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V. SUKHOMLINSKI ~ , 0 l\1EU CORAGAO ESTA COM AS CRIANGAS Edit;oes Progresso .Moscovo de Herm£n1o CEP,l:(I.J.E OT}J.AIO }J.ET,SIM IW nopryzaAbCKO!tt J!3b!Ke ~ 1-b.D.aTeJibCTDO «:Pa.D.HHbCKa IllKOJia» © Tradur;ao para o portugues Edir;oes Progresso, 1989 Impressa na URSS 4306000000-288 c. 014(01) - 89 169- 89 ISBN 5-01-001-284-7 V. Sukhomlinski provou na pratica e na teoria que e possivel fornecer uma instrw;ao secundaria 1110- derna a qualquer crianc;a que goze ge boa saude, mesmo numa escola vulga1;, sem necessidade de de- strinc;ar entre crianc;as mais dotadas e menos dotadas. Assim sendo, nao fez descobertas pedag6gicas novas, mas soube encontrar a medida certa que da ao pro- fessor a possibilidade de concluzir a crianc;a ate aos conhecimentos, seguindo os programas oficiais. 0 que e fundamental para Sukhomlinski e acordar na cri:mc;a o desejo de aprender, alimentar dentro deJa a necessidade de se auto-instruir e auto-educar . . Sukhomlinski estudou os seus alunos paciente- mente, com minucia, aconselhando-se com os ou- . tros professores, com os pais, comparando os seus pontos de vista com os dos grandes pedagogos do passado, deixando-se guiar pela sabedoria popular. Para instruir as crianc;as, e preciso ama-las. S6 assim o professor .sera capaz de despertar nelas a ale- gria do trabalho, educar a amizade, o sentido de hu- manidade. 0 professor tern forc;osamente de desco- brir o caminho que leva ao corac;ao de cada crianc;a. S6 assim conseguira ensin_a-la a amar a familia, a escola, o trabalho, os corihecimentos e a Patria. Ne- ste metodo - uma via conducente ao corac;ao das crianc;as - assentou toda a actividade pedag6gica de V. Sukhomlinski. Descobrir nos seus alunos tudo o que de melhor a Natureza deu ao homem, conhecer as suas virtudes morais, formar urn individuo honesto, devotado aos ideais comunistas - eis o objectivo da actividade deste professor sovietico. 4 A pedagogia 'de V. Sukhomlinski e a da bondacle, ci a verdade, da cultura dos sentimentos e do pensa- mento, e a pedagogia cia formac;ao do homem e do cidadao. iNos ultimos 20 anos da sua vida, V. Sukhomlinski anotou permanentemente as suas observac;5es, as suas reflex5es, 0 que !he permitiu elaborar varias obras e artigos. 0 meu corafao esta com as crianfas, Nasci- m ento dum cidadiio, A Escola Secundaria de Pav- lich, 0 sabio poder do colectivo, sao obras que repre- sentam a sintese da riquissima experiencia deste pe- dagogo admiravel. 0 proprio Sukhomlinski dizia que os seus escritos eram urn «produto de Makaren- ko". Tinha em alto aprec;o a experiencia pedagogica e de vida do educador sovietico Anton Makarenko ( 1888-1939). 0 metodo de A. Makarenko repousava num pro- funda respeito e numa imensa confianc;a no indivi- duo. Esteve a frente duma colonia de trabalho para jovens, nos anos 20, epoca muito dificil para a Re- publica Sovietica, em que muitas crianc;as haviam perdido os pais, as familias, tinham ficado sem eira nem beira. Para atenuar a infelicidade desses garo- tos havia que rodea-los de calor, de atenc;5es, dar- -lhes uma nova familia. Foi em familia que o colec- tivo se torhou para as crianc;as ao cuidado de Malm- renko. Para reeducar estas crianc;as, romper com h::lJbitos profundamente enraizados, novos metodos eram necessarios. E brilhantes foram OS que Maka- renko encontrou. 'M as o elemento essencial do siste- ma de M akarenko, na opiniao de V. Sukhomlinski, era «a ressonancia constante, inesgotavel do huma- 5 nismo, «a beleza cativante das melhores aspira<;oes humanas». 0 contactb entre professores e crian<;as, o clima de afecto - coisa que Makarenko afirmou em teo- ria e na pd.tica - encontra-se na escola de Pavlich, dirigida por V. Sukhomlinski. Ambos os pedagogos ligavam a educa<;ao a uma visao civica do mundo, viam a beleza do individuo na sua devo<;ao ao pais e aG> povo a que pertence. Estavam persuadidos de que ensinar os jovens a viver era muito mais que dar-lhes simplesmente uma compreensao do Bern e do Mal, era ensinar-lhes a intransigencia para: com o mal social e a injusti<;a. 0 legado pedag6gico de V. Sukhomlinski centra- . -se no seguinte: na escolha dum metoda educativo, seguiu os principios de Makarenko, segundo os quais qualquer metoda utilizado isoladamente dos outros pode dar resultados positivos, mas negativos tam- hem. Na educa<;ao, o que importa e todo urn sistema de meios, de metodos, harmoniosamente combina- das. A teoria da educa<;ao colectiva, que se associa em primeiro Iugar ao nome de Makarenko, foi confir- mada pela pratica educativa de Vassili ~sukhomlin ski. Nos nossos dias, e impossivel formar as crian- <;as fora do colectivo, porque uma tal educa<;ao da a crianc;a a alegria dos contactos, a possibilidade de afirmar as suas capacidades. 0 actual desenvolvimento da pedagogia e o aper- feic;oamento das escolas requerem, necessariamente, uma aten<;ao muito intensa as descobertas e reali- zac;oes de todos os educadores progressistas e sua he- 6 ranc;a. Os resultados excelentes da actividade de Su- khomlinski confirmam-no. Tudo o que por ele foi criado assenta numa base {mica e visa formar a ge- rac;ao em crescimento num espirito de elevada mo- ralidade e civismo. * * * Vassili Sukhomlinski deixou este mundo prema- turamente. A sua partida, aos 52 anos, teve a ver com a guerra. Quando, em 1941,, eclodiu a Grande Guerra Pa- tria contra a Alemanha fascista, Sukhomlinski, entao com 23 anos e tendo acabado de obter o diploma de professor primario na escola normal de· Poltava, ali- stou-se no exercito. Sua mulher, Vera, ficou em Pav- lich, ocupada pelos nazis. Ali prestava ajuda aos guerrilheiros. No decorrer duma missao fof feita pri- sioneira pela Gestapo. Na prisao, deu a luz urn filho. Os hitlerianos submeteram a brutais torturas esta corajosa mulher para ouvirem da sua boca os no- mes dos chefes dos guerrilheiros, mas ela nada disse. Mataram-lhe o filho, com poucos dias de vida, a sua frente. Vera foi enforcada ... Vassili Sukhomlin- ski lutava, nessa altura, contra os invasores nas pro- ximidades de Moscovo. Urn ferimento grave afa- stou-o do servic.<o activo. Guardaria para sempre no peito estilhac.<os mortiferos e no corac;ao a sua tra- gedia pessoal. Ate ao derradeiro dia de vida, 2 de Setembro de 1970, Vassili Sukhomlinski viveu para as crianc;as. Os anos passaram, o pais sarava as feridas, novas 7 gera<;oes que s6 souberam da guerra pelos manuais de Hist6ria nasceram. Os miudos de Pavlich des- copheciam que aquele que os educava, os levava para o campo, para a floresta, era urn homem que tinha a arder no peito, ha mais de 20 anos, as mar- cas da guerra. A medicina mostrou-se impotente para valer a este homem invulgar. Sukhomlinski morreu no seu posto, no come<;o dum novo ano escolar, depois de ter aberto, uma vez mais, as portas da sua escola a uma nova fornada de alunos. 0 legado pedag6gico de Sukhomlinski, a sua expe- riencia de educador sao alvo de cada vez maior aten<;ao por parte de professores e pai~, tanto na Uniao SovU!tica como em todo o mundo. PR6LOGO Caros leitores e colegas, professores, educadores e directores de escola! A presente obra ·e o balan<;o de bastantes anos de trabalho na escola, o fruto de reflexoes, de pre- ocupa<;oes, de inquieta<;oes, e de angustias. Trinta e tres anos de actividade iniriterrupta numa escola rural foram para mim anos de uma ventura incompanivel. Dediquei toda a vida as crian<;as e, depois de muito refletir, decidi intitular este meu livro de 0 meu coraqiio esta com as crianqas, achan- do que esse direito me assistia; 0 desejo que me anima e 0 de con tar aos pedagogos, . aqueles que trabalham actualmente na escola ou aqueles que nos vao-de suceder uma grande parte da minha vida, urn perlodo que· se estende ao longo de 10 anos: des- de o dia em que urn miudo pequeno, urn catraio; como e uso dizer-se entre n6s, profcssores, cntra para a cscola ate ao momentasolenc em que, feito ho- mem, recebe o seu diploma de fim dos estudos se- cundarios das maos do director e entra na vida de trabalho independente. E ncste perlodo que Ci indi- vlduo se forma, mas para 0 professor e uma boa par- te· da vida. Que e que foi essencial ' na minha vida? 9 Responderei sem pestanejar: o m e u a m o r p e- 1 a s c r i a n <;: a s. E natural, caros leitores, que nao concordem com certas coisas que aparecem neste livro. E possivel que alguma coisa lhes pare<;:a estranha, surpreendente. Pe<;:o-lhes, antes de mais, que nao vejam neste livro urn manual universal, uma receita acabada, que diz aos professores como devem ensinar as crian<;:as, os adolescentes, os jovens rapazes e raparigas. Para usar uma expressao da linguagem pedag6gica, direi que esta obra se destina a ac<;:ao educativa para-escolar ( ao tra:balho educative no sen tido estricto do termo). Nao foi minha inten<;:ao abarcar urn curso no seu conjunto, todas as particularidades didacticas do pro- cesso de estudo das bases das materias. Para usar uma expressao da linguagem das subtis rela<;:oes hu- manas, direi que esta obra e dirigida ab cora<;:ao do pedagogo. 0 meu esfor<;:o tendeu no sentido de con- tar como fazer entrar urn pequeno homem no mundo do conhecimento, do meio circundante como ensi- na-lo a estudar, como facilitar a sua actividade in- telectual, acordar e afirmar no seu espirito sentimen- tos e emo<;:oes superiores, como educar nele o sen- tide da dignidade, a fe na bondade intrinseca do homem, como transmitir-lhe o amor infinite da URSS, seu pais natal, fazer germinar na fina inteli- gencia e no cora<;ao sensivel duma crian<;:a os primei· ros graos da fidelidade aos nobres ideais comunistas. 0 livro que tendes nas vossas maos e consagrado ao trabalho de educa<;:ao nas classes menores. Ou, por outra, e consagrado ao mundo da infancia. Ora, a infancia, o mundo infantil e urn mundo a parte. As 10 crian<;as tern as suas ideias sabre o Bern e o Mal, a honra e a desonra, a dignidade humana. Tern crite- rios pr6prios de beleza, do mesmo modo que tern a sua no<;ao de tempo: na infancia, urn dia parece urn ano, urn ano uma eternidade. Para ter acesso ao pa- lacio mirabolante que da pelo nome de I n fa n c i a, sempre procurei tornar-me, ate certo ponto, uma crian<;a. S6 nesta condi<;ao as crian<tas deixam de ver em n6s urn intruso no seu mundo fabuloso ou urn guardiao que vigia esse mundo, urn guardiao a quem pouco importa o que se passa la dentro. Uma ressalva se impoe ainda a prop6sito do con- teudo deste livro e do caracter da experiencia em ap- re<tO. A escola primaria e sobretudo 0 trabalho cria- dor dum s6 professor. Assim sendo, evitei proposi- tadamente mostrar o trabalho do corpo docente e rlos pais. Se tivesse mostrado tudo isso no presente vo- lume, ele teria engrossado desmesuradamente. Num livro consagrado a infancia, e impossivel nao falar das familias donde provem as crian<tas, dos pais. Se nao tivesse feito uma caracteriza<tao completa e fiel da ambiencia familiar, a finalidade do meu sis- tema de eduCa<taO nao poderia Ser compreendida. Acredito firmemente na grande for<ta da educa<tao, como o fizeram, antes de mim, Nadejda Krupskaia, Anton Makarenko e outros eminentes pedagogos. A ESCOLA DA ALEGRIA Director de escola Depois de ter trabalhado durante dez anos como professor primario, fui nomeado director da escola de Pavlich, na Ucrania. Foi entao que as convic<;oes pedag6gicas que fui ganhando ao Iongo desses dez anos tomaram definitivamente forma. Foi entao que nasceu em mim a vontade de ver as minhas convic- <;oes traduzidas numa 'obra de cria<;ao. Quanto mais tne empenhava em por em pnitica essas convicc;oes, mais evidente se tornava para mim que, para dirigir os estudos e a acc;ao educativa, era preciso saber encontrar a soluc;ao das tarefas ideol6gicas e organizacionais a escala de toda a es- cola e mostrar urn exemplo pessoal no trabalho. A eficiencia do director de escola, enquanto coordena- dor dum corpo docente, sera maior se OS professores virem nele urn born professor, alguem que participa directamente na educa<;ao das crianc;as. A educac;ao e, antes de mais, urn contacto per- manente entre professor e aluno. 0 grande pedagogo russo C. Uchinski (1824-1870) 1 dizia que o director 1 As Edi<;oes Progresso publicaram, em ingles, as suas Obras Escolhidas. 12 era o principal educador na escola. Mas em que con- di<_;oes se cumpre esse papel de educaclor principal? Educar as crian<_;as por intermedio ·dos professores, ser o professor dos professores, ensinar-lhes a eiencia e a arte da educa<_;ao, e s6 uma componente por mui- to importante que seja, do processo multiplo que e a direc <_;ao duma escola. Quando o educador prin- cipal se limita a ensinar como formar, sem ter con- tactos com as crian<_;as, deixa de ser urn educaclor. Os factos vieram convencer-me, logo desde as pri- meiras seman as de trabalho como director· de escola, que a via que conduz aos cora<_;oes das crian<_;as me fic.ll'ia para sempre obstruida se nao partilhasse dos seus interesses, dos seus embara<_;os e das suas aspi- ra<_;oes. Sem uma influencia educativa di·recta sobre as crian<_;as; arriscava-me, como director, a perder a qualidade essencia:l do professor-educador, a capaci- dade de penetrar no mundo interior das crian<_;as. In- vejava os titulares de classe porque eles estavam sem- pre com as crian<_;as. 0 educador tern conversas in- timas com OS seus alunos, vai com eles ate a floresta ou para as margens dum ribeiro ou ainda fazer tra- balhos no campo. As crian<_;as esperam com impaci- encia o dia de partir em expedi<_;ao, fazer a comida ao ar livre, pescar, acampar, ver as estrelas cintilar. 0 director como que fica de fora. Esta la para orga- nizar; dar conselhos, chamar a aten<_;ao para as. insu- ficiencias, corrigi-las, encorajar 0 que e valido e proi- bir o que e indesejavel. Certamente que nao se podera passar sem tudo isto, mas, isso. nao me sati- sfazia. i Conhe<_;o muitos excelentes directores de escola 13 que tomam parte activa no trabalho de educac;ao. Sao pedagogos ex:perimentados, cu jos cursos sa~ mo- delos para os professores. Tomam parte activa na vida, nas actividades da organiza_s:ao dos pioneiros e do Komsomol. Tern algo que oferecer aos professo- res, aos titulares de classe, aos monitores dos pionei- ros. Mas parecia-me, e esta impressao transformou-se em convicc;ao com o andar dos anos, que o director perfeito se forma como educador por uma partici- pac;ao directa e prolongada na vida dum colectivo in- fantil de base. 0 meu desejo era estar com as crian- c;as, partilhar das suas alegrias e das suas amarguras, estar perto delas, 0 que e uma das grandes alegrias do professor que faz acto de criac;ao. De tempos a tempos, esforc;ava-me por me associar a vida deste ou daquele grupo de crianc;as; ia trabalhar com os alunos ou dar uns passeios ou fazer expedic;oes com eles, ajudava a criar essas alegrias incompara.veis, sem as quais nao sera possivel imaginar uma educa- c;ao verdadeiramente valida. Mas tanto as crianc;as como eu eramos sensiveis ao !ado artificial destas relac;oes. Preocupava-me este aspecto «hastardo» da situac;ao: as crianc;as nao con- seguiam esquecer-se de que a minha ;presenc;a entre elas era apenas temporaria. A comunidade autentica s6 nasce quando o professor se torna urn velho ami- go, urn companhelro de ideias, urn camarada nos em- preendimentos comuns. Sentia a necessidade desta comunidade nao apenas pela alegria da criatividade que ela procurava, mas ainda para poder ensinar aos meus colegas a arte e a ciencia da educac;ao. 0 tra- to directo, quotidiano, com as crianc;as e uma fonte 14 de rdlexoes, de descobertas pedag6gkas, de aiegrias, de angustias, de decep~oes, em suma, de tudo aquila sem o qual e impassive! qualquer cria~ao no nosso trabalho. Cheguei a conclusao de que o educador principal deve ser educador dum pequeno colectivode miudos, seu amigo e camarada. Esta certeza ali- cer~ava-se em convic~5es pedag6gicas que tinham ganho corpo muito antes da minha chegada a Pav- lich. Desde os primeiros anos de ensinan~a que digo que uma verdadeira escola nao pode ser apenas urn sitio onde as criap.~as adquirem conhecimentos e de- streza. 0 estudo e uma coisa certamente muito im- portante, mas nao e tudo na vida espiritual duma crian~a. Quanta mais de perto acompanhava aquila a que chamamos o processo de estudo e de educa- ~ao, mais se enraizava em mim a ideia de que a ver- dadeira escola e a vida espiritual multipla dum co- lectivo de crian~as, em que professores e alunos estao unidos por uma multitude de interesses e de afini- dades. Aquele que s6 ve os seus alunos nas aulas - professor dum !ado da secretaria e alunos do outro - nao conhece as crian~as por dentro. Ora quem nao conhece a alma das crian~as, os seus pensamentos, os seus sentimentos, as suas aspira~oes nao pode ser urn educador. A secretaria do professor torna-se mui- tas vezes uma muralha de pedra por detras da qual lan~a «a ofensiva» contra «o Immigo», os alunos, mas na maioria dos casas esta secretaria torna-se uma fortaleza sitiada, que «O inimigo» toma de as- salta, e o «general», que com ela se escuda, sente-se atado de pes e maos. 15 ·Mesmo com professores profissionaimente compe- tentes, a educa<;ao transforma-se, por \lezes, numa azeda embirra<;ao pela simples razao de nao existi- rem la<;os espirituais a unir professor e alunos e de a alma da crian<;a, mortificada, nao se deixar desco- brir. A razao principal destas rela<;oes inadmissiveis entre professor e aluno, que se verificam em algumas escolas, esta na desconfian<;a, na ~uspei<;ao mutua: 0 professor nao e semivel aos impulsos intimas da alma infantil , nao sente as alegrias e as tristezas das crian<;as, nao faz esfor<;os para, mentalmente, se co- locar no Iugar das crian<;as. 0 grande pedagogo polaco Janusz Korczak ( 1878- 1942) insiste, numa das suas cartas, na necessidade de nos elevarmos ate ao mundo espiritual da crian<;a e nao de condescender a nele penetrar. Trata-se du- ma ideia subtil que n6s, pedagogos, s6 temos a ga· nhar em compreender. Sem por a crian<;a nos pin- caros, sem !he atribuir qualidades excepcionais; o verdadeiro pedagogo tern a obriga<;ao de saber que a percep<;ao infantil do mundo e as suas reac<;oes emocionais e morais a realidade que a rodeia estao marcadas por mna limpidez, uma precisao e uma espontaneidade particulares. 0 apelo de Janusz a elevarmo-nos ate ao mundo espiritual da crian<;a deve ser compreendido como o imperativo duma com• preensao subtil da percep<;ao infantil do mundo, dum conhecimento pela inteligencia e pelo cora<;ao. Estou firmemente persuadido de que ha qualida- des sem as quais nao se conseguira ser urn verdadeiro educador e, entre essas qualidades, o primeiro Iugar cabe a faculclade de penetrar no mundo espiritual 16 da crian<;a. S6 pode ser urn born m estre quem nunca se esquecer de que tambem ja foi crian<;a. A desven- tura de muitos professores (as crian<;as e sobretudo os adolescentes apelidam-nos de velhas carca<;as) e que eles se esquecem que 0 aluno e, acima de tudo, urn ser vivo, que faz a sua entrada no mundo, do conhecimento, da cria<;ao e das rela<;oes humanas. Na educa<;ao nao existem coisas disparatadas, que ajam isolaclamente sobre o ser humano. As au- las sao uma forma organizacional essencial do pro- cesso de conhecimento do mundo pelos alunos. Toda a estrutura da vida espiritual das crian<;as depende da maneira como elas aprendem a conhecer o mun- do, das convic<;oes que nelas se cristalizam. Mas o conhecimento do mundo nao se confina a uma sim- ples assimila<;ao de conhecimentos. A desventura de muitos professores e que eles medem e avaliam 0 mundo espiritual da crian<;a pelas notas . e pelas classifica<;oes recebidas, e que eles dividem 0 con- junto dos alunos em duas categorias: os que apren- dem hem as li<;oes e os outros. Mas se esta e a situa<;ao pouco invejavel em que se encontra o professor que tern uma visao trunca- da da multiplicidade e diversidade da vida espiri- tual do aluno, que dizer entao do director cuja mis- sao consiste tao-s6 em controlar o trabalho do corpo docente, em dar, em tempo oportuno, «indica<;oes gerais», em autorizar ou em recusar? A sua posi<;ao e ainda menos invejavel. Urn tal papel significava para mim urn fardo terrivel. Sentia-me infeliz quan- do aco~tecia encontrar os almws profundamente embrenhados numa coisa qualquer, de concerto com 2-1251 17 6 seu educador. Por mai.s que tentasse dirigir-me a eles, nao davam por mim. As crian<;as partilham com o educador uma vida espiritual muito rica, terri • os seus segredos. Que necessidade ha, entao, dum direc~ tor deste tipo? Os metodos e formas de direc<;ao que vingaram nas escolas da Russia antes da Grande Re- volu~ao Socialista de Outubro de ·1917, em que o director era de facto urn inspector, urn funcionario administrativo, de 'cujas fun«oes fazia parte velar ·se 0 pedagogo expunha bern 0 programa, se nao tinha dito qualquer coisa a mais ou errada, sao hoje ' ana~ cr6nicos. A essencia da arte de dirigir uma escola moderna consiste ·em fazer de modo que na obra educativa, em toda a sua ·complexidadeJ garihe forma, amadu- rec;a e se afirme aos olh~s dos professores a melhor experiencia, aquela que encarna as ideias pedag6gicas de vanguarda. Aquele que· cria semelhante experien- cia e cujo trabalho se torna' urn exemplo para os ou- tros educadores, esse devera 'ser 'o director da· escola. Muito dificilmente se podera imaginar uma escola dos nossos dias sem tim tal director, sem uma 'pes- soa que seja urn excelente educador. A educa~ao e, antes de inais, o estudo do ser humano. Sem· urn co- nhecimento da crian~a, do seu desenvolvirnento ih- teleetual, do seu pensamento, dos seus interesses, das suas aJpetencias, das suas capacidades, das suas vir- tualidades, das suas inclina~oes, nao ha . educa«ao. Tal · como o medico-chefe do hospital nao pode ser urn verdadeiro medico se nao ve doentes, tambem 0 director de escola nao podera dirigir OS educadores se nao tiver os seus alunos. S e us, no sentido de 18 que, desde o tnomento etn que a crian~a e,ntra ha escola ate ao dia em. que obtem o seu diploma final, ele percorre com ela todos os escal5es, preocupando- -se • directamente com o seu desenvolvimento mental, moral, estetico, emocional e fisico; o director deve ter tambem interesses comuns com a crian~a e trans- mitir-lhe a sua riqueza espiritual. Quem e a figura central na escola? Em que esfera do processo de educa~ao o director deve ser urn mo- delo a ser seguido pelos restantes educadores? A fi- gura principal da escola e 0 educador do colectivo infantil de base, a turma. Ele e, a urn tempo, profes- sor, amigo das crian~as e director da sua vida espi- ritual multifacetada. 0 estudo e apenas uma das petalas da flor a que se chama educa~ao, no sentido lato do termo. Em educa~ao, nao ha. nada que seja essencial ou acess6rio, do mesmo modo que nao ha petala principal entre as varias petalas que fazem a beleza da flor. ,Em educa~ao, tudo e importante: as aulas, 0 desenvolvimento dos interesses multiplos das crian~as fora das aulas e as rela~5es entre os alunos no seio do colectivo. Ao fim de seis anos como director da escola, tomei a meu cargo uma tw-ma. E claro que esta nao e a unica via que propicia urn contacto espiritual directo entre director e alunos, mas era a que mais me con- vinha na minha situa~ao. 0 trabalho como educa- dor directo dum colectivo de crian~as e, para mim, uma experiencia duradoira levada a cabo em con- di~5es naturais. Antes de contar o que foi feito ao longo de mais de dez anos, acho que devo deter-me numa questao i9 importa:me que, em boa parte, determina o conteu- do e o objectivo dum trabalho pnitico. Em te!'lllOS de forma~ao do individuo, cabe urn papel eminente- mente importante a:osanos da inffincia, a idade pre- -escolar e da escola primaria. 0 grande romancista e educador Leao Tolstoi (1828-1910) dizia que, des- de o momenta em que nasce ate aos cinco anos de idade, a crian~a adquire muito mais em termos de razao, sentimentos, vontade e cara.cter que no resto da vida. Esta ideia foi retomada pelo pedagogo so- vietico Anton Makarenko: urn individuo sera aquila que for antes dos cinco anos. Janusz Korczak, homem duma beleza moral pou- co vulgar, escreveu no seu livro Quando eu for pe- .queno que ninguem sabe se o aluno tira mais provei- to quando olha para o quadro ou quando uma for~a irresistivel (a for~a do Sol que faz radar. o girassol) 0 obriga a olhar pela janela. Que e para ele mais benefico, mais importan te, nesse preciso mom en to: o mundo 16gico circunscrito ao quadro negro da sala de aulas ou aquele que desfila para la do vidro? Nao violentem a alma duma criatura pequena, examinem com aten~ao as leis do desenvolvimento natural de cada crian~a, acompanhem as suas particularidades, as suas tendencias e as suas necessidades. Nunca me esquecerei das palavras lidas num pe- queno livro de capas cinzentas que li em palaeo. Quando, pouco depois da guerra, figuei a saber qual tinha sido o gesto her6ico de Janusz Kor-czak, essas palavras passaram a ser urn mandamento da minha vida. Janusz Korczak era educador num orfanato duma «ilha» de Vars6via. Os hitlerianos condena- 20 ram OS desafortunados mittdos a morrer nos fornos cremat6rios de Trebliinka. Quando foi dado a esco- lher a Janusz Korczak continuar a viver sem as crian- c;;as ou morrer com elas, nao hesitou urn instante. «Sabemos que e urn hom medico e nao ha. necessi- dade de ir para Treblinka» •- disse-lhe urn agente da ·Gestapo. «A minha conscienci3: nao esta a ven- da» - respondeu Janusz Korczak. 0 her6i partiu p3.1I'a a morte com as crianc;;as, esforc;;ando-se por re- conforta-las, por mitigar o horror da espera da mor- te. A vida de Janusz Korczak, o seu gesto duma forc;;a e duma pureza moral espantosas fizeram-me ·com- preender que para ser urn verdadeiro educador d~ crianc;;as e preciso fazer-lhes dadiva do corac;;ao. C. Uchinski escreveu que podemos amar com mui- ta forc;;a uma pessoa com a qual vivenios permanen- temente sem disso nos da.rmos conta ate que, urn dia, uma infelicidade nos faz tomar consciencia de quao profunda e a nossa ligac;;ao. Pode-se viver toda uma vida sem se saber quanto se ama· a patria, ate que urn acontecimento, uma ausencia prolongada, por exemplo, venha revelar toda a veemencia desse amor. Estas palavras ocorrem-me a mente, sempre que fico rriuito tempo sem ver as minhas crianc;;as, sem sentir as suas alegrias e as suas penas. Com o tempo, ganhou forc;;a dentro de mim a seguinte con- vicc;;ao: uma das coisas que distingue urn hom peda- gogo e a sua afei«;ao pel as crian~as. · Mas se, confor- me dizia Constantin Stanislavski (1863-1938), «OS seritimentos nao se encomendam», a educa«;ao dos sentimentos do professor, do educador, constitui a propria essencia duma elevada cultura pedag6gica. 21 1Sem uma· permuta espiritual constante entre pro- fessor e aluno, sem uma penetrac;ao redproca no mun- do dos pensamentos, dos sentimentos, das emoc;oes urn do outro nao podera haver «cultura dos senti- mentos», que e a seiva da cultura pedag6gica. A prin- cipal fonte da educac;ao sentimental do pedagogo situa-se ao nivel das relac;oes mU.ltiplas em termos de sentimentos e emoc;oes com as crianc;as no seio dum colectivo unido, coeso pela amizade, em que o pro- fessor nao e apenas urn perceptor, mas tambem urn amigo, urn camarada. Sao impensaveis relac;oes emo- cionais se o professor s6 se encontra com os alunos nas aulas e s6 ai se faz sentir a sua influencia. iNao se podera admitir sequer a ideia de que a instruc;ao obrigat6ria e uma violencia exercida sobre 0 pequeno indivlduo, que 0 quadro negro e a submis- sao das crianc;as, enquanto 0 mundo para la das ja- nelas representa a liberdade autentica. Durante os anos cjue precederam a minha nomea- c;ao para a escola de Pavlich, muitas foram as oportu- nidades de me convencer do imenso papel desempe- nhado pelo professOT primario na vida duma crian- c;a. Ele deve tornar-se num ser tao querido, tao ne- cessaria a crianc;a como a propria mae. A confianc;a que o pequeno aluno deposita no seu professor, a confianc;a mutua entre 0 educador e 0 aluno, 0 ideal de humanismo que a crian<_;a ve naquele que a instr6i, sao regras elementares e ao mesmo tempo muito complexas e sabias da educac;ao que 0 professor deve ter compreendido para se tornar urn verdadeiro tu- tor -espiritual. Uma das virtudes mais preciosas do educador e 0 seu humanismo, 0 amor profunda que devota as crian«_;as, urn amor em que ~e combinem a ternura vinda do cora«_;ao, a firmeza sensata e a severipade duma mae ou dum pai. A infancia e urn periodo essencial na vida duma pessoa e nao apenas uma prepa:ra«_;ao para a vida fu~ tura, . mas sim uma existencia verdadeira, exultante, original e {mica. Da maneira como tenha decorrido a infancia, da quesGo de saber quem orierttou a crian«_;a ao Iongo destes anos, que e que do mundo envolvente penetrou no seu espirito, no seu cora«_;ao, de tudo isto depende, em grau determinante, aquilo em que se ha-de tornar; quando adulto, . o petiz de hoje. A forma«_;ao do canl.cter, do pensamento, da verve do individuo opera-se na idade pre-escolar e nos primeiros anos de escola. Quem sabe se tudo o que entra no espirito e cora«_;ao duma crian«_;a atraves dos livros, dos manuais. e das aulas nao entra por- que, ao lado, ha o mundo envolvente em que o pe- qJ.leno ensaia os seus primeiros passos, desde o nasci- mento are ao momento em que ela possa folhear e ler urn livro. 0 longo processo do conhecimento come«_;a na in- fancia. Esta descoberta, pela razao e pelo cora«_;ao, dos valores morais que sao intrinsecos a moral comu- nista: amor sem reservas a Pitria, que faz com que se esteja disposto dar a vida· para a sua felicidade, grandeza, poderio e firmeza face aos seus inimigos. Durante 33 anos, estudei o v0cabulario das crian- «_;as das classes elementares, l:Ilkdias e superiores, bern como dos adultos. 0 quadro e surpreendente. Uma crian«_;a de 7 anos oriunda duma familia de kolkho- sianos (pai e mae com educa«_;ao secundaria e urna 23 biblioteca com 300 a 400 livros) sa be, no mom en to de entrar para escola, de 3 mil a 3 mil e quinhentas palavras da sua Ilngua materna, e sens1vel a sua co- lora~ao afectiva, e 1 500 dessas palavras fazem parte do vocabulario que utiliza regularmente. Urn opera- rio ou urn kolkhosiano munidos de instruc;ao secun- daria; com idades entre 45 e 50 anos, compreendem os matizes de 5 mil a 5 mil e quinhentas palavras da sua Hngua materna, das quais entre 2 mil e 2 mil e quinhentas fazem parte do seu vocabulario de to- dos OS dias. Este e urn facto que prova a evidencia a importancia dos anos da infancia na vida dum in- div1duo. A firme convicc;ao de que o periodo pre-escolar e o dos primeiros anos de escola predetermina, em boa medida, 0 futuro dum individuo nao equivale a ne- gar as possibilidades duma reeducac;ao num periodo mais tardio. A. Makarenko demonstrou com brilhan- tismo pelo seu proprio exemplo a forc;a da reeduca- c;ao. Ele atribu1a uma importancia excepcional aos primeiros anos. A tarefa da educac;ao nao e corrigir os erros cometidos na primeira infancia, mas evitar esses erros, tornar desnecessaria uma reeducac;ao pos- terior. Trabalhando como director de escola, tive ocasiao de · verificar, por infelicidade minha, quanta a exi- stencia natural das crianc;as pode ser adulterada des- de que, para urn professor, educar seja apenas en- cher as· cabec;as com o maximo de conhecimentos. E imposs1vel, · sem sentir uma dor pungente, ver como e mutilada a vida natural das crianc;as, naQ s6 durante as aulas, m as tambem nos grupos ditos de 21 permanencia prolongada1 • Existem, infelizmente,es- colas, onde, depois de cinco ou seis horas de aulas, as crianc;as tern que ficar na escola mais quatro ou cinco horas e onde, em vez de se distrairem, de se descontrairem, de viverem em contacto com a natu- reza, se enfronham de novo nos livros. 0 tempo que passam na escola transforma-se num periodo fati- gante, que nao ha meio de passar. Isso nao pode ser! Os grupos e as escolas de permanencia ·prolan- gada sao uma forma de educac;ao muito valida. E. ai que se criam coridic;oes favoraveis a uma permu- ta espiritual continua entre o professor e o aluno, sem as quais e impensavel a educac;ao duma elevada cultura dos sentimentos. P01r infelicidade, uma ideia excelente pode muitas vezes ser subvertida: a fre- quenca do grupo de permanencia prolongada trans- forma-se em algo infindavel: a crianc;a continua cin- gida a carteira e s6 lhe resta ver as horas passar. As- sim se esvaem as suas energias. Porque e que isto acontece? Porque e mais facil continuar as aulas que levar as miudos a:te urn campo relvado, urn parque ou urn bosque. E lamentavel que a experiencia positiva das melho- res escolas com permanencia prolongada; uma expe- riencia suficientemente bern ilustrada nas ·publica- c;oes da especialidade, nao erie raizes noutros !ados. A razao principal esta na debilidade geral da acc;ao educativa ( compreendida no sentido restrito da pa- lavra). 1 Grupos de estudos, corn vigiHlncia, depois das aulas. Vivemos num tempo, em que sem conhecimentos cientifkos, nem o trabalho, n~m as mais elementa- res relac;;oes humanas, nem o cumprimento do clever dvico de cada urn sao possiveis. 0 estudo nao pode ser urn jogo facil, agradavel, que s6 nos reserva ale- grias e satisfac;;ao. A vida dum cidadao de tenra ida- de nfio sera urn simples passeio por urn caminho jun- cado de rosas. E nosso clever educar homens alta- mente instJruidos, trabalhadores tenazes, preparados para ultrapassarem dificuldades pelo · menos tao grandes como as .que · os seus pais, avos e antepassa• dos tiveram de veneer. 0 nivel . de conhecimentos dum jovem dos anos 70-90 sera muito mais eleva- do que o dos jovens das decadas anteriores. Quanto mais o circulo de conhecimentos a ministrar se for alargando, mais e preciso ter em conta a natureza do organismo humano na epoca do. crescimento, a for- mac;;ao impetuosa do individuo ' nos anos da sua in- fancia. 0 homem sempre foi urn filho da natureza e continuara a se-lo, e 0 que ele tern de panintesco com a natureza deve ser utilizado no sentido de poder as- similar as riquezas da. cultura es,piritual. 0 mundo que rodeia a crianc;;a e, antes de mais, 0 da natureza, com a infinita riqueza das suas manifestac;;oes e a sua inesgotavel beleza. :E a natureza que e a fonte eterna do intelecto infantil. Mas, simultaneamente, ve-se crescer, de ana para ana, o papel dos elementos do meio que se prendem com al' relac;;oes sociais entre as pessoas, com o trabalho. 0 processo da descoberta das realidades e urn esti- mulante emocional do pensamento que coisa nenhu- ma pode substituir. Para a crianc;;a em idade pre- escolar e das primeiras classes, este estimulante de- sempenha urn papel muito importante. A verdade na qual se faz a generalizac;ao dos objectos, dos fen6- menos do mundo circundante torna-se convicc;ao pes- soal das orianc;as, desde que tenha sido espiritualiza- da pelas representac;oes brilhantes que actuam sobre os sentimentos. E de grande importancia que a cri- anc;a aprenda a conhecer . as primeiras verdades ci- entHicas no mundo que a rodeia, que a fonte do seu pensamento seja a beJeza, a inesgotavel complexida- de dos fen6menos naturais, que a crianc;a seja gra- dualmente introduzida no mundo das relac;oes so- dais e do trabalho. Desde a primeira hora das · minhas actividades na escola de Pavlich que me interessei pelas crianc;as das classes iniciais, especialmente pelas da primeira clas- se. Com que emoc;ao as pequenas criaturas passam a porta da escola nos primeiros dias de aulas, com que confianc;a fixam o olhar do professor! Porque e que acontece, muito frequentemente, que alguns me- ses ou mesmo semanas depois, essa pequena chama que brilha nos seus olhos se extingue? Porque e que, para certas crianc;as, o estudo se torna urn tormento? E, no entanto, e verdade que. todos OS professores estao sinceramente interessados que se mantenha esta espontaneidade infantil, a alegria da descoberta do mundo, todos querem que o estudo seja para as ori- anc;as urn trabalho apaixonante, sustentado pela in- spirac;ao. Isso nao acontece sobretudo porque o professor conhece muito pouco do mundo espiritual de cada uma das crianc;as antes da sua entrada na escola e 27 porque a vida dentro das paredes da escola, deter~ minada pelo estudo e pelos toques de sineta, conduz a urn nivelamento das crian~as em que todas sao me- didas pela mesma bitola, o que impede que se reve- le a riqueza do seu mundo individual. E verdade que fiz recomenda~oes aos professores prhmirios sobre o que era preciso fazer para desenvolver OS· interes- ses, diversiJicar a :vida espiritual' das crian~asj mas s6 conselhos nao chegam. Uma ideia pedag6gica im- portante cuja essencia se desvenda nas rela~oes entre alunos e professores s6 se torna clara quando aos olhos do corpo docente ela aparece como urn edificio harmonioso, erguido aqui mesmo na escola. Esta a razao por que me empenhei numa ac~ao educativa escalonada para 10· anos com o colectivo duma clas- se. A vida da classe, a que nos referiremos mais adi- ante, nao esta desligada da . vida da escola no seu conjunto. Por isso, em muitos casos; tratei formas e rnetodos de eduea~ao utilizaveis no quadro de toda a escola. No entanto fi-lo Ztpenas para real~ar o co- lectivo da dasse, pois o conteudo da ac~ao educati- va levada a cabo em classe e que e a condi~ao maior do sucesso da educa~ao a nivel de toda a escola. · Primeiro ano estudo das crian~as No Outorro de 1951, · tres· semanas antes do co- me<;o do ano ~ escolar, paralelamente a inscric;;ao dos 68 1uturos alunos da primeira\ a escola aceitou tomar conta dos meninos ·e meninas com 6 anos, quer dizer daqueles que, s6 no _ano seguinte, atingiam a idade de entrar para a escola. Foi com estas crian<;as ·que tvabalhei durante dez anos. Quando reuni todos os pais e respectivos filhos e propus que estes ultimos entrassem para a escola urn ano antes de oficialmente preciso, as opinioes dividi- ram-se. Alguns pais aprovaram a minha inten<;ao, considerando que, dada a ausencia dum jardim de infancia aberto todo o ano ( o jardim de · infancia existente en tao na aldeia s6 funcionava no Verao), a pn!-escolariza<;ao dos filhos daria muito jeito a fa- milia; outros disseram recear que esta frequencia antecipada dum estabelecimento escolar viesse, a ter efeit9s nefastos para a saude das criangas. «Tem muito tempo para se f.artarem de aulas - , disse a mae de Liuba. Infancia feliz e antes da escola». Afir~ ma<;oes destas levaram a que, uma vez mais, me de- bru<;asse sobre o canicter nefasto da brusca pertur- ba<;ao provocada na vida da crian<;a quando entra para a escola, dissesse para mim mesmo que o im- portante e dar toda a latitude ao desenvolvimento das for<;as naturais da crian<;a. Disse en tao · aos pais que a frequencia da ·escola, urn ano antes, nao signi- ficava ficar confinado as salas de aula. Tinha necessidade daquele ano pa'ra melhor co- nhecer cada crian<;a, par.:1. estudar as particularidades . . ' As classes, nurna escola de dez anos qa URSS, vao des de a Ja, ·aos 7 · imos, ate a I 0•, aos 16 anos aproxirnada- mente. 29 indivicluais da sua percep~ao das coisas, do seu peh- samento, do seu esfor~o -,mental. Antes de dar conhe- cimentos, hi que ensinar a ·refletir, a perceber, a observar. Hi ainda que conhecer bern as particulari- dades individuais da saude de cada aluno, sem 0 que nao e possivel ensinar normalmente. iEduca~o mental nao e 0 equivalente de aquisi- c;ao de conhecimentos.Embora seja impossivel sem a instru~ao, da mesma maneira que nao hi folhas verdes sem raios de Sol, a educa~ao do intelecto nao se identifica mais com a instru~ao que as folhas ver- des como Sol. 0 educador ocupa-se da materia pensante, cuja faculdade de percep~ao e compreensao do mundo depende, em grande medida, da saude da crian~a. Esta correla($aO e inuito delicada e de dificil deter- mina($aO. 0 estudo do mundo espiritual das crian~as, particularmente dos seus pensamentos, constitui uma das tarefas bisicas do professor. Os. pais dos meus alunos Para bern conhecer. as crian~as, e necessaria conhe- cer a familia - pai, mae, irmaos, irmas, av6s. Na area da nossa escola, havia 31 crian~as com seis anos de idade, sendo ·16 mpazes e 15 raparigas. Todos os pais aceitaram enviar os seus filhos para a Escola da Alegria - foi assim que as maes e OS pai~ denomi- naram, pouco tempo depois, o nosso grupo pre-esco- lar. Destes 31 oatraios, 11 ~ao tinham pai e 2 eram 6rfaos de pai e mae. A sorte destes dois menin~s, Vi- 30 tia e Sacha, era tdgl.ca. 0 pal. de Vitia, guerriiheiro na Grande Guerra Patria (1941-194·5), fora morto pelos hitlerianos, depois de ter sido selvatic~cmte torturado na presen~a de sua mulher. A mae de Vi- tia enlouqueceu. 0 pequeno nasceu seis meses depois deste tragico a-contecimento. A mae morreu no parto e a crian<;a foi salva por urn fio. 0 pai de Sacha mor- n!u na frerite de combate e a mae durante a luta pela liberta~ao da aldeia da ocupa~ao nazi. 1Semanas antes da abertura da Escola da Alegria, quis conhecer cada uma das familias. Preocupava-me o facto de em algumas nao existirem boas relaf$6es entre pais e filhos, entre pai e mae. Nalguns casos, nao existia sequer respeito mutuo, sem 0: que e im- possivel uma crian~a ter vida feliz. Diante de mim esta o pequeno K6lia, olhos negros, rosto macilento, nariz arrebitado. Uma expressao de desconfian<;a no olhar. Sorrio-lhe, e ele fecha-se ain- da mais. Penso no ambiente anormal que me foi dado observar na sua familia. 0 pai de K6lia tinha estado preso antes da Guerra Patria. Vivia entao a sua familia na bacia do Donetz. Durante a ocupa~o nazi, saiu da prisao e a sua familia mudou-se para a nossa aldeia. Mae e pai aproveitaram-se das desgra- f$aS das pessoas para juntar dinheiro e dedicar-se a neg6cios escuros: especula<;ao, receptaf$aO das coisas roubadas pelos «poliiei» ao servif$o dos nazis. A mae roubava ~alinhas no aviario do kolkhose e ensinou K6lia e o irmao mais velho a · apanhar corvos. Os mi{tdos matavam as aves e a mae assava-as no chur- rasco para os vender, como fningos, no mercado ... Olho para este rapazinho; desejoso de !he arrancar 31 urn sorriso, mas o que vejo no seu rosto e medo e alienac;ao. Como despertar no teu corac;ao, K6lia, bons sentimentos humanos? Que poderei opor ao odioso clima de maldacle e de desprezo pelos ho- mens em que tens crescido? Procuro os olhos, que me parecem nada ver, da mae, e neles leio desdem, 0 que me faz ficar pouco a-vontade. Pencei e repencei antes de me decidir revelar estes da- dos aos leitores. Risquei dezenas de vezes o que tinha escrito, para o reescrever. Poderia ter-me contentado em dar uma caracterizac;ao de conjunto: pai e mae nao eram urn exemplo de honradez para o filho ... Isso, porbrn, seria deitar muita agua na fervura. Nao, nao se poderia iludir 0 facto de que a maldade e as torpezas ainda existem a nossa volta. Seria inutil que- rer levantar uma muralha de pedra para proteger a escola disso. Para combater e veneer essa maldade, para limpar as jovens almas dos vicios herdados do velho mundo, ha que se encarar a verdade de frente. Macilento, cabelos de estopa e olhos dum azul d ceu primaveril, T6lia esta de pe, ao !ado da mae, estreitando-se contra ela, agarrado a sua mao, mas de olhos no chao, que s6 levanta a instantes, subrep- ticiamente. 0 pai deste rapazinho teve uma morte her6ica nos Carpatos e por isso foram enviadas a mae varias condecorac;oes, conferidas a titulo o6s- tumo. T6lia tern orgulho do pai, mas a mae goza de rna reputac;ao na aldeia: leva uma vida de deprava- c;ao e praticamente nao quer saber do filho ... Que fazer para que tao grande infort{mio nao mutile 0 corac;ao desta pequena criatura de seis anos? Que fazer para que a mae an·epie caminho e no seu co- 32 ras;ao renass;a o • sentido das suas ' obrigac;oes · para como filho? A guerra · deixou marcas profundas, feridas 'que continuam . a sangrar. Tenho diante de mim crianc;as nascidas .em 1945, algumas mesmo em 1944, e varias sao 6rfas desde que vieram ao mundo. Por exemplo, Iura. 0 pai morreu no penultimo dia da guerra, na Checoslovaquia .. A mae adora o filho e procura sa- -tisfazer todos os seus ,caprichos. 0 avo vive com eles e tambem ele quer que nada falte ao seli Iura. Esta crianc;a cle seis anos pode tornar-se · num pequeno tirano. 0 amor cego duma: mae . e tao pernicioso co- mo a indiferenc;a. Petrik veio acompanhado da · mae e do avo. Eu tinha ouvido· falar hastlinte da vida dificil da mae .dele. ·0 seu primeiro marido tinha abandonado a fa- milia antes da guerra. A mulher casou-se de novo, •illaS 0 Casamento nao foi feliz: Veio ··a saber-se que o pai de Petrik •tinha familia num sltio qualquer da Siberia e para Ia partiu, mal acabou a guerra. Por brio, a ' mae · deGidiu fazer crer ao filho que o. pai tinha morrido· na• frente. 0 mi{Jdo contava 'aos seus pequenos camaradas as fac;anhas imaginarias ·do pai, mas eles nao acreditavam e diziam-lhe que o pai os tinha engan·<icio. ·Petrik, · banhado em ' lagrimas, · corria para a mae. Pessoas sem coras;ao tinham semeado a desconfianc;a em relac;ao ao proximo, 6 -azedume na ·alma do pequeno. Seria passive! fazer qualquer coisa para que esta crianc;a pudesse cr'er no bern? · · .. , K6stia ja · tinha sete anos tnas ainda: nao ia para a escola. Foi levado pelo pai, a madrasta· e o· avo. Tam- bern ele tinha sido afectado pela guerra. Algumas se- 3-1251 S3 manas depois cia liberta<;;ao cia aldeia, a mae de K6s- tia, gravida dele ( estava no fim do tempo), encon- trou uns objcctos metalicos que deu ao seu filho mais velho; de 7 .anos, para brincar. Entre esses trastes ha- via um detonador de min a. Deu-se a explosao: o miu- do ,tombou fulminado. A mae tentou.enf(i)rcar-se. Hou- ve pe.ssoas que acorreram a tempo e conseguiram sol- ta-la. Nos sobressaltos da agonia, a mulher deu a luz K6stia. 0 menino sobreviveu por milagre. Uma vi- zinha que tinha uma crian<;;a de peito amamentou-o. 0 pai voltou da £rente. Adorava o filho, protegia-o, cobria,p de carinhos; a madrasta excelente mulher, e o avo gostavam muito dele. Mas K6stia nao tinha ainda cinco anos quando outra desgrac;a aconteceu. Encontrou um objecto metalico brilhante no campo, comec;qu a bater com ele e. . . explosao. E levado c.heiQ de sangue para o hospital. K6stia iria oficar sem a . mao esquerda e sem o olho do mesmo lado para .o resto da v,ida: graos azulados de p6lvora ·marcaram pa ra sempre o seu rosto ... Quanta bondade, quanta ternura, nao sera preciso dar-te, K6stia, para que seja1> um homem feliz? Como £alar .com o teu pai, com a tua tao bondosa madrasta e . com o teu avo para: que o seu all,lm; seja razoavel e exigente? Como vais tu aprender?( Di:t;em os teus familiares que tens frequen~es dores de cabec;a. Co- Il,lo facilitar-te OS estudos,. fortalecer a tua saude, dis- sipar as, ideias tristes que te afligem? Contou-me o teu pai qu~ ha alturas em que corres a isolar-te para chorar e que os jogos dos teus pequ,~nos ·carriaradas ~ao te dizem nada ... Este aqui e Slava, rapazinho . sisudo e de olhos 34 azuis, que veio pela mao da mae. Esta conhece a amarga sorte duma mulher s6. Anda na ·casa dos cinquenta. Quando jovem, sonhou certamente com a felicidade, mas a natureza nao a favoreceu e nin- guem queria casar com ela. A juventude passou e a felicidade nao . veio, Ate que urn homem, como ela s6, regressou da guerra, cheio de cicatrizes.Acabaram por casar. Efemera, porem, foi a felicidade: o marido morreti. Todo o seu amor e transferido para o filho, mas nao o criava como era devido. Dizia-se que Sla- va nao mostrava afeic;;ao por ninguem, que ficava dias inteiros em casa e bastava perguntar-lhe qualquer coisa para que, no seu olhar, se vislumbrasse, uma .ex- pressao malevola. Acabo de fixar o miudo . nos olhos, que logo ganharam uma expressao ao mesmo tempo arrogante e plena de desconfianc;;a. Quanto m ais conhecia os meus futuros alunos, mais dizia para comigo que uma das tarefas essenciais que me iriam competir era a de restituir a infancia aque- les que no seio das suas familias a nao conheciam. Em tres anos de trabalho na escola, conheci deze- nas de crianc;;as como estas. A vida mostra que se nao se conseguir instilar no pequeno individuo fe na jus- tic;;a, crenc;;a no bern, nunca mais ele conseguira sentir- -se urn homem, experimentar o sentimento da sua propria dignidade. Chegado a adolescericia, urn tal aluno torna-se empedrenido, malevolo, para ele nao ha nada de sagrado, as palavras do professor nao !he chegam ao corac;;ao. Sarar a alma duma crianc;;a assim e uma das tare- fas· mais diflceis do educador; e Jieste trabalho deli- carlo, extremamente meticuloso, que se efectua, de 35 facto, 0 grande teste a arte de conhecer 0 ·ser burna- no. Entregar-se ao seu estudo nao e s6 ver sentir como a crianc;a aprende a conhecer o Bern e o 1\tial. E tambein proteger do mal o fragil corac;ao infantil. Fixando os olhos negros, azuis ou cinzentos destas crianc;as, perguntava-me a mim mesmo se teria sufi- ciente bondade para transmitir calor aos seus cora- c;oes. Recordei as palavras de Nadejda Krupskaia: «Para a crianc;a, a ideia e insepa ravel do individuo. 0 que diz 0 professor de que ela goste e percebido duma maneira: muito diferente do que . dito por urn individuo que despreze, que lhe seja estranho1». Ia eu, pois, educar com a palavra . e com o meu exemplo pessoal. As crianc;as deveriam ler bondade, verdade e beleza nas minhas palavras .e nos meus actos. Por detras de cada afirmac;ao . minha, deveria haver ca- lor, cordialidade, sinceridade. Galia chegou com o pai. Ela e sua irma mais nova tiveram· urn grande desgosto. Morreu-lhes a mae. Urn ano depois, o pai casa-se de novo com uma mulher boa, honesta, sensivel. Esta compreendia o que se pas- sava nos corac;oes das meninas e procurava mostrar- -se cautelosa na expressao dos seus sentimentos, na esperan!(a de ganhar a sua afeic,;ao. Mas as semanas e os meses. passavam, e Galia e sua irma nem sequer queriam falar com a sua madrasta. Era como se niio existisse. A pobre da mulher chorava, pedia conselho .ao marido, aos familiares: que devia fazer? Chegou a pensar ir-se embora, mas urn filho nasceu e com ele a esperanc;a de que o hebe quebrasse o gelo no cora- ~iio das meninas. Nada disso. Estas (sobretudo Galia) ' N. K. Krupskaia. Sobre o professor. M, p. 143-144. 36 faziam de conta que ele nao extst!a. Como dirigir-·se a este cora<;ao soberbo? Qtie conselho dar ao pai e a madrasta, que dizer-lhes, quando o pai ja tinha vindo a escola para me confiar a sua tristeza? Dissera-lhe que nao lhe poderia aconselhar fosse 0 que fosse, en- quanta nao conhecesse melhor Galia. · Rechonochudinha, olhos cinzentos, sorridente, La- rissa esta sentada junto a mae, de crisantemo na mao. Sei que a mae vive numa dor profunda. 0 marido abandonou-a. A menina nao se recorda do pai. E a i:nae dizia sempre: «0 papa ha-de voltar». Depois, casou-se com urn homem bondoso, operario do par- que de maquinas e tractores. Conseguiu convenccr a menina que este hdme·m era seu pai. Larissa gosta muito do pai, mas a mae vive no medo de que urn deslize de quem quer que fosse acabe por fazer des- cobrir a verdade. A menina e feliz, mas ha que estar vigilante para proteger o seu cora15ao das dolorosas fe- ridas que possam ser abertas por palavras insensatas. Estaremos em condi156es de o conseguir juntamente com OS seus bons pais? Urn pai que s6 0 e de op- ~SaO . ... Oxala todas as crian15as tenham urn pai como o de Larissa, mesmo sendo apenas padrasto. Quanta mais eu aprendia a conhecer este homem, mais se consolidava em mim a convic15ao de que o verdadei- ro pai e aquele que cuida duma crian15a. Visitava frequentemente esta familia, onde pude verificar urn fen6meno interessante: havia nos olhos da menina a mesma bondade, a mesma ternura, a mesma sensibi- lidade que havia nos do pai adoptivo. Deles transpare- cia a mesma admira~ao, o mesmo arrebatamento pe- ra.nte a beleza que transpareciam dos do padrasto. 37 Deste tinha Larissa os gestos; a mimrca, a expressao de espanto, de su'rpresa, de seriedade. Fedia, .. Mais urn que nao tinha pai e que por di- versas vezes tinha ouvido remoques, insinuac_<oes a pro- p6sito da conduta pouco exemplar· da mae. A duvida mortificava a alma da crian<_<a: a mae tinha-lhe dito que o pai tinha morrido na £rente. Conheci a mae de Fedia ainda antes da guerra. Nao foi feliz a sua vida durante as hostilidades. Como introduzir o ·ra- pazito no mundo complexo das relac_<oes humanas para que nao seja molestado por questoes dolorosas? N6s, educadores, esquecemo-nos a cada passo que para os mais pequenos o conhecimento do mundo come<_<a pelo conhecimento do homem. 0 bern e o mal sao revelados a crian<_<a no tom com que 0 pai se dirige a mae, nos sentimentos espelhados no seu olhar, nos seus gestos. Conheci · uma menina que se escondia nos sitios mais reconditos do pomar para chorar, quando via o pai chegar do trabalho de mau humor e sorumbatico, enquanto a mae fazia todos os possiveis para !he ser agradavel. 0 corac;ao da crian<_<a estava dilacerado pelo rancor ao pai e com- paixao pela mae. . . ' Estes sao, porem, apenas OS primeiros trac_<os, epi- dermicos, das rela<_<oes humanas que a crian<_<a apreen- de. ·Ora, que se passa no seu corac_<ao quando uma palavra proferida ao acaso, uma zanga entre a mae e 0 pai lhe dizem que OS pais nao se amam e ter-se- -iam divorciado se nao tivessem 0 filho ou a filha? ' Nina e Sacha sao gemeas e vieram ate a escola pela mao do pai. Esta grande familia Cquatro filhos para alem "das gemeas) nao escapa a infelicidade: desde 38 ha anos que a mae de familia esta retida no leito por causa duma doent;a grave. As irmas mais velhas encarregam-se dos trabalhos domesticos. 0 pai tern ralat;oes que cheguem. Nina e Sacha ja sabem o que e trabalhar. Poucas sao as alegrias que tern 'tido na vida. Quando estas duas meninas viram urn balao verde nas maos dum rapaz, os seus olhos iluminaram- -se, mas logo se apagaram. Vi tanta amargura nesse olhar que fiquei com urn n6 na garganta. Como ac- tuar para dar a estas meninas a alegria limpida e serena da crbnt;a? Serei capaz de o fazer? 0 pai avi- sou-me de antemao que as filhas s6 ·virao a escola urn a bora por . dia, poi's tern de a judar em cas a. Estamos todos sentados na relva, a' sombra duma grande pereira. Digo aos 'pais e familiares o que deve ser a educat;ao das criant;as, ·explico-lhes o que · se po" de dizer na sua present;a, mas o espirito continua assoberbado pelas desgrat;as, pelos azares de 'todas estas familias . Cada uma tern o seu calvaria, mas re- vela-lo diante de todos, dar conselhos na present;a de terceiras pessoas seria p0r a nu, expor a ·alma dou- trem, mostrar 0 que e pessoal e profundamente inti- mo. E meu clever conhecer tudo isto, mas ja nao pos~ so £alar disso diante de· todos os pais. Se for preciso ir ate aos recantos mais iritimos dos corat;oes dos pais, tenho que o fazer canl.-a-cara e pesando bern todas as minhas palavras. As feridas que carregam no cora- t;ao, as infelicidades, os vexames, as dores, as angus- tias, as inquietat;oes, os sofrimentos dos pais · e das maes de que falei (a maior parte dos pais dos meUSi alunos sao excelentes pessoas) sao tao individuais que de nada ad ian tara ten tar fazer · generalizat;oes. Quan- 39 do se revelouem mim o entrcb,;aclo complexo entre o born e o mau nas pessoas sentadas a meu lado, com• preendi que nao existem pais que deliberadamente d,i~em mau exemplo aos fi)hos . . · Talvez o leitor ache que ha demasiadas misefias e infortunios no que acaba de s:er evocado - no fim de contas, trata-se apenas dum {mico colectivo de crian«;as. Nao n6s esque«;amos, porem, que tudo isto sao feridas deixadas pela guerra. Os primeiros anos do 'fi6s-guerra pertencem ja a urn passado distante. As graves chagas morais de entao ja -cicatrizaram e aqueles que soletravam .as .prin1eiras palavras quando estalaram nos ares ctS salvas de. fogo de · ~rtificio ·da vit6ria, em 1944-194·5, tornaram-se, por sua vez, maes e pais, os filhos dos nossos alunos .dos anos que -se se- guiram a guerra frequentam ha bastante tempo a es- cola, estando· a;lguns deles no limiar da adolesd~ncia. Nas . jovens familias de hoje tudo deve · raiar 'de feli- cidade, pelo mcnos assirn pareceria ser, mas na vida as coisas seguem frequentemente outro 1·umo. Tam- bem .hoje ha infortunios, desgra,;as, tragedias ... Que dizer, pois, dos anos que se seguiram ao fim das hos- tilidades, Regozijava~me com o ·facto de 'que entre os pais; a maioria dos casais-se clavam bern, viviam em clima de born entendimento e cuidavam bern · dos filhos . , Vejamos o caso do. pai de Vania, rbbusto gaiato de 7 anos. E ;Urn born agricultor, apaixonado por tu- do 0 que e da terra, qu.e trabalha generosamente seja pa ra quem for .. Todos os anos faz crescer,.·no seu lote individu.al, dezenas de pes de macieiras e de videiras que distribui. Sua mulher, chefe cluma ·equipa de se- 40 ricultores; e uma especialista a valer, mulher de cora- «ao grande c mac dedicada. Durante OS duros anos de 1933-1934, acolheu em casa quatro 6rfaos que sal- von de morrerem ·a fome e criou como se fosse· seus filhos. Chamam-lhe· mae. 0 pai de Lucia, uma menina ·com uma espantosa cabeleira negra. repartida por grossas trari~:;as, e . ho- mem de grande probidade. E urn daqueles de quem se diz serem moralmente bonitos. Na maioria: dos ca- sas, essas pessoas nao dao nas vistas. A beleza· ·moral manifesta-se nas rela<5oes com ·as seus semelhantes. E poLico provavel que 0 pai de Lucia alguma vez tcnha 'dito que e preciso scr sensivel, compreensivo. Ele ensina OS filhos a serem sensiveis, ternos, huma- nos, pela .sua maneira de ser, pelas -rela~_;oes que man- tern com a ·rnulher. A mae de L1tcia e cardiaca e tra- balhou na· planta<;;ao de beterrabas do kolkhose. 0 pai encarrcgou-se. de todos os afazeres domesticos. 0 pai e a mae de Katia transforma·ram ·o seU: po- mar numa especie de dube para a pequenada: desde que desponta a :Primavera e ate bern dentro do Ou- tono, as crian~_;as das casas vizinhas vern para ali brin- car com os seus quatro filhos e deliciar-se debaixo do chuveiro ali mesm0 improvisado. 0 pai de Katia ar- ran jou no patio ui:n espa~_;o para as crian~,;as fazerem desporto. Toda a fruta do pomar e para elas. Os pais· de S{mia, menina de olhos· azuis ·e sempre pensativos, sao pessoas cordiais 'e muito bondosas. To- dos os anos, as sobrinhas do pai que vivem na cidade passam fer.ias em sua · casa. 0 pai de Sa.nia fez urn tanque para naclar. Esta a construir um barco com motor para da r novas alegrias as miudas. Lida e oriunda duma familia excelente. 0 pai, ope- nirio na fabrica de carruagens, e musico, canta. En- sina as crian<;as a cantar, a tocar rabeca, organiza es- pectaculos improvisados: uns vinte petizes reunem-se regularmente no seu jardim, para ouvir musica e aprender can<;oes populares . . Pavel tern uma familia muito unida. A mae esteve de cama mais de quatro anos. 0 pai teve que a sub- stituir: ao mesmo tempo que trabalhava, desempenha- va todos os trabalhos domesticos. A familia de Seri6ja, rapazlto de tez morena e olhos negros, compoe-se de quatro pessoas: pai, mae e dois filhos, todos muito unidos. Sempre que ha urn dia livre, toda a: familia vai para a floresta. Planta- ram quatro pequenas tilias numa clareira. Junto a casa, cada crian<;a plantou uma macieira para a ma- ma,. par.a 0 papa, para 0 avo e para a av6. lnterro-· guei-me muitas vezes : porque e que as crian<;as desta familia gostam tanto do pai, . da mae e dos av6s? Provavelmente porque todo o bern introduzido no co- ra<;ao das crian<;as volta a mae· e ao pai centuplicado, num amor ardente e puro . . Liuba chegou atompanhada de mae, pai, av6, irma mais velha e irmao mais novo. Tern cinco irmas e irmaos, duas av6s e urn avo. A obediencia absoluta aos mais velhos assenta nesta famHia na confian<;a e respeito reciprocos. Ouvi muitas vezes dizer que os mais velhos da. familia · sa bern respeitar as crian<;as, fazer caso dos seus sentimentos. Boas tradi<;oes populares mantem-se vivas na fa- milia de Danko que e o benjamim dos rapazes. Sao tres, com seis, oito e nove anos respectivamente, e 42 ficam em casa quando a mae e 0 pai vao para o· tra- balho. Farem o almoc;o e o jantar, tratarrt a vaca e cuidam da horta. Quando, no Verao, chegada a tar- dinha, pai e mae voltam dos campos, · espera-os urn banho de chuveiro, uma muda de roupa interior; urn born jantar e ... urn vaso de flores colhidas no cam- po sobre a mesa. 0 respeito, o culto do trabalho~· poder-se-a dizer, reina na familia e, sendo assim, tudo se faz calma- mente, · alegremente, sem pressas nem precipitac;oes. 0 pai de v alia trabalha na empresa metalomeca- nica de Krementchug e a mae no kolkhose. Todos, pais e tres filhos, estudam nesta familia onde ·reina a concordia. 0 respeito pelo saber, a escola e o pro- fessor que e norma la em casa interessa-nos muito, a n6s que ensinamos, e muito nos alegra. Quando Valia entrou para: a Escola da Alegria, ficamos a sa- ber que a velhota, que toda a gente perisava ser av6 de Valia, nao era da familia, que tinha ficado serri ninguem. Os seus dois · filhos ' mon'eram na frente e a familia de Valia acolheu-a de born g6sto. Valia nao sabe nada disto. Os pais de Liuda, pequenita de olhos cinzentos, trabalham no kolkhose. Incutiram nos filhos o amor pelo trabalho no campo. Entre eles, ha o sentido da honra familiar. «Tudo o que fazemos para as pessoas deve ser bonito» - diz o pai aos filhos. Chegado o Verao, os filhos mais velhos trabalham com o pai nos campos. ·Liuda vai ve-los com a mae varias vezes ao mes e e urn a festa para ela. 0 pai e a mae de Tania trabalharn na pecuaria do kolkhose . No Verao, as suas duas filhas estao fre- quenteme~te junto deles. Tanto o pai como a mae souberam incutir no espirito cias crian~as o amor pelo trabalhp. Os , professores da nossa escola "tiveram par diversas vezes o prazer de ver o pai a levantar uma pequena cerca num canto cia agropecwl.ria para ali colocar urn cordeiro ·ou urn vitclo. E Tania e sua irma mais velha que cuidam deles. E seu divertimen- to preferido e agrada-lhes mormente que 0 pai e mae brinquam com elas. Chura e urn rapaz de olhos negros, curiosos e afectuosos. -0 pai e ferroviario e s6 aparece em casa uma vez por semana. 0 regresso do pai e urn acon- tecimento para Chura, seu irmao e sua irma. Espe- ram-no cheios de impaciencia, pois volta sempre com presentes, cada -urn mais original que o anterior: ani- mais, personagens, seres fantasticos habilidosarnente talhados em madeira. Todos recebem a sua figurinha. Gostarn muito do que o pai lhes conta. Este tern o dom de se encontrar e de se dar com gente boa. As hist6rias que conta sobre essas pessoas abrem aos mi(tdos uma janela para o mundo. 0 pai de Vol6dia trabalha na constru~ao de pon- tes e a mae no kolkhose. Ainda jovens, OS pais devo- tam urn amor profunda ao seu prirnogenito. Jvlas este amor carece de born-sensa. Enchem o filho de pre- sentes inuteis e fazem tudo para satisfazer os mini- mas caprkhos seus. Vol6dia esta sentado ao !ado cia mae, segurando c:loi~ grandes haloes. Quer dizer qual- quer coisa a mae, mas ela nao !he presta aten~ao. Faz logo beicinho e as lagrimas.saltam-lhe aos olhos. A ma.e de Varia, mocinha trigueira, clelgad a como uma cana, onws negros e cabelos apanhaclos, e em- 44 pregada de limpeza na vizinha fabrica de manteiga. 0 pai foi gravemente ferido na guerra; recebe cui- dados de toda familia; mas o seu estado nao conhece mclhoras. Os trcs filhos apercebcm-se de que nao e h'tcil a existencia da mae e esfon;am-se por ajuda-la na medici a · das suas possibilidades. 0 salario da ·mae e baixo. A noite, borda blusas e guardanapos, o que assegura uma receita suplementar para cuidar dci ma- rido. A irma ~ais velha de Varia ja aprendeu a bor- dar para ajudar a mae. Tambem Varia se iniciou ja nos ·segredos dos bordados tipicos. A crianc;a e o espelho da conduta moral dos pais. Refleti muito tempo sabre o que ha de born e de mau em cada familia. 0 · trac;o moral mais precioso· dos bonl> pais, trac;o que se transmite aos filhos .'lem es- forc;os especiais, e a bondade de alma da mae e do pai, o dom de fazerem bern aos outros. Nas familias em que 0 pai e a mae dao uma parte deles pr6prios aos outros; fazem suas as alegrias e as tristezas · dou- trem, os filhos tornam-se . bans, sensiveis, compreensi- vos. 0 mal m aior de alguns pais e 0 egoismo, 0 indi- vidualismo. Este mal toma por vezes a forma dum amor cego, instintivo pelo filho, como e o caso dos pais de Vol6dia . Se o pai e a mae aplicam todas as suas forc;as, · todo o seu corac;ao em nome dos Jilhos, deixam de ver as outras pessoas, o qu·e existe e urn amor hipertrofiaclo que nada cia de born, ao fim e ao cabo. Tinha isto presente quando disse aos pais como imaginava a Escola da Alegria. Foi uma conversa dificil. Era preciso levar em linha de conta tudo ·o que havia de born e de mau nas familias . Enquanto 45 falava das tradi<.Cies de honestidade, de franqueza e de confian<_;a redproca que gostava de ver imperar na Escola da Alegria, nao havia meio de me ~air da· ca- be<_;a o caso da familia de K6lia. Mas nao me podia permitir deixar entrever aos pais presentes os graves problemas que envenenavam a vida desta familia. A mae podia muito hem virar costas e quem sabe se algum dia voltaria. Tinha que fazer qualquer coisa, mas o que? Pensei e voltei a pensar sobre esta ques- tao sem encontrar uma resposta satisfat6ria. Disse, em tra<_;os gerais, aos pais o que iria ser a educa~;ao d0s filhos .. Levavam-nos a escola aos seis anos e, d<:>ze anos mais tarde, estes mesmos miudos estariam feitos adultos, seriam os futuros pais e maes. A escola ia fazer o melhor que pudesse para que os filhos .se tornassem patriotas, homens e mulheres amanda . fervorosamente a sua terra natal, o povo trabalhador, pessoas honestas, francas, com sentido do clever, generosas, cordiais, sensiveis, intransigentes .com a maldade e a mentira, corajosas, perseverantes quando se .trata de veneer. dificuldades, modestas e moralmeQ.te qelas, sas e fisicamente fortes. Os filhos deviam fazer-se homens: de espirito transparente, co- ra<_;ao . nobre, ·maos de oiro e sentimentos elevados. A crian<;a e o espelho da familia. Do m'esmo modo que 0 sol se reflete na gota de agua, tambem a pureza moral do pai e da mae esta refletida nos filhos. Com- pete a escola e aos pais dar a cada crian<_;a a felici- dade, uma felicidade de facetas .multiplas. Esta feli- cidade consiste em favorecer a explosao das faculda- .de.s de cada individuo, ensinar"lhe a amar o trabalho e a ser empreendedor; a felicidade e gozar da beleza 46 do mundo circundante e criar beleza para os demais. ·E tambem amar algtH~m, ser amado por esse alguem, fazer dos seus filhos homens venladeiros. S6 atraves dos esfon;os conjugados com os pais, pode o profes- sor dar as crianc;as uma felicidade verdadeiramente grande. Crianc;as e familiares vao voltar a suas casas. A despedida, lembro-lhes: «Amanha, 31 de Agosto, comec;a a nossa Escola de Alegria». Que me reservara esse dia? Vejo os mit1dos agar'- ra r-se as maos dos pais: amanha ja virao s6s. Cad a individuo tern as suas alegrias. Cada urn tern a sua manha radiosa, diante de cada urn se abre o Iongo caminho da vida. Na vespera desse dia, preocupei-ine sobretudo com a melhor maneira de conseguir que a escola nao tire aos miudos as alegrias da 'infancia. Pelo contrario, sera necessaria conduzi-los no mundo escolar de modo que alegrias sempre novas se abram diante deles, que a descoberta das coisas nao se trans- forme num estudo fastidioso e que, ao mesmo tem- po, a escola nao seja urn jogo interminavel e interes- sante exteriormente, mas vao. Em cada dia _que pas·" se, deve enriquecer-se o espirito, os sentimentos e a vontade das crianc;as. Escola ao ar livre Espero as crianc;as cheio de emoc;ao: As oito horas da manha, estao. 29. Sacha nao veio (a mae estava mal, pela certa). Tambem nao vejo Vol6dia, que deve ter ficado a dormir e a mae nao tera querido acorda-lo. Quase todos estao vestidos como se fossem para uma festa, ,de sapatos novos. Fico alarmado com tsto: os miudos dos campos . sempre andaram descal<;os no Verao. E excelent~ para a saude e o melhor meio para _prevenir con;;tipa~6es. Mas por,que e que OS pais proct,ram proteger os pes dos ,filhos da terra, do or- valho matinal e .do chao aquecido pelo sol? Fazem t~qo is to. na melhor das intent;6es, mas 0 resultado . e mau: ha cada vez mais gaiatos no meio rural que no lnyerno contraew gripe, . anginas e tosse convulsa. Ora, o que e. preciso ·e criar as criaw;;as de maneira: que nao1recejem nem o calor nem o frio. ---: Ora, vamos para a, escola, meninos - digo . eu a ~Q<;;a assistencia, ao ,mesmo tempo que me encami- nho para o Jardim. Os catraios olham para mim em- basbacados. • ;-c-: ,Sim, meninos, vamos para a escola. A nossa es- cola vai ser ao ar livre, sobre a relva verde, a som- brCl; da pereira grande, no meio. da vii,Jha e dos ver- des prados. Para come<;;ar, vamos tirar os sapatos e anc4I; descal<;;os, comp andavam antes, - Urn ale- gre chilrear acolhe flS minhas, palavras; eles nao es- tao habituados a an dar , cal<;;ados quando esta born tempo e sentem-se pouco a-vontade. - Arnanhaj ve- nham descal<;;os. Isso sera a melhm· coisa para a nos- sa escola. Enfiamos por baixo duma ra~ada de videiras. As cepas cresceram fulgurantemente num recanto escon- dido pelas arvores. Suspensas em arames, .formavam urn tune!. No interior desta ramada de verdura, a terra .esta coberta de erva tenra. 0 silencio reina nes- te local e, desta penumbra, 0 mundo parece todo verde. Sentamo-nos sobre a erva. 48 - Aqui comega a nossa escola. Daqui, vamos olhar para o ceu azul, o jardim, a aldeia e o Sol. As criangas calaram-se, presas pela beleza da natu- reza. Cachos doirados espreitam por entre a folha- gem. E visivel nas criangas o desejo de as saborea- rem. La chegaremos, meninos. Primeiro admiremos esta beleza. As criangas olham a volta. 0 jardim pa- rece mergulhado numa bruma esverdeada, como nurn feerico reino submarino. A superficie da terra, os campos, os prados e os caminhos parecem palpitar nesta bruma cor de malaquite e centelhas de Sol co- brem as arvores de mil matizes. - 0 Sol espalha as suas faulhas - diz suavemen- te Katia. As criangas nao conseguiam desligar-se deste rnun- do que as cativava e comecei por lhes contar uma hist6ria a prop6sito do Sol. - E isso, meninos, a Katia disse bern: o Sol espa- lha as suas faulhas. Ele mora la em cima, no ceu. Ha la dois Ferreiros muito grandes e uma forja de oiro. Antes do dia se erguer, os Ferreiros com as suas bar- bas de fogo vao ter com o Sol que lhes da dois fei- xes de fios de prata. Os F erreiros pegam nos marte- los de ferro, colocam os fios de prata sobre a bigorna de oiro e comegam a bater, a bater, a bater. Estao a fazer uma grinalda de prata para o Sol e de baixo dos seus martelos saltam faulhas de prata que se es- palham pelo mundo inteiro. Estas faulhas caem na terra, como os meninos veem. A noite, os Ferreiros, cansados, levam a grinalda ao Sol; o Sol coloca-a sobreos seus cabelos de oiro e vai para o seu jardim magico, que e muito bonito, para descansar. 4-1251 49 :Enqmi.nto tonto esta hist6rl.a, vbu-a ciesenhando. Imagens fantasticas vao surgindo sobre a folha bran- ca dum bloco, com dois Ferreiros enormes curvados sobre a sua bigorna de oiro e faulhas de prata· a sal- tar de baixo dos martelos. As crians;as ouvem a historia como que enfeitis;a- das por este mundo maravilhoso. Dir-se-ia que tern medo de quebrar o silencio, medo de desfazer este encanto; Em seguida, desatam ·a fazer perguntas to- das ao mesmo tempo: Que fazem os Ferreiros quan- do e nbite? Porque e que o Sol precisa duma grinalda nova? Que acontece as fawhas de prata? E mesmo verdade que elas caem na terra, todos os dias? Falarei disso tudo para outra vez. Temos muito tempo a nossa frente; meninos. Agora convido-vos a provar as uvas. As crians;as esperam ansiosamente que o cesto fique cheio. Distribuo por cada uma dois ca- chos, urn para comer ali e outro para· levar para casa e oferecer a mae, Dao mostras duma grande pacien~ cia: embrulham bs cachos num papel. Pergunto-me, todavia, se esta paciencia bastara. ate entrarem em casa. Sera que Tolia e K6lia levarao as uvas a mae? Dou mais cachos a Nina: para· a mae enferma, para a irma e para a avo. Varia agarra em tres cachos, di- zendo serem para o pai. Ocorre-me uma ideia: des- de · que as crians;as sejam suficientemente vigorosas, cada uma devera plantar a sua propria vinha ... Sera preciso plantar uma dezena de cepas junto a casa de Varia para que deem uvas no proximo ano; o que sera urn born remedio para 0 pai. · Abandonamos a penumbra verde deste reino de . fa- cias. Digo as crianc;as: 50 ~ Amanhii, venham ao fim do dia, as seis horas. Nao se esquet;am. Reparo que as criant;as nao tern vontade de partir, mas la vao, a,pertando contra o peito os seus embru- lhinhos brancos. Quanto eu nao daria para saber OS que nao chega ram a casa com as uvas. Claro que nao poder.ei perguntar-lhes, mas se forem eles pr6prios a dizer-me, tanto melhor. ' Eis, pois, terminado este primeiro dia de escola ao ar livre ... Nessa noite, sonhei com centelhas de .prata espalhadas pelo Sol, acordei cedinho e pensei demo- radamente no que tinha de fazer dali para a £rente. Nao tracei urn plano detalhado do que iria dizer as criant;as em cada novo dia, nem para onde as iria levar. , A vida da nossa escola evoluia a partir duma ideia que me tinha inspirado: a criant;a e, por natu- reza, urn investigador aturado, urn descobridor do mundo. 0 mundo maravilhoso s6 tern que se abrir perante ela nas suas cores mirificas, nos seus sons penetrantes e p alpitantes, nos contos, nos jogos, na sua propria criat;ao, na beleza que faz rejubilar o seu corat;ao, no desejo de fazer bern aos outros. Pelos contos, pela fantasia, pelos jogos, pela inigualavel cria- t;ao infantil podemos estar certos de encontrar o ca- minho do corat;ao da criant;a. Vou levar os pequenos para o mundo que os rodeia de modo a que todos os .dias nele descubram qualquer coisa de novo, que cada urn dos nossos passos seja uma vi age m as r a i z e s d 0 p e n s am en t 0 e d 0 v e i'b o, a deslumbrante beleza da natureza. Zelarei para que cada aluno meu se torne urn pen:sador pleno de sabe- doria e urn investigador, para que cada passo no ca~ 51 minho da descoberta enobrec;a o corac;ao e tempere a vontade. No segundo dia, as crianc;as vieram ao cair da tar- de. Ia ainda prolongar-se aquele calmo dia de Setem- bro. Saimos da aldeia e subimos a urn morro. Diante dos nossos olhos, abriu-se uma vista . esplendida para os vastos campos relvados que pareciam abrasados pelo Sol, para os esbeltos choupos e para as colinas que tocavam o horizonte. Tinhamos chegado as rai- zes do pensamento e do discurso. Os contos, a fanta- sia, sao a chave que ajuda ·a chegar a essas raizes, e as palavras logo brotarao. A recordac;ao vern das pa- lavras ditas por Katia ontem: «0 Sol espalha as suas faulhas ... » Deixem-me dizer-lhes que doze anos mais tarde, no seu exame de fim dos estudos secundarios, ela fez uma composic;ao consagrada a sua terra na- tal, onde para exprimir o seu amor pela natureza re- correu a mesma imagem. A este ponto se gravam nos espiritos infahtis as imagens poeticas dos contos! Tive ocasiao de me convencer, vezes sem conta, que, ao povoar o mundo circundante de representac;oes fan- tasticas, tirando essas imagens da sua imaginac;ao, as crianc;as descobrem nao apenas a beleza mas tambem a verdade. A crianc;a nao pode viver sem o conto, sem fazer entrar em jogo a sua imaginac;ao. Sem o conto, o mundo envolvente e urn quadro bastante belo, mas que esta pintado numa tela. 0 conto empresta-lhe vida. 0 conto e, em sentido figurado, uma fresca brisa que atic;a a pequena chama do pensamento, da pa- lavra infantil. As crianc;as gostam de ouvir hist6rias, ma:s tambem de imagina-las. Na altura em que rnos- 52 trava as crianc;a·s o mundo atraves da parede verde da folhagem da ramada, sabia que ia haver uma his- t6ria, mas nao sabia 0 que lhes ia con tar. 0 . pontape de saida, como se diz, para a minha imaginac;ao foi dado pelas palavras de Katia: «0 Sol espalha as suas faulhas». As imagens que as crianc;as · vao buscar a sua imaginac;ao sao duma precisao, duma verdade, duma arte espantosas. E como e brilhante e colorida a sua linguagem! Era meu desejo que, antes de abrir~m os seus pri- meiros livros para silabar a primeira palavra, elas ti- vessem lido antes as paginas do mais marayilhoso dos livros, o da natureza . . No meio da natureza, impos-se-me com nitidez particular a ideia de que n6s, professores, estamos a lidar com uma coisa mais delicada, mais subtil e mais sens1vel que . existe na . natureza, o ce- rebro da crianc;a. Quando se pensa em cerebro du- ma crianc;a, imagina-se uma supve rosa sobre a qual tremulam goticolas . de orvalho . . Impoem-se precau- c;oes, uma delicada manipulac;ao para colher esta flor sem que aquelas caiam. Devemos ter tais cuidados a todo o instante: lidamos com o que hi de mais deli- cado, de mais sens1vel na natureza, a materia pen- sante dum organismo em pleno desenvolvimento. 0 pensamento da crianc;a e sempre feito por ima- gens. Isto significa que ao ouvir, por exemplo, a des- cric;ao do professor sobre a viagem que faz uma gota de agua, ela esta a ver as ondas prateadas de uma bruma matinal, as nuvens carregadas, o rugir dos trovoes e os aguaceiros primaveris. Quanto mais ex- pressivos forem os quadros na sua mente, melhor ela 53 compreendera as leis da natureza. Os delicados neu- ronios do seu cerebra nao estao ainda consolidados; ha que desenvolve-los, dar-lhes solidez. A crian~a pensa ... Isto quer dizer que grupos es- pecificos 'de neuronios no cortex captam as imagens ( quadros, objectos; fenomenos, palavras) do mtindo que a rodeia e os sinais chegam atraves dessas delica- das celulas nervosas como que por canais de comu- nica~ao. Os neuronios «tratam» esta informa~ao, sis- tematizam, agrupam, comparam e seleccionam os da- ·dos, ao mesmo tempo que chegam · novas informa- ~oes ·que e necessaria perceber e «tratar». Para esta- rem em condi<;oes de receber imagens e «tratar» a informa<;ao; a energia nervosa dos neuronios deve passar instantaneamente da percep<;ao das imagens ao· seu «tratamento». Esta comuta<;ao fantasticamente rapida da energia nervosa dos neuronios constitui o fenomeno a que chamarilos pensamento: a c r i an<; a pens a ... As celulas do cerebra infantil ·sao tao delicadas, rea- gem tao subtilmente aos objectos da percep<;iio que nao podem funcionar normalmente senao quando 0 ob- jecto da percep<;ao, da intelecc;ao, for uma imagem que se possa ver; ouvir, tocar. A comuta<;ao do pen- samento; que e a propria essencia da reflexao, so e possivel quando houver diante da crian<;a uma ima- gem tangivel, real, uma imagem verbal tao expres- siva que a crian<;a pare<;a «ver; ouvir e tocar» aquila de que se trata. (Eis por que
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