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NIETZSCHE:
0 Só c rates d e N ossos Tem po s
Mario Vieira de Mello
N.Cham. 1(430) M527n 
Autor: Mello, Mario Vieira de.
Título: Nietzsche : o Socrates de nosso
Ex. 1 UFSC BC SIRIUS
|edusP
ISBN 8 5 - 3 1 4 - 0 0 7 6 - 7
Nietzsche: 0 Sócrates de Nossos Tempos é 
um liví o provocador desde o título. Acom­
panhando a biografia e percorrendo as 
obras de Nietzsche, Mario Vieira de Mello 
nos mostra como este filósofo dionisíaco 
tem, para o século XX, um valor análogo 
ao que Sócrates - alvo de ruidosas críticas 
de 0 Nascimento da Tragédia - tinha para a 
Antiguidade grega. Através da repercussão 
de seus livros e das inúmeras inte.rpreta- 
ções feitas por pensadores como Karljas- 
pers, Heidegger ou Bergson, o autor nos 
conduz pelas múltiplas perspectivas filosó­
ficas apontadas pelo autor do Zaratustra.
N ietzsc h e : 
0 Sócrates de N ossos Tempos
ESP
Reitor
Vice-reitor
|edusP
Presidente 
Diretor Editorial 
Editor-assistente
Comissão Editorial
Roberto Ixal Lobo e Silva Filho 
Ruy Lauienti
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÀO PAULO
João Alexandre Barbosa 
Plinio Martins Filho 
Manuel da Costa Pinto
Joào Alexandre Barbosa (Presidente) 
Celso Lafer 
José E. Mindlin 
Oswaldo Paulo Forattini 
Djalina Mirabelli Redondo
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NIETZSCHE:
0 Só c rates d e N ossos Tem pos
Mario Vieira de Mello
r
Copyright © 1993 by Mario Vieira de Mello 
Foi feito o depósito legal
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Mello, Mario Vieira de.
Nietzsche : O Sócrates de Nossos Tempos / Mario Vieira de 
Mello. - São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 1993. - 
(Campi ; 12)
Inclui índice onom ástico.
ISBN: 85-314-0076-7
1. Filosofia alemã 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 
3. Niilismo (Filosofia) I. Título. II. Série.
92-1838
índices para catálogo sistemático:
1. Alemanha : Filosofia 193
2. Filosofia alemã 193
3. Filósofos alemães : Biografia e obra 193
CDD-193
fl <J CO / 7- ã A j
Tipo de AquUiçflo 
Adquirido de /F a f / / - U fS / 
Data Aquisição $ / ? } / 3 ^ 
Preço_ ______________________
BU/DPT
0 . 2 7 4 . 0 0 2 - 9
c t n v . Ç
> Ç »tr- c? ^ <?#
Direitos reservados à
Edusp - Editora da Universidade de São Paulo 
Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 
6® andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária 
05508-900 - São Paulo - SP - Brasil Fax (011) 211-6988 
Tel. (011) 813-8837 / 813-3222 r.4156,4160
iO -ßo)
'H
Printed in Brazil 1993
A memória de Octávio de Faria, 
amigo de juventude, 
dedico com gratidão este livro.
Sócrates, Sócrates, Sócrates! Sim, queremos invocar teu 
nome três vezes, não seria demais invocá-lo dez vezes, se 
de um tal apelo fosse possível recolher algum proveito. E 
geral a crença de que o mundo precisa de uma república, 
de uma nova ordem social e de uma nova religião, mas 
ninguém pensa que é de um Sócrates que mais precisa o 
mundo agora, perplexo como está no meio de tantas 
noções contraditórias.
K ie r k e g a a r d
SUMÁRIO
Apresentação ......................................................................................... 13
Prefácio...................................................................................................... 19
1. Reações, Comentários e C r ít ic a s .................................................... 21
2. A Influência da Obra sobre a V id a .............................................. 47
3. A Unidade das Virtudes e a Coragem E sp iritua l...................... 73
4. A Comunicação Indireta, as Interpretações e as Máscaras . . . 97
5. A Crítica da D ecadência.....................................................................143
6. O N iilism o............................................................................................. 165
7. A Medicina e a É t ic a ...........................................................................189
8. O Destino Trágico - As Alternativas...............................................209
9. Nietzsche e Sua D o e n ç a ................................................. 229
índice Onomástico....................................................................................247
O leitor deste belo livro, escrito com severa paixão filosófica, se 
sente espicaçado desde o título, pois todos sabem que Nietzsche atacou 
Sócrates com veemência: mas Mario Vieira de Mello constrói o seu 
argumento sobre a idéia de uma antologia essencial da função de ambos. 
A este aparente paradoxo seguem outros, como a sugestiva afirmação 
que em Nietzsche a obra condiciona a vida, ou a convicção de que os 
seus escritos finais não sofreram o peso da loucura nascente, pois são 
conseqüência lógica da sua posição mental; de tal modo que a mensa­
gem suprema do Ecce Homo equivale à Apologia de Sócrates.
Mario Vieira de Mello está interessado no problema da construção 
do homem como ser livre, e sob este aspecto Nietzsche lhe parece um 
educador incomparável, como Sócrates, ambos intemeratos, destinados 
ao sacrifício, sujeitos à opinião deformadora. Longe de simplificar, ele 
desdobra ante o leitor a opulenta complexidade do filósofo alemão, num 
relato onde vida e obra se fundem. Para isso, estabelece entre outras 
coisas nexos comparativos com outros pensadores, outros contextos 
culturais e diversos intérpretes, além de mostrar as oscilações criadoras 
do seu pensamento. E por todo o livro sentimos os traços fundamentais 
do pensador austero que é Mario Vieira de Mello: a sinceridade que faz
da escrita um movimento colado ao raciocínio e a coragem mental, que 
o torna adequado para falar de Nietzsche, com o qual possui em comum 
a sobranceria das idéias, a maneira pessoal de expô-las e a soberana 
indiferença pelas modas do momento.
A n t o n io C â n d id o
12 MARIO VIEIRA DE MELLO
APRESENTAÇAO
Pediu-me Mario Vieira de Mello que escrevesse, para apresentar 
este livro, um texto evocativo do cenário em que se movimentava a 
mocidade universitária no início dos anos trinta, mais precisamente em 
1930, e a influência que exerceria sobre a formação cultural de todo um 
grupo de jovens que então ingressava na Faculdade de Direito do 
Catete, a singular agremiação que ali atuou por mais de uma década: o 
CAJU (Centro Acadêmico Jurídico Universitário).
Quando estava a alinhavar este texto, alguém me perguntou, vendo 
o título da obra: “Você também é especialista em Nietzsche?” Ao que 
respondi: “Não, sou especialista em Mario...”
Na verdade, há mais de cinco décadas lido de perto com Mario 
Vieira de Mello, hoje a mais antiga de minhas amizades, contemporâ­
neos que fomos ainda nos anos vinte no Colégio Santo Inácio. Voltaría­
mos a nos encontrar, desta vez defmitivamente e em estreito contato, 
em 1930, sob o signo do CAJU, onde pontificava um grupo seleto de 
quartanistas e bacharelandos da faculdade, futuras personalidades des­
tacadas da vida literária, política e acadêmica do Rio de Janeiro, como 
Américo Lacombe, Antônio Gallotti, Gilson Amado, Thiers Martins 
Moreira, Plínio Doyle, Chermont de Miranda, Hélio Viana, Clóvis P. da
Rocha, e entre os quais surgiam duas incontestáveis lideranças: Octávio 
de Faria e San Tiago Dantas.
Essa agremiação, estranhamente até hoje - quiçá felizmente - , não 
tendo sido objeto de dissertação de mestrado, em plena atividade 
durante, creio, pelo menos uma década, era uma verdadeira academia 
de jovens, de total seriedade, cuja membership era conquistada median­
te apresentação e aprovação, por comissão especialmente designada, de 
uma tese original sobre temas relativos às áreas de interesse do centro: 
ciências jurídicas em geral, história, literatura, filosofia, ciências sociais.
A estimulante atuação desse grupo de jovens estudiosos e sua 
influência sobre as novas gerações que chegavam à faculdade revelam 
hoje, para nós, o espírito humanista que há meio século ainda impreg­
nava nosso processo educacional, até ali não afetado pelos efeitos da 
massificação que fatalmente se lheimporia na era desenvolvimentista. 
Voltadas para metas essencialmente funcionais, a educação superior e 
a pós-graduação dirigiam seus alvos de excelência para as áreas cientí­
ficas e tecnológicas, e, progressivamente, a corrida para tais carreiras 
como que ofuscou e esvaziou as áreas dos estudos clássicos, retirando 
de nossa formação universitária todo o componente humanístico que a 
deve permear, como a própria expressão e essência da cultura.
Nesse meu reencontro com Mario, eu já no quinto ano de medicina 
e ele ingressando em direito, diluía-se a diferença de dois ou três anos 
de idade que no colégio nos distanciava.
Eu então já convivia com o grupo do CAJU, trazido por Octávio, 
ao qual me ligava a recente aventura do Chaplin Club, bela aventura de 
quatro rapazolas de dezesseis a dezenove anos, empenhados em impor 
o cinema como arte autônoma, com identidade própria, a sétima arte, à 
intelligentsia brasileira.
Por interesses comuns, passariam também a conviver com o grupo 
do CAJU meus colegas de medicina Vieira Pinto e Tito Leme Lopes, 
inesquecíveis amigos, e Carlos Chagas Filho. Na geração que entrara 
para a Faculdade do Catete em 1930 também estavam, além de Mario, 
caros amigos que já nos deixaram: Vinícius de Morais, que no ano 
seguinte publicaria O Caminho para a Distância, seu primeiro livro de 
poesia, José Artur Frota Moreira, que mais tarde faria marcante carrei­
ra política, Augusto de Rezende Rocha, Álvaro Penafiel, futuro autor 
de Grupo e Espírito. Lembro-me bem das defesas de tese de Augusto 
sobre Wilde e de Mario sobre Nietzsche e, anos antes, a de Octávio, A 
Desordem do Mundo Moderno.
1 / MARIO VIEIRA DE MELLO
Poderíamos dizer, numa oportuna retrospectiva, que as atividades 
do CAJU refletiam os interesses, a visão do mundo e do Brasil e os 
projetos de vida da mocidade de cinquenta anos atrás; muitos voltados, 
como também os de hoje, para a música, os esportes, a vida social, mas 
sempre polarizados em torno de valores culturais que o traço humanís- 
tico, ainda patente em sua formação educacional, os estimulava a incor­
porar.
Mario, ao ingressar na faculdade, já se iniciara em Nietzsche e teve 
em Octávio, cultor fervoroso do filósofo, um precioso orientador. Mas, 
pouco conhecido ainda entre os colegas, causou um certo impacto ao 
candidatar-se ao CAJU. Aquele atletão, queimado de sol, o “Mario- 
asa” de Copacabana, apresentar-se com uma tese sobre Nietzsche, 
trabalho de maturidade incomum entre os iniciantes!
Cabe aqui uma referência espeGial a Octávio de Faria, a cuja 
memória Mario dedica este livro. Octávio, um pouco mais velho que 
todos nós, pertencia a uma família de escritores: o pai, Alberto de Faria, 
e seus cunhados, Afrânio Peixoto e Alceu Amoroso Lima.
Fora criado num ambiente literário e de alto nível social. Contava- 
nos as recepções na casa de veraneio da família em Petrópolis, onde, 
ainda rapazinho, ouvia Claudel recitar... Tinha assinatura da NRF e se 
correspondia com livrarias e editoras francesas. E todas as suas luzes 
nos transmitia generosamente. Quanto lhe devemos em nossa formação 
literária! Já tínhamos, antes de conhecê-lo (naquele tempo saía-se do 
colégio lendo corretamente o francês), nossas leituras avulsas e desor­
denadas de autores estrangeiros: Balzac, Hugo, Zola, Stendhal Dickens, 
algum Anatole, os russos, e ansiávamos por novas leituras, novas vozes. 
E isso Octávio nos daria à perfeição. Por ele ordenamos leituras e 
chegamos a Proust, Gide, Thomas Mann, Radiguet, Malègue, Alain- 
Fournier, Mauriac; às novelistas inglesas, M. Kennedy, Virginia Woolf, 
Rosamond Lehmann, as Brontë; aprofundamo-nos na obra dos russos 
- novos horizontes. Pode-se dizer que, para o nosso grupo, para a 
geração de Vinícius e Mario, Octávio desempenhou o mesmo papel de 
maître, de preceptor literário, que Roberto Alvim Corrêa exerceria 
depois, na Faculdade de Filosofia e fora dela, para a mocidade dos 
quarenta. Já tenho dito que “nada sei” mas “que o pouco que saiba o 
devo a Octávio”, e assim reforço com emoção o preito rendido por 
Mario a quem tanto nos deu.
Voltando ao autor deste livro, diria que, na época a que vimos nos 
referindo, embora sociável e até com um certo penchant por festas e
NIETZSCHE: O SÓCRATES DE NOSSOS TEMPOS 15
reuniões e certamente capaz de sólidas amizades, além de participativo 
em relação ao seu grupo, Mario, um introspectivo, amiúde assumia uma 
postura de isolamento. Em nossas longas caminhadas noite adentro, 
deixava-se ficar para trás como que absorto... Literalizados, gracejáva­
mos: “Ses ailes de géant 1’empêchent de marcher”... Conversas com “o 
interlocutor invisível”, diria eu hoje, após ler este livro...
Custou-lhe fixar-se na vida prática: sem qualquer vocação para a 
advocacia, teve ocupações vagas que não lhe interessavam. Para “ganhar 
tempo”, chegou mesmo - o que era moda na ocasião - a inscrever-se na 
Reserva Naval Aérea, onde seu aprendizado foi interrompido quando 
conseguiu avariar um avião... e finalmente decidiu-se pela carreira 
diplomática, compatível desde logo com o seu projeto cultural, com o 
recurso às fontes estrangeiras, numa época em que a carreira universi­
tária, o estuário natural dum estudioso de sua marca, era objetivo a longo 
prazo e de limitadas perspectivas.
No exercício de suas funções diplomáticas, em longas estadas no 
estrangeiro, Mario aprofundou continuamente seu saber.
Estudioso e pesquisador solitário, hoje uma das mais completas 
formações clássicas de nosso país, com sua vertente filosófica embasada 
num sólido conhecimento, não só de filosofia clássica e contemporânea, 
como de história antiga, de filologia e de história das religiões, Mario 
pouco publicou em relação ao que tem a dar ao leitor brasileiro.
Só recentemente, encerrada a carreira diplomática, tem participa­
do mais extensamente do debate universitário e apresentado contribui­
ção valiosa em reuniões de alto nível, notadamente na Universidade de 
Brasília (UNB) e no Instituto de Estudos Políticos Econômicos e Sociais 
- Rio de Janeiro (IEPES). Publicou três livros, todos do melhor padrão, 
embora tenha obras de ficção que até agora preferiu deixar inéditas. 
Com Desenvolvimento e Cultura, o Problema do Estetismo no Brasil, de 
1963, já entra fundo na análise dos temas do seu interesse maior em 
relação à evolução cultural e política de nosso país; O Conceito de uma 
Educação da Cultura, publicado em 1986, é talvez o ensaio brasileiro 
mais profundo e bem-estruturado sobre o conceito da educação através 
da história, suas relações com a evolução cultural do Brasil e as pers­
pectivas com que nos defrontamos. Finalmente, de certo modo anteci­
pada em esmerada súmula, numa coletânea, Nietzsche, de três 
conferências sobre o criador de Zaratustra, chega ao público brasileiro 
a obra-mestra de Mario Vieira de Mello sobre Nietzsche, objeto de
16 MARIO VIEIRA DE MELLO
algumas décadas do seu culto e reflexão de pensador: Nietzsche, o 
Sócrates de Nossos Tempos.
Neste livro de uma vida, Mario apresenta a sua visão da obra e da 
vida de Nietzsche num exaustivo estudo em que, a partir da Origem da 
Tragédia, analisa toda a trajetória do pensamento do filósofo, desde o 
seu repúdio a Sócrates, que ali considera como pensador decadente, até 
as proposições dos seus últimos livros, num longo processo de realinha- 
mento ao contraponto socrático.
O autor, neste trabalho, além de analisar em profundidade, com sua 
visão pessoal, toda a obra de Nietzsche, procede a um rigoroso estudo 
cronológico de tudo o que de importante se publicou sobre o filósofo 
durante a sua vida, bem como depois de sua morte. Trata-se de um 
referencial bibliográfico certamente dos mais completos, objeto da 
pcrcuciente análise crítica de um dos nossos mais legítimos pensadores.
Reconstitui, assim, Mario Vieira de Mello todo o histórico da 
repercussão de cada obra de Nietzsche e da evolução dos juízos con­
temporâneos e posteriores à sua aparição, desde o silêncio formado 
após a Origem da Tragédia atéo reconhecimento, hoje inconteste, do 
gênio do mais ousado pensador de nossos tempos.
Permeia todo o livro a convicção do autor de que, a cada passo mais 
ousada e corajosa, foi a obra de Nietzsche que passou a condicionar sua 
vida, levando-o finalmente à aceitação da loucura como única solução 
para o confronto com uma verdade insuportável.
O discurso indomável de Nietzsche tem neste ensaio uma leitura a 
um tempo vigorosa e apaixonada, aparente contradição que a qualidade 
do texto torna irrelevante. Mario, trabalhador solitário e obstinado, mas 
que talvez por falta de um mais amplo debate sobre os seus livros, através 
dos anos, não tenha podido se beneficiar da fruição de possíveis dúvidas, 
terá talvez agora a chance de considerá-las, ao enfrentar as prováveis 
contestações dos seus pares.
Este livro que, dada a autoridade de seu autor, não raro é apologé­
tico e laudatório, certamente dará margem a críticas e polêmicas. A 
estas, Mario já está habituado e sempre se mostra capaz de enfrentá-las 
à altura de seus contestadores.
Resta, entretanto, e isso me ocorre ao ler os trechos sobre o 
“interlocutor invisível” nas caminhadas de Nietzsche, a interferência do 
diálogo-solilóquio, que sempre me intrigou, do ignorado leitor com o 
desconhecido e distante escritor... Mas, atenção, desavisado leitor: tão
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEM TOS 17
competente como no debate aberto, nesse confronto fantasma, nesse 
metadiálogo, Mario também é um adversário implacável...
Almir de Castro
18 MARIO VIEIRA DE MELLO
PREFÁCIO
Em entrevista concedida ao semanário DerSpiegel, em 1967, Martin 
Heidegger exprime uma opinião que é uma boa amostra de sua arro­
gância. Disse ele: Os franceses, quando começam a pensar, falam ale­
mão.
Essa opinião naturalmente tem sua origem nas convicções nazistas 
do filósofo, que só agora vão sendo investigadas. Não era entretanto 
completaménte gratuita; baseava-se numa experiência realmente ocor­
rida. Os franceses, embora vítimas do nazismo, haviam se empenhado, 
depois da guerra, em estudar devotamente o idioma alemão - haviam 
sido seduzidos por Heidegger e esforçavam-se portanto no aprendizado 
daquele idioma, embora isso não tenha parecido ajudá-los na com­
preensão de onde o filósofo estava querendo chegar. Os ensaios filosó­
ficos na França, produzidos na época, estão repletos de expressões 
alemães que parecem inúteis, pois o autor já havia encontrado no idioma 
francês sua equivalência perfeita. Muitas vezes a equivalência saltava 
aos olhos das pessoas menos versadas no alemão. Mas o autor julgava-se 
obrigado a registrar as duas expressões como se de repente tivesse 
perdido a confiança no poder de expressão de seu próprio idioma.
Houve certamente e continua a haver uma espécie de terrorismo 
cultural da língua alemã na área da disciplina filosófica. E naturalmente 
cabe a Heidegger uma boa parte da responsabilidade por esse fato. No 
Brasil, entretanto, houve e continua a haver a esse respeito não apenas 
terrorismo, como também superstição e pedantismo. Por ignorância ou 
afetação sempre se julgou entre nós que alguns filósofos só seriam 
acessíveis a quem pudesse ler alemão. Julgava-se, não pelas razões de 
Heidegger, vinculadas ao nazismo, mas por pretensão erudita, que a 
filosofia, como a poesia, é intraduzível - deixando assim sem explicação 
o fato de que a filosofia, nascida em solo grego e profundamente 
vinculada ao idioma do povo grego, foi, ao lado do cristianismo, um fator 
essencial na formação da cultura ocidental que durante muitos séculos 
a assimilou unicamente através do latim; deixando também sem expli­
cação o fato de que, quando o grego se tornou uma língua conhecida, a 
filosofia nem por isso deixou de ser o que havia sempre sido; e deixando 
finalmente sem explicação o fato de que ela se transformou sob a 
influência da ciência e não desse novo conhecimento lingüístico.
Por que estou fazendo tais observações? - Simplesmente para dizer 
que Nietzsche é um autor eminentemente traduzível. E essa, aliás, uma 
das razões pelas quais sua obra já exerceu e continua exercendo uma 
enorme influência em quase todas as áreas da cultura ocidental. O leitor 
brasileiro, que ainda está fora desse movimento universal de incorpora­
ção do mundo nietzschiano, não deveria se deixar intimidar pelo terro­
rismo cultural nazista ou pela superstição ou pedantismo nacionais. Se 
não conhece o alemão, leia Nietzsche nas boas traduções - eis o conselho 
prático que me permito dar-lhe aqui. Oxalá possa encontrar neste livro 
boas razões para convencer-se dos benefícios que resultariam de uma 
tal leitura.
20 MARIO VIEIRA DE MELLO
1. REAÇÕES, COMENTÁRIOS E CRÍTICAS
Tudo o que se refere à vida e à obra de Nietzsche está marcado pelo 
estigma de um violento contraste. Hoje, quando ainda não passaram 
nove décadas desde sua morte, já existe em torno de sua figura uma 
literatura que vai além de três mil volumes. Entretanto Nietzsche, 
durante sua fase produtiva, teve até dificuldades em encontrar quem 
quisesse publicá-lo. O silêncio que se formava após o aparecimento da 
maior parte de seus livros era algo de surpreendente e mesmo de 
inexplicável. Como podia um autor armado de um estilo tão obviamente 
excepcional ser a esse ponto ignorado? Como podia o conteúdo de uma 
obra, cuja forma desafiava comparações ou reticências, prejudicar de 
modo tão sensível o brilho e a força de que era revestida a expressão? 
São essas perguntas que fazemos hoje, testemunhas que somos de uma 
glória que não faz senão crescer. Mas os contemporâneos de Nietzsche, 
e em particular alguns de seus amigos, pareciam sofrer com a publicação 
de certos livros seus como se pode sofrer com as manifestações extra­
vagantes de um ser que nos é caro.
Esse é um fato que convém particularizar, proteger contra compa­
rações e generalizações fáceis, para que possa ser examinado em toda 
a sua singularidade. Nietzsche não foi um gênio incompreendido como
se costuma dizer. Desde logo, com a publicação de sua A Origem da 
Tragédia, ganhava corpo a noção de que surgira, no horizonte da cultura 
alemã, um fenômeno insólito. |
As reações que o livro despertava nos meios acadêmicos eram 
naturalmente negativas. Não se podia endossar as idéias de um autor 
que apresentava Sócrates como um pensador decadente. Mas no círculo 
wagneriano as reações eram entusiastas. Wagner, um leitor interessado, 
sentia-se transportado - e arrastava naturalmente nessa sua admiração 
todo o grupo de entusiastas que viviam em torno dele. Se lhes faltava 
competência em matéria filológica, sobrava-lhes certamente percepção 
em matéria artística e musical. Ninguém, dizia Wagner a seus adeptos, 
havia como Nietzsche conseguido traduzir em palavras aquilo que ele 
sentia ao compor seus dramas musicais.
E importante registrar aqui as primeiras reações a esse livro, porque 
com ele se inicia um drama que ia evoluindo com graus sempre mais 
elevados de intensidade e emoção. Os primeiros exemplares saíram da 
impressão no final de 1871. Em janeiro de 1872, Nietzsche enviava um 
exemplar a Wagner acompanhado de uma carta que falava da relação 
estreita existente entre as teorias do livro e a criação wagneriana. 
Wagner respondia: “Nunca li livro melhor do que o seu. É absolutamen­
te esplêndido”. Apesar disso, ao fim de poucas semanas, ficava perfei­
tamente claro que o mundo acadêmico recebera o livro de modo hostil 
e que tampouco outros círculos não ligados a Wagner haviam manifes­
tado uma receptividade maior. Nietzsche se sentia especialmente ma­
goado com o silêncio de seu mestre Ritschl; e por esse motivo resolvia 
escrever-lhe uma carta. No seu Diário, Ritschl anotava: “Carta espan­
tosa de Nietzsche - megalomania”; mas ao respondê-la a carta adotava 
um tom conciliador, explicando que dele, um scholar alexandrino, não 
se podia esperar que abandonasse o “conhecimento” pela “arte”. Logo 
se colocava a questão de saber para que público o livro estaria dirigido: 
se para o meio musical ou omeio acadêmico e filosófico. Erwin Rohde, 
colega e amigo de Nietzsche, escrevia um artigo em que dava realce ao 
aspecto filosófico do livro - e naturalmente Cosima Wagner, embora 
afirmasse tê-lo apreciado, observava que a ênfase nesse aspecto havia 
sido excessiva. O artigo de Rohde era recusado por uma revista espe­
cializada em assuntos clássicos. Mas, quando Rohde manifestou-lhe a 
intenção de publicá-lo numa revista não especializada, Nietzsche res­
pondeu que preferia esperar por nova oportunidade. Até maio de 1872, 
só uma crítica surgia na revista italiana Rivista Europea. O livro estava
22 MARIO VIEIRA DE MELLO
agora com uma venda razoável, mas o mundo acadêmico e mesmo o 
mundo literário continuavam a manter-se em silêncio. No fim do mês de 
maio, um novo e longo artigo preparado por Rohde aparecia numa 
revista não especializada, com simpatias wagnerianas; o artigo reconhe­
cia no livro a abertura de novas e profundas perspectivas no campo da 
estética e uma compreensão original do valor e da eterna primazia da 
( irécia e da arte grega.
Dias depois do aparecimento desse segundo trabalho de Rohde, o 
silêncio da ortodoxia clássica rompia-se. Ulrich von Wilamowitz-Mõel- 
lendorf, um jovem scholar de vinte e quatro anos, num longo artigo de 
vinte c oito páginas, procurava demolir o livro de Nietzsche, enfileirando 
um grande número de razões: o tom do livro, seu estilo e sobretudo a 
l.ilta de scholarship; acusava Nietzsche de desonestidade e ignorância;
i de 1er cometido uma enormidade de erros de princípio e de detalhe.
Nietzsche não pareceu muito atingido por esse ataque. Mas quando 
Wagnci veio em sua defesa, escrevendo um artigo desastrado, em que 
d.iv.1 .1 entender que A Origem da Tragédia havia sido escrito não para 
uhiiliin in.is p.ii.i artistas, Nietzsche achou-se prejudicado e teve o 
,i nluiii nlo de que devei ia surgir em sua defesa alguém do mundo
ii i.l. ........ Rnliile, o amigo leal, prontificou-se a produzir um novo
.uligii qui lui i .i i tin i ui Iiiiii l.ui hostil a Wilamowitz quanto o dele o 
li .- i l h......... a o I.h,.ni .i Niel/selie. O jovem demolidor, dizia Rohde,
i i ii m il mli a ni h h 11 | h i ’,un!,i iso; dado a calúnias, crítico incompetente;
h avi.i tg in a ii • h ...... ni. in lu ii île le et mil e tilosól tco do livro c se limitado
an pmlili um da 11 holarship Nietzsche havia sido obrigado, pela natu-
ii i du loin a i fi .envolvei sens aigumentos sem rclerências eruditas - 
ma nimpli Min nii a imaturidade île Wilamowitz que o impedia de 
li b ut ilii ai a . limles cm que Nietzsche se apoiava.
I a lesposla de Rohde não sensibilizou o mundo acadêmico, 
t filando Wilamowitz escreveu mais um artigo em resposta ao que agora 
|,i ei a um ataque a sua pessoa, ele o fez com o sentimento de que o seu 
objetivo havia sido atingido. Mas as observações de Rohde não haviam 
sido feitas cm vão. Wilamowitz agora não atacava mais a scholarship de 
Nietzsche - denunciava simplesmente o fato de haver seu colega posto 
cm dúvida o valor de uma tradição bimilenar de cultura.
A publicação do livro, de imediato, teve para Nietzsche apenas uma 
conseqüência prática: “Há uma coisa que me está perturbando”, escre­
via ele a Wagner em novembro de 1872, “o semestre de inverno chegou 
e não tenho discípulos. Nossos classicistas não aparecem!” Veremos
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 23
entretanto que, com o correr do tempo, suas consequências foram se 
mostrando permanentes e profundas. ^
Essas foram então as circunstâncias que cercaram o aparecimento 
dcA Origem da Tragédia. Com relação à publicação de outros livros de 
Nietzsche, seremos mais sucintos. Cuidamos do aparecimento de seu 
primeiro livro de modo mais extenso porque se trata de uma obra 
fundamental, uma obra que exprime um projeto de vida que atravessará 
a existência do filósofo até o apagar de sua consciência. Convinha, pois, 
indicar de que modo esse projeto havia sido recebido pelas diferentes 
audiências que o jovem autor desejava sensibilizar. Durante os anos 
imediatamente consecutivos, a situação de Nietzsche no mundo acadê­
mico como que se estabilizara. Seus cursos passaram a ser moderada­
mente freqüentados, mas sua nova orientação de fazer da filosofia o 
interesse principal de suas atividades filológicas retirava-lhe, sem dúvi­
da, parte da autoridade científica que lhe caberia se, além dessas 
atividades filosóficas, estivesse também cobrindo os outros setores da 
disciplina filológica que escolhera. Correspondem a esse período suas 
quatro Considerações Inatuais, todas elas escritas ou a pedido de Wag­
ner ou tendo em vista sua obra. As reações a esses quatro livros natural­
mente eram entusiásticas nos círculos wagnerianos, algumas vezes 
coléricas fora deles. No último deles, entretanto, Richard Wagner em 
Bayreuth, uma ligeira alteração se produziu. Embora o livro tivesse sido 
muito bem recebido por Wagner, nada se fazia no sentido de sua maior 
divulgação. E que o teatro de Bayreuth se tinha transformado num 
empreendimento que, para ser levado a bom termo, exigia cautela, 
versatilidade e mesmo diplomacia. Nietzsche, com sua maneira direta, 
franca e por vezes contundente de expressão, representava sempre um 
risco de desagradar a eventuais patrocinadores. A situação era curiosa 
porque o livro, de caráter ambíguo, revelando, para quem sabia lê-lo, a"S 
dúvidas já existentes no espírito de Nietzsche a respeito da validade da 
obra wagneriana, havia sido recebido com entusiasmo por Wagner e só 
não tivera uma repercussão maior porque o grande músico não julgara 
prudente divulgá-lo entre o seu público, já afluente, apresentando-lhe 
“verdades” que talvez não estivesse ainda em condições de assimilar.
Quando o próximo livro de Nietzsche, Humano, demasiadamente 
Humano, foi enviado a Wagner, a ambiguidade se dissipou e a ruptura 
entre os dois tornou-se inevitável. Wagner a princípio pretendera não 
ter lido o livro, por amizade a Nietzsche, dizia ele. Mas finalmente não 
resistiu a mostrar que sucumbira à curiosidade e manifestou então de
24 MARIO VIEIRA DE MELLO
mil formas o quanto se sentia atingido. Entre as muitas coisas que o 
feriam estava a crítica a Schopenhauer. Wagner e Cosima, nessa crise 
de amizade, revelavam a natureza algo egoística de seus sentimentos - 
não pouparam o amigo que antes lhes havia sido tão devotado, insinuan­
do entre outras coisas que se tratava de um homem doente. Diziam 
também ter a impressão de que Nietzsche renunciara à sua personali­
dade para assumir a de Paul Rée, um amigo recente do filósofo e autor 
de um livro intitulado^ Origem dos Sentimentos Morais, inspirado nos 
sensualistas franceses; Rohde, aliás, tivera a mesma impressão. E sobre 
Overbeck, co-locatário nos primeiros tempos de Basiléia e amigo de 
Nietzsche o resto da vida, o livro exercera também uma impressão 
negativa. E, como não se podia deixar de esperar, as críticas adversas 
em Bayreuth eram veementes. Embora fossem favoráveis as reações de 
Jakob Burckhardt, antiwagneriano decidido, com quem Nietzsche man­
tinha relações cordiais mesmo no período wagneriano, as de Paul Rée 
naturalmente e sob reservas as de Malvida von Meysenburg, em cuja 
casa de Sorrento o filósofo escrevera parte do livro, tornava-se evidente 
que, de uma maneira geral, seu texto não havia sido bem recebido. 
Depois de ter perdido sua reputação no mundo acadêmico, Nietzsche 
perdia agora a estima do círculo wagneriano.
Inicia-se então, na vida do filósofo, um período de isolamento 
crescente. No prefácio da edição de 1886 do Humano, demasiadamente 
Humano, isto é, oito anos depois de seu aparecimento, Nietzsche nos 
diz que foi justamente na Alemanha que o livro foi lido com maior 
negligência e menor compreensão, embora tenha encontrado leitores 
em outros países. Ora, em 1886 estamos distantes três anos apenas do 
fatal acontecimento com que devia terminar a vida consciente do filó­
sofo. Os livros que se seguiram, Opiniões e Sentenças Misturadas, O 
Viajante e sua Sombra, A GaiaCiência e finalmente Falou Zara- 
tustra, só faziam aumentar a hostilidade que pouco a pouco ia fechando 
seu círculo em torno do filósofo. Com o Zaratustra o círculo parecia 
fechar. Nietzsche, que até então conseguira de um modo ou de outro 
fazer editar seus livros e chegara mesmo a encontrar tradutores, sente 
agora dificuldade em achar alguém que se interesse pela nova produção. 
As primeiras partes do Zaratustra têm sua impressão retardada porque 
o editor deseja imprimir antes cinco milhões de exemplares de Cânticos 
para a época de Páscoa e também livros relacionados com uma campa­
nha anti-semita; e quanto à última parte, Nietzsche era mesmo obrigado 
a imprimi-la por conta própria, com o dinheiro ganho no processo que
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEM TOS 25
movera contra seu editor. Jakob Burckhardt, que havia tido palavras de 
simpatia com relação ao Humano, demasiadamente Humano, tinha 
agora dificuldade em esconder sua decepção. E mesmo Rohde, cOm sua 
fidelidade de sempre, limitava agora seus comentários a generalidades 
pouco expressivas, chegava mesmo a usar fórmulas um tanto ambíguas: 
“Seu Zaratustra, sob todos os aspectos, deu-me uma impressão bem mais 
salutar que vários de seus últimos escritos”.
É preciso reconhecer a realidade: logo depois de Zaratustra um 
completo vazio se formava em torno de Nietzsche. Foi durante o período 
em que se processou sua elaboração que ocorreu o episódio Lou 
Salomé. Indicaremos em outro capítulo o que consideramos haverem 
sido as conseqüências desse episódio, mas antecipemos aqui nossa 
opinião de que o Zaratustra parece ter sido escrito sob o efeito do trauma 
que pôs fim a tal episódio. Os analistas de um modo geral não estabele­
cem uma relação qualquer entre a experiência Lou e a produção do 
Zaratustra, mas penso que há fortes motivos para avançar que tal 
perspectiva deve ser reconsiderada. De qualquer modo, se temos de um 
lado uma experiência frustrada, temos do outrc um livro que é no mínimo 
problemático; um livro, em todo caso, que pode sem exagero ser respon­
sabilizado por muitas das incompreensões que se formaram, em sentido 
positivo e negativo, em torno das idéias, das intenções e mesmo das 
experiências que levaram Nietzsche a escrevê-lo.
Façamos aqui um parêntese para dizer que Nietzsche não era um 
autor que escrevesse em vão. Havia sempre, pelo menos, um leitor 
extremamente atento ao que ele escrevia: ele próprio. Apesar de suas 
contradições e autodilaceramentos, apesar dos sim e dos não pronun­
ciados a respeito de uma mesma questão, Nietzsche foi um escritor que 
manteve sempre a mais estrita coerência entre o que dizia e os momentos 
particularizados de sua evolução espiritual Essa coerência obriga o 
pesquisador, na sua análise, a evitar que se dissocie, por um segundo 
que seja, o que exprimiu Nietzsche do momento especial em que surgiu 
a expressão; obriga-o também a procurar compreender, através do que 
foi dito, a qualidade especial de um tal momento. Nietzsche foi um 
escritor cuja ação se fez sempre sentir - fez-se sentir desde seu primeiro 
livro; mas fez-se sentir de modo inusitado, pois era ele, o próprio 
Nietzsche, quem mais se sentia afetado por essa ação. Durante vários 
anos, os livros de Nietzsche agiram principalmente sobre ele mesmo, 
criando uma situação sui generis que procuraremos exprimir indicando 
como e por que foi sua obra que influenciou sua vida.
26 MARIO VIEIRA DE MELLO
Mas voltemos ao efeito produzido pela publicação do Zaratustra, 
em edições privadas. Em torno de Nietzsche, a partir de 1883, nada 
havia, apenas o silêncio. Só em 1886 esse silêncio foi amenizado, até um 
certo ponto, pela carta em que Hippolyte Taine, então já famoso na 
França, agradecia-lhe a remessa do livro Para além do Bem e do Mal e 
tecia comentários elogiosos sobre pontos precisos da obra. Essa carta 
de Taine, que foi talvez o primeiro sinal de sua glória nascente, era, 
pouco depois, seguida de um bilhete curto em que Taine se dizia feliz 
por ter Nietzsche apreciado seus artigos sobre Napoleão. Erwin Rohde, 
o amigo velho e experimentado do filósofo, teve um gesto desastrado 
nesse momento delicado da vida de Nietzsche - enviou-lhe uma carta 
em que exprimia seu pouco apreço por esse autor celebrado que, antes 
de qualquer outro, oferecia sua solidariedade ao escritor solitário. 
Resultou daí o rompimento da relação entre os dois homens, que haviam 
sido verdadeiros amigos, e cuja separação dificilmente se pensaria 
pudesse ocorrer em virtude de tal incidente1.
No estado de excitação em que se encontrava Nietzsche, a tristeza 
causada pelo rompimento com Rohde talvez tenha sido amortecida pela 
satisfação derivada do recebimento de uma carta de (ieorg Brandes, 
crítico dinamarquês de grande sensibilidade, que já havia se notabiliza­
do pela divulgação inteligente que fizera da obra de Sõren Kierkegaard. 
A carta de Brandes respondia à remessa que lhe havia feito Nietzsche 
de A Genealogia da Moral e revelava grande vivacidade e perspicácia 
por parte de seu autor. Vale a pena citá-la:
Respiro em seus livros um espírito novo, original. Nem sempre compreendo intei­
ramente o que leio, nem sempre sei aonde o senhor quer chegar, mas muito do que diz 
se harmoniza com minhas idéias e minhas simpatias: como o senhor, tenho pouca estima 
pelo ideal ascético, a mediocridade democrática me causa igualmente uma repugnância 
profunda; admiro seu radicalismo aristocrático. O desprezo que professa pela moral da 
piedade é uma coisa que não está perfeitamente clara para mim [...] Sobre o senhor nada 
sei. Vejo com espanto que é professor, doutor. De qualquer modo receba meus cumpri­
mentos pelo fato de ser intelectualmente tão pouco professor. O senhor pertence ao 
pequeno número de homens com quem eu desejaria conversar2.
1. Informação dada por Daniel Halévy em sua biografia de Nietzsche.
2. C 'ilação reproduzida da biografia de Daniel Halévy.
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 27
Essa era uma carta que não podia deixar Nietzsche indiferente - 
mas talvez estivesse chegando um pouco tarde. Brandes nunca pôde 
satisfazer seu desejo de conversar com Nietzsche e muito menos realizar 
sua intenção de iniciá-lo na obra de Sòren Kierkegaard. Nietzsche e 
Kierkegaard, esse dois espíritos tão próximos um do outro, apesar da 
diversidade de suas convicções religiosas, traçaram assim linhas parale­
las no espaço cinzento do século XIX, sem jamais se encontrarem. Mas 
é sintomático que os dois, desde o início de suas respectivas carreiras, 
tenham encontrado em Sócrates o estímulo insubstituível para a reflexão 
filosófica.
Sõren Kierkegaard morreu extremamente jovem, em 1855, com 
quarenta e dois anos de idade. Nietzsche tinha então apenas onze e, 
durante os trinta e quatro anos de vida consciente que lhe sobraram, não 
teve ocasião de conhecer os livros do pensador dinamarquês. Esses dois 
homens cujas obras revelam uma tão clara afinidade e que exprimiram, 
fora de dúvida, nos respectivos idiomas, um espírito novo e inconfundí­
vel, deixaram de produzir, segundo os padrões de nossos tempos, quan­
do ainda eram extremamente jovens. É naturalmente ocioso especular 
sobre o que teria acontecido se Kierkegaard tivesse podido viver mais 
algum tempo, mas não é arbitrário imaginar que o contato pessoal ou 
literário de um Nietzsche jovem com um Kierkegaard já maduro seria 
algo que teria tido repercussões profundas no contexto cultural dos 
nossos tempos.
Kierkegaard e Nietzsche pensaram sobre Sócrates o que ninguém 
mais pensou no século XIX. O cristianismo de Dostoiévski não impedia 
Nietzsche de ver no romancista russo um mestre que lhe podia dár lições 
em psicologia. Do mesmo modo, o cristianismo de Kierkegaard prova­
velmente não o teria impedido de ver no filósofo dinamarquês um 
mestre em socratismo, já que Nietzsche, impressionado com o otimismo 
teórico de Sócrates, deixara, no começo de sua carreira, passar desper­
cebida sua ironia. O ironista nunca é um otimista - essa lição que 
Nietzscheaprendeu a duras penas e por conta própria, ele a teria 
assimilado facilmente de um Kierkegaard maduro, ainda nos primeiros 
anos da sua juventude curiosa.
Constitui, sem dúvida, mais do que uma coincidência o fato de que 
os dois pensadores que mais contribuíram para uma valorização do fator 
ético, na Europa do século XIX, fossem justamente aqueles que tiveram 
um relacionamento especial com Sócrates. Foi no século passado e 
através desses dois pensadores que se compreendeu claramente a ne-
28 MARIO VIEIRA DE MELLO
cessidade de conciliar duas imagens de Sócrates que pareciam contra­
ditórias - a do precursor dos universais e a do descobridor do indivíduo. 
Não havia dúvida de que a natureza de Sócrates fosse suficientemente 
rica para autenticar as duas imagens. O problema era saber como 
operar, no interior da natureza socrática, a transição, a passagem de 
uma imagem para outra. Nietzsche era suficientemente perspicaz para 
compreender que a descoberta dos universais, o otimismo teórico, a 
decadência, não esgotavam o problema socrático. Kierkegaard, por seu 
lado, sabia que a ironia do indivíduo não era a última palavra da 
sabedoria socrática: a ironia era simplesmente propedêutica. Um e 
outro teriam indubitavelmente se completado se o destino não tivesse 
tido o capricho de aproximá-los na contemporaneidade mas não na 
contiguidade das gerações que surgiam.
Em 1892 Max Nordau, um crítico austríaco, publicava um ensaio, 
intitulado “Degeneração”, sobre a cultura decadente da Europa do 
século XIX, em que Nietzsche era violentamente atacado. O super-ho­
mem era nele visto como um animal de rapina, capaz das mais lamentá­
veis proezas. Esse ensaio foi traduzido para o russo em 1893 e foi um 
dos mais eficazes instrumentos da disseminação da obra de Nietzsche 
na Rússia, vista sob esse aspecto negativo da interpretação de Nordau. 
Mas Nietzsche encontrou também na Rússia uma grande quantidade dc 
leitores interessados e simpatizantes. Pode-se mesmo dizer que foi 
naquele país que a obra nietzschiana exerceu o seu primeiro grande 
impacto. Merejkóvski, Rozanov, Fedorov, Berdiaev, Shcslov, (iórki, 
Lunacharski, entre vários autores, cujas tendências iam do neo-idealis- 
mo ao marxismo, foram nietzschianos, pelo menos durante uma certa 
fase de sua evolução espiritual. De 1895 a 1915 nenhum país da Europa 
ocidental pôde rivalizar com a Rússia nesse particular. Toda a literatura 
russa desse período esteve impregnada de um espírito que era clara­
mente nietzschiano. O mesmo sentimento de afinidade que experimen­
tara Nietzsche ao ler Dostoiévski os russos experimentaram então lendo 
o pensador alemão. O clima histórico em que viviam parecia exigir 
mudanças profundas e radicais: só o espírito totalmente livre de Nietzs­
che parecia ser capaz de conduzir aquela massa enorme de aspirações 
c exigências que se agitava confusamente antes de explodir e causar a 
grande transformação social que marcou o nosso século.
Na Europa ocidental, entretanto, um dos primeiros, senão o primei­
ro ensaio favorável a Nietzsche, parece ter sido publicado em 1893, por 
Lou Salomé, uma jovem russa, personagem problemática e que com o
NIETZSCHE: O SOCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 2«
livro ganhou renome internacional. Lou Salomé conheceu Nietzsche em 
1882 e durante alguns meses manteve com ele estreitos laços de amizade. 
Paul Rée, amigo de Nietzsche, era também amigo de Lou e, embora seu 
nome não figure na capa do livro de Lou, deve, segundo todas as 
probabilidades, ter contribuído consideravelmente para sua feitura. O 
sucesso do ensaio se deve a várias causas, a primeira das quais tendo 
sido o quase total desconhecimento por parte do público das circuns­
tâncias que cercaram seu aparecimento. A verdade é que Lou Salomé, 
que se apresentava como uma das primeiras pessoas capazes de com­
preender e de interpretar a obra de Nietzsche, havia exercido, sem a 
menor dúvida, uma influência claramente negativa na vida do filósofo e, 
como intérprete, errava o alvo tanto nas suas apreciações encomiásticas 
quanto nas críticas e censuras que se permitia formular. Sua falta de 
discernimento se revelava no fato de acreditar ter sido Nietzsche in­
fluenciado por Paul Rée, a ponto, dizia ela, de através dessa influência 
ter o filósofo enterrado para sempre seu idealismo antigo. É possível 
que esse julgamento lhe tenha sido “soprado” pelo próprio Rée. Mas, 
de uma forma ou de outra, o que o livro revela é uma inegável falta de 
escrúpulos na manipulação dos elementos utilizados para a elaboração 
de seu trabalho: e o exemplo mais flagrante dessa falta de escrúpulos se 
encontra na alusão feita ao aforismo 279 de A Gaia Ciência, onde, sob 
o título de “Amizade das Estrelas”, Nietzsche se despede de Richard 
Wagner - alusão feita, entretanto, com o propósito de fazer crer aos 
leitores que era de Paul Rée que Nietzsche se despedia. Se houve alguma 
influência importante entre os dois - Nietzsche e Rée - durante a época 
em que foi escrito o Humano, demasiadamente Humano, ela certamente 
teria provindo do filósofo, apesar de tudo o que disseram em contrário 
Wagner, seu círculo e também Erwin Rohde, uns e outros já então muito 
afastados dos problemas e experiências que constituíam a vida de 
Nietzsche.
Mas as relações entre Nietzsche, Lou Salomé e Paul Rée são um 
capítulo à parte e aqui estamos interessados unicamente na emergência 
da reputação literária e filosófica de Nietzsche. Em 1893 Elisabeth 
Fõrster, irmã de Nietzsche, voltava do Paraguai, viúva de um marido 
anti-semita e sobrevivente de uma experiência fracassada. A situação 
que encontrava no seu núcleo familiar se apresentava duplamente mo­
dificada: o irmão vivia num estado de prostração inconsciente, mas sua 
fama crescia rapidamente, o interesse dos editores pela publicação de 
seus livros aumentando dia a dia. Ela, que durante a vida consciente do
30 MARIO VIEIRA DE MELLO
irmão chegara mesmo a julgar algumas de suas idéias “detestáveis”, 
resolvia agora administrar essa glória nascente. A primeira providência 
que tomava era modificar seu nome. Passava agora a assinar suas cartas 
com o nome de Elisabeth Förster-Nietzsche e, para dar validade a esse 
acréscimo, pedia oficialmente que fosse feita a mudança, o que lhe era 
concedido por decreto. Essa foi a primeira d’é uma série de providências 
que a levaram à propriedade e ao domínio exclusivo dos arquivos em 
que se encontravam os manuscritos e as cartas de Nietzsche.
Para enfatizar sua autoridade sobre tudo o que dizia respeito a 
Nietzsche, Elisabeth pôs-se a escrever uma biografia do irmão. O pri­
meiro volume foi publicado em 1895. Cobria apenas o período da vida 
de Nietzsche durante o qual Elisabeth convivera com o irmão, isto é, até 
1886. Essa convivência, entretanto, fora marcada por um grande número 
de desentendimentos: o período da amizade de Nietzsche e Lou Salomé, 
em que explodira o ciúme de Elisabeth, sua acintosamente íntima 
amizade com os Wagner, mesmo depois da ruptura provocada pelo 
irmão, seu noivado e casamento com um homem que Nietzsche não 
estimava. Pode-se, pela simples enumeração dessas desinteligências, 
imaginar o tipo de biografia que foi então publicada. O livro teve, 
entretanto, algum sucesso de livraria, o que encorajou a obstinada 
mulher a prosseguir na sua ambiciosa tarefa. Para o segundo volume, 
Elisabeth resolveu viajar de modo a conhecer os lugares e os amigos que 
o irmão freqüentara durante o tempo em que ela se ausentara da 
Europa; recorreu também às luzes de Rudolph Steiner, que acabara de 
publicar um livro sobre Nietzsche e que na época ficou impressionado 
com a ignorância de Elisabeth sobre tudo o que dizia respeito à filosofia 
do irmão.
Tal é, em brevíssimos traços, o perfil da mulher que iria, durante 
muito mais de quarenta anos, administrar o legado cultural deixado por 
um dos maiores filósofos de todos os tempos. Muito da incompreensão 
e da ignorância, que durante tantos anos envolveram a vida e a obra de 
Nietzsche, deve-se naturalmentea ela. E o fato de haver a reputação do 
filósofo resistido tantos anos a uma ação tão persistente e destruidora é 
algo que merece ser assinalado.
Em 1895, Rudolph Steiner publicava seu ensaio Nietzsche, um 
Inimigo de seu Tempo, em que o filósofo era apresentado como a vítima 
de uma época científica. As preocupações espiritualistas de Steiner 
cedo o levariam à teosofia e o tornariam incapaz de compreender que 
a ciência não era o único problema do século XIX. Segundo Steiner, os
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 31
preconceitos da ciência impediam Nietzsche de contemplar o homem 
espiritual no homem físico. Isso teria criado nele a ilusão de um homem 
natural superior.
Provavelmente antes de terminar o século (a segunda edição, que é 
a que conheço, é de 1902), Alfred Fouillée escreveu um livro intitulado 
Nietzsche e o Imoralismo, obra que pode ser considerada clássica na 
literatura criada em torno da figura de Nietzsche; clássica, não pelas 
virtudes de análise e de interpretação crítica, mas pelas características 
que lhe são diretamente opostas - pela incompreensão, pela presunção, 
pela total incapacidade de perceber os interesses que motivaram o 
filósofo.
Quando Nietzsche morreu, em 1900, Stefan George, então um dos 
poetas mais celebrados da Alemanha, dedicou-lhe um poema. Com isso 
a reputação de Nietzsche elevou-se a um nível maior de significação não 
só na Alemanha, mas em toda a Europa. Stefan George era mais do que 
um grande poeta, era o líder de um círculo de intelectuais e artistas 
possuidores de prestigioso talento, com uma obra crítica, historiográfi- 
ca, literária e artística que representa talvez um dos pontos altos da 
moderna cultura alemã. Friedrich e Ernst Gundolf, Rudolf Borchardt, 
Kantorowicz, Ernst Bertram, Kurt Hildebrandt e Ludwig KJages são 
nomes que atravessaram as fronteiras da Alemanha e que se impuseram 
à admiração da Europa, por uma qualidade especial de seus escritos, 
em que profundidade crítica e elã admirativo, eros platônico e análise 
lúcida se misturavam numa dosagem até então desconhecida pela en- 
saística do mundo ocidental.
O poema de Stefan George foi publicado em 1907 no volume de 
poemas intitulado O Sétimo Anel. O poeta vê, em Nietzsche, um amal­
diçoado, uma vítima da vulgaridade moderna, um profeta conduzido à 
loucura pela cegueira e pela surdez de seus contemporâneos. O esforço 
de Nietzsche havia sido heróico mas inútil. Tornava-se necessária a 
criação de um pequeno círculo, que constituísse o núcleo da regenera­
ção futura - o núcleo que ele, Stefan George, havia formado. Num 
segundo poema, escrito na véspera da Primeira Guerra Mundial, Geor­
ge não mais lamenta a inutilidade do heroísmo de Nietzsche. O mal 
estava inteiramente do lado dos que não haviam sabido compreender a 
grandeza do profeta. O poema exprime a desilusão do poeta. Não havia 
por que esperar uma regeneração futura. E a Nietzsche, com seu amor 
fati e com sua teoria do Eterno Retorno, é atribuída agora uma nova
32 MARIO VIEIRA DE MELLO
0 00 &- Q
façanha, uma façanha de uma ousadia inacreditável! A tentativa de 
paralisar a história e de impedir uma catástrofe inevitável.
Havia, na visão poética de George, elementos que poderiam con­
duzir a uma concepção verdadeira e justa da personalidade de Nie- 
I zsche. Mas a obediência cega com que os membros do círculo ouviam 
.1 palavra do mestre fez com que essa visão fosse utilizada para uma 
apoteose de George. Nietzsche, pensavam eles, era apenas um precur­
sor, uma voz no deserto a pregar o acontecimento iminente: “George 
é”, chegou a afirmar um dos discípulos, “aquilo que Nietzsche convul­
sivamente desejava ser”.
O caso de Ernst Bertram, entretanto, merece uma consideração à 
parte. Walter Kaufmann encara sua interpretação de um Nietzsche em 
perpétua autocontradição como uma conseqüência extremada da visão 
de George de um Nietzsche autodilacerado. Kaufmann nega a legitimi­
dade desse ponto de vista. Segundo ele, Bertram projetou, em Nietzs­
che, sua própria personalidade romântica quando propôs que o 
considerássemos um filósofo “tipicamente ambíguo”.
Discutir a tese de Kaufmann não é fácil. Há, na sua argumentação, 
algo que é inquestionavelmente verdadeiro, mas há também elementos 
que são contestáveis. A ambigüidade de Nietzsche não o identifica 
automaticamente com os românticos como parece pensar Kaufmann. O 
que caracteriza os românticos é a indefinição, não a ambigüidade. 
Sócrates, Platão e Lutero são ambíguos, mas não são românticos. Supe­
ração de si mesmo e não ambigüidade é a chave de Nietzsche, propõe- 
nos Kaufmann - mas a superação de si mesmo não explica vários dos 
grandes temas nietzschianos: em momento nenhum de sua obra, Nietzs­
che possui a certeza de que a máscara histriónica pode ser superada pela 
máscara do divino; Nietzsche era um decadente que se sabia decadente; 
o saber-se decadente podia ser uma superação da decadência, mas 
podia ser também uma outra forma de decadência etc., etc.
É inegável que Bertram abusa do conceito de ambigüidade para 
explicar a personalidade de Nietzsche. O erro parece consistir no fato 
de Bertram derivar essa ambigüidade das características da personali­
dade de Nietzsche e não do tipo de problemas que o filósofo precisou 
enfrentar. Seu ensaio sobre Nietzsche, publicado em 1918, trai insofis­
mavelmente a tendência a apresentar Nietzsche como uma personalida­
de romântica. Dito isso, é preciso reconhecer que se trata de uma das 
peças de crítica literária e filosófica mais brilhantes que já foram escri­
tas. Sua interpretação de Nietzsche, como uma personalidade românti­
Biblioteca Universitária 
_______ UFSC
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEM TOS 33
ca, permite-lhe explorar exaustivamente todos os aspectos da ambigüi- 
dade do filósofo e oferecer-nos assim um vasto material donde podemos, 
de um outro ponto de vista, e talvez com maior lucidez e objetividade, 
selecionar o que no criador de Zaratustra é ambíguo, em virtude da 
inexorabilidade dos problemas.
Friedrich Gundolf não escreveu um livro sobre Nietzsche. Mas as 
poucas páginas que lhe dedicou, em alguns ensaios, entre os quais os 
estudos sobre César e Shakespeare, têm talvez mais relevância do que 
vários dos volumes consagrados à memória do filósofo. Friedrich Gun­
dolf foi sem dúvida alguma, depois de George, a figura mais brilhante 
do círculo, mais brilhante mesmo que Bertram, tendo produzido obras 
de uma grande importância como estudos sobre Paracelso e Goethe, 
além dos que já mencionamos. Nas poucas páginas dedicadas a Nietzs­
che no ensaio sobre César, Gundolf nos revela o segredo das máscaras 
do filósofo:
[...jentre todas as imagens heróicas conhecidas Nietzsche escolhe a de César porque é ela 
que se aproxima mais do seu novo desejo de clareza, de contorno, de densidade terrestre, 
como de seu desejo mais antigo de grandeza, de enormidade, de fatalidade e de superio­
ridade espiritual. Mais do que no jovem Alexandre, embriagado de espaços longínquos, 
envolvido em nuvens de imaginação romântica, ele sente prazer em encontrar em César 
a imagem de seu desejo e o modelo de seu pensamento, o romano. [...] César para ele era 
simplesmente o herói monumental não romântico.
Uma única palavra nos comentários decididamente elogiosos que 
faz a respeito da personalidade de Nietzsche revela uma restrição, uma 
dúvida, uma reticência: o adjetivo que qualifica Zaratustra, identificado 
com César. César seria, segundo Gundolf, um Zaratustra mais sadio. 
Linhas adiante, termina o ensaio dizendo que sua época não tinha visto 
ainda nascer um dominador como César, embora já reinasse sobre ela 
uma personalidade em que se uniam uma sabedoria amadurecida e uma 
vontade inexorável de comando - alusão transparente a Stefan George, 
que parecia assim se apresentar como o Renovador que nem Nietzsche 
nem Zaratustra haviam podido ser.
Outros membros do círculo que escreveram sobre Nietzsche foram 
Kurt Hildebrandt e Ernst Gundolf, irmão de Friedrich. Hildebrandtescreveu quatro ensaios sobre o filósofo, um dos quais publicado junta­
mente com um trabalho de Ernst Gundolf no volume intitulado Nietzs­
che como Juiz do Nosso Tempo e publicado em 1923. De um modo geral 
se poderia dizer que o círculo de Stefan George, embora utilizando
34 MARIO VIEIRA DE MELLO
Nietzsche como um pedestal para a apoteose de George, contribuiu 
para retirá-lo da atmosfera de mediocridade dentro da qual se havia 
debatido até então a crítica nietzschiana. Entre outras coisas surgira, em 
1902, um ensaio de Paul J. Möbius, em que era estudada a doença de 
Nietzsche de um ponto de vista estritamente médico. Möbius realizara 
pesquisas nas clínicas da Suíça e da Alemanha em que Nietzsche fora 
internado após a crise de Turim e chegara à conclusão de que a causa 
da loucura de Nietzsche era de natureza exclusivamente física: Niejzfc 
ehe teria adquiridasiTüis, em Leipzig ou nos quarteirões mal-afamados 
de alguma cidade italiana, e pagava, aos quarenta e três anos de idade, 
o preço de suas aventuras escabrosas. Teremos a ocasião de dizer mais 
adiante o que valem as pesquisas e conclusão de Möbius. Havia também 
outros tipos de polêmicas manifestamente incompreensivas como as de 
Roberty e Liechtenberger, dois intérpretes afinados mais ou menos com 
o diapasão de Alfred Fouillée.
Em 1904 Richard Oehler publicou um ensaio “intitulado” Nietzsche 
e os Pré-Socráticos, que teve uma certa repercussão. Segundo Oehler, 
Nietzsche estava completamente sob a influência de Schopenhauer e 
por isso repudiara o otimismo socrático. Muito mais tarde, em 1935, 
Oehler publicou um novo trabalho sobre Nietzsche: Nietzsche e o Futuro 
da Alemanha. Os dois livros se caracterizam por uma intensa teutoma- 
nia.
Em 1908, na Sociedade Psicanalítica de Viena, realizavam-se semi­
nários sobre Nietzsche, com a participação de Freud, Adler e Otto 
Rank. Essas discussões pouco interesse têm do ponto de vista de um 
entendimento de Nietzsche. Eram apenas uma indicação da glória 
crescente do filósofo, já que tanto Freud quanto Adler e Rank não se 
interessavam especificamente pelo problema que para Nietzsche era 
crucial - o problema da decadência da cultura. As afinidades que 
sentiam entre si próprios e o filósofoeram marginais, afinidades que, de 
formas diversas, um grande número de pessoas também sentia, sem que 
por isso estivessem identificadas com os problemas essenciais da filoso­
fia de Nietzsche.
Virgile J. Barbat publicava, em 1911, um livro intitulado Nietzsche 
- Tendências e Problemas, que representava um esforço para estabele­
cer uma certa ordem nas idéias do filósofo, aliás entendidas num espírito 
de servil submissão.
Em 1912, Max Scheler, do ponto de vista da fenomenologia, escrevia 
seu trabalho sobre o ressentimento, procurando refutar a visão nietzs-
N1ETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS . f í
chiana do cristianismo. Thomas Mann, em 1919, credenciava-se para 
receber um prêmio que havia sido instituído para o melhor livro escrito 
num espírito nietzschiano (Reflexões de um Apolítico). O ensaio de 
Bertram sobre Nietzsche o entusiasmara; seu Doutor Fausto, escrito 
mais tarde, foi também profundamente influenciado pelas idéias do 
fdósofo. Ludwig Klages, anti-semita e irracionalista, escrevia em 1926 
um livro sobre Nietzsche, fazendo da oposição entre o “espírito e a vida” 
a inspiração fundamental do seu trabalho.
Entramos agora num período de análise da obra nietzschiana em 
que o trabalho dos comentaristas consistia sobretudo em divulgação. 
Nenhuma análise da importância do ensaio de Bertram apareceu antes 
da publicação, em 1936, do livro de Karl Jaspers sobre Nietzsche. É 
verdade que Charles Andler publicara de 1920 a 1931 seus seis alentados 
volumes, que vão dos precursores até a última filosofia de Nietzsche, e 
que Daniel Halévy produzira, pouco depois, uma inteligente biografia 
do filósofo. Mas, embora Andler tenha erigido à memória do filósofo 
um monumento impressionante pela sua dimensão e pela variedade e 
riqueza de detalhes, faltava-lhe a visão do essencial e a percepção da 
pulsação íntima do pensamento nietzschiano; e a biografia de Halévy se 
ressentia naturalmente da falta de elementos de informação ciosamente 
guardados por Elisabeth Fórster nos Arquivos Nietzsche. Satelizava a 
obra monumental de divulgação de Andler um sem-número de comen­
taristas igualmente falhos de uma visão essencial, tais como Émile 
Faguet, Jules Gaultier, Pierre Lasserre, Genieve Bianques, Stefan 
Zweig, Georges Bataille, E. F. Podach, August Mueller, Karl Heckel, 
Karl Justus Obenauer, Cari Albrecht Bernouille, Friedrich Muckle, 
Georg Simmel, B. Groethuysen e muitos outros. Seria impossível fazer 
aqui um catálogo completo dessa literatura e muito menos um comen­
tário pormenorizado de cada um desses livros.
Com Karl Jaspers, chegamos a um outro marco importante no 
desenvolvimento da crítica nietzschiana. Nietzsche é apresentado pela 
primeira vez como um filósofo que não pode ser compreendido através 
de posições definidas, ou complexos de pensamentos extraídos de sua 
obra. E verdade que havia, já em Bertram, uma certa tendência nesse 
sentido. A concepção que Bertram tinha de Nietzsche, como uma 
personalidade ambígua, excluía naturalmente a possibilidade de um 
Nietzsche formulador de doutrinas positivas. Mas a diferença entre a 
concepção de Bertram e a de Jaspers é que a ambigüidade, na primeira, 
deriva da personalidade de Nietzsche, ao passo que, na segunda, resulta
3b MARIO VIEIRA DE MELLO
«I.i própria natureza da verdade que persegue. Walter Kaufmann, que 
li,ui reconhece essa diferença, julga que Jaspers foi influenciado pelas 
idéias do círculo de Stefan George-julgamento, seja dito de passagem, 
<|ue surpreendeu profundamente Jaspers, distante como parece ter 
sempre estado da área de influência do grande poeta.
Jaspers não se interessa'pela filosofia de Nietzsche, mas pelo seu 
filosofar. As contradições do filósofo não o perturbam, são-lhe, ao 
contrário, uma garantia de que o sopro da liberdade não permitirá que 
essa ou aquela idéia se transforme em dogma. Publicado em 1936, seu 
livro sobre Nietzsche foi provavelmente a causa de sua demissão da 
cátedra de professor da Universidade de Heidelberg. Mesmo sem 
considerar a qualidade de sua interpretação, o fato de Jaspers ter 
ousado enfrentar o regime nazista com uma imagem de Nietzsche, que 
era uma clara censura a esse regime, seria suficiente para garantir-lhe 
um lugar de destaque na história da literatura criada em torno da figura 
do filósofo. E é digna de registro, para completar uma definição do seu 
caráter, a declaração pública que fez depois do colapso do nazismo, 
quando confrontado com a glorificação em torno de seu nome promo­
vida pela rádio e pela imprensa: “Não sou um herói e não desejo ser 
considerado como tal”.
Em 1934, Alfred Báumler publicou seu estudo sobre Nietzsche e o 
nacional-socialismo. Esse livro deu início a toda uma literatura que fazia 
de Nietzsche o filósofo oficial do nazismo. Cabe aqui relembrar o papel 
que desempenhou Elisabeth, irmã de Nietzsche, na formação da crença 
de que o nazismo nada mais era do que a tradução, em termos políticos, 
das idéias expressas por Nietzsche. Desde cedo, antes mesmo de ir para 
o Paraguai, Elisabeth adquirira a convicção de que o imperador Gui­
lherme se interessaria pelas idéias do irmão, caso as conhecesse - idéias 
que, segundo Elisabeth, iam ao encontro do estado de espírito do povo 
alemão, sedento de glória e de poder. Sob a influência de um marido 
recalcado e medíocre, Elisabeth misturava, no seu espírito pouco afeito 
às idéias, ardor nacionalista, fanatismo anti-semita e religião wagneria­
na, obstinando-se contra toda a realidade dos textos a descobrir, na obra 
do irmão, suporte para essas tendências. Mais tarde, depois da Primeira 
Guerra Mundial e da ascensão de Mussolini ao poder, ela enviou-lhe 
uma mensagem de felicitações com um retrato de Nietzsche, tendo 
recebido um telegrama de agradecimento em queMussolini lhe falava 
de sua antiga admiração por Nietzsche. Nos Arquivos Nietzsche, dirigi­
do por ela, todo mundo falava de Mussolini, e foi com delírio que os
NIETZSCHE: O SOCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 37
Arquivos receberam a visita do embaixador da Itália, vindo especial­
mente a Weimar para transmitir pessoalmente, a Elisabeth, os votos do 
Duce. Foi ainda com a cooperação de Elisabeth que a peça escrita por 
dois autores, um dos quais Mussolini, e intitulada Campo deMaggio, foi 
representada pela primeira vez na Alemanha, no Teatro de Weimar, em 
1932. Hitler compareceu a essa representação e foi ao camarote de 
Elisabeth cumprimentá-la. Em 1935, Elisabeth, meses antes de morrer, 
foi homenageada com uma visita do Führer aos seus Arquivos; e Hitler 
fez questão de comparecer ao seu enterro para demonstrar a estima que 
sentia pela irmã do ilustre filósofo. No fim da cerimônia fúnebre Hitler 
marcava ainda mais o seu apreço pela defunta, aproximando-se do 
caixão e depositando sobre o corpo inanimado uma enorme coroa de 
louros.
Tão falsas quanto as interpretações nazistas de Nietzsche eram 
naturalmente as interpretações do filósofo feitas pelos marxistas da 
Europa ocidental. E a razão não é difícil de entender: essas interpreta­
ções tinham um vício de base - a crença de que o Nietzsche nazista 
constituía uma imagem válida do filósofo. Assim Lukács, no livro intitu­
lado A Destruição da Razão, publicado em 1959, diz-nos que o que 
Nietzsche fez foi opor à dialética materialista, ao materialismo histórico, 
um sistema adverso, um mito irracionalista. Essas e outras concepções 
de Lukács, tais como a idéia da existência de um relacionamento entre 
as filosofias de vida e o imperialismo, são por demais simplistas para que 
valha a pena nos determos sobre elas. Lukács era, entretanto, um autor 
marxista que dispunha de grandes recursos de erudição filosófica; se 
suas análises não oferecem interesse, a razão disso certamente deverá 
ser atribuída à esterilidade do ponto de vista que resolveu adotar.
Antes de analisarmos a interpretação que deu de Nietzsche um dos 
filósofos mais influentes de nossa época, Martin Heidegger, deveremos 
considerar se o criador de Zaratustra exerceu algum tipo de influência 
sobre Rainer Maria Rilke* o segundo grande poeta que a Alemanha teve 
neste século. Vimos a importância atribuída a Nietzsche por Stefan 
George e seu círculo. Rilke certamente não contribuiu da mesma forma 
para aumentar a glória do filósofo e constitui talvez um caso único na 
história da influência de Nietzsche sobre personalidades criativas: não 
são poucas as pessoas e mesmo os críticos literários que entraram em 
contato com Rilke sem sentir o impacto que sobre ele teve essa influên­
cia nietzschiana.
38 MARIO VIEIRA DE MELLO
É verdade que não é fácil explicar o fato de ter Rilke aparentemente 
evitado mencionar, seja nos seus escritos seja nas suas cartas, o nome 
de Nietzsche. Em 1900, o poeta escreveu as seguintes linhas à margem 
do seu exemplar de A Origem da Tragédia:
Atrás de mim se encontram coros sombrios, florestas que se agitam, mares; e de 
ludo o que pesa me livro eu; pois de vez em quando ouço um respirar mais forte que o 
meu por detrás do curso dos acontecimentos. Entüo fico certo de que minhas mãos não 
me traem quando engendram novas formas, mas que pelo contrário suportariam qual­
quer peso para criar para essa respiração um peito sobre-humano.
Esses comentários, entretanto, só foram publicados em 1966; e a 
ausência de referências a Nietzsche, na obra de Rilke, talvez tenha 
criado a impressão de que não tinha havido qualquer influência do 
filósofo sobre o poeta. Qual teria sido o motivo da reserva que o poeta 
parece ter imposto a si mesmo? As relações de Rilke com Lou Salomé 
tornam improvável a hipótese de que a figura e o destino de Nietzsche 
nunca tenham ocupado seu espírito - disso a citação que fizemos é prova 
mais do que suficiente. Mas se fosse algum sentimento derivado de seu 
envolvimento com Lou Salomé o que tornava Rilke tão comedido nos 
seus pronunciamentos sobre Nietzsche, como compreender uma poesia 
que parecia estar tão impregnada do espírito nietzschiano? Mais curiosa 
ainda do que a reticência de Rilke é a circunstância de que, ao falar das 
influências por ele recebidas, o poeta se refere a um sem-número de 
coisas e de nomes, a Jacobsen e a Rodin em primeiro lugar, mas jamais 
ao nome do filósofo.
Erich Heller, no seu livro The Desinherited Mind, inclui um capítulo 
sobre as relações entre Nietzsche e Rilke, que constitui, aparentemente, 
a única análise, na vasta literatura sobre Nietzsche ou Rilke, a se ocupar 
de modo consistente das relações entre os dois, procurando mostrar o 
que há neles de comum e também de insuficiente. Heller parte natural­
mente da premissa de que Nietzsche influenciou Rilke - e essa parte de 
seu trabalho é perfeitamente justa e penetrante, como é eventualmente 
compreensível sua crítica de Rilke. O ponto fraco de sua argumentação 
parece residir no fato de Heller atribuir a Nietzsche as deficiências que 
discerne em Rilke, como se a circunstância de ter havido uma influência 
implicasse a necessidade de estarem os dois unidos numa participação 
aos mesmos fatos negativos.
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 59
A fim de completar o que tínhamos a dizer sobre essa influência, 
citemos um trecho do capítulo a que nos referimos do livro The Desi- 
nherited Mind:
Rilke entretanto é o poeta de um mundo cujo filósofo é Nietzsche. A formação desse 
mundo escapa a qualquer sistema tradicional de cartografia. A dúvida substituiu todas 
as certezas. Ao inominado é dado um nome e o indizível é pronunciado. É um mundo no 
qual a ordem de correspondência é violentamente perturbada. Não podemos mais estar 
certos de que amamos o que é amável e detestamos o que é detestável. O bem não produz 
nada de bom e o mal não molesta ninguém.
Em 1936, Martin Heidegger iniciou seus cursos sobre Nietzsche, 
que se prolongaram até 1940. Antes de falarmos da interpretação 
heideggeriana de Nietzsche, convém examinar alguns aspectos do rela­
cionamento de Heidegger com o nacional-socialismo. Há quem preten­
da invalidar sua obra, pelo fato de ter sido ele nazista, e há quem 
considere essa obra totalmente independente das circunstâncias da sua 
biografia. Do que não pode haver mais a menor dúvida é de que ele 
tenha sido de fato nazista, desde sua entrada no partido, em 1933, até o 
colapso final da Alemanha, em 1945. O livro de Victor Farias Heidegger 
e o Nazismo, publicado em 1987, elimina qualquer incerteza sobre essa 
questão. E verdade que Farias não pôde consultar o arquivo guardado 
pela família do filósofo - por razões desconhecidas e que parecem no 
mínimo suspeitas. Mas o que pôde consultar constitui prova mais do que 
suficiente. Heidegger era um nazista; sua maneira de ser nazista era 
talvez diferente da maneira de Hitler, Goebbels e outros dirigentes 
nazistas - mas é evidente que, em questões essenciais, seu ponto de vista 
coincidia totalmente com os pontos de vista de tais dirigentes. Heideg­
ger era anti-semita, inimigo da democracia, profeta de uma missão 
especial do povo alemão e da supremacia da língua alemã. Esses ele­
mentos são suficientes para caracterizar o nazista. O problema que nos 
concerne é, então, saber se um nazista tem autoridade para interpretar 
um filósofo como Nietzsche - já não quero discutir aqui a questão de 
saber se um nazista tem autoridade para construir uma ontologia. Os 
discípulos de Heidegger têm uma tal fascinação pela construção inte­
lectual elaborada pelo mestre, que a julgariam respeitável, mesmo que 
ficasse provado ter sido Hitler, e não o filósofo, o autor dessa obra. Do 
ponto de vista nietzschiano, entretanto, é totalmente inadmissível pensar 
que um filósofo possa ser compreendido sem se levar em conta os fatos 
de sua existência biográfica. Os discípulos de Heidegger podem se
40 MARIO VIEIRA DE MELLO
concentrar todo o tempo que quiserem sobre as excentricidadesda 
ontologia de O Ser e o Tempo, mas estão tão desqualificados quanto o 
mestre para emitir o menor julgamento sobre a problemática de Nietzs­
che - para se qualificarem teriam, como o mestre, de provar, contra as 
afirmações de Nietzsche, que a essência de uma filosofia nada tem a ver 
com a personalidade e as experiências várias do homem que a elaborou.
Heidegger nos oferece uma filosofia do Ser. E manifesta seu des­
dém pelas filosofias interessadas pelo conceito de valor. Eis a frase que 
pronunciou em 1935, num curso que só foi publicado em 1952, sob o 
título Introdução à Metafísica:
Em 1928 apareceu uma bibliografia geral do conceito de valor, primeira parte, 
í 'itam-se a í seiscentas e sessenta e uma publicações sobre o conceito de valor. Eprovável 
c|ue agora já se tenha chegado ao milhar. Eis o que se chama hoje de filosofia. Em 
particular o que é hoje lançado no mercado como fdosofia do nacional-socialismo e que 
nada tem a ver com a verdade interna e a grandeza desse movimento (isto é, o encontro, 
a correspondência entre a técnica determinada planetariamente e o homem m oderno) 
faz sua pescaria nas águas turvas desses valores e dessas cifras.
Estaria a filosofia de Nietzsche incluída na lista dessas filosofias que 
nada tinham a ver com a verdade interna e a grandeza do movimento 
nazista? Se isso é verdade - e deveria sê-lo, porque o tema fundamental 
da filosofia de Nietzsche é a questão do valor - , por que Heidegger 
estuda de modo tão minucioso uma filosofia inspirada em princípios que 
despreza? Na verdade, ao analisar a obra de Nietzsche, o principal 
esforço de Heidegger é no sentido de mostrar que a noção de valor 
representa nela a forma mais extremada do esquecimento do Ser - como 
se, em épocas anteriores, o homem pouca atenção tivesse dado ao 
problema do valor e só se tivesse preocupado com a maior ou menor 
refulgência do Ser. É baseado nessa idéia extravagante - mas recebida 
por intelectuais sofisticados com um entusiasmo quase delirante - que 
Heidegger pontifica sobre Nietzsche, caracterizando-o como o último 
metafísico do Ocidente. Qualquer leitor de Nietzsche mais perspicaz 
não poderia deixar de surpreender-se com essa extravagância. Nietzs­
che, um metafísico ? Nietzsche, pronunciando-se sobre valores que são 
apenas a última dissimulação do Ser, a sua mais extremada ocultação? 
- Sim, respondem gravemente os heideggerianos, e mais gravemente 
ainda nos descrevem todo o processo, todas as etapas por que passa a 
idéia do Ser até transformar-se nessa realidade totalmente diferente que
NIETZSCHE: O SOCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 41
é o valor e por trás da qual aquela idéia se esconde em virtude de um 
jogo curioso, cujas regras é difícil de atinar.
Heidegger interpreta, pois, a filosofia de Nietzsche, tomando como 
ponto de partida não a idéia de valor, mas a idéia do Ser. A metafísica 
de Nietzsche, segundo ele, representa o aniquilamento do Ser no seu 
esquecimento extremo. A subjetividade do Espírito racional de Hegel 
cede lugar à subjetividade absoluta da Vontade. É preciso, dizem os 
heideggerianos, que a Vontade destrone a Racionalidade, é preciso que 
ela se aproprie da essência incondicional da subjetividade liberada de 
toda determinação extrínseca. O que há de querer a Vontade? - Nada, 
a não ser ela própria. Querer a si própria, tornar efetivo seu próprio 
caráter absoluto, isto quer dizer: autorizar-se, a partir de si mesmo, ao 
exercício soberano de um poder sempre acrescido - assim encarada na 
sua essência autotélica, uma tal Vontade deve se chamar Vontade de 
potência. Longe de suprimir as categorias lógicas que destronou, tal 
Vontade as submete a seu serviço; essas categorias, subordinadas à 
Vontade, tomam agora o nome de valores. A filosofia de Nietzsche, 
então, é o fim de um longo processo de obnubilação do Ser, até o seu 
esquecimento total; é assim uma metafísica de vontade de potência, isto 
é, uma filosofia que não cria, mas apenas posiciona valores. Nietzsche, 
definitivamente, não cria valores, ele simplesmente esquece o Ser; e por 
isso sua filosofia é uma metafísica, isto é, uma disciplina ligada primor­
dialmente ao Ser, que é esquecido e transformado em valor.
Vemos, assim, como a compreensão que Heidegger tem de Nie­
tzsche revela suas afinidades com o nazismo. O anúncio do fim da 
metafísica e a rejeição das filosofias de valor só podem significar o 
advento de uma nova era, em que a vontade de potência se afirma como 
o fator preponderante, como o fato fundamental da vida humana - o 
advento de uma era, em que o Führer é chamado a representar um papel 
essencial na organização das sociedades. E verdade que a ontologia de 
Heidegger deixa entrever a possibilidade de uma existência autêntica, 
em que a natureza do Ser é revelada plenamente - mas isso não parece 
poder ser realizado sem a intervenção conjunta do povo e do Führer. 
Heidegger deixa sempre envolto em espessas camadas de mistério o 
processo pelo qual o Ser poderia ser revelado plenamente, criando até 
a ilusão de que a seu ver a autenticidade da existência poderia ser 
adquirida pelo esforço exclusivo do indivíduo. Mas quando refletimos 
sobre suas declarações a respeito do encontro do homem moderno com 
a técnica determinada planetariamente, vemos com clareza que não é
42 MARIO VIEIRA VE MELLO
através de soluções obtidas no plano do indivíduo que Heidegger pensa 
poder afrontar os problemas da civilização contemporânea. Heidegger 
i < ■ jeita os valores e aceita o Führer - o Führer não como anunciador de 
valores novos, mas como um dos fatores indispensáveis à realização da 
existência autêntica.
A literatura sobre Nictzsche tomou um rumo completamente novo 
depois da interpretação heideggeriana. Heidegger foi, depois da Segun­
da ( iuerra Mundial, juntamente com Marx, o filósofo mais influente na 
Europa continental e, em particular, na França. A teoria dos valores 
parecia, então, ter entrado em declínio, e a ontologia se afirmava como 
a disciplina filosófica por excelência. Falava-se de Nietzsche, natural­
mente, não porque suas idéias suscitassem interesse, mas porque Hei­
degger falara nele e falara de um modo que, para alguns, parecia mesmo 
excessivo. A verdade é que Nietzsche foi o grande adversário que 
Heidegger encontrou no ápice de sua carreira. Heidegger procurou 
dominá-lo, transformá-lo numa peça do seu sistema, reduzi-lo à sua 
própria visão de mundo, mas, no final, conheceu o fracasso e foi vencido 
pela qualidade mais viva do pensamento de Nietzsche. Acontece tam­
bém que, mais ou menos nessa época, os Arquivos Nietzsche tornaram- 
se acessíveis aos pesquisadores. Karl Schlechta, em 1958, escreveu seu 
livro O Caso Nietzsche, em que as manipulações e falsificações de 
Elisabeth, irmã de Nietzsche, eram pela primeira vez levadas ao conhe­
cimento do grande público. Heidegger, naturalmente, havia analisado 
os textos de Nietzsche, quando eles ainda estavam sob o controle de 
Elisabeth. Alguns de seus discípulos, espectadores daquela luta silen­
ciosa, devem ter compreendido qual era a motivação essencial de um 
tal confronto. Nietzsche passou a ser estudado não por constituir objeto 
das preocupações de Heidegger, mas como o pensador que se dirigia 
melhor do que ninguém aos problemas da época. Uma série de livros 
surgiu nessa época de renascença de Nietzsche: de Eugen Fink, de Gilles 
Deleuze, de Klossowsky, de Jean Grenier, de Paul Valadier, de Georges 
Morei, de Sarah Kaufmann, de Michel Guérin, de Pierre Vance e de 
Curt Paul Janz, entre outros. Desejo destacar aqui Jean Grenier, com 
um estudo extremamente competente sobre o problema da verdade em 
Nietzsche; Paul Valadier, que submete sua fé cristã a uma confrontação 
com o pensamento nietzschiano e que, com grande coragem e penetra­
ção, se dispõe a passar pelo teste; e Curt Paul Janz, que nos ofereceu a 
melhor e mais completa biografia de Nietzsche surgida até hoje. Esses 
autores e muitos outros contribuíram fortemente para criar um novo
NIETZSCHE: O SÓCRA TES

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