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A Geopolítica, encontro histórico entre geógrafos e generais, virou teoria na época da Alemanha nazista, quando um certo Karl Haushofer definiu: “A nova doutrina deve ser e será a consciência geográfica do Estado”. No Brasil, durante a ditadura/ militar, a geopolítica era a bíblia dos governantes. Atualmente, vai parà"-ò espaço: satélites artificiais fotografam países, fronteiras, pontos estratégicos. Sobre as linhas da geografia, o poder político persegue a sua própria expansão. lEUURAS—_ • 0 Armamentismo e o Brasil: A Guerra Deles — Ricardo Arnt (org.) • Carajás — Desafio Político, Ecologia e Desenvolvimento — Diversos Autores • A "Conciliação” e Outras Estratégias — Michet M. Debrun • O Estado Nuclear no Brasil — Carlos A. Girotti • Exterminismo e Guerra Fria — Diversos Autores • O Extremo Oeste — Sérgio Buarque de Holanda • Guerra em Surdina — História do Brasil na Segunda Grande Guerra — Boris Schnaiderman • 0 Ocidente Diante da Revolução Soviética — Marc Ferro • Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna — Norberto Bobbio/Michelangelo Bovero Coleção Primeiros Passos • 0 que é Direito Internacional — José Monserrat Filho • 0 que é Geografia — Ruy Moreira • 0 que é Ideologia — Marilena Chaui • 0 que é Imperialismo — Afrânio Mendes Catani • 0 que é Poder — Gérard Lebrun • 0 que é Política — Wolfgang Leo Maar • 0 que é Propaganda Ideológica — Nelson Jahr Garcia Demétrio Magnoli O QUE É GEOPOLÍTICA 1? edição 1986 2? edição editora brasiliense 1988 Capa: Samuel Ribeiro Jr. Revisão’. Mário R. Q- Moraes Elizabete C. Sousa ISBN: 85-11-01183-8 editora brasiliense s.a. rua da consolação, 2697 01416 - são paulo - sp. fone (011) 280-1222 telex: 11 33271 DBLMBR A CONSELHEIRA DO PRÍNCIPE Imagine there's no countries... John Lennon Olhe mais uma vez para o planisfério político e para o mapa político do Brasil. Poucas imagens são tão familiares como essas, signos antigos, banalizados na nossa memória e experiência, recordação inevitável da sala de aula. Vulgarizadas pela exposição exaustiva, essas imagens esvaziaram- se de conteúdo: os continentes divididos por finos traços que delimitam espaços assimétricos grandes ou pequenos foram incorporados à nossa experiência como representação natural do mundo. Além da delimitação recíproca de oceanos e continentes, tudo o que há nesses mapas são os finos traços denominados fronteiras: os espaços vazios que elas circunscrevem são os países. Uma reflexão mais detida nos perrTiitirá recordar aquilo que, no fundo, sabemos. Fronteiras e países não estiveram sempre onde estão, e não existiram sempre. Não são mais que construções da história humana, resultado e expressão de processos sociais. Seu significado atual é fruto recente da história humana, com raízes fincadas na Europa pós-medieval, matriz dos Estados nacionais. A dimensão planetária que adquiriram é ainda mais recente: liga-se à projeção colonial e imperialista dos Estados nacionais europeus, sobre todos os continentes, nos últimos quatro séculos. Rompida a opa- . cidade do planisfério banalizado, revela-se seu con- \ teúdo escondido: ele é representação sintética do I drama secular que se chama história. Confrontados com mapas políticos, freqüente- mente perdemos de vista o caráter histórico das realidades que eles espelham. Mas a natureza, que pro- duziu árvores e matas, oceanos e mares, rios e montanhas, não produziu fronteiras ou países. Na prática cotidiana, insensivelmente naturalizamos esses fenômenos que são políticos. A geografia escolar oficial contribui poderosamente para esse processo de escamoteamento da realidade. Destinada a cristalizar as idéias de pátria e patriotismo entre os jovens estudantes, ela trata o território nacional como entidade natural. Tudo se passa como se o território da pátria fosse um dado prévio, anterior à história, metafísica entidade um dia "descoberta" e "ocupada". Procede-se a minuciosa e sistemática descrição do "seu" relevo, hidrografia, clima e vegetação. Tudo isso precede ritualmente o estudo das atividades humanas: é preciso configurar o corpo da pátria! Culto e adoração do corpo da pátria são os objetivos perseguidos pela geografia dos bancos escolares. Não é surpreendente que, em 1950, o professor Pasquale Petrone fosse legalmente impedido de assumir a cadeira de Geografia do Brasil, até então ocupada por medíocre mestre-escola de nome Jânio Quadros, no tradicional colégio Dante Alighieri: o jovem geógrafo que depois dirigiu o Departamento de Geografia da USP cometera o pecado de ser italiano num país que proibia a estrangeiros lecionarem Geografia do Brasil. Mas o que são as fronteiras, esses finos traços desenhados sobre o planisfério, moldura irregular do corpo da pátria? Limites terrestres, elas' têm repercussões marítimas (o mar territorial) e aéreas (o espaço aéreo). São chamadas naturais quando oceanos, mares, montanhas, rios surgem como evidências físicas de seu traçado, e artificiais quando unicamente representadas por linhas geodésicas. Em qualquer caso, parecem cumprir uma função clara: separar territórios. Elas circunscrevem espaços, limitando-os. Isolam o "meu” do "teu". Evidenciam empiricamente a existência de um espaço distinto dos outros que o rodeiam. Um território dotado de características singulares: • uma determinada organização social da produção, distribuição e consumo de bens e serviços; • um regime político, consubstanciado em instituições particulares, tecido ao longo de uma história comum; • um conjunto de leis, normas, regimentos e regulamentos que ordenam a existência do conjunto social em suas relações internas. Fronteiras são a delimitação espacial do Estado, a sua evidência territorial. Estado: a realidade invisível que se eleva por trás dos espaços assimétricos visíveis no planisfério político, impropriamente chamados países. Estados sempre souberam que as fronteiras, mais que linhas divisórias, são pontos de contato com o espaço exterior. Antes de separar, elas aproximam. Antes de segregar, viabilizam fluxos e influências. São superfícies porosas de contato do território estatal com outros territórios, outros Estados. Com ou- tras realidades sociais, econômicas e políticas. Testemunhas da existência do Outro. Isso assusta os Estados. A definição clássica do geógrafo francês Jacques Ancel desvenda os motivos do susto: "Fronteira é uma isóbara política que fixa o equilíbrio entre duas pressões". Isóbara, em mapas e cartas, é a linha que separa áreas de pressão atmosférica diferente; ao longo do seu traçado, a pressão é constante. O brasileiro Everardo Backheu- ser, professor do Colégio Militar nos anos 20, prefere caracterizá-las como "epiderme do organismo estatal". É essa ordem de idéias que justifica a existên- . cia dos territórios federais (Amapá, Roraima, Acre, Ponta Porã, Iguaçu...), diretamente subordinados ao poder central. Eles cumprem a função de conduzir "para o cérebro as impressões colhidas pela epiderme do corpo territorial", na expressão do general Mário Travassos, discípulo de Backheuser. Cabe à cartografia a formalização, sobre mapas e cartas, do traçado das fronteiras. Toda uma variada gama, cada vez mais sofisticada, de técnicas cartográficas desenvolveu-se para responder a essa ne cessidade inerente aos Estados. Oficiais militares dedicaram-se a esse ramo particular da geografia, configurando a cartografia como arte e técnica autônoma. Fronteiras e mapas, as técnicas cartográficas-. foram essas as pontes que aproximaram geógrafos e generais. Os geógrafos ocuparam papéis cruciais na sustentação técnica da expansão imperial européia sobre a África. O Congresso de Berlim, reunido em 1885, palco das definições gerais entre as potências européias destinadas a ordenar a posterior partilha colonial do continente, fundamentou a sua Ata nos trabalhos de inúmeras comissões técnicas. Nelas, os geógrafos, sábios a serviço do poder, subsidiavam as delegações governamentais com esboços cartográficos assentados em meridianos e paralelos, linhas de divisão de redes hidrográficas,cursos presumíveis e embocaduras de rios, distribuições populacionais e étnicas... Produtos cartográficos em grande escala, as chamadas "cartas de Estado- Maior", ricas na revelação de detalhes estratégicos, são ainda hoje mantidas sob sigilo militar em inúmeros países. E o caso da URSS e, em geral, dos países do chamado "socialismo real". No Brasil, até poucos anos atrás, a carta topográfica em escala 1/50.000 (um centímetro da carta representa cinqüenta mil centímetros ou quinhentos metros da realidade cartografada) editada pelo IBGE referente ao município paulista de São José dos Campos, sede de inúmeras instalações militares, constituía segredo reservado ao Estado-Maior das Forças Armadas. Razões idênticas de "segurança nacional" mantinham reservadas as cartas 1/50.000 de Santos e outras zonas portuárias, barragens e hidrelétricas, etc. Definições da geopolítica A Geopolítica é fruto dessa aproximação entre geógrafos e generais, desse encontro histórico entre a Geografia e o Estado. 0 sueco germanófilo Rudolf Kjéllen, professor de Ciência Política na Universidade de Upsala, foi o primeiro a utilizar o termo Geopolítica. Sua obra, editada em 1916 e significativamente intitulada O Estado como manifestação da vida, define: "Geopolítica é a ciência que concebe o Estado como um organismo geográfico ou como um fenômeno no espaço". Mas foi na Alemanha do Reich nazista que a nova doutrina institucionalizou-se, ganhando cidadania universitária e formalização teórica. Seus maiores expoentes reuniram-se em torno do general e conselheiro de Hitler, Karl Haushofer. Fundado e presidido por ele, o Instituto de Geopolítica de Munique sintetizou: "A Geopolítica deve ser e será a consciência geográfica do Estado". No tormentoso intervalo entre as duas guerras, a Alemanha reunia as condições históricas e intelectuais para tornar-se a legítima pátria da Geopo- lítica. Uma seqüência de frustrações históricas recentes fermentava idéias belicistas e expansioniatas. Tardiamente unificada em 1871, a jovem Alemanha emergia como potência industrial de primeira linha, numa época em que os mais cobiçados territórios africanos e asiáticos estavam já partilhados pelas potências tradicionais. Essa tensão dilacerante está no cerne da teia de conflitos que preparou a guerra européia de 1914-1918. O Tratado de Versalhes, pacto de espoliação e humilhação da Alemanha derrotada firmado entre os vencedores de 1918, repercutiría profundamente na consciência alemã: expansionismo e belicismo se confundiríam com os perigosos ingredientes da revanche e da vingança. As raízes intelectuais da Geopolítica residem no pensamento geográfico do alemão Friedrich Ratzel (1844-1904). Intelectual de Estado, engajado no projeto de unificação da Alemanha sob hegemonia da Prússia, concebido e executado pelo chanceler Otto von Bismarck, publica em 1 882 seu principal livro: Antropogeografia — Fundamentos da Aplicação da Geografia à História. Influenciado pelo organicis- mo de fundo biológico, concebia o Estado como emanação natural da sociedade destinada à defesa do território. Ao formular suas "leis da expansão espacial dos Estados" define o progresso como cres- cimento territorial. Dessas "leis" origina-se o conceito de Lebensraum (espaço vital), razão de equilíbrio entre a população de determinada sociedade, seus recursos naturais e seu território potencial. Lebensraum reaparecería na obra programática de Hitler, Mein Kampf. É de Ratzel a máxima famosa “Espaço é Poder”, pedra de toque original de todo o pensamento geo- político. Síntese magistral do prisma sob o qual a Alemanha encarava as suas tarefas históricas, a frase de Ratzel projetou-se no futuro como estratégia do Estado alemão. Procurando captar a dimensão essencial dessas doutrinas, o historiógrafo brasileiro Nélson Werneck Sodré define a Geopolítica como "a geografia do fascismo". Iluminada pela força trágica da institucionalização da Geopolítica na Alemanha nazista, a definição de Sodré acaba por obscurecer o essencial: as práticas de dominação fundamentadas no controle do território não são exclusividade do Estado fascista. Elas concernem ao Estado contemporâneo, seja ele totalitário, autoritário ou democrático-parla- mentar. O pensamento geopolítico acompanha a trajetória dos Estados Unidos em direção à sua consolidação como potência mundial. Em 1823, o presidente James Monroe expõe o conceito estratégico que ficaria conhecido como Doutrina Monroe-. “h América para os americanos". Essa teorização da futura tutela dos EUA sobre a América Latina foi considerada pelo Instituto de Geopolítica de Munique como "a mais soberba idéia do século". O Corolário Roosevelt (de Theodore Roose- velt, 1904) retoma a Doutrina Monroe para justificar a política ativa de intervenção na América Latina seguida durante todo o nosso século. A anexação dos territórios mexicanos do Texas e Califórnia, entre 1845 e 1848, foi justificada pelo Corolário Polk: cinicamente ele "reconhecia" o "direito" de qualquer antiga colônia juntar-se "espontaneamente" aos EUA. Mas o grande teórico da projeção mundial norte- americana foi o almirante Alfred T. Mahan (1840- 1914). Em 1886, na condição de presidente do Na- C i vai War College, ele divulga as suas propostas: desenvolvimento da marinha de guerra e estabelecimento de zona de hegemonia nos dois grandes ocea- nos, criação de passagem estratégica entre o Atlântico e o Pacífico, e limitação de qualquer pretensão naval japonesa. A compra do Alasca ao Império Russo, em 1 867, antecipou a consecução surpreendente das idéias de Mahan: • 1898: anexação do Havaí, Guam, Filipinas e Porto Rico; • 1899: domínio sobre Samoa; • 1901: imposição de protetorado sobre Cuba; • 1903: o Panamá é estimulado a separar-se da Colômbia, e a Zona do Canal é cedida perpetuamente aos EUA; • 1905: imposição de semiprotetorado sobre São Domingos; • 1912: ocupacão da Nicarágua, que vigora até 1933; • 1914: ocupação do Haiti, que vigora até 1 934; • 1916: compra à Dinamarca das Ilhas Virgens. A atualidade das idéias de Mahan pode ser avaliada pelos tratados impostos ao Japão derrotado na Segunda Guerra Mundial. Ocupado pelos EUA entre 1946 e 1947, torna-se nação desmilitarizada. Em 1 954, assina pacto de cooperação militar através do qual coloca-se sob proteção norte-americana, situação que ainda perdura. Essa perspectiva ajuda a entender o significado simbólico do traiçoeiro ataque japonês contra a base norte-americana de Pearl Har- bor, no Pacífico, em dezembro de 1941. A Geopolítica não é uma doutrina circunscrita aos limites alemães, ainda que os geógrafos clássicos franceses tenham se esforçado para difundir essa concepção. Filiados à tradição liberal e possibilista fundada por Vidal de Ia Blache (1845-1918), eles trataram de se distinguir cuidadosamente face aos ratzelianos alemães. Jean Gottmann exprime conci- samente a posição generalizada de seus compatriotas: "O geopolítico é um geógrafo à procura de um Estado-Maior”. Mas tais posturas não impediram os franceses de desenvolverem também a sua geopolítica. Diversamente da Alemanha, que via na Europa o teatro para o seu expansionismo, os franceses focalizavam as atenções na África, onde realizavam a sua obra colonial. Para municiá-la teoricamente, foi criada uma especialização universitária particular: a cátedra de Geografia Colonial. A primeira cadeira especializada surgiu em Paris, em 1 892. A mesma disciplina recebeu uma segunda cadeira parisiense em 1 937, e até mesmo após a Segunda Guerra foram criadas cadeiras dessa disciplina, como em Bordeaux, em 1946. Nélson Werneck Sodré simplifica exageradamente ao opor o possibilismo francês, visto como saber científico, à "construção ideológica destituída de sentido científico" que seria a Geopolítica. Mesmo os ortodoxos alemães do Instituto de Munique não se preocuparam demasiadamente em atribuir estatuto científico à sua doutrina. Ainda que a chamassem, às vezes, ciência, preferiam enxergá-la como uma teoria ou uma arte. A geopolítica sem fronteiras A Geopolítica,ciência ou não, prossegue influenciando poderosamente a ação prática dos Estados. Mas, na era dos satélites, da teledetecção e do sen- soriamento remoto, o significado das fronteiras territoriais e o conceito de soberania alteram-se consideravelmente. A Geopolítica ganha dimensões insus- peitadas. 0 sensoriamento remoto consiste em toda a gama de técnicas de detecção de objetos ou fenômenos sem contato físico direto. As primeiras técnicas de teledetecção, as fotografias aéreas verticais tomadas por balões, datam de 1 857. 0 desenvolvimento da aviação fez da aerofotogrametria um instrumento privilegiado para a sofisticação das representações da superfície da Terra. Hoje as imagens de satélites inauguram nova etapa, de possibilidades quase ilimitadas, na teledetecção. Em 1972, a NASA inicia o programa Landsat, satélites de análise dos recursos terrestres. Eles fornecem imagens fotográficas, imagens radarmétricas e imagens em infravermelho que se utilizam da parte não visível do espectro. Cobrindo repetidamente cada quadrilátero da superfície terrestre a intervalos de dezoito dias, os satélites da série Landsat permitem análises comparativas de imagens tomadas em condições semelhantes.. Em fevereiro de 1 986 um consórcio europeu que reúne franceses, belgas e suecos colocou em órbita o primeiro dos satélites da série Spot: ainda mais sofisticado que os Landsat, seu poder de resolução distingue objetos de dez por dez metros a partir de uma órbita de oitocentos quilômetros de altura. As imagens recebidas e interpretadas possibilitam, através de técnicas de cartografia computadorizada, a obtenção de cartas múltiplas, extremamente precisas e detalhadas. Um novo domínio do planeta, cujas imensas possibilidades apenas começam a ser exploradas, abre-se para a humanidade. Os recursos combinados do Landsat e do radar aerotransportado possibilitaram ao projeto RADAM a cartografia completa da bacia do Amazonas em um ano (1972-1973). As ondas eletromagnéticas e o acesso ao espectro invisível (infravermelho) permitiram "ver" sob a selva e mesmo sob a superfície terrestre: métodos comparativos conduzem à detecção de estruturas que potencialmente abrigam jazidas minerais. Em 1 977, imagens do Landsat produziram material para o estudo do aluvionamento (acumula- ção de material como areia, cascalho, lodo pelas águas correntes, resultante do trabalho de erosão dessas águas) do delta do rio Nilo, sob os efeitos da barragem de Assuã. Imagens como essas abrem caminho para a previsão de safras agrícolas, controladas e corrigidas ao longo do calendário agrícola, de uma precisão inédita. Mas as possibilidades dessas novas tecnologias trazem consigo riscos igualmente amplos. Elas conferem a seus detentores um poder explosivo: o poder da informação. Em 1973, o uso combinado de satélites meteorológicos da série DMSP com o Landsat em programa de obtenção de imagens noturnas permitiu aos Esta- dos Unidos a confecção de cartas de alto valor estra tégico. Foram localizadas em todos os continentes as zonas de forte consumo de energia: cidades, redes urbanas, áreas industriais, eixos de transporte. Perceptíveis pelas chamas de gás, foram cartografados campos petrolíferos na Sibéria, Argélia, Líbia, Nigéria, Golfo Pérsico... Técnicos e cientistas independentes, preocupados com a utilização das sofisticadas tecnologias recentes de sensoriamento remoto, denunciaram a manipulação de imagens em infravermelho pelas Forças Armadas norte- americanas durante a guerra do Vietnã, com o objetivo de localizar abrigos vietnamitas sob a espessa cobertura da selva tropical. As preocupações desses experts justificam-se. A caríssima e sofisticada tecnologia envolvida é, por hora, monopólio de um clube ultra-seleto de países: apenas os Estados Unidos, a União Sóviética e o consórcio franco- belga-sueco detêm o controle integral dos sistemas de satélites e lançadores necessários à teledetecção de recursos terrestres. O Brasil depende de imagens repassadas pela NASA ao INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, subordinado ao Estado-Maior das Forças Armadas). Pesqui- sadores individuais ou instituições civis devem justificar todos os pedidos de imagens feitos a esse órgão, pois ela são, em princípio, reservadas. Os altos preços desses produtos limitam ainda mais o acesso a eles, quando se trata de instituições civis de pesquisa. Esse virtual monopólio de informações estratégicas de âmbito planetário, por alguns Estados, coloca sobre bases antes desconhecidas os problemas da fronteira, do território e da soberania. Quando alguns países conhecem melhor que outros a situação das safras agrícolas, inclusive das safras desses outros, todo um jogo de preços no mercado mundial realiza-se em novas condições. Quando o potencial mineral de países pobres pode ser recenseado por alguns países ricos, que podem manter sob seu poder essas informações, estamos diante de realidades novas e assustadoras. A Geopolítica, entretanto, não concerne unicamente à soberania dos Estados. Ela concerne aos direitos civis, às liberdades públicas: à vida dos homens e das mulheres que residem nos espaços delimitados pelas fronteiras. Em 28 de abril de 1 986, a União Soviética anunciou a ocorrência de acidente nuclear na usina de Chernobyl. As dimensões trágicas do vazamento de material radioativo revelaram-se nos dias e semanas seguintes, quando a nuvem dispersada atingiu grande parte da Europa, contaminando produtos agrícolas e leite na Europa central, renas, frutas, cogumelos e peixes na Escandinávia. Mas o acidente não ocorreu no dia 28: ocorreu no dia 26, quarenta e oito horas antes, sendo divulgado apenas a partir da detecção da nuvem radioativa sobre os países escandinavos. Outros três acidentes nucleares ocorridos na URSS, datados de 1 958, 1 974 e 1984, foram anunciados no Ocidente mas são até hoje negados por Moscou. Distante apenas cento e trinta quilômetros de Chernobyl, localiza-se a terceira maior cidade soviética, Kiev, capital da República da Ucrânia. Seus dois milhões e trezentos mil habitantes, vítimas de provável aumento nas taxas de incidência de câncer provocado pelo acidente, foram mantidos na ignorância por dois dias, O Estado soviético dava assim um testemunho único de poder: poder de controle do território e de seus habitantes. No Brasil, o Estado também evidencia domínio na arte do que se pode classificar como "geopolítica interna”. Em agosto de 1 986, o jornal Folha de S. Paulo revelou a existência de perfurações e poços escavados em base da Aeronáutica, localizada na serra de Cachimbo, potencialmente utilizáveis para testes e experiências nucleares. Novas informações trouxeram à luz fatos importantes. As perfurações do Cachimbo datavam de vários anos, tendo se iniciado no go- verno do general Figueiredo. Apesar dos confusos desmentidos oficiais, dá- se como certa a existência de programa nuclear paralelo, submetido a sigilo absoluto e controle exclusivamente militar. Não são apenas os índios caiapós e baú-mecrato- nires, habitantes dessa região situada nos estados do Pará e Mato Grosso, que permaneceram anos na ignorância do que ocorre na imensa chapada. Ainda hoje, sequer representantes parlamentares dos cidadãos têm permissão para ingressar na área. O manto pesado do segredo militar revela-se forte o suficiente para literalmente manter secretos quase quatro milhões de hectares. Geopolítica interna: o território é do Estado, não dos cidadãos. O ESTADO GEOPOLÍTICO Durante o inverno, as intermináveis pradarias cobrem-se de uma lâmina de neve que, fundindo-se na primavera, proporciona o ressurgimento da vege- tação herbácea extensiva. As chuvas do verão decompõem o capim morto do ano anterior: a matéria orgânica originada confere uma grande fertilidade aos solos escuros, denominados tchernozion. Encravada no território europeu da União Soviética, em posição de passagem entre o norte e o sul, a República da Ucrânia limita-se a ocidente com a Polônia e o Mar Negro. Celeiro agrícola da União Soviética, é responsável por imensas colheitasde trigo, beterraba açucareira e girassol. Nos anos tormentosos da Primeira Guerra, da revolução bolchevique e da guerra civil que a sucedeu, a Ucrânia foi uma autêntica terra de ninguém. Conheceu ocupantes alemães, guerrilheiros russos anarquistas, os exércitos antibolcheviques e, finalmente, os conselhos operários revolucionários (sovietes). Com o verão de 1919, chegaram as tropas contra- revolucionárias dirigidas pelo general russo Denikin, que acabavam de impor pesadas derrotas aos bol- cheviques. O governo fantasma instalado por Denikin, de duração efêmera, foi logo reconhecido pelas potências ocidentais, empenhadas na desestabiliza- ção do poder de Lenin e seus camaradas. O representante diplomático enviado pela Coroa britânica à Ucrânia era um certo Sir Halford Mackinder. Geopolítico de renome, o inglês notabilizara-se, nos primeiros anos do século, como teórico do Império britânico, que entrava em lenta decadência. Na época, a Alemanha voltava-se cobiçosamente para as planícies do leste, acalentando sonhos expansio- nistas dirigidos para a anexação de territórios poloneses e ucranianos. O olhar estratégico de Mackinder acompanhava atentamente os sinais emitidos pelo imperialismo alemão: aqueles territórios tornaram-se a sua obsessão. Poderia ele supor que, levado pela sutil ironia da história, representaria um dia a sua pátria no exato local da sua obsessão? Intitulada "0 Pivô Geográfico da História", a conferência que Mackinder proferiu perante a Sociedade Geográfica de Londres, em 1 904, passou aos anais da geopolítica. As planícies ucranianas e polonesas delimitadas pelos rios Vístula e Dnieper elevavam-se à condição de conceito geopolítico de primeira linha. Em alto grau de abstração, ele reconstituiu toda a evolução histórica do Velho Mundo, desde as invasões bárbaras que decompuseram o Império Romano. Fundindo miraculosamente esse discurso histórico a um discurso físico-geográfico concernente a toda a Eurásia e à África, fez surgirem três entidades geopolíticas: três imensas faixas consecutivas que, tomadas em conjunto, englobavam todo o Velho Mundo. A primeira corresponde às planícies interiores de bosques e pradarias, a segunda às estepes su- búmidas envolventes e a terceira identifica-se à franja litorânea e marítima. Dominaria o Velho Mundo quem dominasse a sua faixa interior — a heartland, ou região-coração. Mas quem dominasse o Velho Mundo — a Ilha do Mundo — hegemonizaria todo o planeta. Heartland-. região pulsante, umbigo do umbigo do mundo, centro vital e energético simultaneamente originado da história e da geografia. Heartland, território mágico entre a Alemanha e a Rússia. 0 confe- rencista credenciava- se como o mais clássico teórico do poder continental em todos os tempos. O novo conceito geopolítico nascido da exposição de Mackinder respondia às necessidades estratégicas do Império britânico. Para cavar um fosso entre a Alemanha e a Rússia, é firmado o pacto anglo-russo de 1907. Começa a cristalizar-se um dos blocos político-militares da Primeira Guerra. Num contexto diferente, em 1 91 9, os vencedores da guerra, reunidos em Versalhes, utilizam a mesma idéia geopolítica para remontar o mapa da Europa. Com o objetivo de isolar a União Soviética bolchevique do resto do continente, estimulam a criação de novos Estados governados por ditaduras direitistas a ocidente da URSS. Este invólucro fronteiriço ficou conhecido pelo nome de "cordão sanitário". Deslocado no tempo e no espaço, o conceito estratégico de heartland reaparecería no Brasil, transfigurado em pólo magnético de todo o pensa- mento geopolítico dos militares. Golbery: a geopolítica do Brasil 0 general Golbery do Couto e Silva não é nem o pioneiro nem o mais original dos geopolíticos brasileiros. Mas ele singulariza-se pela sua persistente e decisiva influência histórica. Suas idéias moldaram gerações de tecnocratas que constituíram o verdadeiro corpo todo-poderoso do aparato estatal. Da pena de Golbery saíram o "Manifesto dos Coronéis" de 1 954, que derrubou João Goulart, ministro do Trabalho de Vargas, e a proclamação dos ministros militares contra a posse do mesmo Jango, em 1961. Esteve preso por oito dias, em virtude de sua destacada participação no grupo que manobrou para impedir a posse de Juscelino Kubitschek. Nas vésperas de 1964, dirigiu o IPES, nominalmente Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, mas realmente foco da conspiração de políticos, militares e empresários que articularam o golpe de 31 de março. Depois, foi o primeiro chefe do recém-criado Serviço Nacional de Informações no governo Castello Branco, chefe do Gabinete Civil em todo o governo Geisel e nos dois primeiros anos do governo Figueiredo. Confidente dos presidentes Jânio Quadros, Castello Branco e Ernesto Geisel, a ele é atribuída a ascensão presidencial de João Baptista Figueiredo. Golbery ingressou na Escola Superior de Guerra em março de 1952, como adjunto de seu Departa- mento de Estudos. Lá, destacou-se como formulador da ideologia de Segurança Nacional, que se tornaria bíblia oficial dos governos militares oriundos de 64. Guru de generais-presidentes, eminência parda de governos, mago da penumbra, ele cravou seu pensamento no território brasileiro: suas idéias modificaram a nossa vida. Golbery não utiliza o mapa-múndi dos estudantes, o planisfério idealizado em 1 569 pelo holandês Ger- hard Kremer, que adotou o codinome latino Merca- tor. O mapa do general é diferente e estranho. Nele, o Brasil aparece, gloriosamente, no centro geométrico do mundo. À primeira vista, o olhar geopolítico que o general lança sobre o mundo sugere-nos uma intolerável deformação da realidade. Mas o planisfério de Merca- tor, que julgamos ser reprodução fiel do mundo, não é uma deformação menor. 0 globo terrestre, esfera quase perfeita, não pode ser reproduzido com exatidão numa superfície plana: dependendo do tipo de projeção escolhido, o resultado apresentará determinadas deformações inevitáveis. No caso da projeção Mercator, a mais difundida, o desenho (a forma) das massas continentais é conservado à custa da distorção geral de suas escalas (o tamanho relativo dos continentes). Observe que, nesse tipo de planisfério, as áreas relativas dos continentes crescem como aumento das latitudes: a Groenlândia, por exemplo, tem sua área multiplicada por nove. É por isso que os mapas usuais tendem a se limitar à latitude 80°, escondendo as "imensas" áreas polares. Já a projeção dos geopolíticos, chamada azimutal eqüidistante e criada por Postei em 1581, não se preocupa em conservar nem as áreas relativas nem o desenho exato dos continentes. Em compensação, revela direções e distâncias, absolutamente exatas, de qualquer ponto examinado a partir do centro do mapa. A projeção azimutal eqüidistante — o olhar geopo- lítico — desvenda o significado essencial da própria geopolítica. Nas suas considerações estratégicas, cada Estado apreende o mundo através de um mapa diferente, um mapa que tem no seu centro geométrico o território desse Estado. Para cada Estado, um mapa do mundo-, essa é a lei que rege o olhar geopo- lítico. Conseqüentemente, não há “geopolítica universal". As geopolíticas são tantas quantos são os Estados, e a existência da própria geopolítica está confinada temporalmente à existência do Estado. Munidos de um mapa azimutal centrado no Brasil, acompanhamos o raciocínio do general Golbery. A cidade de São Paulo está no centro geométrico de um perímetro circular que toca levemente a Antártida, o litoral ocidental africano e atravessa o istmo centro-americano: a área que ele circunscreve é o “hemiciclo interior", o nicho do Brasil no espaço geopolítico planetário. O epicentro ameaçador encontra-se muito distante desse hemiciclo, no eixo Mos- cou-Pequim, pólo de difusão do comunismo: suas vibrações configuram áreas de atrito e instabilidade na Europa Ocidental, Oriente Médio e Sudeste Asiático. 0 Brasil, cujos destinos históricos repousam no bloco ocidental comandado pelos Estados Unidos, tem seu nicho na “fortaleza sul-americana",com linhas de defesa guarnecidas pelo vazio inóspito da Antártida, pela massa africana precariamente ocupada e pelo “lago norte-americano" do Caribe. Toda al- teração ocorrida nesses postos avançados interessa diretamente à posição estratégica do Brasil. Fatos como a adesão de Cuba ao bloco soviético, a instalação de um regime de esquerda em Angola e a corrida Científica-militar ao continente antártico — posteriores a esses ensaios elaborados por Golbery na década de 50 — representam perturbações diretas à segurança brasileira. Dentro do hemiciclo interior, é o Oceano Atlântico o ponto de maior vulnerabilidade da América do Sul, já que a muralha andina e a imensidão do Pacífico parecem afastar hipotéticas ameaças provenientes de oeste. Na defesa do Atlântico Sul, golfão interior do mundo ocidental, chama a atenção a posição de apenas três Estados: Brasil, Argentina e África do Sul. Esta última, orientada por tradicional vocação conti- nental-interior, deixa aos dois vizinhos sul-americanos as responsabilidades oceânicas maiores. Entre- tanto, a posição relativa do Brasil é superior à da Argentina: a arcada nordestina, que se projeta ostensivamente para oriente afunilando o oceano no estreito Natal (Rio Grande do Norte) — Dacar (Senegal), proporciona uma plataforma estratégica singular. Daí, o valor geopolítico da avançada nordestina. O trajeto histórico percorrido pelo pensamento geopolítico dos militares brasileiros revela uma fixação conceituai: a vocação brasileira para potência sul-americana. Mário Travassos, autor de Projeção Continental do Brasil, formulou na década de 30 a proposta de uma manobra geopolítica de envergadura e larga duração voltada para a consolidação da hegemonia brasileira no subcontinente. Golbery retoma e desenvolve aquelas teses. A colossal cordilheira andina divide nitidamente o continente nas suas vertentes pacífica e atlântica. Entretanto, ela não é uma muralha indevassável. Penetrado por rotas de passagem acessíveis, onde as escarpas abruptas cedem lugar a vales suaves, os Andes apresentam pontos de ruptura de alto valor estratégico, denominados nudos por Travassos. As duas grandes bacias hidrográficas constituem o fundamento dinâmico da divisão geopolítica do continente. Ao norte, englobando as Guianas, a Ve- nezuela, a Colômbia, o Equador, o Peru e a Hiléia brasileira, surge a Área da Amazônia. O sul do Brasil, o Uruguai, a Argentina e quase todo o Chile estão compreendidos pela Área Platino-Patagônica. 0 enorme divisor de águas das duas bacias, encravado em posição central e elevada, determina a Área Con- tinental de Soldadura', ela abrange a Bolívia, o Paraguai e parte do Centro- Oeste brasileiro. Vértice de toda a América do Sul, a Área de Soldadura contém a heartland continental, o triângulo es- tragégico Santa Cruz-Cochabamba-Sucre. Coração sul-americano, ele magnetiza influências vitais: de Cochabamba, próxima a um nudo, recebe vibrações andinas; de Sucre, vizinha de outro nudo, apropria- se de eflúvios platinos; de Santa Cruz, na planície oriental boliviana, acolhe impressões amazônicas. Golbery conceitua a geopolítica como "uma doutrina de análise da conjuntura mundial sobre a base do interesse nacional". Nada, na geopolítica, assemelha-a com uma teoria desinteressada: ela é um guia para a ação. É apenas nessa perspectiva que se pode entender a compartimentação geopolítica da América do Sul proposta por Golbery. Entretanto, o Brasil só poderá se capacitar a projetar a sua influência sobre os centros vitais do continente a partir de um rearranjo geopolítico do seu próprio território. Na década de 50, quando foram elaborados os ensaios da Geopolítica do Brasil, de Golbery, o território nacional era apreendido como um conjunto relativamente desarticulado. Nucleadas fragilmente pelo Sudeste, onde o triângulo Rio-São Paulo-Belo Horizonte constitui o centro geopolítico efetivo do território, as "penínsulas" do Sul, Nordeste e Centro- Oeste apresentam graus diferenciados de integração. Ao norte, a "ilha amazônica", vasto deserto humano, escapa inteiramente ao controle da Àrea de Reserva Geral, o Sudeste que apenas começava a englobar o Estado de Goiás. As bacias do Prata e do Amazonas, ao penetrarem fundo em território brasileiro, originam pontos de perigosa permeabilidade externa, delicadas rupturas no tecido fronteiriço, localizadas a noroeste e a sudoeste do planalto soldador. Essas regiões distantes do ecúmeno povoado litorâneo constituem simples domínio jurídico onde "o vácuo de poder, como centro de baixas pressões, atrai de todos os quadrantes os ventos desenfreados da cobiça". Mas a permeabilidade das duas regiões é de qualidade diferente. A selva tropical e a cordilheira andina fazem da abertura de noroeste um risco longínquo. O verdadeiro perigo reside a sul e sudoeste, onde a per- meabilidade platina coincide com a presença de um centro de poder considerável: a Argentina, que arti- cuia Buenos Aires com as cidades de Córdoba, Tucu- mán e Mendoza. A linha de tensão máxima do continente situa-se aí, na cunha argentina encravada entre o Brasil e o Paraguai, na fronteira dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Toda a construção geopolítica de Golbery visa estabelecer uma estratégia de projeção rumo à hear- tland continental. Ele fixa, esboçando-as generica- mente, três etapas a percorrer na manobra geopolítica de longo prazo: Primeira etapa\ articulação sólida das penínsulas sulina e nordestina à plataforma central de manobra de Sudeste. Tamponamento, através da política de criação dos territórios federais, dos pontos fronteiriços de permeabilidade, preparando a efetiva ocupação de áreas que constituem meros domínios jurídicos; Segunda etapa\ integração à área de reserva geral de Sudeste da península Centro-Ôeste, com ocupação do planalto mato-grossense, "placa giratória supériormente situada nas cabeceiras comuns das duas grandes bacias hidrográficas"; Terceira etapa\ transbordamento em direção à ilha amazônica a partir da plataforma constituída pelo planalto central, com ocupação do vazio amazônico. Essas etapas, propostas por Golbery na década de 50, sintetizavam políticas e projetos de fundamento geopolítico que já estavam em curso. Ao mesmo tempo, antecipavam as linhas mestras de estratégias territoriais que seriam postas em marcha nas décadas seguintes. Os satélites brasileiros no Prata Na vasta área da bacia do Prata, duas linhas se negam: os rios ligam, as fronteiras separam. Os rios Paraná, Paraguai e Uruguai vertebram a bacia, que drena três milhões de quilômetros quadrados em terras argentinas, uruguaias, paraguaias, brasileiras e bolivianas. O conjunto da rede fluvial assemelha-se a um triângulo de base invertida, formada pelas nascentes dos rios principais localizadas em território brasileiro. A foz comum dos três rios, no estuário da Prata, demarca o vértice do enorme triângulo. A disposição espacial dessa rede de rios torna o porto de Buenos Aires, no estuário platino, pólo natural de atração de toda a área da bacia. Ao longo do período colonial, essa posição geográfica privilegiada conferiu à cidade de Buenos Aires um di- namismo contrastante com a economia ganadera da pampa. Paraguai, Bolívia e Uruguai vivem histórias marcadas pela fatalidade geopolítica de estarem situados na hinterlândia das duas potências platinas, o Brasil e a Argentina. O Paraguai e a Bolívia, Estados interiores, têm as suas existências determinadas pela necessidade de acessos para o mar. O Uruguai, Estado- tampão, nasce do impasse entre as pretensões territoriais brasileiras e argentinas e da intervenção inglesa no conflito platino. A decadência paraguaia inicia-se precisamente com a derrota sofrida na guerra desigual travada contra o Brasil, a Argentina e o Uruguai, entre 1865 e 1 870. Movido pelo sonho de conquista de um pulmão oceânico, Solano López lança o próspero Paraguai na empresa impossível de anexação do Mato Grosso, da mesopotâmiaargentina e do Uruguai. 0 fracasso militar da empreitada significou aruína econômica e demográfica do país, circunscrevendo toda a possibilidade de desenvolvimento futuro. A Bolívia é a síntese de uma contradição regional aparentemente insolúvel. As suas planícies tropicais do oriente, fracamente povoadas e atraídas pela Amazônia e pelo Chaco, encontram-se drasticamente isoladas do altiplano e dos vales interadinos de ocidente, voltados naturalmente para a vertente do Pacífico. Em 1884 o país viu o seu corredor para o Pacífico anexado pelo Chile, perdendo os portos de Arica e Antofagasta. Mesmo reivindicando a devolução da preciosa faixa perdida, a diplomacia boliviana foi obrigada a voltar-se para soluções alternativas, direcionadas ora para o Pacífico, ora para o Atlântico. 0 Üruguai era parte da Argentina em 1 828, quando é desmembrado e surge como Estado independente. Nasce da estratégia inglesa de dominação sobre o Atlântico Sul que presidira a anexação britânica da Colônia do Cabo, no sul da África, em 1 806 e das ilhas Malvinas em 1 832. Intervindo na Guerra Cisplatina com o objetivo de conter simultaneamente a expansão brasileira na região e a posse argentina das duas margens do Prata, a Inglaterra completa o seu tripé hegemônico sul-atlântico. Estado-tampão entre o Brasil e a Argentina, o Uruguai desenvolvería uma diplomacia pendular, fator de equilíbrio e tensão entre os vizinhos poderosos. O pensamento geopolítico brasileiro classificou, no início do século, a Bolívia e o Paraguai como "prisioneiros geopolíticos" da Argentina. Esta caracterização apoiou-se num circuito de fatos econômicos, culturais, históricos e geográficos: a colonização espanhola comum do Vice-Reinado do Prata, a disposição da rede fluvial platina sobre um eixo norte-sul polarizado por Buenos Aires e seu porto, a influência do arco urbano formado por Buenos Aires-Rosario- Córdoba-Tucamán em território argentino... A tese dos "prisioneiros geopolíticos" está na raiz da manobra estratégica de larga envergadura posta em marcha pelo Brasil na região do Prata. A Estrada de Ferro Brasil-Bolívia, o porto de Paranaguá e a rodovia BR-277, a hidrelétrica de Itaipu e o porto de Rio Grande: estas foram as peças movidas pela geopolítica brasileira no jogo de xadrez platino. Objetivo: resgatar os prisioneiros argentinos, atraindo-os para o campo magnético do Brasil. Método: a superposição de um novo eixo de orientação, de direção oeste-leste, sobre o tradicional eixo fluvial norte- sul. Militares, políticos, diplomatas, técnicos e muito dinheiro foram mobilizados, para essa campanha. A manobra estratégica montada para capturar o Prata para a influência brasileira introduz o conceito geopolítico de fronteiras vivas, em substituição à idéia de fronteiras mortas, áreas de vazios demográficos e econômicos, domínios jurídicos limítrofes passivamente defendidos por territórios federais subordinados ao poder central. Ponta-Porã é reabsorvi- do pelo estado de Mato Grosso e Iguaçu pelos estados de Santa Catarina e Paraná. Uma política exterior ativa substitui as idéias de demarcação e separação pelas noções de integração e cooperação. O Tratado de Petrópolis, firmado em 1903 por brasileiros e bolivianos, estabelecia a responsabilidade compartilhada dos dois Estados na construção de uma ferrovia que ligasse o oriente boliviano ao porto de Santos, compensação para a anexação, pelo Brasil, do Acre e dos ricos seringais que pertenceram à Bolívia. Em 1955, a inauguração do trecho Corumbá- Santa Cruz consubstanciava o antigo tratado: interligado ao sistema férreo Sorocabana-Noroeste do Brasil, ele unia os 2.550 quilômetros que medeiam Santos e Santa Cruz. As planícies tropicais do leste boliviano, isoladas do coração do país pela muralha andina, escondem no seu subsolo preciosas reservas de gás natural e petróleo. Com a Estrada de Ferro Brasil-Bolívia, essa região tende a soldar- se economicamente à vertente atlântica e ao território brasileiro, orientando- se sobre o eixo geopolítico oeste-leste. Além da maconha e da cocaína transportadas clandestinamente nos vagões do “trem da morte", passaram por seus trilhos, em 1982, mais de dois milhões de toneladas de petróleo, produtos siderúrgicos, animais, minérios e cereais. Aproxima-se a inauguração do último trecho da ferrovia, que ligará Santa Cruz e Cochabamba subindo os contrafortes escarpados da cordilheira. Com ele, o velho projeto de interligação de Santos, no Atlântico, ao porto chileno de Arica, no Pacífico, será finalmente realidade. Na perspectiva geopolítica brasileira, estará aberta uma via de acesso ao Pacífico, dissolvendo a tradicional compartimentação do continente nas suas vertentes atlântica e pacífica. É a satelização da Bolívia que explica a postura do Ita- maraty, de apoio à reivindicação de devolução do corredor para o Pacífico anexado pelo Chile no século passado. A captura do Paraguai fundamentou-se na constatação da precariedade da saída fluvial através do porto de Buenos Aires e das águas do rio Paraguai. O rio só é plenamente navegável durante três meses, na época das cheias, sendo singrado unicamente por chatas no resto do ano. Em Buenos Aires, as cargas têm de ser transferidas para navios de grande calado, onerando ainda mais o comércio já submetido às taxas portuárias argentinas. O Brasil irá fornecer um pulmão oceânico alternativo para o Paraguai. Em 1965, um convênio internacional transforma o porto de Paranaguá em área franca para as importações e exportações paraguaias. Quatro anos de- pois é inaugurada a rodovia BR-277, unindo por asfalto Assunção a Paranaguá: o trajeto fluvial de duas semanas até o porto de Buenos Aires pode ser evitado através de uma viagem de apenas vinte horas para o porto brasileiro. Em 1 971, o movimento se completa com a reforma de Paranaguá, que passa a receber navios de grande calado. Em 1984, os paraguaios finalizam a construção de dois imensos armazéns graneleiros no porto livre, capazes de abrigar toda a soja exportada pelo país e ainda excedentes de grãos brasileiros. A reorientação dos fluxos paraguaios sobre o eixo oeste-leste magnetizado pelo Brasil se combinaria com a construção da hidrelétrica de Itaipu, em Sete Quedas, na fronteira Paraná-Paraguai. Uma intensa polêmica contrapondo o Brasil à Argentina atravessou a década de 70, desde a assinatura do acordo binacional Paraguai-Brasil, em 1973, dispondo sobre a construção do aproveitamento de Itaipu. Os principais pontos de atrito loca- lizaram-se aparentemente em questões técnicas relativas à altura e ao potencial da hidrelétrica projetada de Corpus, a jusante das Sete Quedas e dependente das especificações construtivas do lago e da hidrelétrica de Itaipu. Entretanto, a moldura geopolítica da discórdia consiste na preocupação argentina com a satelização do Paraguai pelo Brasil. Os mais de dez milhões de kW de potência de Itai- pu foram divididos em partes iguais entre os dois sócios. A cota paraguaia é vendida ao Brasil, representando importante fonte de divisas para o sócio menor. A posição brasileira de maior parceiro comercial do Paraguai é reforçada e, com ela, os laços políticos estreitos que ligam o general Stroessner ao Palácio do Planalto. Nesse contexto, a expansão recente da agricultura paranaense sobre terras do oriente paraguaio, fundamento do conhecido fenômeno dos "brasiguaios", inclui-se na lógica geral da manobra de hegemonização do Paraguai pelo Brasil. No esquema geopolítico imaginado pelos estrategistas brasileiros, o Uruguai deveria se transformar de Estado-tampão em país-ponte, fugaz rota de passagem em direção ao eixo oeste-leste transversal ao decadente eixo norte-sul. O superporto de Rio Grande, implantado no ponto mais meridional da Lagoa dos Patos, constitui peça deste sistema. Terminal do corredor de exportação do Rio Grande do Sul, o superporto especializa-se no escoamento de óleos vegetais, grãos, carne e fumo, ocupando o terceiro lugar entre os portos exportadores brasileiros. A pampa uruguaia passa a ser, potencialmente, espianada de influência brasileira. Entretanto, o conjunto desse movimentoestratégico do Brasil na América do Sul insere-se no ordenamento geral dos centros vitais do hemisfério comandado pelos Estados Unidos. A participação da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra, ao lado dos Aliados, credenciou o país como sócio preferencial da nova superpotência ocidental na parte meridional do continente. A postura ambígua da Argentina no conflito mundial marginalizou- a da teia de alianças cruciais montadas durante a guerra fria. Um resultado sensível da posição ocupada pelo Brasil foi o acordo de consultas bilaterais concluído entre Brasília e o então secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, em meados da década de 70. Delegação de poderes, o acordo Brasília-Kissinger confirmava o projeto do "Brasil Grande" dos governos militares brasileiros. Brasília, a fortificação do príncipe O Distrito Federal ocupa uma área de 1 4.400 km2 situada em torno dos 15 aos 16° de latitude sul e dos 47 a 49° de longitude oeste. Esse quadrilátero foi demarcado em 1892 por uma comissão oficial dirigida pelo engenheiro Luís Cruls, passando a ser conhecido como "retângulo Cruls". Nele, o pensamento geopolítico brasileiro viu a sua heartland’. lá, o Estado geopolítico erigiu a sua capital. Há cidade-capital porque há Estado. Ela compõe, ao lado das fronteiras, o desenho dos planisférios políticos mais simples, representações do sistema de Estados que ordena a quase totalidade das terras emersas do planeta. Sede dos órgãos vitais que ver- tebram o poder político, a cidade-capital revela as singularidades do Estado que representa: as relações que esse Estado mantém com a sociedade. Apresentada pela geopolítica como foco de irradiação do progresso pelo interior despovoado, sentinela avançada e agente da integração territorial, "uma flor solitária no deserto" nas palavras de Lúcio Costa, Brasília chegou a constituir ponto de convergência e unanimidade nacionais. Nela, se encontra- ram os discursos do general Golbery, de Juscelino Kubitschek e do Partido Comunista. Mas é Maquia- vel que ilumina a alma secreta do monumento plantado no planalto central: "... o príncipe que tiver mais medo do seu povo do que dos estrangeiros deve construir fortificações, mas aquele que tiver mais temor dos estranhos do que do povo não deve preocupar-se com isso". Num contexto histórico diferente, Brasília guarda estranha semelhança com a Versalhes do século XVIII, sede do poder ilimitado dos soberanos franceses, fortaleza protegida da plebe perigosa de Paris. A anatomia estratégica da capital foi plenamente reconhecida pelos militares no poder após 1964. No governo do general Figueiredo, em duas ocasiões importantes, a cidade é submetida a medidas de emergência que visavam impedir a entrada de caravanas de manifestantes: em 1983, quando o Congresso votava o Decreto- lei n.° 2.045, que rebaixava os salários, e em 1 984, no momento em que deputados e senadores pronunciavam-se sobre a emenda Dante > de Oliveira, que restabelecia eleições presidenciais diretas. A nota governamental produzida para justificar o isolamento de Brasília, em 1 983, sintetiza as relações entre Estado e sociedade tal como vistas pela ótica da geopolítica: as barreiras montadas em torno da capital destinavam- se a impedir a entrada de "agitadores recrutados em várias regiões do país". Essa frase singela inscreve-se coerentemente em toda a trajetória histórica do discurso voltado para a transferência da capital, para a sua instalação em local distante das grandes concentrações demográficas. Essa ordem de idéias via o Rio de Janeiro, antiga capital, como centro instável, ameaçado pelas agitações sociais das grandes aglomerações humanas, pela promiscuidade da pobreza e da favela. A implantação de Brasília é um gesto estratégico emblemático. Uma manobra militar, um ato de guerra. Separa-se espacialmente o poder político da população: a política, entendida como jogo de pressões sociais, é suprimida. O conceito de política é substituído pelo de administração. A lógica soberana do Estado está livre para a instrumentalização do território. Entretanto, o plano urbanístico de Brasília, de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, ainda é geralmente tido como manifestação de proposta democrática, quando não socialista, de organização urbana. Na verdade o plano urbanístico, autocrático e absoluto, exprime a vontade de anular a história, trocando a luta de classes pelo planejamento. A matriz ideológica explícita do plano de Brasília está no racionalismo de Le Corbusier e da Carta de Atenas, documento programático que formaliza os princípios urbanísticos do Congresso Internacional da Arquitetura Moderna de 1933. Confrontados com uma sociedade em crise, dilacerada pelos confli- tos urbanos, os arquitetos visualizam-se a si próprios como técnicos neutros, superiormente situados, cujos arsenais formais seriam capazes de reinstaurar o equilíbrio social perdido: "mude-se a arquitetura e a sociedade a seguirá" (Le Corbusier). 0 arquiteto- planejador busca a autoridade do Estado para reinventar um conjunto social harmonioso — eis a equação que está na cabeça de Lúcio Costa e Oscar Nie-, meyer, os criadores de Brasília. O racionalismo teórico de Le Corbusier e da Carta de Atenas estava ancorado em práticas urbanísticas marcantes do século XIX, época em que a metropoli- zação acelerada das cidades européias exigiu intervenções radicais do Estado destinadas a reformar globalmente as velhas estruturas de origem medieval. A mais conhecida dessas reurbanizações foi a promovida pelo barão de Haussmann, prefeito da região parisiense entre 1853 e 1870. Haussmann foi o prefeito do imperador Napoleão III, elevado ao poder sobre a base do esmagamento da insurreição operária e popular de 1848. 0 projeto de reurbanização do barão, apoiado em idéias do próprio imperador, tinha por finalidade prevenir a possibilidade do erguimento de barricadas, protegendo o primeiro mandatário contra novos levantes da plebe. Simultaneamente, era necessário abrir espaços para fluxos de transportes intensos e bloquear a disseminação de moléstias e epidemias que assolavam a cidade numa época de rápido incremento demográfico. Esses objetivos encontraram contrapartida nas concepções estéticas daquele período, impregnadas pelo cientificismo positivista, pelas idéias de modernidade e de progresso. 0 intrincado traçado das ruelas centrais de Paris cede lugar a amplas avenidas e largas perspectivas retilíneas. A lie de Ia Cité, no coração da cidade, é inteiramente revolucionada: a sua transformação em local de órgãos públicos militares e administrativos acarreta a transferência da população pobre e uma drástica redução na densidade demográfica daqueles quarteirões. Em Haussmann, ideologia, estética e controle geopolítico do espaço fundiram-se de maneira exemplar. Os arranjos do aglomerado urbano que ele colocou em prática repercutiram em cidades como Marselha, Bruxelas e mesmo na Roma de Mussolini. Brasília encontra sua originalidade no fato de se constituir numa aplicação dos princípios de Le Cor- busier e das práticas do barão de Haussmann sobre um sítio intocado: no retângulo Cruls não existia nada de humano a ser reformado. 0 resultado lógico foi a criação de um objeto geopolítico. Um texto oficial da SEPLAN/GDF, destinado a justificar o financiamento permanente de Brasília por recursos externos, assim caracteriza a capital: "... um marco nacional permanente, algo assemeIhável... ao Hino ou à Bandeira ... Esta seria sua principal função: representaria o país para si mesmo; em troca, seria sustentada por ele". A largura dos espaços, a geometria inflexível e a monumentalidade das construções conferem à cidade a aura de capital. A capital de um Estado que enxerga a função política como ente inatingível, algo a ser passivamente admirado por habitantes privados da cidadania. A opção por um sistema de circulação que rejeita o labirinto de ruas típico da cidade tradicional e o substitui por vias expressas e passagens de nível não significa unicamente a supressão do pedestre.Significa a supressão do encontro, da multidão e do inesperado. A mesma lógica preside o rígido zoneamento funcional que segrega áreas discretas, residenciais;^ comerciais, hoteleiras, diplomáticas e políticas. Instaura-se o reino da ordem e da identidade, o ambiente propício a um controle policial máximo. 0 plano original de Brasília previa uma cidade de iguais. Ao longo dos anos, um rigoroso controle burocrático e policial zelou pela preservação do plano. Com sucesso: os diferentes foram excluídos do plano piloto e exilados nas cidades-satélites, as aglo- merações-dormitórios dos trabalhadores menos qualificados do plano-piloto. O modelo centro-periferia característico das metrópoles brasileiras e latino- americanas reproduz-se em Brasília de maneira radical. Lá, o plano não extirpou a pobreza, mas a despachou para locais "invisíveis". O contraste entre as condições de vida dos quatrocentos mil habitantes do Plano-Piloto e aquelas do milhão e cem mil habitantes das cidades-satélites levou Francisco de Oliveira a ver em Brasília "a única cidade medieval do Brasil", santuário cercado pela muralha do plano urbanístico. CENÁRIOS DE GUERRA 0 planisfério, encarado geopoliticamente, é mais que a justaposição de Estados soberanos delimitados por suas fronteiras territoriais. Hoje, dois sistemas principais de alianças político-militares, de natureza supranacional, organizam em blocos antagônicos os mais importantes Estados. Na periferia da área que elas delimitam, uma multiplicidade de Estados estabelece graus variados de ligação com cada um dos blocos. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi instituída em 1 949 e agrupa os Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha, França, Alemanha Ocidental, Itália, Dinamarca, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Noruega, Islândia, Espanha, Portugal, Grécia e Turquia. O Pacto de Varsóvia (Tratado de Assistência Mútua da Europa Oriental) foi criado em 1955, reunindo a União Soviética, Alemanha, Hungria, Polônia, Tchecoslováquia, Romênia e Bulgária. Os tratados de Yalta (na Criméia soviética) e Pots- dam (na Alemanha ocupada), que encerraram as hostilidades da Segunda Guerra, estão na origem da constituição dos dois blocos, comandados pelas superpotências do pós-guerra. O status quo mundial que emergiu daqueles acordos constitui ainda hoje o terreno comum sobre o qual se desenrolam as relações EUA- URSS. Inimigos-irmãos, os dois cooperam conflituosamente: a manutenção das respectivas esferas de influência é vital tanto para Washington como para Moscou. Assimétricas, as duas alianças fundamentam-se em realidades sócio- econômicas distintas. A maioria dos aliados europeus dos Estados Unidos está reagrupada na Comunidade Econômica Européia (CEE), que exclui os EUA. Já os integrantes da aliança pró- soviética organizam-se no Conselho para Assistência Econômica Mútua (COMECON), sediado em Moscou: assemelham-se mais a satélites que a aliados da URSS. Mas as duas alianças aproximam-se através da fórmula comum que expressa seu objetivo: qualquer iniciativa bélica contra um de seus integrantes será considerado um ataque contra todos. Essa fórmula faz da Europa o principal cenário geo- político mundial. As relações entre Estados são, sempre, relações de guerra. "Quente” ou "fria”, declarada ou latente, armada ou diplomática — a guerra nas suas diferentes fantasias contitui a dimensão essencial do sistema de Estados. A geopolítica é o instrumento intelectual da guerra. Entretanto, as relações sociais internas aos Estados são também relações de guerra. Corporificação do poder, o Estado sobrevive da guerra interna permanente que move contra os grupos sociais dominados. Na África do Sul, esta guerra interna cristaliza- se na forma de um projeto geopolítico único e, por isso, exemplar. Confrontado com a maioria negra africana, o Estado surge, na África do Sul, como aparato totalmente exterior à sociedade nacional. Em nome do poder do colonizador europeu, ele articula a geopolítica interna à geopolítica externa numa manobra estratégica voltada contra o inimigo simultaneamente interno e externo: a população negra da África Austral. Europa 0 significado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e do Pacto de Varsóvia só pode ser compreendido à luz de uma investigação concreta das estratégias postas em marcha pelas superpotências na era termonuclear. À primeira vista, esses sistemas de alianças de base territorial apresentam- se como anacrônicos no momento em que mísseis balísticos transportando ogivas nucleares são capazes de atravessar os oceanos em minutos. Nessas condições, qual pode ser a eficácia do acantonamento de tropas equipadas com armamento convencional nas fronteiras das zonas de influência das superpotências? Vale a pena perder tempo com alianças que coligam os Estados Unidos à Espanha ou à Itália e a União Soviética à Bulgária ou à Tchecoslováquia? Como entender essas concepções do passado diante da guerra tecnológica futurista? Em primeiro lugar, a OTAN e o Pacto de Varsóvia cumprem uma função regularizadora ligada à política interna dos Estados que integram esses sistemas de alianças. A teia de compromissos internacionais inscritos na lógica dessas alianças circunscreve numa moldura mais ou menos rígida a política interna das sociedades envolvidas. Ela plasma duradouramente o caráter do Estado, conferindo certa autonomia à sua diplomacia, que passa a depender cada vez menos das conjunturas cambiantes decorrentes da competição eleitoral dos partidos, dos conflitos entre elites dirigentes, etc. O Partido Socialista Operário Espanhol, antigo defensor da retirada do país da OTAN, é exemplo desse fenômeno: tendo alcançado o governo, muda radicalmente de posição e consegue garantira permanência do país na aliança atlântica no referendum do início de 1986. Mas as duas alianças são peças indispensáveis da política mundial das superpotências. Estados Unidos e União Soviética movem-se no terreno do chamado equilíbrio do terror, alcançado quando cada um deles adquiriu a capacidade de reagir devastadoramente a um hipotético primeiro ataque nuclear do inimigo. A essa capacidade denomina-se "poder de dissuasão nuclear". O filósofo político francês Raymond Aron expressou o dilema inscrito no equilíbrio do terror: "É como se depois de Hi- roshima e Nagasaki a humanidade tivesse jurado só usar armas do passado, limitando-se a estocar as armas do futuro". Já o ex-premier da China, Chou-En- Lai, previu, com fina ironia oriental, que do holocausto nuclear sobreviveríam poucos milhões de britânicos, dezenas de milhões de russos e americanos e centenas de milhões de chineses. 0 equilíbrio do terror se fundamenta precisamente na idéia de dissuasão, na idéia de que o outro não atacará, pois a represália, devastadora, representaria o aniquilamento mútuo. Entretanto, como convencer o outro de que essa represália suicida virá ainda que o ataque vise o território de um aliado europeu? É aí que entram a OTAN e o Pacto de Varsóvia. Estas alianças delimitam espaços proibidos no mundo, segregando aqueles aliados especiais que juro defender como se fossem eu mesmo. Elas simbolizam essa decisão, que deve parecer cristalina, de retaliar nuclearmente em resposta a um ataque dirigido ao território de um aliado. Elas metaforizam um engajamento solene e desmedido, suicida, apaixonado. Não duvide. Até o início dos anos 60, a estratégia oficial da OTAN consistia na doutrina da mútua destruição assegurada: em resposta a qualquer iniciativa bélica soviética no Ocidente europeu seriam disparados sobre território da URSS os mísseis balísticos intercontinentais sediados nos EUA. A doutrina vigente congelava toda a discussão tática, na medida em que os aliados europeus eram vistos geopoliticamen- te como uma continuidade do próprio território norte-americano. O ex-presidente John Kennedy empreende uma reviravolta estratégica ao abandonar a doutrina tradicional por uma nova: a concepção da resposta flexível. O Pentágono norte-americano passa a visualizar uma escala graduada derepresálias, adaptadas a diferentes envergaduras de ações bélicas soviéticas. O uso de armamento convencional, de armas nucleares táticas (de pequeno alcance e grande precisão) e de mísseis de médio alcance aparecem com etapas prévias ao holocausto total. A nova estratégia, objetivando retardar ao máximo o lançamento dos mísseis intercontinentais, trazia implícita a idéia de que o procedimento soviético se revelaria simétrico. Uma série de fatores contribuiu para essa reviravolta. A par da consolidação econômica da comunidade européia, cresciam os sentimentos isolacionis- tas nos Estados Unidos. Na prática, a aliança atlântica começava a patentear um dualismo interno entre seu componente americano (os EUA e o Canadá) e seu componente europeu (os aliados da Europa Ocidental). De Washington, a Europa passa a ser vista como teatro potencial de um confronto limitado, um possível objeto de sacrifício no altar da segurança das superpotências. No lado soviético, concepções idênticas pareciam prosperar. Moscou começava a substituir os antigos mísseis SS-4 e SS-5 pelos modernos SS-2O. Os SS- 4 e SS-5, armas arrasa-cidades, dispunham de grande potência mas precisão sofrível: seu impacto vitri- ficaria um raio de dezenas de quilômetros. Os SS-20, extremamente precisos mas muito menos poderosos, capazes de atingir exclusivamente alvos militares, abriam tecnicamente a possibilidade de conflitos nucleares localizados. Decorrência lógica da bipartição da aliança atlântica, os europeus ocidentais passam a orientar-se no sentido da criação de arsenais nucleares sediados no território continental. Ingleses e franceses reforçam seus dispositivos nucleares nacionais: essas forças deixam de ser encaradas como simples instrumento de prestígio no interior da OTAN, enquadrando-se na lógica de conflitos localizados no teatro europeu. A República Federal da Alemanha, proibida pelos tratados de paz de 1 945 de dispor de equipamento bélico ofensivo, é levada a adotar outra postura. Em 1977, o chanceler Helmut Schmidt reivindica ã instalação de mísseis norte-americanos de médio alcance em território europeu. Desafiando fortes movimentos pacifistas, são instalados cento e oito mísseis Pershing II na Alemanha Ocidental, apontados contra alvos soviéticos. Ainda na ótica de compor um arsenal nuclear europeu que rivalize com os SS- 20, os EUA instalam cento e vinte e oito mísseis Cruise (foguetes de trajetória rasante e vôo lento, capazes de enganar os sistemas de radar) na Grã- Bretanha, Bélgica, Holanda e Itália. As novas concepções estratégicas, materializadas nos arsenais de armas táticas e de médio alcance (euromisseis) implantadas dos dois lados do conti- nente, recuperam a Europa como espaço geopolítico dinâmico. Conferindo relativa autonomia militar ao território europeu, elas "recriam" a Europa como realidade geopolítica. Os holofotes da geopolítica projetam uma luz extraordinariamente intensa sobre as áreas de contato e passagem situadas entre os blocos inimigos. Renova-se o interesse pela Alemanha dividida e pela península balcânica. * * * A área de contato alemã atravessou três fases distintas, desde a capitulação do III Reich. Dos tratados de Yalta (fevereiro de 1 945) e Pots- dam (julho de 1945) ao ano de 1949, a Alemanha corporifica a rápida transição rumo à guerra fria. Em Yalta e Potsdam foram detalhados os acordos firmados pelos Três Grandes nas conferências de Londres do ano anterior. A Alemanha é partilhada em três zonas de ocupação (soviética, norte-americana e britânica). Berlim, situada na zona soviética, recebe estatuto especial: na condição de capital e símbolo, é também dividida em três setores. Em agosto de 1945, a França é admitida como a quarta potência ocupante e recebe uma zona do país e um setor da capital. Acima das administrações das potências ocupantes, é criado um Conselho de Controle Intera- liado para o conjunto do território alemão e uma Kommandatura, a ele subordinada, encarregada da Grande Berlim. Sob essa muldura provisória, desenvolvem-se as divergências entre os ocupantes. A URSS pretende manter a Alemanha unida, mas socialmente transformada: na sua zona promove uma reforma agrária, a nacionalização das grandes empresas e a constituição de partidos políticos e administração alemães. A França quer o completo desmembramento do país nas suas zonas de ocupação. Os EUA projetam inicialmente desindustrializar brutalmente o país (Plano Morgenthau), mas logo voltam-se para programas de natureza oposta, visando a recuperação da economia capitalista através dos créditos GARIOA e dos créditos ERP (Plano Marshall). É esta última orientação que irá prevalecer, e que culminará na criação dos dois Estados. Em junho de 1948 uma reforma monetária cria o Deutsche Mark a moeda da zona ocidental. Em resposta, é criado o marco oriental. Procurando reverter a iniciativa americana, Moscou promove o bloqueio de Berlim Ocidental, entre junho de 1 948 e maio de 1 949. Uma ponte aérea gigantesca montada por Washington resiste ao bloqueio: Berlim Ocidental torna-se símbolo ideológico da Europa anti-sovifica. Em maio de 1 949 é constituída a República Federal da Alemanha e, em outubro do mesmo ano, a República Democrática Alemã. Durante mais de vinte anos os dois Estados recusam o reconhecimento diplomático mútuo, e os sinais do conflito latente se acumulam. A RFA ingres- sa na OTAN e a RDA no Pacto de Varsóvia. Em 1961 é erguido, em torno do setor ocidental, o muro de Berlim, cristalização do estado de beligerância. Apenas a vigência da doutrina de mútua destruição assegurada viabiliza o estatuto de guerra não-declarada, no qual se equilibra de forma instável essa área de contato entre os blocos. No início da década de 70 se encerra esta segunda fase, com a ratificação, em dezembro de 1972, do acordo de reconhecimento mútuo entre os dois Estados e o conseqüente ingresso de ambos na ONU. Um acordo firmado no ano anterior entre os quatro ocupantes possibilitou a formalização do novo estatuto. Extremamente ambíguo, o acordo de 1971 prevê a permanência de tropas dos dois lados na Alemanha e em Berlim, reconhece Berlim Leste como capital da RDA, proclama Berlim Oeste como entidade política à parte (não-integrante da RFA) mas admite a extensão de todos os tratados internacionais da RFA a Berlim Oeste. Esse inacreditável contorcionismo jurídico-diplo- mático enquadra a área alemã de contato na moldura política da détente (política de distenção e abrandamento das relações diplomáticas Leste-Oeste) entre os blocos. Os dirigentes do Partido Social-Democrata da RFA expressam o processo que está em marcha ao conceberem e aplicarem a Ostpolitik (política de reaproximação econômica e cultural entre os dois Estados alemães). O volume de comércio, o número de viagens, as chamadas telefônicas entre os dois Estados evoluem velozmente durante a década de 70. Amparados por uma análise superficial, alguns observadores tendem a ver na instalação dos SS-20 na RDA e dos Pershing II na RFA uma nova virada em direção à retomada da guerra fria. Paradoxalmente, a realidade é o oposto disso: são precisamente as concepções ligadas à doutrina da resposta flexível, responsáveis pela instalação dos mísseis táticos, que fundamentam a détente e a Ostpolitik. Não é casual que tenha partido de Helmut Schmidt, um dos for- muladores da Ostpolitik, a proposta de instalação dos Pershing II. Contrapartida necessária da reapari- ção da Europa como espaço geopolítico dinâmico, o reconhecimento mútuo dos Estados alemães estabiliza a fronteira alemã de contato. * * * Ao contrário da Alemanha, área de contato "fechada" com a estabilização iniciada em 1971- 1972, os Bálcãs representam uma área geopolítica de contato "aberta". Quebra-cabeças de pequenos Estados, os Bálcãs designam uma realidade multifacetária: participam da tradição histórico-cultural européia, aproximam- se do mundo subdesenvolvido por certas estruturas econômicas, recebem influências muçulmanas através da janela turca para o oriente. Massa peninsular delicadamenteesculpida pelo mar e emoldurada pela montanha, a região é rasgada de noroeste a sudeste pelos vales e planícies da bacia do Danúbio: rompendo os bloqueios escarpados, desenha-se com nitidez um largo corredor que liga a Iugoslávia à Hungria, Romênia e Bulgária. Limitado pelos mares Adriático, Egeu e Negro, o conjunto é, simultaneamente, passagem européia para o Oriente Próximo e passagem soviética para o Mediterrâneo. Dos seis Estados balcânicos, quatro são entidades políticas recentes. Bulgária, Romênia, Iugoslávia e Albânia originaram-se no período que vai da virada do século à Segunda Guerra, em virtude da decomposição sucessiva dos impérios Turco e Áustro-Hún- garo, sob o impacto combinado da ação das potências européias e dos nacionalismos locais. Esse movimento de destruição e reconstrução de fronteiras resultou na sobrevivência de uma multiplicidade de minorias nacionais incrustadas nas atuais entidades políticas. As reivindicações dessas minorias, refrata- das pela disputa Leste- Oeste, constituem matrizes e pretextos de novos conflitos. A instabilidade da área de contato balcânica pode ser vislumbrada pela mera constatação dos engajamentos e neutralidades presentes. Grécia e Turquia integram a OTAN; o Pacto de Varsóvia está representado pela Bulgária e pela Romênia; Iugoslávia e Albânia praticam diferentes estilos de neutralismo. Mas esta enumeração mascara aquilo que está na raiz da intrincada geopolítica da região: lá, amigos parecem inimigos e inimigos parecem amigos. Os neutralismos iugoslavo e albanês desenvolve- ram-se sobre trajetórias opostas. A Iugoslávia de Tito cinde com a URSS de Stalin ainda em 1 948; a Albânia cinde em 61 com URSS de Kruschev precisamente porque esta última cindia com a tradição stalinista. Desde 1950, as relações iugoslavo-alba- nesas estavam rompidas. A Albânia seguiu uma trajetória de progressivo isolamento. A cooperação com a China deteriora-se rapidamente após a morte de Mao, até o rompimento final de 1978. Os comunistas albaneses denunciam a conspiração mundial dos imperialismos norte- americano, soviético e chinês, assim como o "revi- I sionismo” iugoslavo e o capitalismo europeu. Atrita- da periodicamente com a Iugoslávia em função do estatuto da província iugoslava de Kossovo, habitada por uma minoria nacional albanesa, Tirana manteve-se apartada também do movimento dos não-ali- nhados. A Iugoslávia, ao contrário, fez do neutralismo uma ponte para o mundo. Flexível, recebeu ajuda norte- americana durante o bloqueio comercial imposto pelos soviéticos e seus satélites. Após a morte de Stalin, passa a ter também ajuda soviética. Engenhosamente, combina a sua condição de observadora no COMECON com a de parceiro privilegiado da CEE. Com a índia e o Egito, a Iugoslávia articula a formação do movimento dos não- alinhados: a primeira conferência dessa corrente, instalada em Belgrado (1961), simboliza a destacada influência iugoslava no seu interior. A Albânia, minúscula e sectária, tem na inimiga Iugoslávia um escudo contra o hegemonismo soviético. 0 paradoxo explica-se: qualquer atentado à au- tonomia albanesa pecará por mortal irracionalidade enquanto se mantiver a autonomia iugoslava, muito mais nociva ao monolitismo de Moscou. Para os soviéticos, a supressão da independência de Belgrado significaria mais que a eliminação de um perigoso precedente ideológico no Leste: representaria a abertura de uma passagem do Pacto de Varsóvia para o Mediterrâneo ao mesmo tempo que a introdução de uma cunha no flanco sul da OTAN. Estrategicamente, a posição iugoslava apresenta duas debilidades. O corredor danubiano aberto para a Hungria e a Bulgária, fiéis peões do Pacto de Var- sórvia, é um problema de ordem militar. 0 seu caráter de Estado multinacional, espaço de convivência de povos distintos, é um problema de ordem política. Diferentes conceitos defensivos foram postos em andamento. Conceito diplomático-, a rede de relações tecida com os não-alinhados; conceito político-insti- tucional: a montagem de um Estado federal com larga autonomia das nacionalidades; conceito militar: a criação de um sistema de defesa popular de base guerrilheira ao lado das tropas regulares. Mas a rebeldia de Belgrado não é a única dor de cabeça balcânica da URSS. Mesmo nas fileiras do Pacto de Varsóvia há sinais de impertinência: a Romê- nia situa-se a meio caminho entre o neutralismo radical da Iugoslávia e a canina fidelidade da Bulgária. Em 1977, o regime de Bucareste anuncia a adoção de uma política independente no interior do bloco. Recusa em aumentar os gastos do país com a defesa, crítica à invasão do Afeganistão pelos soviéticos e assinatura de acordo de cooperação econômica com a CEE foram sinais da materialidade daquelas declarações. Depois de 1 980, agitada pelos acontecimentos poloneses ligados ao sindicato Solidariedade, a sociedade romena empurra o regime para posições sempre mais autônomas. Toda a situação regional seria atraente para o bloco norte-americano caso os membros balcânicos da OTAN não fossem a Grécia e a Turquia. Entre os dois, desenvolve-se desde 1974 uma situação pré- bélica inédita na aliança atlântica. O vértice do conflito situa-se na ilha de Chipre, pequena república independente povoada por gregos e turcos. A Grécia projeta anexá-la, enquanto a Turquia quer a independência da porção norte, habitada pela minoria turca. Em 1974, a divergência cipriota evoluiu para efêmera confrontação armada. Negando-se a sustentar qualquer dos contendores, a OTAN desagradou igualmente a ambos. Em conseqüência, a Grécia se retirou da aliança, à qual retornou em 1 980. Estrategicamente, a Turquia apresenta maior valor que a Grécia. Desde a Conferência de Montreaux, de 1936, ela tornou-se a guardiã dos Estreitos de Bós- foro e Dardanelos, apertadas passagens entre o Mediterrâneo e o Mar Negro. Legalmente habilitada a fechar os estreitos para naves militares, a Turquia controla importante via de acesso da marinha soviética às águas quentes do Mediterrâneo e Atlântico. As bases navais norte-americanas que abriga representam peças-chave do dispositivo da OTAN no Mediterrâneo. Diversamente da Grécia, a instabilidade do engajamento turco radica em fatores estruturais complexos. Suas instituições sociais e religiosas, seu arcaísmo econômico, suas tradições culturais seculares: tudo parece distanciar a Turquia da Europa Ocidental. 0 antigo projeto de integração na CEE, de natureza problemática, foi completamente congelado a partir de 1981, em função da repressão política interna. Simultaneamente européia e asiática pela posição do seu território, a Turquia parece tentada a definir-se mais como parte do Oriente Próximo muçulmano que como integrante exótico da Europa atlântico-medi- terrânea. Afastada da Europa, ela pratica uma diplomacia desconcertante: desde 1 964 troca visitas oficiais com Moscou, aprofunda laços com o governo Reagan e tece relações com os vizinhos árabes e com os não-alinhados. Aparentemente, a détente iniciada na década de 70 tem conseqüências opostas para as duas áreas geopolíticas de contato na Europa. Na Alemanha,.ela resulta em estabilização e simplificação; nos Bálcãs, em potencialização da instabilidade tradicional. Ampliados os espaços de manobras táticas, a península acentua o seu caráter de região de concorrência entre as superpotências. A conjuntura regional torna- se ainda mais fluida e dinâmica: lá, todo o prognóstico não passa de profecia. África do Sul A presença européia na África do Sul data de 1652, quando chegaram os primeiros colonos holandeses (os bôers, termo que significa agricultores), fundadores da Colônia do Cabo. Em 1814, consequência das guerras napoleônicas, a Inglaterra ganha a posse da colônia. Tangidos do litoral pela ocupação inglesa, os bôers empreendem a Great Treck (Grande Viagem), em direção às terras interiores do Orange e do Transvaal. Na sociedade ferrea- mente religiosa que implantaram nesses territórios encontramos as origens remotas do apartheicT. a justificação do impiedoso domínio sobre as tribos
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