, sem jeito sem ânimo de pegá-la. 
As meninas admiraram-se daquilo. — Nunca viu boneca?? 
— Boneca?? repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?? Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade. 
— Como é boba! disseram. — E você, como se chama? 
— Negrinha. 
As meninas, novamente, torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, estendendo-lhe a boneca: 
— Pegue!! 
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que aventura, santo Deus! Seria possível?? Depois, pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor Menino, sorria para ela e para as meninas, com relances de olhos assustados para a porta. Fora de si, literalmente... Era como se penetrara o céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe viesse adormecer ao colo. Tamanho foi o enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. D. Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, imóvel, presenciando a cena. 
Mas era tal a alegria das sobrinhas ante a surpresa estática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida soube ser mulher. Apiedou-se. 
Ao percebê-la na sala, Negrinha tremera, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente, e hipóteses de castigos piores ainda. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos. 
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo: estas palavras, as primeiras que ouviu, doces, na vida: 
— Vão todas brincar no jardim!!e vá você também!! mas veja lá!! Hem?? 
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu nela a fera antiga. Compreendeu e sorriu-se. 
Se a gratidão sorriu na vida, alguma vez, foi naquela surrada carinha... 
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambas é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório, e momento dos filhos, — definitivo. Depois disso está extinta a mulher. 
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha alma. 
Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que ela trazia em si, e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ser humano. Cessara de ser coisa e de ora avante lhe seria impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!... 
Assim foi, e essa consciência a matou. 
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa reentrou no ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
D. Inácia, pensativa, já a não atenazava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida. Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. 
Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos. 
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro de seu doloroso inferno, envenenara-a. Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... 
Acalentara dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer papá e a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma. 
A repentina retirada de tudo isso fora forte demais para a débil resistência de uma alma, com um mês de vida apenas. Enfraqueceu, definhou, como roída de invisível doença consuntora. E uma febre veio e a levou. 
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Ninguém, entretanto, morreu jamais com maior beleza. O delírio rodeou-se de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos rodamoinhavam em torno dela, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça, abraçada, rodopiada. 
Veio a tontura, e uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e o cuco pela última vez lhe apareceu, de boca aberta. 
Mas, imóvel, sem rufar as asas. 
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas. 
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença sua carnezinha de terceira — uma miséria, quinze quilos mal pesados... 
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas: 
— Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?? 
Outra de saudade, no nó dos dedos de D. Inácia: — Como era boa para um cocre!... 
LIMA BARRETO
O NÚMERO DA SEPULTURA
QUE PODIA ela dizer, após três meses de casada, sobre o casamento? 
Era bom? Era mau? 
Não se animava a afirmar nem uma coisa, nem outra. Em essência, “aquilo” lhe parecia resumir-se em uma simples mudança de casa. 
A que deixara não tinha mais nem menos cômodos do que a que viera habitar; não tinha mais “largueza”; mas a nova possuía um jardinzito minúsculo e uma pia na sala de jantar.
Era, no fim de contas, a diminuta diferença que existia entre ambas. 
Passando da obediência dos pais, para a do marido, o que ela sentia, era o que se sente quando se muda de habitação. 
No começo, há nos que se mudam, agitação, atividade; puxa-se pela ideia, a fim de adaptar os móveis à casa nova” e, por conseguinte, eles, os seus recentes habitantes também; isso, porém, dura poucos dias. 
No fim de um mês, os móveis já estão definitivamente “ancorados”, nos seus lugares, e os moradores se esquecem de que residem ali desde poucos dias. 
Demais, para que ela não sentisse, profunda modificação, no seu viver, advinda com o casamento, havia a quase igualdade de gênios e hábitos de seu pai e seu marido. 
Tanto um como outro, eram corteses com ela; brandos no tratar, serenos, sem impropérios, e ambos, também, meticulosos, exatos e metódicos. Não houve, assim, abalo algum, na sua transplantação de um lar para outro. 
Contudo, esperava, no casamento alguma coisa de inédito até ali, na sua existência de mulher: uma exuberante e contínua satisfação de viver. 
Não sentiu, porém, nada disso. 
O que houve de particular na sua mudança de estado, foi insuficiente para lhe dar uma sensação nunca sentida da vida e do mundo. Não percebeu nenhuma novidade essencial... 
Os céus cambiantes, com o rosado e dourado de arrebóis, que o casamento promete a todos, moços e moças; não os vira ela. O sentimento de inteira liberdade, com passeios, festas, teatros, visitas – tudo que se contém para as mulheres, na idéia de casamento, durou somente a primeira semana de matrimônio. 
Durante ela, ao lado do marido, passeara, visitara, fora a festas, e a teatros; mas assistira todas essas coisas, sem muito se interessar por elas, sem receber grandes ou profundas emoções de surpresa, e ter sonhos fora do trivial da nossa mesquinha vida terrestre. Cansavam-na até! 
No começo, sentia alguma alegria e certo contentamento; por fim, porém, veio o tédio por elas todas, a nostalgia da quietude de sua casa suburbana, onde vivia à négligé e podia sonhar, sem desconfiar que os outros lhe pudessem descobrir os devaneios crepusculares de sua pequenina alma de burguesinha, saudosa e enfumaçada. 
Não era raro que também ocorresse saudades da casa paterna, provocadas por aquelas chinfrinadas de teatros ou cinematográficas. Acudia-lhe, com indefinível sentimento, a lembrança de velhos móveis e outros pertences familiares da sua casa paterna, que a tinham visto desde menina. Era uma velha cadeira de balanço de jacarandá; era uma leiteira de louça, pintada de azul, muito antiga; era o relógio sem pêndula, octogonal, velho também; e outras bugigangas domésticas que, muito mais fortemente do que os móveis e utensílios adquiridos recentemente, se haviam gravado na sua memória. 
Seu marido era um rapaz de excelentes qualidades matrimoniais, e não havia, no nebuloso estado da alma de Zilda, nenhum desgosto dele ou decepção que ele lhe tivesse causado. 
Morigerado, cumpridor exato dos seus deveres, na seção de que era chefe seu pai, tinha todas as qualidades médias, para ser um bom chefe de família, cumprir o dever de continuar a espécie e ser um bom diretor de secretaria ou repartição outra, de banco ou de escritório comercial. 
Em compensação, não possuía nenhuma proeminência de inteligência ou de ação. Era e seria sempre uma boa peça de máquina, bem ajustada, bem polida e que, lubrificada convenientemente, não diminuiria o rendimento daquela, mas que precisava sempre do motor da iniciativa estranha, para se pôr em movimento. 
Os pais de Zilda tinham aproximado os dois; a avó, a quem a moça estimava deveras, fizera as insinuações de praxe; e, vendo ela que a coisa era do gosto de todos, por curiosidade mais do que por amor ou outra coisa parecida, resolveu-se a casar com o escriturário de seu pai. Casaram-se, viviam muito bem. Entre ambos, não havia a menor rusga, a menor desinteligência que lhes toldasse a vida matrimonial; mas não existia também, como era de esperar, uma profunda e constante penetração, de um para o outro e vice-versa, de desejos, de sentimentos, de dores e alegrias. 
Viviam placidamente numa tranquilidade de lagoa, cercada de altas montanhas, por entre as quais os ventos fortes não conseguiam penetrar, para encrespar-lhe as águas imotas.
A beleza do viver daquele novel casal, não era ter conseguido de duas fazer uma única vontade; estava em que os dois continuassem a ser cada um uma personalidade, sem que, entanto, encontrassem nunca motivo de conflito, o mais ligeiro que fosse. Uma vez, porem... Deixemos isso para mais tarde... O gênio e a educação de ambos muito contribuíam para tal. 
O marido, exato burocrata, era cordato,

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