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SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA DO NORTE DO BRASIL CURSO DE FORMAÇÃO EM TEOLOGIA INTRODUÇÃO AO ANTIGO TESTAMENTO MÓDULO - I (Apostila com matéria a ser trabalhada em sala de aula) Professor Marcos A M Bittencourt Recife, 2010 1 ÍNDICE PG. I – ANTIGO TESTAMENTO – ARTIGOS INTRODUTÓRIOS 02 1.1 – Conceito de Antigo Testamento 02 1.2 – Classificação dos livros do Antigo Testamento 02 1.3 – Barreiras para o Estudo do Antigo Testamento 03 1.4 – Instrumentos de Auxílio ao Estudo do Antigo Testamento 04 II – CONCEITO DE HISTÓRIA DO ANTIGO TESTAMENTO - O AGIR DE DEUS NA HISTÓRIA 05 2.1 – Retrospecto da história de Israel - Período Patriarcal (2000 a 1750 a.C.) 06 2.2 – Os Hebreus no Egito (1750 a 1300 a.C.) 07 2.3 – O Êxodo, a Peregrinação e a Conquista de Canaã (1300 a 1200 a.C.) 11 2.4 – O período dos Juízes (1300 a 1020 a.C.) 13 2.5 – O período da Monarquia (1020 a 586 a.C.) 15 2.6 – O período do Exílio Babilônico (586 a 538 a.C.) 19 2.7 – O Período da Restauração (Persa) – Retorno do Exílio (538 a 333 a.C.) 20 III – INSTITUIÇÕES ISRAELITAS DO TEMPO DO ANTIGO TESTAMENTO 21 3.1 – Instituições Familiares 21 3.2 – Instituições Civis e Militares 23 3.3 – Instituições Religiosas 23 IV – LITERATURA VETEROTESTAMENTÁRIA 31 4.1 – Formação das Leis de Israel 31 4.2 – Introdução ao estudo do Profetismo 33 4.3 – Breve Comentário sobre Poesia no Antigo Testamento 36 4.4 – Sabedoria do Antigo Testamento – Seis Observações 37 V – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DOS LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO 38 5.1 – O nome e os nomes 38 5.2 – Autoria e data 38 5.3 – Esboço do Pentatêuco 41 5.4 – Principais ensinamentos – exposição da teologia do bloco 42 BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS BIBLIOGRA’FICAS 44 2 I – ANTIGO TESTAMENTO – ARTIGOS INTRODUTÓRIOS 1.1 – CONCEITO DE ANTIGO TESTAMENTO Quando se fala em “Antigo Testamento” e “Novo Testamento”, pensa-se nas duas principais divisões da Bíblia sob o ponto de vista da classificação técnica e didática. Entretanto, o sentido original dessas expressões não visava livros, mas sim as duas “economias” de salvação divina, ou seja, a do povo eleito de Israel e a do povo eleito fundado por Cristo sob a denominação de Igreja. A palavra portuguesa “testamento” reproduz o termo latim “testamentum” e o grego “diathéke”. Neste sentido apresenta a última vontade de uma pessoa na ocasião de sua morte, conforme Hebreus 9:16-17. O sentido mais antigo da palavra encontra-se na palavra hebraica “berit”, que significa “pacto”, indicando o acordo salvífico entre Deus e o povo de Israel, ou a salvação decretada por Deus a favor da humanidade. Em II Reis 23:2,21 fala-se em “livro da aliança” com referência ao livro encontrado no templo pelo sacerdote Hilquias na época do Rei Josias, o qual serviu de base para uma importante reforma político-religiosa por volta de 622 a.C. Esse documento, segundo as evidências do conteúdo e natureza dessa reforma, continha o texto básico daquilo que se chama hoje de “Deuteronômio”. Também, o Apóstolo Paulo, se referiu a toda a literatura do povo pré-cristão como “Antigo Testamento” (II Coríntios 3:14), pensando ainda na idéia de pacto e aliança comum aos antigos. É sempre bom lembrar que os judeus não intitulam a sua literatura como “Antigo Testamento”, uma vez que não consideram o pacto feito com Moisés como antigo e, portanto, precisando de uma novidade. Essa divisão é cristã e, provavelmente, só veio a cristalizar-se por volta do Século V d.C., quando os livros do “Novo Testamento” existiam num corpo organizado, num rol ou lista de livros sagrados que a Igreja chamou de “Cânon”. Como a mentalidade cristã chegou à interpretação da literatura sagrada como “Antigo” e “Novo” testamentos? A teologia parte do princípio que a religião de Israel baseava-se num pacto entre Yehweh e seu povo. Por sua promessa, Yehweh estabeleceu o pacto e coube ao povo cumprir os mandamentos divinos (Êxodo 34:10-11). O sinal desse ajuste foi a circuncisão. Na verdade, os textos sacerdotais sempre apresentam um Deus que se comunica com o homem através de pactos (Na criação, Gênesis 2; em Noé, Gênesis 9; em Abraão, Gênesis 12 e 17; em Moisés, Êxodo 19). Com o passar do tempo, a religião de Israel tornou-se incapaz de observar corretamente as condições do pacto, ou melhor, de cumpri-lo, na medida em que desviou-se do direito transmitido aos antigos (Lei – “Torah”), desobedecendo a Yehweh e tornando a religião num ritualismo cego manifestado por práticas exteriores (liturgias e sacrifícios). Os profetas perceberam esse desvio bem cedo (Isaías 1:10-17). Desde então, já anunciavam o “novo” (Isaías 43:18-19; Jeremias 31:31-34). Essa concepção de “Novo Pacto” foi compreendida pelos cristãos como realizada plenamente na vida e morte de Jesus Cristo (Mateus 26:28; I Coríntios 11:25). A partir de Paulo, percebe-se Moisés e seus escritos como “Antiga Aliança” (II Coríntios 3:12-15) ou como “primeira aliança” (Hebreus 8:7-13; 9:15). A separação para fins didáticos só aparece a partir do momento em que a Igreja chega a uma reforma para a lista de livros do Novo Testamento tal qual possuímos hoje, ou seja, um Cânon de 27 livros, por volta do início do século V d.C. 1.2 – CLASSIFICAÇÃO DOS LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO 1.2.1 – BÍBLIA JUDAICA A) “TORAH” (Lei) – Gn, Ex, Lv, Nm, Dt B) “NEVI’ IM” (Profetas) – Profetas Anteriores (Js, Jz, Sm, Rs); Profetas Posteriores - Is, Jr, Ez, Doze Profetas (Os, Na, Jo, Hb, Am, Sf, Ob, Ag, Jn, Mq, Zc, Ml). C) “QETUVIM” (Escritos) – Sl, Pr, Jí, os 5 “rolos festivos” ou Megillot(Ct, Rt, Km, Ec, Et), mais Dn, Es-Ne, Cr. OBSERVAÇÕES: a) A distinção entre profetas “anteriores” e “posteriores” é, de acordo com Werner Schmidt (1994, p.13), explicada em termos de espaço, ou seja, pela disposição dos livros dentro do cânon na medida cronológica do aparecimento dos profetas. A base para a classificação 3 são os grandes profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel, todos posteriores ao oitavo século a.C. Os profetas anteriores seriam os antigos profetas de Israel (Josué, Samuel, Débora, Gideão, Saul, entre outros) assim considerados por falarem em nome do Senhor. b) O historiador judeu Flávio Josefo descreve em sua obra Contra Ápion, que o Canon possuía 22 livros. Algumas escolas sugerem que ele considerou Rute como parte de Juízes, e Lamentações como parte de Jeremias. Jerônimo, o tradutor da Bíblia para o latim, conhecida como Vulgata, também fez essa mesma afirmação no Prologus Galeatus. c) Os judeus de fala grega, também chamados helenistas, acrescentaram à lista acima, oriunda dos judeus que moravam na Palestina, outros livros que, mais tarde católicos oficializaram (Concílio de Trento-Itália, abril de 1546) e que os protestantes rejeitaram, rotulando-os de “Apócrifos” (que significa “secretos, ocultos, ou não revelados”). São eles: Judite, Sabedoria, Tobias, Eclesiástico, Baruc, I Macabeus, II Macabeus. Existem ainda alguns acréscimos a Ester, Daniel e II Crônicas. 1.2.2 – BÍBLIA “PROTESTANTE” A) Livros da Lei – Gn, Ex, Lv, Nm, Dt. B) Livros Históricos – Js, Jz, Rt, I/II Sm, I/II Rs, I/II Cr, Es, Ne, Et. C) Livros Poéticos – Jó, Sl, Pv, Ec, Ct. D) Livros Proféticos – Profetas Maiores (Is, Jr, Lm, Ez, Dn, Profetas Menores (Os, Jl, Am, Ob, Jn, Mq, Na, Hc, Sf, Ag, Zc, Ml. OBS: Em algumas listas, o livro de Lamentações aparece na subdivisão de “Livros Poéticos”, devido ao estilo de seu conteúdo. 1.3 – BARREIRAS PARA O ESTUDO DO ANTIGO TESTAMENTO 1.3.1 – PROBLEMA HERMENÊUTICO – Acontece quando se interpreta uma passagem do “Antigo Testamento” deslocando-a do seu contexto original e do seu sentido histórico. 1.3.2 – PROBLEMA DOUTRINÁRIO – Em decorrência do problema hermenêutico,surge o problema doutrinário. Duas questões devem ser levantadas aqui: a–O fato de que determinadas palavras, conceitos, dogmas, costumes, práticas encontram-se escritos na Bíblia significa que eles são ordinariamente “bíblicos”? Ex.Pitonisa de En-dor, Eliseu e as ursas do campo. b– É salutar construir doutrinas alicerçadas em fatos isolados ou em costumes do Antigo Testamento? 1.3.3 – PROBLEMAS DA REDUÇÃO – Alguns afirmam que, sendo o Novo Testamento o cumprimento do Antigo, o estudo das escrituras judaicas é de pouco valor. Nesse caso, o Antigo Testamento é reduzido ao Novo. 1.3.4 – PROBLEMA DA DISSOCIAÇÃO – Alguns tem dificuldades em associar o Deus do Antigo Testamento (compreendido como um Deus guerreiro, vingativo, sádico) ao Deus do Novo Testamento (compreendido como um Deus gracioso, amoroso, conforme visto na pessoa e mensagem de Jesus Cristo). Marcião, um dos pais apostólicos do Séc. II D.C. foi um dos ardorosos defensores desta posição, criando uma lista de livros do Novo Testamento que excluía qualquer relação com o Antigo Testamento. 1.3.5 – PROBLEMA DE LINGUAGEM – A linguagem oriental antiga, extremamente criativa e sem abstrações, carece de uma interpretação adequada em virtude da distância que nos separa desse mundo cheio de símbolos, números e hipérboles. Muitos traços peculiares conhecidos como hebraísmos e aramaísmos também merecem igual atenção. 4 1.3.6 – O CONFLITO ENTRE A BÍBLIA E AS CIÊNCIAS NATURAIS – A tentativa de uso da Bíblia como um livro de orientação científica tomando-se como base sua inspiração divina pode criar um clima de desprezo pela Escritura Sagrada, colocando-a numa posição constrangedora, na medida em que se lhe confere um papel para o qual não foi destinada. Exemplo: Js. 10:12-14 (limitação do autor humano com relação ao conhecimento dos movimentos da terra em torno do sol). 1.3.7 – PROBLEMAS MORAIS – Quando se lê a Bíblia como quem lê um livro de história percebe-se uma série de incongruências entre os homens e Deus, e determinadas posturas éticas. Abraão parece mentir para preservar sua vida (Gn. 12:10-12); Jacó rouba o direito de primogenitura do seu irmão (Gn. 27); Jefté mata sua filha em conseqüência de um juramento (Jz. 11); Davi é cruel e mentiroso (I Sm. 27:7-11); ao contrário do que nos é apresentado, Jó é rebelde e blasfemo (Jó 9:23); a guerra santa é uma prática difícil de se aceitar nos dias atuais (Dt. 20:12-16). 1.3.8 – PROBLEMAS TEOLÓGICOS – O principal deles é a crença na Eleição de Israel. Como entender a predileção de Deus por um povo em detrimento de outro. 1.4 – INSTRUMENTOS DE AUXÍLIO AO ESTUDO DO ANTIGO TESTAMENTO 1.4.1 – O CONTEXTO – Aqui se torna necessário dois níveis do aprendizado do domínio cognitivo: o conhecimento e a compreensão da posição histórica do autor, isto é, do seu contexto, ou seja, a sua situação histórica, política, social, etc. Deve-se considerar que a Bíblia foi produzida num ambiente bem diferente do nosso, refletindo maneiras e formas peculiares. Não se pode simplesmente “lançar” um versículo, tirando-o da realidade em que estava inserido para utilizá-lo hodiernamente a título de contextualização ou aplicação. 1.4.2 – A LÍNGUA – Esse instrumento tem relações com o contexto, mas merece um estudo à parte. O linguajar oriental tinha características de ordem antropológica e gramatical bem diferente da nossa. O uso de hebraísmos era constante e o simbolismo dos números era significativo. 1.4.3 – O ANTIGO TESTAMENTO TEM UM ASPECTO PROFUNDAMENTE HUMANO – Miguel de Cervantes disse: “A verdade é mais divina quanto mais esconde o humano”; esse pensamento não vale para o Antigo Testamento. Nele, Deus ama o ser humano como ele é, com seus defeitos e paixões. Poder-se-ia aqui relacionar muitos exemplos. 1.4.4 – O ENCONTRO DA PALAVRA DE DEUS COM A PALAVRA DO HOMEM – No Antigo Testamento o homem treme diante da Palavra de Deus, ao mesmo tempo em que torna nítida a sua marca humana. Ambas cooperam no processo de revelação ou no “mostrar- se” divino. 1.4.5 – A MORAL DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É PERFEITA – A revelação definitiva nos chega através de Jesus Cristo. Ele mesmo se viu obrigado a distinguir claramente as normas ensinadas às gerações antigas e a nova moral, típica do cristão (Vide Sermão da Montanha). 1.4.6 – O ANTIGO TESTAMENTO COMO FRUTO DO DESENVOLVIMENTO DE REFLEXÃO TEOLÓGICA – Não se identifica apenas uma forma do pensar teológico no Antigo Testamento, formando uma unidade, mas diversas tendências que se desenvolveram num período de 1200 anos de história, aproximadamente (Ex: o conceito de monoteísmo absoluto – reta final da reflexão em torno de Yehweh). 5 II – CONCEITO DE HISTÓRIA NO ANTIGO TESTAMENTO - O AGIR DE DEUS NA HISTÓRIA A história é, para Israel, o lugar de encontro com Deus. A fé desse povo conforme exposta na Bíblia, não se fundamenta em mitos atemporais, alienados do espaço e do tempo que nos rodeiam. É uma fé que nasce e se desenvolve em contato direto com os acontecimentos desse mundo, no dizer de J.L. Sicre (Vide Sl. 136). Uma comparação feita por A. K. Grayson sobre outros ambientes culturais revelou o motivo do interesse que os assírios e caldeus tinham em contar o passado. Foram cinco, os motivos básicos: 1) Propaganda política. 2) Finalidade didática. 3) Exaltação do herói. 4) Consciência da importância de recordar certas coisas. 5) Utilidade prática (calendário, adivinhação, astrologia, etc.). No caso particular de Israel, todos os elementos da pesquisa de Grayson foram notados, excluindo-se apenas o item 5, reprovado pelos textos bíblicos. Não se discute aqui as formas literárias que emolduraram as tradições israelitas, mas é fato que houve um interesse profundo na interpretação dos eventos do ponto de vista histórico. O problema é que nossa concepção de história não pode ser projetada sobre a forma dos escritos israelitas. Estes relatam o seu passado numa historiografia que possui três vertentes básicas: 1) Historiografia Épico-Sagrada • Teve importância nos primeiros séculos de Israel. • Sagas de heróis (façanhas militares). • Aglomerado de episódios individuais sem unidade. • Tendência a “exagerar” dados. • Predileção especial por milagres. • Exemplo : Jz. 7:1; 8:1. 2) Historiografia Profana • Ao contrário da anterior, aqui a história se desenvolve pela vontade de homens cativos de suas paixões e ambições, sem a intervenção extraordinária de Deus. • Exemplos: I Rs. 11 e 12 (Morte de Salomão e a divisão do reino); II Sm. 9-20 w I Rs.1-2 (história da sucessão do trono de Davi). 3) Historiografia Religioso-Teológica • Predominante no Antigo Testamento. • O dados do passado são compilados com o objetivo de inculcar no ouvinte uma idéia, uma mensagem. • Exemplo: A maneira de narrar a história no livro de Juízes. 6 2.1– RETROSPECTO DA HISTÓRIA DE ISRAEL–PERÍODO PATRIARCAL (2000 A 1750 a.C.) De acordo com a Bíblia, a história de Israel começa com a migração dos patriarcas hebreus da Mesopotâmia para a Palestina. Essas narrativas são encontradas no livro de Gênesis caps. 12 a 50. De acordo com Bright, as narrativas do Gênesis são em preto e branco numa tela simples, sem nenhuma perspectiva de profundidade. Esse livro nos pinta certos indivíduos e suas famílias movimentando-se dentro de um mundo, como se vivessem sozinhos nele. Os grandes impérios, mesmo o pequeno povo de Canaã, se são mencionados, não passam de vozes que se ouvem de fora do palco. Se os faraós do Egito têm uma modesta parte nas narrativas, eles não são identificados pelos nomes; não sabemos quem eram eles; tampouco, nenhum antepassado hebreu mencionado no Gênesis foi revelado ainda em nenhuma inscrição contemporânea. Em conseqüência de tudo isso torna-se impossível dizer em termos exatos quando Abraão, Isac e Jacó realmente viveram; tampouco podemos subestimar a evidência arqueológica. O testemunhoda Arqueologia é indireto. Ele tem dado ao quadro das origens de Israel um sabor de probabilidade e tem fornecido o “background” para o entendimento desse quadro, mas não tem provado que as histórias são verdadeiras em seus pormenores. Ao mesmo tempo não apareceu ainda nenhuma evidência que contradiga a tradição bíblica. Segundo Bright, as origens de Israel não eram tão simples fisicamente. Teologicamente eram todos descendentes de Abraão; fisicamente eles provinham de outros troncos diferentes, clãs que imigraram na Palestina no começo do segundo milênio antes de Cristo e aí se misturaram e proliferaram com o passar do tempo. Muitos desses clãs se estabeleceram onde puderam encontrar terra e se organizaram em cidades-estado segundo o padrão feudal. A maior parte desses clãs veio da Mesopotâmia, onde reinava um ambiente de confusão política gerando a desintegração da cidade de Ur com dinastias rivais lutando entre si. No Egito, sob os faraós do Médio Império (de Tebas a Menfis), instalava-se uma época de prosperidade. Os faraós da 12ª dinastia empreenderam projetos ambiciosos, sistema de canais e de fortificações, desenvolvendo- se ainda a Medicina e a Matemática. Os patriarcas propriamente ditos seriam os chefes de clãs consideráveis. 2.1.2 – COSTUMES E CARACTERÍSTICAS PATRIARCAIS – Muitos fatos mencionados no Gênesis são endossados pelo conhecimento da cultura de reinos na Mesopotâmia dessa época. Segue abaixo algumas das diversas características desses clãs. Outras características serão consideradas na unidade III quando estudaremos as instituições israelitas do tempo do Antigo Testamento. • O patriarca tinha influência decisiva na escolha de cônjuges para seus filhos. • Os casais sem filhos adotavam um filho que os servia durante toda a vida e seria o herdeiro. Mas se nascesse um filho natural, o filho adotivo tinha que ceder seu direito de herdeiro. • Os contratos nupciais obrigavam a mulher estéril a providenciar uma substituta para o seu marido. • Se nascesse um filho dessa união ficava proibido o desprezo à esposa escrava e ao seu filho. • A aparência desses patriarcas era semelhante à dos seminômades do segundo milênio na Palestina; vestidos com roupas multicoloridas, deslocando-se a pé com todos os seus pertences e filhos em lombo de burro (conf. gravura em um túmulo do séc. X a.C., encontrado em Beni-Asan, no Egito). • Habitavam em tendas. 2.1.2 – A RELIGIÃO DOS PATRIARCAS – A Bíblia considera Moisés como fundador da religião de Israel (Ex. 3). Apesar disso, a narrativa bíblica liga a religião javista com a religião dos patriarcas (Ex. 3:6-13; 6:3). Estudaremos mais sobre a revelação especial do nome de Deus (Yehweh) no capítulo sobre o Êxodo. O quadro que se tem dos patriarcas é que eles adoravam a Deus sob vários nomes; esses nomes estavam ligados a um feito de Deus no passado e em local especial. Os descendentes dos patriarcas adorariam na memória do nome do patriarca, o Deus que esse patriarca legou, sob diversos nomes. A Bíblia menciona alguns deles, a saber: 7 • ‘El Shaddai (Gn. 17:1; 43:14) – “Deus Todo-Poderoso”. • ‘El Elyon (Gn. 14:18-24) – “Deus Altíssimo”. • ‘El Olam (Gn. 21:33) – “Deus Eterno”. • ‘El Roy (Gn. 16:13) – “Deus que me vê”. Na narrativa do Gênesis, cada patriarca é representado adorando ao seu Deus por livre e pessoal escolha e entregando-se, depois a este seu Deus “O Deus de Abraão”, em Gn. 28:13; 31:42-53; “O Temido de Isac” em Gn. 31:42-53; “O Poderoso de Jacó” em Gn. 49:24. O quadro do Gênesis de uma relação pessoal entre o indivíduo e seu Deus fundamentada por uma promessa e selada por uma aliança é da maior autenticidade. A fé na promessa divina representa o elemento original da fé dos antepassados seminômades de Israel. 2.2 – OS HEBREUS NO EGITO (1750-1300 a.C.) 2.2.1 – CONTEXTO HISTÓRICO – Antes do conhecimento das circunstâncias que levaram os descendentes dos patriarcas a se instalarem no Egito, é necessária uma compreensão do contexto histórico dos impérios que cercavam a Palestina. Por exemplo, no Egito, durante o Séc. XVIII a.C., o poder do Médio Império estava sendo enfraquecido. Com as migrações dos povos asiáticos para as bandas do sul da Palestina, as portas do delta egípcio estavam sendo abertas para a dominação estrangeira. Nessa época, o Egito sofreu a invasão dos soberanos estrangeiros chamados de hicsos (chefes estrangeiros – 1720 a 1540 a.C.), os quais efetuaram sua conquista em duas fases: a) entrincheiraram-se no Delta, consolidando posições (1720); b) iniciaram o domínio político propriamente dito. Os hicsos foram expulsos do Egito em 1540 a.C. pelo faraó nacionalista Amósis. A presença dos hicsos no Egito representa um período de franca abertura para a entrada de estrangeiros, inclusive hebreus. Outro importante império foi o da Babilônia. Durante essa época encontrava-se ameaçado pela Assíria ao norte e Larsa ao sul. Porém, com a ascensão do rei Hamurabi ao trono essa situação de inferioridade se reverteu e a Babilônia resistiu a todas as ameaças, vencendo os seus inimigos. Através de Hamurabi a Babilônia gozou um grande florescimento cultural. Desse período temos uma riqueza de textos: cópias de épicos antigos (por exemplo, narrativas babilônicas da criação e do dilúvio), listas de palavras, dicionários, tratados de matemática e de astronomia, etc. Contudo a mais importante de todas as realizações de Hamurabi foi o seu famoso código de leis, publicado no final de seu reinado. 2.2.2 – COMO OS HEBREUS FORAM PARA O EGITO – O período de 1750 a 1300 a.C. representa uma época na história de Israel onde a Bíblia é a nossa única fonte. Os registros egípcios nunca fizeram menção de uma presença de Israel. Uma explicação para isso é que, ocorrendo essa passagem dos hebreus pelo Egito durante o período dos soberanos hicsos, os egípcios teriam considerado essa época vergonhosa demais para ser descrita. O fato é que a narrativa bíblica tem o seu valor e, de acordo com o pensamento de Bright, exige uma fé a priori: “uma tradição dessa espécie nenhum povo poderia inventar. Não se trata de nenhum episódio épico e heróico da migração, mas da recordação de uma servidão vergonhosa da qual somente o poder de Deus poderia livrar”. Um argumento muito forte que reforça a historicidade da passagem de Israel pelo Egito são os nomes egípcios comumente encontrados entre os israelitas nessa época, por exemplo: Moisés, Ofiní, Finéias, Merarí, etc. 8 Duas perguntas devem ser colocadas aqui: 1) O que levou os israelitas a se instalarem no Egito? 2) Sob que circunstâncias viveram? Primeiramente, todos os teólogos e estudiosos do Antigo Testamento concordam em afirmar que os israelitas chegaram ao Egito através das migrações dos seminômades que habitavam o sul da Palestina. Nos tempos de fome e carestia esses iam buscar uma vida melhor no Vale do Nilo, que era fértil e não dependia das chuvas. Esta situação é pressuposta em algumas passagens do Gênesis (Gn. 12:10; 20:1; 26:1; 42:1, 43:1, 46:1). Essa era uma situação repetida todos os anos e muitos desses grupos seminômades fixaram residência no Egito. Ora, na medida em que se compreende que o período de dominação hicsa foi favorável à entrada de grupos estrangeiros no Egito, compreende-se também que, a partir do momento em que os mesmo foram banidos e expulsos, deu-se início uma política nacionalista xenofobista (aversão ou medo aos estrangeiros) que inclui a perseguição às etnias estrangeiras (Ex. 1:9-10). A partir daí muitos desses grupos seminômades foram convocados pelos egípcios para determinados serviços, sendo inclusive recrutados contra a vontade como trabalhadores braçais, mão-de-obra barata pra atividades na área da construção e olarias. De acordo com a Bíblia (Ex. 12:40), o período de permanência dos hebreus no Egito foi de 430 anos. 2.2.3 – O PROBLEMA DO CONFLITO DE DATAS DO ÊXODO - No caso específico dos faraós da opressão e do êxodo temos um problema históricovisto que dois grupos de historiadores e teólogos têm discordado quanto à datação da escravidão israelita, em virtude de interpretações diferentes para as evidências históricas e arqueológicas. As discussões concentram-se entre os faraós da 18ª e 19ª dinastias. Vejamos, primeiramente, um quadro histórico aproximado desses faraós: FARAÓS EGÍPCIOS – 18ª E 19ª DINASTIAS Dinastia / Faraós Período de reina do Hicsos dominam o Egito 1720 - 1570 18ª dinastia Amósis 1570-1546 Amenófis I 1546-1526 Tutmósis I 1526-1512 Tutmósis II 1512-1504 Hatshepsut 1503-1483 Tutmósis III 1504-1450 Amenófis II 1450-1425 Tutmósis IV 1425-1417 Amenófis III 1417-1379 Amenófis IV (Akenaton) 1379-1362 Semenca 1364-1361 Tutankamon 1361-1352 Ai 1352-1348 Horembeb 1348-1320 19ª dinastia1 Ramsés I 1320-1318 Set I 1318-1304 Ramsés II 1304-1236 Merneftá 1236-1223 O primeiro grupo de teólogos e historiadores considera que os faraós da opressão e do êxodo estão na 18ª dinastia. Partem do princípio da literalidade de I Reis 6:1 que informa que o êxodo aconteceu cerca de 480 anos antes da fundação do templo de Salomão, fato que ocorreu em aproximadamente 966 a.C, o que colocaria a datação da saída de Israel do Egito por volta de 1446 a.C., época de Amenófis II (1450-1425). Essa articulação, estando correta, colocaria o nascimento de Moisés para o período de transição entre Amenófis I (1546-1526) e Tutmósis I (1526 a 1512), visto que, de acordo com Ex.7:7, Moisés estava com 80 anos pouco antes do êxodo. Moisés teria sido adotado pela filha de Tutmósis I, Hatshepsut (1503-1483), a qual, por sua vez, teria se casado com seu meio-irmão, Tutmósis II (1512-1504), bem mais jovem que sua 9 meia-irmã. Tendo morrido cedo em virtude de doença misteriosa, deixou Tutmósis III (1504- 1450) ainda menino como rei, estando o Egito nesse momento regido ainda que não oficialmente2 por Hatshepsut. Tutmósis III teria sido o mais ilustre e poderoso dos faraós da 18ª dinastia, tendo realizado cerca de 16 campanhas militares na Palestina, consolidando o domínio egípcio nessa região. Hatshepsut, por sua vez, enquanto esteve no poder, caracterizou-se por grande autoridade e tato político. Merrill (2002, p.54) argumenta que o jovem Moisés teria sido uma ameaça para Tutmósis III3, visto que ele era “filho da filha de faraó” (Hb.11:24), o que teria justificado a fuga de Moisés depois deste ter matado um egípcio. O raciocínio aqui é que depois que os hicsos foram expulsos do Egito, Amósis (1570-1546), o faraó mencionado em Ex.1:8 como o rei “que não conhecera a José”, teria iniciado uma política de trabalhos forçados (Ex.1:11-14) em olarias e na construção civil aos estrangeiros que ficaram no país, aproveitados como mão de obra escrava, dentre eles, descendentes da Jacó. Como se não bastasse essa política escravizante, um dos faraós seguintes, Amenófis I (1546-1526) ou Tutmósis I (1526-1512), teria praticado um genocídio (Ex.1:15-16). Assim, pesquisadores como Merrill (ibid, p.55-56) colocam Amenófis II (1450-1425) como o faraó do êxodo, visto que duas de suas campanhas militares na Palestina (Em 1450 e 1446) combinariam com uma possível perseguição a um povo em fuga, tendo seu exército sido desmoralizado numa tentativa frustrada de passagem pelo Mar dos Juncos (tema que será abordado adiante). O outro grupo de teólogos e historiadores defende que os faraós da opressão e do êxodo estão situados na 19ª dinastia. Partem dos princípios da interpretação simbólica de I Rs.6:1 e da contribuição da ciência histórica e arqueológica para elucidar essa discordância. Primeiro, porque segundo alguns (BRIGHT, 1978, p.158), a idéia de 480 anos seria simbólica, resultante da multiplicação de 40 vezes 12, harmonizando com I Cr. 6, texto que contaria cerca de 12 gerações no período em discussão. Uma geração ideal abrangeria 40 anos. Mas torna-se simbólica, porque uma geração durava de 20 a 25 anos, o que colocaria a datação do êxodo para os meados do XIII Século antes de Cristo, época dos faraós da 19ª dinastia. Segundo, porque segundo alguns estudos (ALLEN, 1987, p.376), no período da 19ª dinastia, a capital do Egito foi mudada de Tebas, no “Alto-Egito”, para Mênfis, no “Baixo-Egito”, na época de Set I (1318-1304), ocorrendo nesse período intensa atividade na área da construção civil. Tendo residido no Alto Egito, os faraós da 18ª dinastia teriam se preocupado pouco com a construção civil nessa região. Isso coaduna com a localização geográfica da escravidão na região de Gosén, bem próxima a Sucot, local de onde partiria o povo de Israel em fuga, e Ramsés, uma das cidades reconstruídas pelos escravos hebreus. Aliás, argumentam ainda que sendo o nome da cidade “Ramsés”, um nome de um faraó da 19ª dinastia, por si só isso já seria um argumento decisivo. A outra cidade, chamada “Pitom”, significa “Casa de Tom”, o deus-sol, uma lembrança de Akenaton (Amenófis IV, 1379-1362). Outros argumentos a favor dessa teoria (GLUECK apud ALLEN, 1987, p.387) defendem que os reinos famosos invadidos pelos israelitas na época da conquista só teriam sido fundados depois do 13º século visto que antes os moradores da Palestina viviam como nômades. Da mesma forma, os reinos de Edom e Moabe, citados em Nm.20 e 21. Afirmam também, à luz da arqueologia, que cidades cananéias como Láquis e Debir, mencionadas na conquista, teriam experimentado grande destruição no Século XIII a.C. Nesse sentido, Set I (1318-1304) teria sido o “faraó que não conhecera a José” (Ex.1:8)4, o faraó da opressão e Ramsés II (1304-1236), o faraó do êxodo. Ultimamente alguns pesquisadores têm discordado dessa opinião (MERRILL, 2002). Argumentam que os nomes “Pitom” e “Ramsés” aplicados às cidades construídas pelos hebreus 10 podem ser, na verdade, anacronismos. Ou seja, mais tarde, quando os relatos da escravidão foram escritos, as cidades foram identificadas com os nomes posteriormente conhecidos, e não com os seus nomes originais. Assim, “Ramsés” seria o nome posterior para a cidade de Tanes. Um exemplo simples para a compreensão dessa linha de raciocínio é que ao contar a história do Brasil, nenhum historiador afirma que os descobridores chegaram à “Ilha de Vera Cruz”, termo usado por Cabral na época da descoberta. Ou ainda “Terra de Santa Cruz”, termo usado mais tarde quando descobriram que a “ilha” era, na verdade, um continente. Mas os historiadores usam o termo “Brasil”, termo do Século XVI, posterior, portanto, aos termos anteriormente citados. Um outro grande problema para a datação do êxodo no Século XIII a.C., é que na tentativa de harmonização de Ex.2:15,23 e Ex.4:19 com a cronologia histórica, verifica-se que Moisés não teria retornado ao Egito antes que aquele faraó que tentou tirar-lhe a vida estivesse morto, o que colocaria uma dificuldade para situar os eventos no período de Set I (1318-1304) e Ramsés II (1304-1236), dado o curto período de governo de Set I e o longo período de Ramsés II, para que se justificasse uma fuga de Moisés do Egito aos 40 anos de idade e o seu retorno aos 80. Merril (2002, p.65) cita mudanças de perspectiva no exame dos vestígios encontrados nos sítios arqueológicos palestinenses, após as escavações feitas por Glueck. Outros arqueólogos têm chegado à conclusão de que muitos dos achados remontam à Era do Bronze Recente (1600- 1200), ou era até mais antigos, o que comportaria as conquistas dos que saíram do Egito numa época em torno de 1400 anos antes de Cristo. O fato é que os dois lados têm argumentos plausíveis e isso explica a divisão no meio histórico-teológico. Contudo, julgamos mais razoáveis os argumentos a favor de uma datação para a opressão e o êxodo para meados do Século XV a.C. 2.2.4 – O PROBLEMA DO NOME HEBREU - De acordo com Martin Metzger, é por essa circunstância que os israelitas foram chamados de “hebreus”. Isso quer dizer que o nome hebreunão traz boas recordações pois lembra o sofrimento, vergonha da escravidão (Ex. 1:11-14; 2:11- 13). Essa reflexão nos remete necessariamente para a origem do nome hebreu yrb[ (‘ivri), que tem relação direta com a raiz do verbo rb[ ‘avar (“atravessar”, “passar para o outro lado”), uma referência aos ancestrais que vieram do outro lado do Eufrates. O termo aparece 34 vezes no Antigo Testamento assim distribuídas: a) Narrações do êxodo no cenário egípcio: • Ex.1:15,16,19,22 – história das parteiras desobedientes. • Ex.2:6,7,11,13 – nascimento e atuação de Moisés. • Ex.3:18; 5:3; 7:16; 9:1,13; 10:3 – Deus dos hebreus. b) Leis – Ex.21:2; Dt.15:12; Jr.34:9,14. c) Histórias de José – Gn.39:14,17; 40:15; 41:12; 43:32; d) Narrações das lutas contra os filisteus – I Sm.4:6,9; 13:3,19; 14:11,21; 29:3; e) Outros (textos tardios) – Gn.14:13; Jn.1:9; A análise dos textos acima mostrará que o termo “hebreu” tem relação com uma situação social desfavorável e de submissão sem que isso indique necessariamente uma pertinência ao povo israelita, aparecendo geralmente na boca dos outros povos como forma de depreciação. Mas também aparece como sinônimo de “israelitas”. Essa ambigüidade deve-se à possibilidade de mistura das tradições no andamento da história da formação do povo de Israel. Por exemplo, nas narrações das lutas entre filisteus e israelitas (I Sm.13 e 14) os hebreus fazem parte das tropas militares como uma terceira força e estão presentes em ambos os lados. Hans Trein (?,Pg.21-22) assim comenta o texto: 11 “Em I Sm.13:3-7 Jônatas destruiu a guarnição dos filisteus. Saul fez questão de que os hebreus soubessem disso. Os filisteus se reuniram para combater contra Israel ; o povo de Israel se escondeu em covas e cavernas, nos penhascos e poços, enquanto que alguns dos hebreus atravessaram o Jordão. Aqui os hebreus que atravessaram o Jordão estão distintos dos israelitas que se esconderam nas cavernas e nos penhascos. Em I Sm.13:19-20, importa para os filisteus impedir que os hebreus fabriquem espadas ou lanças; por isso todo o Israel tinha que ir aos filisteus, amolar seus instrumentos de trabalho agrícola. Aqui hebreus e israelitas são a mesma coisa. Em I Sm.14:11-12 os filisteus alertam para os hebreus que estão saindo das tocas e provocam Jônatas e seu escudeiro, para dar-lhes uma lição. Aqui mais uma vez hebreus é idêntico a israelitas, o que também confere com os israelitas que tinham se escondido nas cavernas em I Sm.13:3-7. Em I Sm.14:21-23 os hebreus que tinham estado junto com os filisteus se ajuntaram aos israelitas que estavam com Saul e Jônatas. Aqui hebreus está distinto de israelitas, e temporariamente até pelejaram contra Israel. Não seriam esses hebreus os mesmos que em I Sm.13:3-7 tinham atravessado o Jordão (para ajudar os filisteus?) e que agora voltam, pois a batalha tinha se definido vitoriosa para os israelitas? Não seriam esses também os mesmos hebreus que Saul quis informar subversivamente, de que Jônatas tinha derrotado a guarnição dos filisteus em Gibeá, com a segunda intenção de provocar neles, auxiliares dos filisteus, uma deserção?” Uma outra vertente no estudo da interpretação sobre a origem do nome está relacionada com a história dos movimentos migratórios já descritos no capítulo anterior. Segundo essa tese, o nome “hebreu” (‘ivri), tem uma íntima relação com o termo aramaico ap’ru, um termo nada elogiável, atribuído por nativos da Palestina aos pastores seminômades que estavam migrando para essa região cerca de 2000 a.C., tratados como “bandoleiros, ciganos ou ladrões ou algo parecido”. Um estudo feito por Hans Alfred Trein mostra que esses grupos cresceram favorecidos pelos conflitos entre os reinos cananeus que se dividiam a favor e contra o domínio egípcio na Palestina antiga, explorada por uma forte exigência tributária dos faraós. Cartas encontradas em Tell El Amarna (1887 d C) revelam o pedido de ajuda de príncipes cananeus ao faraó Amenófis IV (1360 a C) para que este enviasse tropas para expulsar os ap’ru , acusados de pilhagem na Palestina. Para Manfred Weippert (1967) os dois termos são aparentados lingüisticamente pois as línguas semitas só distinguem entre “b” e “p”. Assim a pesquisa iguala os dois grupos com um único grupo denominado em I Sm.13 e 14:21 de hebreus pelos filisteus. Parece que esse grupo que, antes servia aos filisteus, tinha desertado para o lado dos israelitas. Mais tarde, em I Sm.29, os filisteus desconfiarão de Davi e do seu exército de mercenários (que se oferecem para lutar pelos filisteus) temendo que eles também venham a desertar. 2.3 – O ÊXODO, A PEREGRINAÇÃO E A CONQUISTA DE CANAÃ (1300 A 1200 a.C.) 2.3.1 – CONTEXTO E ÊXODO – Baseados em descobertas arqueológicas e em relatos bíblicos do livro do Êxodo, podemos situar com aproximação o contexto histórico da opressão dos hebreus no Egito, cujas circunstâncias foram estudadas no capítulo anterior. Nessa época, os egípcios dominavam boa parte do mundo de então, incluindo a Palestina (Canaã), a qual era formada pela aglomeração de cidades-estados, cada uma delas com o seu rei, pagando ao Egito pesados tributos estipulados pelo faraó do momento. Embora a Palestina fosse dividida politicamente, formava uma unidade cultural, pois os povos que lá viviam possuíam língua, costumes e religião semelhantes. No Egito livre, sem a presença do hicsos os hebreus amarguravam uma situação de opressão, forçados ao trabalho nas olarias e na construção das cidades de Pitom e Ramsés (Ávaris, antiga capital dos hicsos), conforme relato de Ex. 1:1-14. Os dados concretos de Ex. 1:11 aliados às escavações arqueológicas permitem-nos concluir que Ramsés II (1301-1234 a.C.) foi o faraó dessa época. O texto bíblico ressalta nesse período duas importantes passagens: Primeira, a de Moisés como libertador e posteriormente, como legislador. Só a Bíblia tem informado sobre sua história até agora, e tem-se conhecido sobre a sua fina educação na corte egípcia, tendo sido um hebreu salvo da mortandade infantil, nunca negando suas tradições raciais (Ex. 2:11-15). Com certeza, além da condução do povo na saída do Egito pelo Mar (Mar dos 12 Juncos – Yam Suf), o ponto alto dessa história é a revelação de Deus a Moisés sob o nome de “Yehweh”, como fundamento para a religião de Israel. A adoração de Yehweh pelos antepassados israelitas pode ter sido assimilada por mediação dos midianitas (Jetro - Ex.18:12) ou dos quenitas (descendentes de Caim - Gn.4:15). Mas, Gn.4:25 faz uma afirmação importante sobre Enosh, descendente de Set, como o primeiro a invocar o nome do Senhor. Contudo, existem duas tradições que ligam Moisés tanto aos midianitas (Ex.2:16ss; 18) quanto aos quenitas (Jz.1:16 e 4:11), ambas fazendo referencias ao sogro de Moisés, apesar de conservarem nomes diferentes para a mesma pessoa (Jetro/Hobabe). Mais certo é pensar na importância do evento da teofania do Sinai (Ex.3) para a revelação do nome especial de Deus a Moisés, cuja raiz no hebraico é a do verbo “ser”, “estar”, “haver” hyh (hayah). A resposta do Senhor à pergunta de Moisés “qual é o seu nome?”, pode significar tanto “Eu sou o que estarei com vocês”, quanto “eu sou o que sou e, por isso, o que eu sou não é da sua conta. Creia em mim e deixe o resto comigo!”. Esse sentido do nome do Senhor evidencia-se através das narrativas que acompanham o processo de saída, peregrinação e conquista de Canaã, as quais estão adornadas com molduras sob a forma de epopéia, visto que nessas condições, as tradições seriam mais fortemente assimiladas pelos que as ouviam na compreensão de um Deus que agiu no passado do seu povo e que continuará intervindo para salvar. Segunda, a referente ao evento das pragas e o endurecimento do coração ( bl - Lev) do faraó (Ex. 8:32; 7:14). Alguns têm dado interpretações baseadas em fenômenos da natureza para explicar as pragas. O certo aqui é tentar compreender mais a atitude de faraó com relação a essas pragas, umavez que alguns textos dizem que “Yehweh endureceu o coração de Faraó” (Ex. 4:21; 7:3; 9:12; 10:1; 10:20; 10:27; 11:10; 14:4,8,17) e outros que “Faraó endureceu seu coração” (Ex. 7:13,14,22; 8:15,19,28; 9:7,34,35). Em Ex. 14:4 aparece o sentido teológico da obstinação do “Lev” (coração) de acordo com a tradição sacerdotal. Faraó não pode entender o sentido das pragas e não pode atuar a ponto de correspondê-las. Yehweh é quem faz a história. A sua intervenção chega até a capacidade de pensar e entender dos inimigos. 2.3.2 – PEREGRINAÇÃO NO DESERTO – O período no qual o povo hebreu viajou pelo deserto entre a região do Sinai e a região média da Palestina tem duas importâncias básicas: 2.3.2.1 – É a época intermediária entre a história de Israel no Egito e a conquista de Canaã. 2.3.2.2 – Representa o período quando Israel recebeu a sua religião característica, o Javismo, assumindo com ela a consciência de um povo. Isso não quer dizer que o Javismo não tenha evoluído com o passar dos séculos até ganhar a caracterização da religião pós-exílica conhecida posteriormente pelo nome de Judaísmo. Fato importante é que os profetas fizeram alusões a esse período como o momento e o local onde Israel aprendeu a amar ao Senhor nos moldes de uma relação esposo-esposa (Jr.2:2; Os.2:14). De acordo com os pesquisadores do Antigo Testamento, a peregrinação dos hebreus pelo deserto ocorreu em três fases: A primeira fase corresponde à viagem para a cadeia de montes do Sinai (Horebe). Embora a localização do monte seja incerta é pensamento comum que foi lá que Israel recebeu parte da lei de Moisés; a segunda fase corresponde do período da saída do Sinai até a região sul da Palestina conhecida pelo nome de Cades-Barnéia ou Qadesh, onde os israelitas experimentaram uma derrota parcial para o rei de Arad, não podendo assim entrar em Canaã pelo sul; a terceira fase vai da saída de Qadesh à incursão feita pelo flanco oriental, incluindo a instalação na região da Transjordânia, região na qual morreu Moisés de acordo com a narrativa bíblica (Dt. 34). 2.3.3 – A CONQUISTA DE CANAÃ – O pensamento básico que a Bíblia nos apresenta sobre a entrada dos israelitas na Palestina não é a conquista ou invasão feita por um povo estrangeiro, mas o retorno de tribos que num passado distante, lá viveram através dos seus antepassados patriarcas. Dt. 26:1 apresenta o pensamento que foi Yehweh quem deu a terra de Canaã a Israel. Martin Metzger descreve essa “reconquista” seguindo duas etapas: 13 2.3.3.1 – Instalação das tribos israelitas nas regiões montanhosas, menos férteis, parcialmente habitadas e pouco guarnecidas (Jz. 1:19). 2.3.3.2 – Com o crescimento do povo israelita no decorrer dos anos nos territórios cananeus, houve também a conquista de cidades fortificadas tais como Jericó, Hasor e Ai (Js. 17:13). 2.4 – O PERÍODO DOS JUÍZES (1200 A 1020 a.C.) O período compreendido entre 1200 e 1020 a.C. representa uma época em que as tribos israelitas estão crescendo na Palestina com seu assentamento na terra. Aos poucos, as condições materiais dos israelitas melhoravam. Tornaram-se um povo agricultor, aprenderam a construir cisternas. Em suas necessidades extremas de mais solo (terras), mostraram-se engenhosos no aproveitamento de terras desérticas e de florestas. Suas cidades, escassas e mal fortificadas tinham um caráter rural diferente das cananéias e filistéias. Entretanto, apesar dessas conquistas menores, outras maiores estavam esperando por realizações. A necessidade de defender o território já conquistado e de avançar em novas conquistas fez do período dos Juízes uma época de muitas batalhas e confrontos com os povos vizinhos. Os filisteus, por exemplo, eram um ameaça constante pois eram mais fortificados e mais desenvolvidos. Os filisteus eram um povo Egeu, haviam sido expulsos de seus lares em Creta e no litoral da Ásia Menor por invasores vindos do norte. Fracassando em sua tentativa de entrar no Egito, conseguiram uma cabeça de ponte na costa palestinense, ocupando boa parte das terras mais férteis da região. Nas épocas quando os conflitos entre as tribos e os filisteus ou entre as tribos e outros povos se agravavam, levantavam-se homens carismáticos que lideravam um ou mais tribos na campanha de defesa da terra ou de novas conquistas. Esses homens eram os Juizes, cujo sentido do original hebraico tem relação com a idéia de “salvadores”. Apesar do nome os Juízes tinham uma função muito mais militar que propriamente judiciária. O conhecimento desse momento na história de Israel levará o estudante ao fato que não havia uma união caracteristicamente política que envolvesse todas as tribos num projeto de conquista nacional. Entretanto as tribos estavam unidas por uma ordem sacra, formando um tipo de liga sacral, chamada de Anfictionia (união voluntária e apolítica de tribos numa comunhão cultural com um santuário central). Apesar do termo anfictionia na história antiga se referir mais ao período pré-estatal grego, o mesmo pode ser utilizado com bastante cuidado e sem comparações detalhistas para com a formação das tribos israelitas. Aliás, era costume nos povos antigos a constituição de 12 tribos a partir de 12 filhos de um ancestral importante, por exemplo, Naor (Arameus, Gn.22:20-24), Ismael (Gn.25:12-16), Esaú (Transjordânia, Gn.36:10-14). De acordo com a Bíblia, a constituição da liga sacral das 12 tribos ocorreu no Congresso de Siquém (Js. 24). Nesse evento, Josué (efraimita) firmou um pacto com as tribos, evidenciando-se as seguintes características: • Comprometem-se com a adoração a Yehweh como único Deus (Js.24:18,21,24) e o afastamento dos outros deuses, nos moldes do pacto do Sinai. • Celebram o culto em um mesmo santuário em torno da arca da aliança. • Têm um estatuto e um direito comum (Js.24:25-26). Nesse sentido a nuvem do sagrado paira sobre a comunidade que rejeita as transgressões contra esse direito, “abominações” que não devem existir no meio do povo de Deus (Jz.19:30; 20:6,10). ALGO SOBRE AS TRIBOS - As 12 tribos surgiram a partir de uma consciência dos laços que as uniam pois compartilhavam de um mesmo nome original. Os nomes dessas tribos eram originalmente nomes de pessoas (Gn. 29:31; 30:24; Dt.33:1-29) e designavam um antepassado, o qual dera a denominação a tribo, no caso de Israel, o patriarca Jacó. De acordo com Roland de Vaux (2003, p.24) pessoas que não eram originalmente descendentes de Jacó também foram 14 agregadas às tribos. Temos Calebe, filho de Jefoné, o quenezeu (Nm.32:12; Js.14:6,14), o qual foi integrado à tribo de Judá em Js.15:13. Não podemos esquecer que Moisés convidou Hobabe (midianita) a seguir com Israel pelo deserto em direção à terra prometida. Além disso, mulheres tais como Tamar e Raabe (cananitas) e Rute (moabita) também fizeram parte do povo de Deus. Eis uma relação dos nomes das tribos de Israel a partir do patriarca Jacó, tomando-se como referência os textos acima: a) Filhos de Lia: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Issacar e Zebulom. b) Filhos de Raquel: José (Efraim e Manasses) e Benjamim. c) Filhos das escravas: Dã e Naftali (de Bila), Gad e Aser (de Zilpa). Uma pergunta comumente feita é por que a lista das tribos de Israel em Js.13 parece divergir das listas em Gn.46, Nm.26 e Ap.7.5ss. Para respondermos esta pergunta, convém observarmos as listas das tribos de Israel espalhadas nos dois testamentos: QUADRO DAS TRIBOS DE ISRAEL GENESIS 46 NÚMEROS 26 DEUT.33 JOSUÉ 13 APOC.7 Os que entraram no Egito Os que foram convocados para a guerra Tribos abençoadas por Moisés na sua morte Distribuição de terras para as tribos A visão dos 144.000 Ruben Ruben Ruben Ruben Ruben Judá Judá Judá Judá Judá Simeão Simeão Simeão Simeão Simeão Levi Manasses Levi Manasses Levi Benjamim Benjamim Benjamim Benjamim Benjamim José Efraim José Efraim José Gad Gad Gad Gad Gad Dã Dã Dã Dã Manasses Issacar Issacar Issacar Issacar IssacarZebulom Zebulom Zebulom Zebulom Zebulom Naftali Naftali Naftali Naftali Naftali Aser Aser Aser Aser Aser Observamos que em Nm.26 numa lista, considerada por Schmidt (1994, p.25) como posterior, faltam os nomes de Levi e de José compensados por Efraim e Manasses (filhos de José). Os filhos de Levi teriam recebido não o epônimo para uma tribo territorial, mas a posse de 48 cidades espalhadas nas 12 tribos para ministrarem o culto (Js.21:41). A razão está em Js.13:14,33, visto que o Senhor mesmo era considerado a herança dos levitas. Já, na lista de Apocalipse, José e seu filho Manassés são contados em separado. Provavelmente Efraim, o outro filho de José, foi contado juntamente com ele numa só tribo. Ao acrescentar José e Manasses nessa lista as pessoas de ambas as metades da tribo de José são seladas sem mencionar o nome de Efraim. Convém lembrar que I Rs.12:28-30 nos diz que um bezerro de ouro foi erigido em Betel, na terra de Efraim, em adição àquele de Dã. O Senhor odeia idolatria. Curiosamente, Dã não é mencionado na lista de Apocalipse. De acordo com Geisler (1999, p.64), isso ocorre porque “os danitas tomaram a sua porção pela força numa área do norte de Aser, separando-se de sua herança original, que era ao sul. Além disso, os danitas foram a primeira tribo a ir para a idolatria” depois que Salomão morreu. Em Apocalipse temos também resgatado o caráter tribal de Levi, porque depois do evento da cruz de Cristo, os levitas não mais exercem o seu ofício para todas as tribos, podendo assim, ter direito à posse de um território. 15 2.5 – PERÍODO DA MONARQUIA (1020 A 586 a.C.) Do conhecimento da época dos juízes extrai-se uma lição que permeia a literatura que narra a história desde Josué a II Reis, exposta através de uma fórmula marcada por altos e baixos, por feitos positivos e negativos, denunciando assim uma teologia que recebeu o nome de “teologia deuteronomista”. Essa teologia caracterizou-se por pregar uma fé que obedecia não pelo medo ou pressão, mas pela vontade e pelo amor a Yehweh (Dt. 6:1-7). A conclusão dessa obra é que a história de Israel se resume numa história da fidelidade de Deus e da infidelidade do próprio Israel. Esse tipo de mensagem ficou bem claro na leitura do livro dos Juízes. Como já foi estudado, o modelo de governo que caracterizou o período dos Juízes foi a Anfictionia. Ora, o conhecimento da história de Israel no momento de estabelecimento das tribos na Palestina pressupõe uma reprovação do sistema monárquico como forma política, o que era comum entre os povos filisteus e cananeus lá presentes. Isto é o que se expressa em formulação concisa na resposta de Gideão aos que queriam entregar-lhe a chefia hereditária sobre Israel, conforme Jz.8:22-23. A razão principal é que a instituição de um reinado nos moldes pagãos opõe-se a reivindicação da soberania de Yehweh sobre Israel. Segundo Martin Metzger, o fator que motivou o requerimento de um sistema monárquico em Israel foi o aumento das incursões dos filisteus, os quais queriam dominar toda a Palestina (I Sm. 13:3-5,16-23; II Sm. 23:14). Porém, a gota d’água para esta mudança em Israel foi a conquista da “Arca da Aliança”, a qual ficava no santuário central de Silo (Jr. 7:12,14; 26:6,9). A arca significava que Deus estaria sempre com o seu povo; era o principal símbolo da Anfictionia. Um outro fator que sugere a necessidade de um reinado em Israel é a crise interna na Anfictionia com a decadência do sacerdócio que se dedicava ao ministério da Arca (I Sm. 2:12-17). O desejo de mudança está expresso em I Sm. 8:4-5, 19-20. O processo de transição foi difícil e lento pois a Anfictionia não aprovou a monarquia. O estudo do período da monarquia deve ser feito dividindo-o em dois outros períodos: a) Monarquia Unida (Israel Unido) – 1020 a 932 a.C. b) Monarquia Dividida (Dois Reinos) – 932 a 586 a.C. b.1- Reino do Norte, Israel, capital: Samaria (932 a 722 a.C) b.2- Reino do Sul, Judá, capital: Jerusalém (932 a 586 a.C.) 2.5.1 – A MONARQUIA UNIDA (1020 A 932 a.C.) – Compreende a atuação dos três primeiros reis de Israel: Saul, Davi e Salomão. Para uma melhor compreensão deste período, será feito um estudo da contribuição de cada rei citado. 2.5.1.1 – SAUL, O PRIMEIRO REI – Com as conquistas dos filisteus em partes do território palestinense e a conquista da Arca da Aliança, os israelitas começaram a desejar um rei que unisse as tribos num estado militar. Nesse período, a pessoa de Samuel foi de grande importância. Atuando como líder de grande carisma (último juiz), conseguiu unir as tribos na esperança de vitória sobre os filisteus ainda que fosse contra o sistema monárquico. Porém, com o crescimento das pressões populares, Samuel escolheu Saul, da tribo de Benjamin (I Sm. 9:1 a 10:16). A maneira de sua primeira atuação pública aconteceu exatamente nos moldes de um líder carismático. Reprimiu vitoriosamente a tentativa dos amonitas de conquistarem Israel entrando pela Transjordânia. Assim, foi logo visto como homem de Deus (I Sm. 11:6). O reinado de Saul caracterizou-se por ser um governo militar (I Sm. 14:52), com bases nacionais, semelhante ao dos povos vizinhos. O principal empreendimento de Saul foi a quebra do domínio dos filisteus em Israel. Porém, isto não significa dizer que a monarquia sob Saul elevou Israel à condição de Estado pois faltam nele as características básicas de um Estado. Vê-se aí um Israel ainda desorganizado politicamente e também em menor escala, do ponto de vista militar. Após algumas vitórias sobre os filisteus, o reinado de Saul passou a enfrentar uma grande crise por conta das divergências entre as exigências tradicionais da Guerra Santa (Anfictionia) e aquilo que Saul considerava necessário sob o ponto de vista estratégico e político (I Sm. 13:08-13; 15:1-3; 7:11, 20). Isso causou a sua separação de Samuel, o qual passou a anunciar que Yehweh rejeitara a 16 Saul (I Sm. 15 e 16:14). O reinado de Saul não durou muito. Com a crise interna, os filisteus cresceram novamente, fazendo incursões na região média da Palestina. Na batalha do Monte Gilboa, Saul foi derrotado e morto pelos filisteus, os quais voltaram a dominar uma parte do território palestinense. 2.5.1.2 – O GRANDE REINO DE DAVI – Foi durante o reinado de Davi que Israel experimentou uma importância política jamais conhecida, nem antes nem depois. Davi era escudeiro de Saul (I Sm. 16:21). Obteve grande sucesso como guerreiro profissional e conseguiu com isso o ódio e a inveja de Saul (I Sm. 18:5-9); dessa forma foi perseguido por Saul, retirando-se para a parte meridional da tribo de Judá, onde reuniu um bando de mercenários de procedência dúbia (I Sm. 22:2), passando a levar uma vida de salteador. Chegou mesmo a colocar o seu exército a serviço do rei filisteu Aquis (I Sm. 27) em troca da localidade de Ziglaque. Após a morte de Saul, Davi voltou para Hebron, na tribo de Judá, onde foi proclamado “rei sobre a casa de Judá” (II Sm. 2:4). No início, o seu domínio estendeu-se apenas às tribos do sul. O filho de Saul, Is-Bosete fora constituído rei sobre Israel em meio a uma série de crises políticas. Após a morte de Is-Bosete, sem nenhuma alternativa de sucessão dentro da família de Saul, Davi foi ungido rei sobre todo o Israel (II Sm. 5:1-3). O reinado de Davi caracterizou-se por alguns fatores: a) Derrotou de vez os filisteus, banindo-os da vida dos israelitas (II Sm. 5:17-25). b) Uniu, a partir de sua pessoa, as tribos do sul às tribos do norte, através de atos políticos e diplomáticos (por exemplo, a transferência da residência real para Jerusalém, cidade cananéia, que não pertencia nem às tribos do norte nem às tribos do sul – II Sm.5). c) A ampliação dos domínios israelitas às terras da Transjordânia (Amom e Moabe, dos quais recolhia pesados impostos), e às terras dos arameus no norte (II Sm.8; 12:30), exercendo a soberania sobre toda a Palestina e Síria. Numa época em que as potências Egitoe Assíria enfrentavam uma queda em seus desenvolvimentos, o grande reino de Davi era a potência política mais forte de seu tempo. 2.5.1.3 – SALOMÃO E A CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO ISRAELITA – Após a morte de Davi, em meio a intrigas na corte e por decisão do próprio Davi, assume o trono o seu filho Salomão. O período de seu governo caracterizou-se pela pompa, no estilo dos grandes reis orientais, por grande atividade em construções e no comércio, por um grande intercâmbio diplomático e pelos primeiros frutos de uma vida intelectual em Israel. Tudo isso leva uma boa parte dos estudiosos do Antigo Testamento a defender a idéia que em Salomão temos a consolidação de um estado em Israel. Apesar de todo o luxo do reinado de Salomão, havia a insatisfação popular por causa dos pesados impostos e das grandes diferenças sociais, em virtude da criação do sistema de intendências (I Rs. 4:7-19), uma forma de manutenção da corte a partir da arrecadação interna de impostos. A partir do período de Salomão, conquistas militares feitas por Davi foram perdidas em virtude das prioridades de governo do seu filho. Tem-se a partir daí um momento novo que irá desembocar na divisão do reino de Israel, tema que será estudado no próximo capítulo. 2.5.2 – A MONARQUIA DIVIDIDA (932 A 586 a.C.) – Após a morte de Salomão, assumiu o trono o seu filho Roboão, o qual foi aclamado rei em Jerusalém, no Sul. Ao chegar em Siquém, no Norte, para ser aclamado rei de acordo com o costume, encontrou inclinação favorável desde que aceitasse uma política e afrouxamento nas imposições feitas por Salomão tais como: pagamento de pesados impostos (através da implantação do sistema de Intendências) e trabalhos forçados, os quais tornaram-se insuportáveis para a população. Como Roboão se recusou a atender ao clamor popular (II Cr. 10:10), houve um movimento civil nas dez tribos do Norte, o qual iniciou-se com o apedrejamento de Adorão, o enviado de Roboão para sujeitar os israelitas a submissão, indo até a escolha de Jeroboão como rei do Norte (I Rs. 11:26-32), aquele que tinha sido antes superintendente de Salomão nas tribos de Efraim e Manasses, nos trabalhos forçados. Jeroboão foi perseguido por Salomão por ter iniciado um movimento contra o rei, tendo fugido para o Egito, permanecendo lá até a morte de Salomão. A partir de então, passaram a existir dois reinos 17 independentes: Norte (Israel) e Sul (Judá). A cisão do reino unido precisa de um estudo separado para melhor compreensão das escrituras. 2.5.2.1 – REINO DO NORTE (ISRAEL) – 932 A 722 a.C. – Durante dois séculos, o reino do Norte foi governado por 19 reis, cujas características marcantes foram as seguintes: 2.5.2.1.1 – Reintrodução do culto a Baal, deus dos cananeus, e de outras formas de idolatria em Israel. Jeroboão I (932 a 907 a.C.) coloca dois bezerros de ouro, símbolos de Baal, em Dã e Betel, elevando essas cidades a santuários (I Rs.12:26ss). 2.5.2.1.2 – Estabelecimento de uma inimizade política com o reino do Sul (I Rs.14:30; 15:16), até em função dos limites territoriais dos dois reinos tendo na região de Benjamin pontos de conflitos. A exceção está no rei Omri (876 a.C.), o qual firmou relacionamento amistoso com Judá. Contudo, Omri e seu filho Acabe, são responsáveis pelo sincretismo entre a religião baalista e a religião javista, duramente condenado por Elias. 2.5.2.1.3 – Período de agravamento das crises sociais com a concentração do poder econômico em uma classe superior (Jeroboão II - 787 a 747 a.C.). 2.5.2.1.4 – Período de atividade dos profetas Elias (875 a 842 a.C.), Eliseu (842 a 795 a.C.), Jonas (785 a.C.?), Amós (760 a.C.), Oséias (750 a 722 a.C.). 2.5.2.1.5 – Período de crises militares internas, com golpes feitos a partir de componentes insatisfeitos do exército. Por exemplo, Jéu (842), assumiu o trono através de uma revolução apoiada por grupos fiéis a Yehweh, e tentou fazer uma reforma religiosa no reino do Norte (II Rs.9), combatendo o sincretismo. 2.5.2.1.6 – Período de enfraquecimento político e de alianças com povos estrangeiros, as quais incluíam não só o lado político, mas o lado religioso. 2.5.2.1.7 – Período do surgimento e crescimento de potências do norte da Palestina. Primeiramente a Assíria, que tomou posse da Síria em 854 a.C., através da Batalha de Carcar. A partir de 740 houve a submissão do reino do Norte aos assírios em três fases: a) Cobrança de pesados impostos aos israelitas no período do rei Menaém (738 a.C.), conforme temos em II Rs.15:19ss. b) Desmembramento do estado de Israel-norte em 732, através da implantação de 3 províncias dos assírios: Dor, Megido e Gileade (II Rs.15:29). Nessa época, o rei Oséias era uma espécie de “boneco” subserviente aos interesses assírios. c) Destruição de Samaria, capital de Israel, em 722 a.C, depois de um cerco de 3 anos. Os assírios imprimiram uma forte política de miscigenação racial, deportando israelitas da classe alta para Nínive e trazendo estrangeiros para habitarem no norte de Israel. Dessa mistura surgiriam, mais tarde, os samaritanos. Posteriormente, surgiria a Babilônia, a qual submeteria os próprios assírios e o reino do Sul, Judá. Ao contrário dos exilados de Judá na Babilônia, os deportados do norte foram espalhados e dispersos com o passar do tempo (II Rs.17:6), o que não permitiu o retorno dos mesmos para uma possível repatriação. 2.5.2.2 – REINO DO SUL (JUDÁ) – 932 A 586 a.C. – Reino mais importante da narrativa bíblica, principalmente em virtude de sua ligação com Davi. As características mais evidentes desse reino são as seguintes: 2.5.2.2.1 – Uma das características mais fortes deste reino é que ele manteve-se fiel à dinastia de Davi, ou seja, os seus reis foram sempre descendentes de Davi. 18 2.5.2.2.2 – Digno de nota é o período do rei Ezequias, visto que o mesmo liderou uma conspiração contra Senaqueribe entre 701 e 700 a.C. Nesse período estavam ocorrendo diversas rebeliões contra o jugo assírio na Palestina e é provável que o levante acontecido em Asdode (filistia) entre 713 e 711 a.C. tenha influenciado Ezequias (Is.20). Conhecemos o livramento dado a Judá (II Rs.19:35-37), o que foi suficiente para evitar a destruição de Jerusalém, mas não para evitar a continuidade do domínio assírio com sua política de cobrança de pesados tributos, de acordo com Werner Schmidt (1994, p.31). 2.5.2.2.3 – Outro momento importante foi o do rei Josias (639 a 609 a.C.), bisneto de Ezequias. Depois do triste legado de seu avô Manasses, Josias conseguiu reconquistar a autonomia política, resgatando parte do território do antigo reino do Norte (Israel), visto que nessa época o império assírio estava em franca queda (Em 612 a.C. Nínive foi destruída pelos babilônios). Além disso, empreendeu um movimento de reforma político-religiosa que culminou com a destruição de altares pagãos e a centralização do culto em Jerusalém baseadas no texto do Deuteronômio, encontrado no templo entre 622 e 621 a.C. (Hilquias, em II Rs.22). Josias morreu em 609 a.C. em combate contra o Faraó Neco, em Megido. Neco se dirigia para Nínive para tentar libertar os assírios do jugo caldeu. 2.5.2.2.4 – Após a morte de Josias, Judá tornou-se vassala do neo-império caldeu, sob Nabucodonozor. O problema começou quando seu filho, rei Jeoiaquim (608 a 598 a.C. – Jeoiaquim substituiu a Jeoacaz, seu irmão, levado pelo faraó Neco para o Egito) tentou sustar o pagamento de impostos à Babilônia, gerando com isso o sítio de Jerusalém pelos caldeus e, em 597 a.C., quando seu sucessor Joaquim, já era rei, a primeira deportação de judeus para a babilônia, sendo levada a classe alta de Jerusalém, incluindo a família real, artesãos e até alguns profetas, como Ezequiel. 2.5.2.2.5 – Se nesse primeiro momento Jerusalém não foi destruída, ao assumir o trono, colocado por Nabucodonozor, Zedequias (597 a 587 a.C. - cujo nome era Matanias e foi mudado pelo rei caldeu), um tio de Joaquim, desconsiderou amensagem de não-resistência do profeta Jeremias, empreendeu um levante contra Babilônia, causando dessa vez, o segundo cerco e a destruição de Jerusalém em 586 a.C. Ocorre aí mais outra deportação de judeus para a Babilônia e um governador títere, Gedalias, é colocado no lugar do rei para dirigir os judaítas que ficaram. Mas sete meses depois foi assassinado por um grupo liderado por um tal Ismael (II Rs.25:22-30), que liderou fuga em massa para o Egito. Jeremias foi nesse grupo contra a sua vontade (Jr.43:1-7). Termina assim a monarquia davídica e a perda da autonomia política de Judá, que seguirá na história como província, primeiro dos babilônios (608 a 539 a.C.), depois dos persas (539 a 333 a.C.), gregos (333 a 323 a.C.), ptolomeus-egípcios (301 a 198 a.C.) e selêucidas-sírios (198 a 163 a.C), até o tempo dos macabeus, quando recuperará sua independência política por um período de aproximadamente 100 anos (163 a 63 a.C.), entrando depois na história do povo de Israel o domínio romano. 2.5.2.2.6 – Período de atividade dos seguintes profetas: Joel (587 a.C.? 400 a.C.?), Isaías (740 a 698 a.C.), Miquéias (730 a 700 a.C.), Naum (663 a.C? 612 a.C?), Sofonias (640 a 630 a.C.), Jeremias (627 a 586 a.C.), Habacuque (entre 608 e 598 a.C.), Obadias (entre 586 e 585 a.C.). 2.5.2.2.7 – Período de fusão de duas importantes tradições que deram origem à boa parte do Pentatêuco (Gn.-Ex.): A Eloísta (oriunda do Norte), assim chamada porque nestas narrativas Deus sempre era conhecido pelo nome de “Elohim”; a Javista (oriunda do Sul), assim chamada porque em suas narrativas Deus era conhecido por “Yehweh”. Também, no reino do Sul, organiza-se o Deuteronômio e o conjunto das tradições sobre Josué, Juízes, Samuel e Reis. Sobre os documentos que deram origem ao Pentatêuco veremos na última unidade deste módulo. 2.5.2.2.8 – Temos ainda a produção de grande parte dos Salmos e das pregações de Sofonias, Naum, Habacuque e Jeremias (produção escriturística conforme Jr.36). 19 2.6 – O PERÍODO DO EXÍLIO BABILÔNICO (586-538 a.C.) A catástrofe de 586 a.C. trouxe consigo uma conseqüência forte para a fé dos judeus. A destruição de Jerusalém e do seu santuário mergulhou os exilados na maior crise de fé que iria culminar, posteriormente, em mudanças consideráveis. É importante lembrar que, com a destruição de Jerusalém e a deportação dos judeus, o povo perdeu tudo o que constituía a base de sua cidadania e seu sentimento religioso: a) A TERRA, sinal concreto da benção de Deus sobre o povo (A terra não era uma dádiva de Yehweh? - Dt. 4:1). b) O REI, mediador desta benção, garantia da unidade do povo e seu representante junto a Deus (Yehweh não havia assegurado duração eterna ao reino davídico na profecia de Natã? - II Sm. 7:16). c) O TEMPLO, lugar onde habitava o nome do Senhor (O templo de Jerusalém não era a residência de Deus? – I Rs. 8:13). d) A FÉ, herança das antigas promessas de Deus aos patriarcas (Marduque, o deus da Babilônia, era mais poderoso que Yehweh? – Sl.137:3; Is.14:12-14; Is.46:6-9) A partir da destruição de Jerusalém formam-se 3 comunidades judaicas distintas: a que ficou na cidade destruída, formada basicamente pela parte mais pobre da população; a que fugiu para o Egito depois do assassinato de Gedalias; a que foi deportada para a Babilônia pelo menos em duas levas (597 e 586 a.C.). As duas últimas comunidades constituem o judaísmo da dispersão ou diáspora. As características principais da comunidade judaica na Babilônia foram as seguintes: 2.6.1 – Viviam, não na condição de escravos, mas como semi-livres. Moravam em colônias cercadas, situadas às margens do Rio Quebar (Ez. 1:1-3), em Tel-Abib (Ez. 3:15) e outros locais. Podiam se movimentar livremente, mas eram obrigados a executar determinados serviços por ordem dos babilônios. Tinham a possibilidade de construir casas, plantar pomares e constituir famílias (Jr. 29:5). 2.6.2 – Tinham a liberdade para realizar reuniões (Ez. 33:30-33) e para instituir líderes religiosos (Ez. 8:1; 14:1; 20:1). É nesse período que se encontram as bases lógicas da sinagoga do Novo Testamento. Podemos dizer que tanto a característica do gueto citada no item anterior quanto a capacidade da comunidade judaica ser um grupo religioso dirigido por líderes, fez com que a sua identidade pudesse ser preservada para a posteridade e a consecução do plano divino na história. 2.6.3 – Nesse momento surge o apelido “judeus”, atribuído pelos babilônios àqueles que vinham de Judá. É também o período em que os judeus começam a assimilação de uma nova língua, o aramaico, que será a língua falada pelo povo judeu inclusive no tempo de Jesus. 2.6.4 – É o período de atuação de dois profetas: o sacerdote Ezequiel (593 a 571 a.C.) e um discípulo de Isaías de Jerusalém, cujo nome não sabemos, responsável pelas pregações constantes a partir do capítulo 40 do livro de Isaías, apelidado de “Deutero-Isaías” (550 a 540 a.C.). 2.6.5 – Época do surgimento de dois importantes documentos do Antigo Testamento: 2.6.5.1 – Obra historiográfica deuteronomística, a qual abrange os livros de Josué, Juízes, I e II Samuel e I e II Reis. Trata-se de uma exposição dos caminhos de Israel desde a época de Moisés até o Exílio, numa postura nitidamente teológica. A tese central que conduz essa obra é a seguinte: “Toda a história de Israel resume-se numa história da fidelidade do Senhor e da infidelidade de Israel”. 2.6.5.2 – Escrito Sacerdotal, o qual apresenta um diagrama da história salvífica desde a criação até o acontecimento do Sinai, através de material antigo (listas, rituais, genealogias, liturgias), numa linha histórica que segue CRIAÇÃO – NOÉ – ABRAÃO – MOISÉS. 20 2.7 – O PERÍODO DA RESTAURAÇÃO (PERSA)– RETORNO DO EXÍLIO (538 A 333 a.C.) Como já foi abordado em capítulos anteriores, a partir do nono século antes de Cristo, as chamadas “potências do Norte” estavam em ascensão. Primeiramente, A Assíria, chagando a conquistar Síria e Israel, reino no Norte, com a destruição de Samaria em 722 a.C.; depois, a Babilônia, chegando a conquistar Nínive e Judá, com a destruição de Jerusalém em 586 a.C. Agora, um novo reino domina: o dos medo-persas, vizinhos dos babilônicos. Ciro (559 a 530 a.C.), chamado de “ungido” em Is. 45:1 é o homem responsável e instrumento nas mãos de Deus para dar cumprimento à profecia de Jeremias (Jr. 29). Ciro subjugou a Ásia Menor através da vitória sobre Creso, rei da Lídia e, em 539 a.C., invadiu a Babilônia. Ao conquistar a Babilônia, ele estava também liberando os judeus para retornarem à sua pátria e reconstruírem os símbolos do seu passado: a cidade e o templo. Abaixo, algumas das principais características desse período: 2.7.1 – O retorno do exílio foi gradual e em turmas. Temos o conhecimento de 3 turmas: a) A primeira, liderada por Zorobabel (538 a.C. – Esd.1-6). Parece que nesse momento foram lançados os alicerces do templo, mas os samaritanos do norte fizeram forte oposição, impedindo o intento. Nessa primeira turma voltaram 42.360 pessoas e 7.337 servos e servas (Mesquita, 1974, p.252), conforme Esd.2:64-65. b) A segunda, liderada por Esdras (458 a.C. – Esd.7-10), encontrando Jerusalém num estado moral e espiritual dignos de censura. Esdras tem grande valor nesse momento. A ele são atribuídas a implantação do cumprimento rigoroso da Lei com a valorização da leitura pública da Torah, o que viria também a influenciar na formação do cânon. Nessa segunda turma retornaram cerca de 1.296 pessoas (Ibidem) c) A terceira, liderada por Neemias (445 a.C. – Ne.2:11), com o objetivo de reconstrução dos muros de Jerusalém, visto que as pessoas eram constantemente molestadas por invasores oportunistas. Além disso as condições morais e espirituais continuam péssimas e idênticas àquelas que levaram o povo ao exílio. 2.7.2 – Atuou um profeta anônimo, discípulo de Isaías de Jerusalém, responsável pelo conteúdo dos capítulos 56 a 66, apelidadode Trito-Isaías (entre 538 e 520 a.C.). Atuaram também os profetas Ageu (520 a.C.), Zacarias (520 a 518 a.C.) e Malaquias (433 a 428 a.C.). 18 anos após o edito de Ciro, os dois primeiros exortaram os judeus à retomada da reconstrução do templo, cuja obra só foi concluída em 515 A.C. 2.7.3 – Nesse período, ocorre a fixação da primeira coleção de livros do Antigo Testamento, ou seja, o Pentateuco, conhecido por “Torah” – LEI (Gn-Ex-Lv-Nm-Dt). 2.7.4 – A característica mais marcante desta época é, sem dúvida, o grande impacto causado na religião judaica por conta de uma série de mudanças do pensar teológico, com a assimilação de doutrinas não exploradas no Antigo Testamento: Teologia do Bem e do Mal, anjos e demônios, céu e inferno, ressurreição; além disto, a influência sacerdotal leva a religião à ênfase na prática de rituais antigos: o “Shabat”, os jejuns, a circuncisão, as festas. Essa ênfase é apresentada através da obra historiográfica cronista, constituídas pelos livros de I e II Crônicas, Esdras e Neemias. Assim, pode-se falar na religião pós-exílica com o nome de “Judaísmo”. Esse é o período de transição para o Novo Testamento. 2.7.5 – O período de dominação persa foi um período de tranqüilidade política para os judeus. O culto pode ser prestado sem impedimentos e Jerusalém ficou governada por sacerdotes, os quais passam a ter uma influência sem precedentes, do ponto de vista político-religioso. 21 III – INSTITUIÇÕES ISRAELITAS DO TEMPO DO ANTIGO TESTAMENTO O estudo das estruturas do Antigo Testamento é de vital importância para o estudo da disciplina. Determinados textos podem ser resolvidos sem o intermédio da exegese, utilizando- se apenas o conhecimento da cultura e das instituições desse tempo, quer sejam elas sociais, familiares, religiosas ou políticas. Do conhecimento dessas estruturas resulta um princípio hermenêutico: não se pode adotar determinadas práticas antigas sob o pretexto de serem bíblicas pelo simples fato de pertencerem ao texto bíblico, mas compreendê-las a partir de um contexto local de caráter transitório. A seguir, as principais instituições do tempo do Antigo Testamento. 3.1 – INSTITUIÇÕES FAMILIARES 3.1.1 – Família – A tribo formava a maior unidade sociológica em Israel, seguida pelo clã e, posteriormente, pela família, a menor unidade sociológica. A família israelita é do tipo patriarcal. Em torno do patriarca giram todas as decisões da família, inclusive a escolha da esposa para um filho. Em torno dele existe a submissão de irmãos mais novos, inclusive. Depois de sua morte, assume a liderança o filho mais velho, o qual, sob a égide do pai, dirigirá os destinos de toda a família, que preservará a memória do patriarca (Gn. 27:29). A expectativa em torno da família é uma prole, se possível, bem numerosa (Gn. 24:60; Sl. 127:3-5). A autoridade da mãe cresce de acordo com o número de filhos que ela tem; entretanto, se um homem morrer sem deixar filhos, o seu nome poderá ser redimido pelo seu irmão, o qual deverá casar-se com a viúva para suscitar-lhe descendência, ou seja, os filhos que nascerem dessa união serão considerados filhos do falecido. Quem se negasse a perpetuar o nome do irmão estaria sendo infiel não apenas com as relações de família mas sobretudo com o espírito de preservação da comunidade (Gn. 38). Esta é a lei do Levirato, conforme Dt. 25:5-10. 3.1.2 – Matrimônio – No Oriente antigo, o matrimônio não era um assunto do direito civil ou do direito religioso, mas era um assunto puramente particular entre duas famílias, ou seja, entre o pai do noivo e o pai da noiva (Gn. 24:2-11; Jz. 14:2-4; Dt. 7:3). O amor ocorria “post factum” (Gn. 24:67). O pai do noivo pagava ao pai da noiva um dote por ela, a qual passava a partir de então para a situação de propriedade da família do noivo. Porém, existiam também os casos de amor espontâneo (Gn. 28:11, 20; I Sm. 18:20-22), sobretudo entre camponeses e pastores, onde os jovens se conheciam pelo trabalho diário (Rt. 2:7-9; Gn. 24:11-20; I Sm. 9:11). A idade para o casamento era para as moças, a partir de 13 anos (a partir da menarca), e para os rapazes, a partir dos 15 anos. A poligamia era aceita e geralmente ocorria em casos de homens mais ricos ou melhor situados financeiramente, uma vez que ter mais de uma mulher significava poder pagar mais dotes e, com isso, aumentar o patrimônio. Com relação ao divórcio, previsto na lei de Moisés, o direito de repudiar o cônjuge pertencia ao homem (Dt. 24:1). 3.1.3 – A mulher israelita e os filhos – Como já foi colocado a situação da mulher com relação ao marido era de posse, mas isso não significava “escravidão”, uma vez que as famílias tinham servos para tais serviços. À mulher cabia a tarefa de lavar o rosto, as mãos e os pés do marido, além do respeito devido, por conta da própria estrutura patriarcal vigente em todo o Oriente antigo. Do ponto de vista bíblico, a situação da mulher perante o homem no Antigo Testamento tem duas vertentes: a primeira, chamada de “ideal”, está em Gênesis 2:18 (criação – mulher adjutora – ao lado do homem); a segunda, chamada “de fato”, está em Gênesis 3:16 (queda – mulher dominada – submissa ao homem). Da segunda, advém uma postura teológica vista desde os tempos antigos e difundida no rabinismo de que a mulher foi culpada por dar ouvidos à serpente e por seduzir o homem à queda. Assim, é comum localizar no livro de Provérbios textos que exaltam a mulher virtuosa, difícil de ser encontrada. Outro fato importante é que o ensino religioso não podia ser administrado às mulheres. Com relação à criança, no Antigo Testamento, a mesma é vista como um dom de Deus (Gn. 4:1; 16:3; 33:5), uma recompensa pela fidelidade a Deus (Sl. 127:3-5; 128:1-3). A educação dos filhos era feita no lar. Meninos e meninas eram educados pela mãe até uma idade próxima dos doze anos, quando os meninos viveriam sob a 22 orientação paterna. Sabe-se entretanto que as famílias ricas podiam confiar seus filhos a um educador especial, conforme II Rs. 10:1-5; I Cr. 27:32; Is. 49:23. 3.1.4 – Herança – No Antigo Testamento, o direito de herança consistia nos bens móveis e imóveis do patriarca. Os herdeiros diretos eram os filhos masculinos, sendo o mais velho o ganhador da maior parte dos bens, conforme Dt. 21:15-17. O pai não poderia transferir o direito do primogênito para um outro filho (às vezes ocorria – Gn. 49:3 e I Rs. 1:13). Caso não houvesse descendentes masculinos, a herança iria pra as filhas (Nm. 27:1-11) e, na ausência de uns e de outros, passaria para os irmãos do falecido. Um deles se casaria com a viúva para suscitar descendência ao irmão falecido. Essas leis faziam com que a propriedade privada permanecesse sempre no clã. 3.1.5 – Escravos - Na Torah era proibida a escravidão no meio do povo hebreu (Lv 25:42). Os únicos casos de servidão – radicalmente distinto de qualquer modelo das culturas pagãs – eram de punições de criminosos que deveriam restituir o roubo com serviço (Ex 22:3), e de pobreza, quando as pessoas buscavam sustento trabalhando para outras, (Lv.25:39; Ex 21:7). Deve-se salientar também que os hebreus escravos, por motivo de crime ou pobreza, só podiam servir aos seus senhores por seis anos, sendo compulsoriamente libertados. Mesmo no caso dos pobres, a opção de se tornarem servos era deles, a fim de que não morressem de fome. Na verdade, o princípio da escravidão entre hebreus, nada mais era do que ser tratado exatamente como um trabalhador livre, um empregado pago (Lv 25:39-40). A Bíblia distingue entre escravo hebreu e escravo estrangeiro. O último podia ser escravo durante toda a vida, mas o escravo hebreu devia, por exemplo, ser libertado no ano sabático, ou seja, a cada 7 anos (Lv.25:40). No que concerne aos escravos vindo do mundo pagão, a lei permitia aos hebreus que comprassem tais escravos (Lv 25:44), não para a servidão e opressão, mas como um meio de livrá-los do terrível sofrimento imposto pelas culturas pagãs de
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