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Formação Socio- Histórica do Brasil Formação Socio- Histórica do Brasil Rodrigo Simões Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. Rodrigo Simões possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1995), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2000), especialização em Teoria e Prática Pós-Construtivista das Aprendizagens Escolares pelo Grupo de Estudos Sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação (2000), e Suficiencia en Investigación pela Universidad de León (1998). Atualmente, é professor/ coordenador de curso de História do Centro Universitário La Salle e professor adjunto da Universidade Luterana do Brasil. Tem experiência na área de História e educação, com ênfase em história da Europa e do Brasil, teoria, pesquisa e ensino de história, atuando principalmente nos seguintes temas: formação de professores, controle social, relações de poder e modernização das cidades. Conselho Editorial EAD Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Mara Lúcia Machado José Édil de Lima Alves Astomiro Romais Andrea Eick ISBN 978-85-7528-????????????????? Dados técnicos do livro Fontes: Minion Pro, Officina Sans Papel: offset 90g (miolo) e supremo 240g (capa) Medidas: 15x22cm Projeto Gráfico: Humberto G. Schwert Editoração: Isabel Kubaski Impressão: Gráfica da ULBRA Junho/2010 Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) R696e Rodrigues, Maria Cláudia Educação empresarial. / Maria Cláudia Rodrigues. – Canoas: Ed. ULBRA, 2010. 144 p. 1. Administração – recursos humanos – educação. I. Título. CDU 658.3:37.035 Sumário Apresentação .............................................................. 7 1 | Imaginário, história e verdade ....................................... 9 2 | Os (des)encontros entre as culturas ................................ 27 3 | A posse da terra, poderes e exclusões ........................... 41 4 | O Estado, a Nação e a Política ..................................... 63 5 | O desenvolvimento econômico e a dominação capitalista .....81 6 | O que é ser cidadão? E no Brasil? ................................101 7 | Conflitos, dominações e resistências ...........................121 8 | Um Brasil, várias culturas ..........................................139 9 | Globalização e sociedade de consumo ..........................155 10 | 500 anos depois, um Brasil de contrastes .....................173 Apresentação FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO FALTA TEXTO 8 Apresentação 1 Imaginário, história e verdade Introdução Este capítulo está dividido em cinco subtítulos nos quais faremos uma breve discussão sobre o papel da história e como esse papel foi se modificando no decorrer do tempo. Abordaremos as discussões em torno da relação existente entre a história e a verdade. Baseado nessa discussão historiográfica, faremos a análise do conceito de imaginário e, por meio dele, mostraremos a ideia que o europeu tinha sobre o Brasil e, em contrapartida, a visão de mundo dos indígenas, sua religiosidade e suas crenças. O texto conta ainda com a contextualização da Europa dos séculos XIV e XV, para que possamos compreender as mudanças ocorridas nesse período e as formas como isso é vivido em outras partes do mundo. Finalmente, faremos uma breve análise de como hoje nós brasileiros nos vemos e o que nos distingue dos outros povos. 1.1 A relação história e verdade e o conceito de imaginário Os historiadores há pouco tempo acreditavam que o passado era bem organizado e ficava no seu lugar, esperando ser revelado em seu interior e totalidade, podendo ser interpretado de forma objetiva e neutra. Segundo Leopold Von Ranke, historiador alemão do século XIX, a função do historiador é mostrar os fatos “como eles realmente aconteceram” (RANK apud BURKE, 1992, 10 Imaginário, história e verdade p. 15). Hoje, os historiadores, ou a grande maioria deles, sabem que esse ideal de história é irrealista e que o conhecimento histórico não é tão simples assim; ele é complexo e envolve variadas discussões, questionamentos e contestações (RAGO apud JENKINS, 2001, p. 9). A história nos permite interpretações distintas de um mesmo fenômeno, os discursos estão sempre sendo refeitos e desfeitos. Nenhum historiador consegue abarcar o passado em sua totalidade, o que se recupera são fragmentos, uma fração do que já aconteceu. [...] a história é basicamente um discurso em litígio, um campo de batalha onde pessoas, classes e grupos elaboram autobiograficamente suas interpretações do passado para agradarem a si mesmos. Fora dessas pressões, não existe história definitiva. (JENKINS, 2001, p. 43) A verdade está vinculada aos interesses materiais, diretamente relacionados a sistemas de poder que a produzem e sustentam. A história não está fora do âmbito de poder [...] é produzida apenas em virtude de múltiplas formas de repressão. Cada sociedade [...] tem sua “política geral” de verdade, isto é, os tipos de discursos que ela escolhe e faz funcionar como verdadeiros, os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros, as técnicas e procedimentos que são utilizados para obtenção da verdade, o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro [...] (JAMESON apud JENKINS, 2001, p. 59) Na atualidade, a historiografia propõe uma nova forma de fazer história, escrita como uma reação aos modelos tradicionais (factual e superficial), que diz respeito essencialmente à história política, centrada nos grandes feitos dos homens de renome, marginalizando e relegando ao esquecimento inúmeras histórias como a dos vencidos e a das minorias. A história tradicional é baseada nas fontes escritas, registros oficiais, que geralmente expressam apenas o ponto 11Imaginário, história e verdade de vista oficial – com esse “fetichismo” pelo documento escrito, outras fontes foram postas de lado. Já a nova história, social e cultural, estabelece outros olhares sobre o passado, trazendo à tona aspectos considerados por muito tempo como periféricos pelo paradigma tradicional. Os historiadores que fazem parte dessa nova forma de olhar a história se preocupam com uma variedade de atividades humanas, afinal, para eles, “tudo tem uma história”. As fontes utilizadas são variadas, orais, visuais, não se prendendo ao documento oficial, tão valorizado pela historiografia tradicional. A nova história, que revelou por estudos eruditos e precisos a presença do poder onde a história tradicional sequer pensava em procurá-lo (no simbólico e noimaginário, por exemplo), vê-se quase condenada, eu diria, por sua problemática a ser transparente nesse domínio. (LE GOFF, 2005, p. 5) A nova história utiliza vários domínios ou conceitos-chave, um deles é o imaginário. O imaginário é o conjunto de ideias e imagens que fazem parte de uma determinada cultura, grupo ou sociedade. Segundo Jacques Le Goff, em seu livro O Imaginário Medieval, o imaginário pertence ao campo das representações, “quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida” (1994, p. 11). O domínio do imaginário é constituído pelo conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivos que estas autorizam. Isto é, cada cultura, portanto cada sociedade, e até mesmo cada nível de uma sociedade complexa, tem seu imaginário. Em outras palavras, o limite entre o real e o imaginário revela-se variável [...] (PATLAGEAN apud LE GOFF, 2005, p. 391) O imaginário possui um importante papel na construção histórica. Diferente do que se pensou, a compreensão da história requer muito mais do que a análise pura e simples do documento, são necessários outros domínios 12 Imaginário, história e verdade como o imaginário, que nos permite uma análise das representações contidas no cotidiano de um determinado grupo social. O estudo do imaginário e do cotidiano é tido pela atual historiografia como uma das possibilidades de se compreender as diversas formações socioculturais. 1.2 O imaginário europeu sobre o Brasil Os europeus dos séculos XV e XVI, período em que ocorreram as grandes navegações, ainda estavam marcados pela religiosidade e impregnados pelo imaginário medieval. Para alguns, o oceano era habitado por monstros marinhos que devoravam as tripulações e onde reinava o imprevisível. Antes das viagens de descobrimento, circulavam pela Europa histórias de criaturas maravilhosas que habitavam o mundo, a exemplo de monstros, antípodas (criaturas com os pés virados para trás), cinocéfalos (criaturas que comiam carne humana e que tinham corpo de homem e cabeça de cachorro). Fonte: http://4portasnamesa.blogspot.com O imaginário sobre a América, o “novo continente”, era ambíguo. Por vezes, os europeus viam os indígenas como criaturas doces, inocentes, e o Novo Mundo como o paraíso edênico, noutros casos, tratavam-se de criaturas demoníacas, habitantes de um local inóspito e abandonado por Deus. Avançando um pouco no tempo, veremos que a visão paradisíaca está contida em vários trechos da carta de Pero Vaz de Caminha. 13Imaginário, história e verdade Mas, a terra em si, é de muitos bons ares, frios e temperados como os de Entre-Doiro e Ninho, porque neste tempo de agora, assim os achávamos, como os de lá. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa, em querendo a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem. Em um outro trecho ele descreve o indígena como um ser puro, inocente chegando a compará-lo com Adão. ...a que deram um pano com que se cobrissem e puseram-lho ao redor de si. Mas ao sentar não fazia memória de o muito entender para se cobrir. Assim, senhor, que a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria mais quanto vergonha. As pessoas que escreviam sobre os indígenas estavam inseridas na cultura e religião europeia, e o modo de viver dos índios foi pensado em oposição ao modelo de sociedade europeia, daí a identificação dos indígenas como “selvagens” ou “primitivos”. Michel de Montaigne possuía a ideia de que o “Novo Mundo” era o paraíso, como um modelo da idade do ouro, criticando a atribuição de selvagens ou bárbaros aos índios. Montaigne dizia que um homem não pode ser chamado de selvagem só por não ter sido modificado pela interferência de outro ser humano, “...não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra..” (MONTAIGNE, 1980, p. 101). No início do período de colonização, a visão do “paraíso maravilhoso” começou a mudar. Os relatos de viajantes contribuíram para isso e foram de extrema importância para se conhecer a fauna, a flora e os costumes indígenas. O alemão Hans Staden, que em viagem para o Brasil em meados do século XVI caiu prisioneiro dos tupinambás, quando voltou para Alemanha descreveu em detalhes a sua experiência. Os relatos de Staden serviram para se conhecer um pouco melhor o novo continente. Ele descreveu os rituais de antropofagia que os antigos tupis praticavam, causando pavor nos europeus. Para eles, esses rituais antropofágicos 14 Imaginário, história e verdade eram a própria imagem do primitivismo anárquico e caótico, e a visão do maravilhoso foi sendo deixada de lado. Fonte: http://www.gauche-virtual.blogspot.com A mudança da visão do indígena de bom selvagem para criatura demoníaca também está associada à inserção da agricultura no Brasil pelos portugueses. A partir de 1533, os índios começaram a ser vistos como um obstáculo para a posse da terra, portanto, o índio precisou passar de criatura inocente para bestial, justificando a expropriação das terras, a dominação e o extermínio (GIUCCI, 1992). Em 1570, Pero Vaz de Magalhães Gandavo publicou uma História da província de Santa Cruz que demonstra essa forma etnocêntrica de pensar as demais culturas. A língua desse gentio todo pela costa é uma: carece de três letras – não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem, Rei: e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente. (GANDAVO apud WEHLING, 2005, p. 87) 15Imaginário, história e verdade A descoberta de um “novo mundo” repercutiu no campo teórico, tendo as antigas verdades como a das terras antípodas ou a impossibilidade de habitar as zonas tórridas tendo sido gradualmente refutadas. Cronistas espanhóis se encarregaram de salvaguardar a mensagem bíblica reformulando o campo do saber empírico e registrando as falhas dos sábios antigos. A América provou que os antigos tinham aperfeiçoado uma imagem equivocada do mundo, que a tese da terra inhabitabilis era errônea, que o tenebroso oceano atlântico poderia ser navegado além dos pilares de Hércules, que milhões de pessoas nasciam e morriam ignorantes do evangelho redentor em terras remotas. (GIUCCI, 1992, p. 196) No entanto, em vez do rompimento, em muitos casos, o que podemos perceber foi o desenvolvimento de um discurso cujo objetivo era o de ligar o novo ao antigo, relacionando o descobrimento às passagens bíblicas. Os cronistas hispânicos colocaram em seus textos mitos e profecias que ligavam a América recém-descoberta ao passado, e a palavra sagrada e suas verdades continuaram relativamente intocadas. 1.3 A cosmovisão indígena Cosmovisão é a forma como uma determinada sociedade ou cultura vê o mundo. Essa forma varia de um povo para outro e depende, fundamentalmente, dos elementos da cultura reconhecidos pelo grupo em questão. A cosmovisão indígena era diferente da forma como o europeu interpretava o mundo à sua volta. O cotidiano das populações indígenas contava com a constante presença de mitos e lendas, sendo povoado por forças naturais. Na maioria das lendas guaranis Tupã, o deus sol, com a ajuda da deusa lua Araci, realizou a criação. Segundo a lenda, ele desceu à Terra e criou tudo que há nela, incluído o homem e a mulher, deixando-os com o espírito do bem e do mal. Os indígenas recorriam aos deuses para pedir explicação de vários fenômenos da natureza, como, por exemplo, o porquê da forma de andar do caranguejo. Em uma das versões dessa história, o primeiro casal de humanos criados por Tupã 16 Imaginário, história e verdade teve várias filhas e três filhos, sendo que o primeiro filho, Tumé Arandu, foi o mais sábio, o grande profeta. Marangatu, o segundo filho, era dotado de uma grande benevolência, o líder generoso do seu povo. Já o terceiro filho, Japeusá, foi considerado o mentiroso, que confundia as pessoas para obtervantagens. Ao cometer suicídio, Japeusá foi ressuscitado sob a forma de um caranguejo. A partir de então, todos os caranguejos foram amaldiçoados para andar para trás. Outra questão bastante controversa foi a prática da antropofagia, relatada por alguns europeus na época da conquista como “fúria diabólica”, quando, na realidade, não era um canibalismo puro e simples. Cometido contra os inimigos, a antropofagia era um ritual. O sacrifício ritual desempenhava, então, função purificadora, pois permitia expulsão do desejo de vingança, ao mesmo tempo em que bloqueava a realização de vendetas endogâmicas, se o prisioneiro adquiria poder como augure ou profeta, era só para perdê-lo quando o canibalismo ritual reintegrasse esse poder à comunidade. (GIUCCI, 1992, p. 222) Em relação ao período da conquista, podemos perceber que os europeus utilizaram-se das crenças e dos mitos indígenas em proveito próprio, fosse para salvar suas vidas ou para submeter os índios ao domínio europeu. Guilhermo Giucci, em seu livro Viajantes do Maravilhoso, chamou esses usos de a “manipulação do sagrado”. Ao contrário dos indígenas, os europeus conheciam a ciência, o que possibilitava o entendimento de alguns fenômenos naturais. Isso fez com que eles fossem vistos pelas populações locais como poderosos detentores das manifestações da natureza. Ao longo do período da conquista, essa manipulação adotou inúmeras formas. O conhecimento abre caminho para o poder quando uma das partes sabe o que a outra desconhece. E se torna poder quando a possibilidade de predizer eventos incomuns é formulada pela primeira como expressão de domínio sobre o considerado inescrutável pela segunda. (GIUCCI, 1992, p. 226) 17Imaginário, história e verdade Os relatos desses usos são diversos, sendo geralmente utilizados para aterrorizar os indígenas e, assim, conseguir assegurar o poder sobre os mesmos. Ainda na primeira etapa da conquista, as crenças e os mitos indígenas, como a da imortalidade da alma, fizeram com que muitos fossem levados à escravidão. Em um relato sobre a conquista na América Espanhola descobrimos que: ...persuadidos pelos espanhóis de que seriam enviados à terra prometida, onde, segundo as crenças dos nativos, iriam encontrar a alma de seus familiares mortos, embarcavam felizes nos navios castelhanos. Iam, na realidade, às minas de ouro (...)/ e quando compreenderam o engano optaram pelo suicídio em massa. (AGLERÍA apud GIUCCI, 1992, p. 207) 1.4 A Europa nos séculos XIV e XV Na Europa, o período entre o século XIV e início do XV foi marcado por uma crise conjuntural. A expansão econômica experimentada ao longo do século XIII e início do século XIV deu lugar à estagnação tecnológica, alterações climáticas, doenças, períodos de fome e excesso demográfico. Essa crise generalizada foi resultado da economia extensa e predatória da fase de desenvolvimento, que era baseada nos recursos naturais disponíveis e na força de trabalho. “... enquanto havia terras cultiváveis e mão de obra em quantidade para trabalhar nelas o sistema funcionou bem”. (FRANCO JÚNIOR, 1986, p. 59) No século XIV, com a escassez de terras disponíveis, uma grande parcela da população foi dizimada pela peste negra, e o resultado foi a crise generalizada estendida por toda a Europa Ocidental. O desflorestamento excessivo e a produção agrária prejudicada pela transformação das áreas de pasto em zonas de cultivo resultaram na escassez de alimentos de subsistência, ocasionando períodos de fome generalizada. Houve uma redução da margem de lucro em todas as atividades, fossem elas comerciais ou financeiras. Essa redução, somada à desordem no setor financeiro, foi agravada pelos pesados impostos e o confisco de mercadorias. 18 Imaginário, história e verdade Uma das maiores dessas fragilidades e fonte de graves problemas econômicos eram as constantes mutações monetárias empreendidas pelos soberanos. Sempre necessitados de dinheiro, os monarcas diminuíam a proporção de metal precioso das moedas e mantinham seu valor nominal; assim conseguiam cunhar o maior número de peças com a mesma quantidade de metal nobre. Contudo, recebiam os impostos nessa moeda desvalorizada. O que levava a realizar nova desvalorização, e assim sucessivamente. (FRANCO JÚNIOR, 1986, p. 61) Mas com a diminuição da população, abandono de terras improdutivas e a expansão ultramarina, constatou-se uma lenta recuperação. E no século XV as coisas começaram a melhorar, variando conforme o lugar, a produção agrícola, o artesanato e o comércio que começavam a revigorar. No período entre os séculos X e XV, a ascensão da burguesia merece destaque, pois essa nova classe propiciou profundas modificações no modo de vida da sociedade. A aliança entre o rei e a burguesia consistia em ações do monarca para reduzir a força dos senhores feudais. O poder do soberano dependia do comércio e da indústria, se esses prosperassem o dinheiro fluía. Então os reis começaram a diminuir privilégios e monopólios das poderosas cidades em benefício da Nação como um todo. Em locais onde as cidades eram realmente fortes, o reconhecimento de uma autoridade central levou séculos. Em consequência disso, elas foram as últimas a aderir à unificação necessária para se adaptarem à nova realidade econômica. Apesar de algumas cidades tentarem manter seus privilégios, o Estado nacional predominou. Em sua maioria os localismos foram suplantados, cedendo lugar a reinos unidos, governados por um monarca com poderes absolutos. As monarquias absolutistas tinham seu poder ameaçado apenas pelo poder do papa. A burguesia, por sua vez, achava que seu desenvolvimento estava sendo freado com as ideias difundidas pela Igreja Católica, como, por exemplo, a relação feita entre o lucro e o pecado. Com a Reforma Protestante, acontece a principal investida de caráter religioso contra a Igreja Católica, que viu, a partir de então, partida a cristandade europeia. 19Imaginário, história e verdade Para estimular o crescimento econômico nacional, o Estado absolutista criou as normas mercantilistas, uma série de leis e regras para controlar a economia. Um dos principais objetivos mercantilistas era o acúmulo de metais preciosos a fim de manter a balança comercial favorável, ou seja, exportar mais do que importar. Fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/mercantilismo/mercantilismo-e-absolutismo.php A expansão marítima surgiu da necessidade do comércio com o Oriente. Os europeus eram conhecedores de produtos como especiarias, sedas, perfumes e tapetes desde as Cruzadas, porém o comércio desses produtos era monopolizado pelos italianos. Na tentativa de quebrar essa exclusividade, países como Espanha e Portugal tentaram descobrir um caminho de navegação para contornar a África e atingir as Índias pelo oceano, uma vez que o mar Mediterrâneo era dominado pelos italianos. Inaugurava-se ali o período das grandes navegações, sendo Portugal o primeiro país europeu a consolidar o Estado centralizado, e o pioneiro a lançar-se nas grandes navegações. 20 Imaginário, história e verdade 1.5 E hoje, o que pensamos de nós mesmos? Como é construída uma identidade social? Como nós nos tornamos brasileiros? A construção de uma identidade social ou de uma sociedade é realizada por meio de negativas ou afirmativas diante de certas questões, leis, festas, política, família etc. Ao descobrirmos como as pessoas se posicionam diante dessas questões, passamos a compreender o modo de ser de cada sociedade (DAMATTA, 1993). Para o antropólogo Roberto DaMatta, a percepção sobre o processo de construção “identitária”, que caracterizaria a sociedade brasileira, pode ser construído de várias maneiras, mas basicamente a partir de dados quantitativos e qualitativos. No primeiro caso, temos sempre a impressão de que estamos aquém das nossas possibilidades de realização e dos nossos objetivos. Na segunda possibilidade, parece que perdemos a vergonha de nossos problemas e passamosa nos enxergar com o otimismo, aliás, essa é uma das características sempre lembradas quando falamos de nós mesmos. Trata-se de algo que nos caracteriza como brasileiros, o fato de sermos otimistas diante das maiores adversidades. Mas, quando falamos em leis, como os brasileiros reagem? Como é a nossa relação com leis universais que valem para todos? Como nos comportamos diante de um “não pode” ou um “pode”? Pois bem, segundo DaMatta (1993), o brasileiro pegou o “pode” e o “não pode” e fez uma junção dos dois, criando vários tipos de “jeitinhos” e de “malandragens”. Esses arranjos foram criados para transitarmos em um sistema de leis que, na maioria das vezes, não tem nada a ver com a realidade social. Os jeitinhos e malandragens são a formas de burlarmos nossas leis, sujeitando-as à interferência das relações pessoais, inviabilizando a aplicabilidade da lei universal. E se mudarmos o rumo da nossa conversa, e perguntarmos para as pessoas como se deu a formação da nossa sociedade? Com certeza, a grande maioria responderá que ela foi formada por três raças: brancos, negros e índios, um “triângulo racial” que muitas vezes nos impede de termos uma visão crítica do que foi o processo histórico da constituição da nossa sociedade. Quando acreditamos que nosso país foi feito por todos os indivíduos desse triângulo, fechamos os olhos para o fato de que grande parte desses contingentes humanos veio para esse país à força, e que os que aqui já estavam antes da chegada dos portugueses também foram submetidos e escravizados quando se iniciou a 21Imaginário, história e verdade colonização. É importante ressaltarmos, então, que a nossa história se constituiu desde os primeiros tempos sobre uma base social hierarquizada, excludente e discriminatória. Até 1890, o Catolicismo era a religião oficial do Brasil, porém isso não impediu a existência de uma imensa variedade de experiências religiosas no país. Essas experiências são amplas, o Catolicismo com toda sua variante protestante, as religiões afro-brasileiras, o Espiritismo, e as religiões orientais, porém todas têm um ponto em comum entre elas: a comunicação entre o homem e o sobrenatural, o homem e sua ancestralidade. O povo brasileiro é muito religioso e, ao mesmo tempo, muito expansivo, muito alegre, ou pelo menos é isso que dizem sobre nós, ou o que nós mesmos dizemos a nosso respeito. Aqui tudo se une e torna-se sincrético, são as inúmeras simpatias que usamos independente da religião, o Natal que se passa na missa, e a virada do ano na praia, agradecendo e renovando pedidos aos Orixás (DAMATTA, 1993, p. 117), ou ainda, o carnaval, que integra, une e inverte condições tidas como tão desiguais durante o restante do ano. Carnaval, pois, é inversão por que é competição numa sociedade marcada pela hierarquia. É movimento numa sociedade que tem horror à mobilidade, que permite trocar efetivamente de posição social. É exibição numa ordem social marcada pelo falso recato de “quem conhece o seu lugar”, algo sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as situações. (DAMATTA, 1993, p. 78) O carnaval em nosso país é algo extraordinário e um belo exemplo em que podemos observar a inversão de papéis sociais, ao menos por alguns momentos. A fantasia do carnaval nos liberta, ou seja, podemos ser aquilo que somos privados de ser no dia a dia. O carnaval é ilusão e fantasia, momento em que podemos sonhar em ser tudo o que quisermos, pois se trata de um espaço/ tempo em que são refutadas as fronteiras sociais. Para DaMatta (1993), se o carnaval promove a igualdade, algumas outras festas promovem a manutenção da ordem, e são exatamente esses ritos que definem, na nossa sociedade, quem é o autor e quem é o espectador. 22 Imaginário, história e verdade Atividades • Debata com seus colegas sobre o estudo da história e qual o seu significado para o homem contemporâneo. • Faça uma análise a respeito da participação da Igreja no processo de colonização do território brasileiro e o papel desempenhado pelas várias igrejas hoje no Brasil. • Analise o quadro a respeito do Estado Absolutista e Mercantilismo e reflita sobre o papel do Estado no Brasil atual. • Qual a sua opinião a respeito da visão do antropólogo Roberta DaMatta sobre a sociedade brasileira? Referências comentadas DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? 12. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. Em seu livro O que faz o Brasil, Brasil? Roberto Damatta mostra um Brasil diferente do restante do mundo. O autor associa essa diferença à mistura, seja ela religiosa ou racial. O antropólogo faz uma comparação entre o comportamento dos norte-americanos e brasileiros em relação às leis, deixando claro nosso costume de violar e assistir à violação das leis. A questão da identidade brasileira, festas, comidas, cultura e discriminação também são abordadas pelo autor. A partir das temáticas abordadas no livro, podemos refletir sobre a nossa constituição mestiça, sobre o fato de sermos conservadores em alguns momentos e liberais em outros. Enfim, podemos refletir de forma variada sobre a formação do Brasil. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: o nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986. Obra fundamental para os iniciantes no assunto, o livro A Idade Média: o nascimento do Ocidente, do historiador Hilário Franco Júnior, tem por objetivo analisar o período medieval levando em conta suas estruturas sociais, políticas, econômicas, eclesiásticas e mentais. O texto foi organizado de forma que cada 23Imaginário, história e verdade capítulo do livro descreva uma dessas estruturas dentro da ordem cronológica dos fatos. Referências BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1992. DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? 12. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: o nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986. GIUCCI, Guilhermo. Viajantes do maravilhoso – o novo mundo. Companhia das Letras, 1992. HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21. ed., rev. Rio de Janeiro: LTC, 1986. JENKINS, Keith. A história repensada. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004. LE GOFF, Jacques. A história nova. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. 2. ed. [Lisboa]: Estampa, 1994. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1980. 500 p. (Os pensadores). SCHMIDT, Mario Furley. Nova história crítica. 2. ed. São Paulo: Nova Geração, 1997. Autoavaliação 1. A partir do que vimos no caderno de estudos, é correto afirmar que a forma tradicional de fazer história, I – É relativista e interpretativa, e nos permitindo visões distintas de um mesmo fenômeno. II – Apresenta discursos que estão sempre sendo refeitos e desfeitos. III – Valoriza essencialmente a história política e se baseia nas fontes escritas e registros oficiais. 24 Imaginário, história e verdade Estão corretas as alternativas a) I b) II c) III d) Todas as alternativas estão corretas 2. “A verdade está vinculada aos interesses materiais, estando ligada a sistemas de poder”. A frase acima pode ser aplicada na História? a) Não, pois a função do historiador é mostrar os fatos como eles realmente aconteceram. b) Não, a história é feita de forma neutra e imparcial pelo historiador. c) Sim, pois a história não está fora do âmbito de poder, cada sociedade, cada época constrói discursos que faz funcionar como verdadeiros. d) Não, o papel do historiador é fazer emergir a verdade, independente de suas crenças e valores. Atualmente, os historiadores conseguem escrever uma história neutra, imparcial. 3. Assinale uma das características dos índios do Novo Mundo. a) Eram monoteístas. b) Explicavam os fenômenos naturais por meio de elementos sobrenaturais. c) Os índios condenavam as relações endogâmicas. d) O dualismo sagrado-profano está presente no cotidiano do indígena. 4. Sobre a criseeuropeia do século XIV é correto afirmar: a) Ocorreu em partes isoladas da Europa, basicamente em áreas pouco férteis. b) A expansão ultramarina agravou ainda mais a crise devido ao desvio de recursos para as grandes viagens. c) A crise foi generalizada, atingindo todos os setores da economia. d) As instituições bancárias não foram afetadas pela crise devido à ação dos monarcas que socorreram os bancos, evitando um agravamento ainda maior da crise. 5. Sobre a reforma protestante é correto afirmar: I – Foi uma Reforma apenas de caráter religioso, os reformistas não aceitavam a corrupção que havia dentro da Igreja Católica. II – Teve caráter, político, religioso e econômico. 25Imaginário, história e verdade III – Foi a primeira batalha da nova classe média (burguesia) contra o feudalismo Estão corretas: a) I, II b) II, III c) I, III d) Todas as alternativas estão corretas. Gabarito: 1(C); 2(C); 3(B); 4(C); 5(B). 2 Os (des)encontros entre as culturas Introdução A palavra cultura possui diversas acepções. Para a agricultura, cultura é sinônimo de cultivo, já para a Sociologia a cultura simboliza o que é aprendido e dividido pelos indivíduos de um determinando grupo, conferindo a eles identidade. A cultura não é única, nem imutável, sendo que dentro de uma determinada sociedade ou grupo pode haver diversos tipos de manifestações culturais, como é o caso da “cultura popular”, da “cultura erudita”, da cultura jovem etc. Neste capítulo iremos trabalhar com o que convencionamos chamar de (des) encontro entre culturas, a cultura europeia e indígena no contexto da chegada e a descoberta do Novo Mundo, e como essas duas culturas foram percebendo-se no contato, na troca, ou ainda, na imposição de valores diversos. A sobreposição cultural imposta pelos europeus e em seguida o genocídio indígena são pontos importantes a serem por nós discutidos, e ainda pretendemos demonstrar como foram possíveis as diversas ressignificações do conceito de cultura e identidade. Analisaremos, também, como está a situação atual do índio no Brasil, suas apropriações e reapropriações culturais e os impactos causados pelas mudanças territoriais. 28 Os (des)encontros entre as culturas 2.1 Organização social? Qual? “(...) Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma (...)”. trecho da carta escrita por Pero Vaz Caminha. Os sentimentos e visões produzidos pelos europeus a respeito do Brasil e dos “brasis” foram diversos e ambíguos. Em carta escrita em 1550, pelo padre Manoel de Nóbrega, fica patente a abominação por alguns costumes indígenas, com a antropofagia e a poligamia. O padre escreve ainda que talvez “a melhor forma de converter os indígenas fosse pelo medo”. Em ambas as cartas demonstra-se que o primeiro contato entre a cultura europeia e indígena foi calcado por um etnocentrismo, um “eurocentrismo” que avaliava o comportamento, a cultura e a organização social indígena por meio de valores e modelos da sociedade europeia (ROCHA, 1984). Noutros relatos, os europeus viam os indígenas de formas diferentes e conflitantes, descrevendo-os como “seres inocentes”, mas também “bestiais”. Algumas das narrativas dos primeiros viajantes estão eivadas de uma visão idílica da realidade dos trópicos. Caracterizam o Novo Mundo como sendo de clima ameno, local onde habitam “seres inocentes e pacíficos”, havendo entre eles grande liberdade social e moral. Seus habitantes desconheceriam governos, moeda e a propriedade. Os europeus não entendiam a falta de interesse do índio pelo acúmulo de bens ou metais preciosos, fato impensável em um contexto mercantilista típico das grandes navegações. A falta de contratos em geral e o fato de não castigarem seus filhos também causaram estranheza no colonizador (WEHLING, 1999, p. 87). A visão hedônica do Novo Mundo, criada pelo grupo dominante e amplamente divulgada na Europa por meio de relatos dos viajantes, fez nascer a esperança de uma vida nova e de ascensão social súbita na população que, no caso de Portugal, foi excluída das riquezas e prosperidade que o comércio com o Oriente proporcionava (FAORO, 1997, p. 103). O sonho de uma nova vida para essa população durou pouco. Ao colonizar e dividir o território brasileiro, o Estado português concedeu essas terras demarcadas aos colonizadores 29Os (des)encontros entre as culturas descendentes da nobreza, possuidores de recursos para investir no Novo Mundo. Ao colonizar o Brasil, os portugueses rejeitaram totalmente a estrutura e a organização social dos povos indígenas. O Brasil, na época da conquista, era habitado por grupos etnicamente distintos. Os Tupis, melhor descritos pelas fontes quinhentistas e seiscentistas, viviam de caça, pesca, coleta e praticavam a horticultura. Possuíam uma grande mobilidade espacial, ficavam em uma determinada área até esgotar seus recursos, depois migravam para outras mais férteis. A “tribo” é uma entidade da qual pouco se sabe, mas os registros que temos dizem que ela abrigava grupos menores, “aldeias”. Ocupando uma porção estratégica no território, as “aldeias” ficavam sempre próximas dos recursos naturais e posicionadas de forma a defender os grupos locais. Esses grupos locais eram compostos de quatro a sete habitações coletivas, distribuídas no solo deixando sempre um espaço livre para a realização de reuniões dos chefes, cerimônias religiosas, massacre e ingestão das vítimas (FERNANDES, 1989). As tarefas eram divididas de acordo com o gênero e a idade. Às mulheres cabia o trabalho agrícola, a manutenção da casa e a criação de animais domésticos. A preparação do corpo dos prisioneiros para a cerimônia de execução também ficava a cargo da mulher. Essas vítimas até o dia de sua morte eram tratadas como iguais, os Tupis não exploravam economicamente seus prisioneiros. Aos homens cabia a derrubada das árvores, preparação do solo para a horticultura, a pesca e a caça. A poligamia existente entre os indígenas, rechaçada pelos padres das missões civilizadoras, era de extrema importância para extensão da parentela. Geralmente, uma família possuía entre três a quatro esposas. As parentelas e relações de interdependência eram repensáveis pela união dos grupos locais, a distinção entre os grupos emanava no parentesco ou aliança. (...) em cada casa destas vivem todos muito conformes, sem haver nunca entre eles nenhumas diferenças: antes são tão amigos uns dos outros que o que é de um é de todos, e sempre de qualquer coisa que um coma, por pequena que seja, todos os circunstantes hão de participar dela. (GANDAVO apud FERNANDES, 1989, p. 74) 30 Os (des)encontros entre as culturas Relatos como esse demonstram que a estrutura social das “tribos” era baseada em laços de solidariedade e de cooperação em áreas de interesse. O funcionamento do sistema tribal, assim como as relações sociais – tanto no plano da organização local quanto na parentela – era baseado nas situações já vividas. As normas baseadas no passado eram aplicadas de forma enérgica e inalterável nos acontecimentos do presente. Os imprevistos ou situações novas que surgiam eram examinadas pelos velhos, líderes da parentela. As mudanças só poderiam ser enfrentadas com sucesso após um longo processo de escolha da solução a ser tomada diante da situação imposta, e entre tentativas baseadas na experiência vivida. 2.2 Identidade e cultura Hoje em dia, o conceito de identidade não é tido como imutável, pois se entende que ele tenha passado por uma série de transformações no decorrer da história. Portanto, a concepção de identidade está sujeita a transformações. Recuando na história até o Iluminismo, percebemos que se pensava a identidade de outra forma, “O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção de pessoa humana com um indivíduo totalmente centrado, unificado...” (HALL, 2005, p. 10). A identidade nessa concepção era o centro dapessoa, que surge no seu nascimento, permanecendo imutável durante o seu desenvolvimento. Portanto, além de imutável, a identidade na concepção iluminista é individualista, uma vez que está centrada no “eu”, no interior, sem fazer relação ou sofrer alteração pelo sistema cultural que nos cerca. Na modernidade esse conceito de identidade foi sendo contestado, na medida em que se percebeu que o núcleo interior não era autossuficiente. “A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno...” (HALL, 2005). Esse sujeito sociológico contrapõe o iluminista no seu individualismo, alegando que o sujeito tem um núcleo interior. Entretanto, esse núcleo é formado e modificado e está em constante diálogo com as “culturas exteriores”. “A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre (...) o mundo pessoal e o mundo público” (HALL, 2005). O sujeito está preso à estrutura por meio da identidade, e essa identidade o estabiliza junto com os mundos culturais que ele habita. Essa visão unificada do sujeito sociológico está sendo fragmentada na pós- modernidade. O sujeito pós-moderno não tem uma identidade permanente, ele possui várias identidades que se transformam continuamente. Os sistemas 31Os (des)encontros entre as culturas culturais que cercam o sujeito são responsáveis por essa formação e transformação de identidades. O indivíduo assume essa ou aquela identidade de acordo com o momento. “A identidade plenamente unificada, completa e coerente é uma fantasia” (HALL, 2005, p. 13). Assistimos ao surgimento de novas identidades que fragmentam o indivíduo, enquanto que as velhas, que durante muito tempo estabilizaram o mundo social, estão em constante queda. A “crise de identidade” é fruto desse processo que faz emergir novas identidades, abalando os quadros de referência que ancoravam e davam estabilidade ao indivíduo no mundo social em que estava inserido (HALL, 2005). No entanto, Denys Cuche (1997) diz que, apesar do caráter mutável e dinâmico da identidade, não se pode pensar que os atores sociais estão completamente livres para definir sua identidade de acordo com os interesses do momento. “Não é possível aos grupos e aos indivíduos fazer o que quer que desejem em matéria de identidade: a identidade é sempre resultante da identificação imposta pelos outros e da que o grupo ou indivíduo afirma por si mesmo” (p. 197). As noções de identidade e cultura possuem uma grande ligação. Entretanto, não podem ser confundidas. A utilização da palavra cultura só vai começar a modificar o seu significado inicial, que é cuidar da terra, em meados do século XVI, passando a designar uma ação. No decorrer do referido século, a palavra passa a ser utilizada também no sentido figurado. Contudo, esse sentido figurado de cultura vai se impor somente no século XVIII. É no século das luzes que a cultura passa a designar “educação” da mente e do espírito, ou seja, por intermédio da instrução o indivíduo adquire um estado mental. A cultura, para os pensadores desse século, acontece por meio da educação. Os iluministas definem a cultura como “...a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade...” (CUCHE, 1999, p. 20). A noção de cultura varia de acordo com a área de conhecimento. Sociologicamente, podemos dizer que a cultura simboliza o que é aprendido e dividido pelos indivíduos de um grupo, determinando, conferindo a eles identidade. Quando o conjunto de valores de uma sociedade se encontra com o conjunto de outra, ocorre o que chamamos de “choque entre culturas”. A estranheza e a intolerância com que os portugueses viram a cultura indígena na época do descobrimento transparecem esse choque. Todavia, a estranheza não foi sentida só pelo europeu. O indígena não entendia a cultura europeia e o seu incessante interesse material, bem como a necessidade de acumulação de bens. Vários índios foram levados para a Europa 32 Os (des)encontros entre as culturas onde puderam vivenciar essa diferenciação cultural. Michel de Montaigne relata a conversa que teve na Europa com um grupo de indígenas enviados à Suíça. Quando perguntado sobre o que achou da cidade, um índio revelou espanto com as diferenças sociais e ficou surpreso com o fato de os excluídos não se revoltarem. (...) há entre nós gente muito bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (...), e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais. (MONTAIGNE, 1980, p. 105) 2.3 Eurocentrismo e genocídio Eurocentrismo é a tendência a colocar a Europa como protagonista da história do homem. Sua cultura, costumes, povos, funcionam como principal elemento na constituição da sociedade moderna. A visão eurocêntrica tende a menosprezar as culturas que não se enquadram no “modelo europeu”, olhando- as como algo exótico ou descabido. Fonte: http://www.bahia.com.br/site/global/imgs/viver_bahia/historia/Pe-Vieira-convertendo- indios.jpg 33Os (des)encontros entre as culturas Essa visão eurocêntrica e etnocêntrica, aliada aos interesses econômicos, fez com que os colonizadores portugueses desprezassem a cultura indígena e, posteriormente impusessem sua cultura e os seus costumes. Essa imposição se dava geralmente pelo uso da força e do medo – como aparece na carta escrita pelo padre Nóbrega de 1550: “Talvez por medo [os índios] se convertam mais depressa do que fazem por amor” (RODRIGUES Apud CORRÊA, 2006, p. 23). A ideia que se tem ainda hoje de que os índios nessa aréa da América se limitaram a assistir a ocupação portuguesa e que aceitaram passivamente as consequências da colonização não se sustenta, principalmente quando lemos relatos dos padres e colonizadores Nóbrega e Anchieta a respeito de batalhas como a “confederação dos Tamoios”. Se foram vencedores ou vencidos, não importa. O que vale lembrar é que, levando em consideração suas limitações, os índios lutaram e foram duros inimigos na luta pela sua soberania e a posse de seus territórios (FERNANDES apud HOLANDA, 1989). Nos primeiros anos do descobrimento, enquanto o interesse de Portugal se limitava à retirada do pau-brasil e escambo, as relações conflitantes eram encobertas. Enquanto estavam em pequenos números, os brancos eram incorporados à cultura local, e essa incorporação em nada alterou o sistema tribal. Entretanto, ao substituir o escambo pela agricultura, os portugueses alteraram completamente sua relação com os indígenas, passando de tensões ocultas para um período de conflitos abertos com os nativos. “O anseio de ‘submeter’ o indígena passou a ser o elemento central da ideologia dominante no mundo colonial luzitano” (FERNANDES apud HOLANDA 1989, p. 83). O pensamento cristão adaptou-se muito bem à politica expansionista da época. o cristianismo medieval deu base às doutrinas legitimadoras sobre a conduta para com os infiéis, o direito de escravizá-los, a responsabilidade religiosa assumida diante deles pelos cristãos, mesmo tendo opositores, essa doutrina legitimou na prática uma conduta que arrasou com os povos pré-colombianos. (POMER, 1983, p. 68) Esse pensamento cristão também estava presente na conduta dos portugueses, então sob a alegação de catequizar os pagãos. Aconteceu a tomada do território indígena, assim como a sua redução à escravidão, tendo como consequência a 34 Os (des)encontros entre as culturas morte impiedosa de milhares de índios. Os que não morreram pela arma do colonizador padeceram em decorrência das doenças trazidas por eles. Os indígenas não ficaram passivos à ocupação, eles reagiram a ela usando três formas básicas: a primeira delas foi o uso da violência, a tentativa de expulsão do branco, garantindo assim a soberania tribal. A “confederação dos Tamoios” exemplifica esse tipo de reação. A segunda, a submissão na condição de “aliados”, onde várias tribos se juntaramaos portugueses contra os seus inimigos. Contudo, essa aliança era efêmera, podendo ser quebrada a qualquer momento pelos portugueses. A terceira forma de reação foi por meios passivos, por meio das migrações. No entanto, essa estratégia se mostrou pouco eficiente, devido à abertura das estradas. Os efeitos da destribalização (que iam da seleção letal nas populações aborígenes à perda da vida), as doenças contraídas nos contatos com os brancos e a escassez frequente de víveres, somados aos inconvenientes do trabalho forçado de toda espécie, inclusive na guerra, faziam com que o regime imposto de vida operasse como um sorvedouro de seres humanos. (FERNANDES apud HOLANDA 1989, p. 85) 2.4 Questões atuais sobre as populações indígenas no Brasil De acordo com dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão do governo que estabelece e executa a Política Indigenista no Brasil, existem atualmente no país cerca de 460 mil índios distribuídos entre 225 aldeias indígenas. Há ainda entre 100 e 190 mil índios vivendo fora das sociedades indígenas, incluindo aqueles que vivem em áreas urbanas. Apesar de imprecisas, as estimativas sobre o número de sociedades indígenas que existiam no Brasil na época da chegada dos europeus apontam para cerca de 1 a 10 milhões índios. Esses números nos dão a dimensão acerca da quantidade de sociedades indígenas que foram exterminadas, resultante de um processo de colonização baseado, principalmente, pelo uso da força. E como vivem hoje esses índios após 500 anos da chegada dos europeus? 35Os (des)encontros entre as culturas Quando se pensa em índios, logo imaginamos a vida nas aldeias. No entanto, hoje boa parte dos índios vive nos centros urbanos. Índios de boné e camiseta geralmente são vistos como alguém que abandonou sua cultura. Esquecemos que as culturas são dinâmicas e que se modificam no decorrer da história. Nós não somos os mesmos da época do Brasil colônia, sendo assim, por que queremos que a cultura indígena seja imutável, que os índios sejam os mesmos de mais de 500 anos atrás? A cultura indígena, assim como as demais culturas ao longo do tempo, passou por processos de apropriações, perdas e reorganizações, portanto não são imutáveis. A presença cada vez maior dos índios na cidade é explicada pela migração à procura de trabalho, ou ainda devido ao crescimento dos centros urbanos, que se expandiram e quase se juntaram às aldeias. As relações, muitas vezes calcadas no preconceito entre brancos e o índio da cidade, faz com que o indígena abandone ou oculte elementos da sua cultura, identidade e origem. Um exemplo dessa intolerância ocorreu em 1997, quando cinco rapazes atearam fogo no índio pataxó Galdino Jesus dos Santos que dormia em uma parada de ônibus de Brasília, após participar de uma marcha indígena por reconhecimento e demarcação de áreas. O índio morreu com 95% do corpo queimado. “Não sabíamos que era um índio, pensávamos que era só um mendigo”, defendeu-se um dos acusados. O índio pataxó Galdino dos Santos, em hospital de Brasília fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fol/geral/ge21041.htm As relações conflitantes não fazem parte apenas do cotidiano do índio urbano, as sociedades indígenas próximas às cidades, espremidas pelo crescimento 36 Os (des)encontros entre as culturas acelerado dos centros urbanos, que avançam sobre o seu território, lutam pela manutenção da sua dignidade e modo de vida. Nas áreas mais afastadas, reservas indígenas convivem com a ação de grileiros e latifundiários que exploram, matam ou expulsam os índios de seus territórios. O episódio recente, que elucida essa delicada relação, é o conflito na reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Abaixo segue um trecho da Carta das Comunidades Indígenas da Raposa Serra do Sol, documento dos povos originários sobre a luta pela homologação de suas terras, divulgado em 28 de abril de 2008 no site http:// www.jubileubrasil.org.br/informes/a-divida-com-os-povos-originarios/carta- das-comunidades-indigenas-da-raposa-serra-do-sol. Nós, comunidades indígenas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, após três anos de homologação da nossa terra, muito embora termos sofrido violentas agressões ao longo de 30 anos de luta, nunca reagimos com violência, (...) Com o anúncio da operação “Upatakon 3” (operação que visa a mediação dos conflitos entre índios e não índios na terra indígena Raposa Serra do Sol, ao norte de Roraima), foram feitas várias ações violentas, de terrorismos, queima de pontes, bloqueio de pontes, explosões de bombas artesanais, tentativas de homicídios contra lideranças indígenas e outros atos nocivos à nossa população liderados pelo invasor de nossa terra. (...) nós, povos indígenas, queremos dizer ao povo brasileiro e autoridades que fomos e estamos sendo discriminados frente à sociedade, com a visão de sermos ameaça à soberania nacional (...) Queremos ter oportunidade de cultivar e oferecer nossos produtos, pois só acreditamos em desenvolvimento de um estado, quando todos produzem e têm o mesmo tratamento por parte do poder público. Demarcada pelo governo Lula em 2005, a reserva indígena Raposa Serra do Sol está sofrendo pressões por determinados grupos que pedem a diminuição do tamanho de sua área. A demarcação das terras tradicionais, determinada nos termos do Artigo 231 na Constituição de 1988, é um importante passo rumo ao reconhecimento da importância, preservação e também para garantir a sobrevivência física e cultural dos indígenas. Assegurando o direito à terra, 37Os (des)encontros entre as culturas garante-se também o espaço cultural necessário para promover e atualizar as tradições. Nas grandes cidades também são diversos os casos de famílias indígenas que movem ações judiciais na perspectiva de assegurar a posse da terra tradicional no mundo urbano. Recentemente, no Rio Grande do Sul, um grupo de famílias Kaingang, até então moradores em áreas da periferia de Porto Alegre, retomou o Parque Natural do Morro do Osso, localizado em uma área nobre da cidade. As famílias argumentam que o parque foi criado sobre uma área de ocupação tradicional indígena. A retomada gerou polêmica e discussões entre os poderes públicos, moradores da região e os órgãos indigenistas. Sob a alegação de que os índios iriam desmatar a área que é de preservação ambiental, ocorreram várias tentativas, em meio a conflitos, para a retirada dos índios daquele local. Por sua vez, as lideranças indígenas entraram com uma ação no Ministério Público Federal, alegando que a dita área de preservação ambiental está sendo loteada para a construção de mais um condomínio de luxo. Foram feitas imagens e fotografias dos marcos que delimitavam as ruas e o local da construção dos prédios e entregues ao Ministério Público. Atividades • Construa um quadro com elementos importantes da cultura indígena na época do descobrimento e a situação das populações indígenas no Brasil contemporâneo. • Considerando que a concentração de poder político no Brasil está diretamente ligada ao poder econômico, faça uma análise critica sobre o parágrafo abaixo. • Discuta com seus colegas quais os elementos importantes referenciados por Stuart Hall e Denys Cuche sobre cultura e identidade, exemplificando com questões relacionadas ao seu cotidiano. Referências comentadas WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil Colonial. 4. ed., rev. amp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 38 Os (des)encontros entre as culturas O livro Formação do Brasil Colonial, publicado pelo doutor em História Arno Wehling, não se destina apenas ao público especializado em história. A leitura é de fácil entendimento, abrangendo um público diversificado. O livro faz a síntese de três séculos de história brasileira, abordando temas como a expansão europeia no século XV e a incorporação do Brasil, além de a colonização, a sociedade colonial, a cultura no Brasil colônia e a crise da colonização. A obra aborda váriosaspectos sobre a formação socio-histórica do país e encerra com um apanhado desses três séculos de história do Brasil. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 11. ed. São Paulo: Globo, 1997. 2 v. No Livro Os Donos do Poder, Raymundo Faoro trabalha com detalhes a história brasileira desde as origens do Estado Português colonizador até as principais tendências internas da República Velha. Trata-se de uma obra de mapeamento da evolução política do Brasil, que gerou muitas controvérsias por ocasião de sua publicação, mas consolidou-se como referência para o estudo da formação política brasileira. Referências AS ALDEIAS da cidade. 3X4 Especial índios. Porto Alegre, 2007. Carta das comunidades indígenas da Raposa Serra do Sol. Disponível em: http:// www.jubileubrasil.org.br/informes/a-divida-com-os-povos-originarios/ carta-das-comunidades-indigenas-da-raposa-serra-do-sol. Acesso em: 20 de julho de 2008. CORRÊA, Norton Figueiredo. O batuque do Rio Grande do Sul: antropologia de uma religião afro-rio-grandense. 2. ed. São Luís: Cultura & Arte, 2006. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 11. ed. São Paulo: Globo, 1997. 2 v. FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Disponível em: http://www.funai.gov. br/ Acesso em: 30 de julho de 2008. GIUCCI, Guilhermo. Viajantes do maravilhoso – o novo mundo. Companhia das Letras, 1992. 39Os (des)encontros entre as culturas HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. HOLANDA, Sergio Buarque de (Org.). História geral da civilização brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1980. 500 p. (Os pensadores). MORRE índio atacado por adolescentes. Disponível em: wwwl.folha.uol.com. br. Acesso em: 30 de julho de 2008. PEREIRA, Patrícia. Seiva de Pedra. In: Revista Sociologia: Ciência & Vida, ano 1, n. 3, p. 41-49. POMER, Leon. História da América hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. 95 p. (Primeiros passos). WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil colonial. 4. ed., rev. amp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. Autoavaliação 1. Indique sobre qual grupo o texto abaixo trata: (...) As narrativas dos primeiros viajantes caracterizam o Novo Mundo como sendo de clima ameno, onde habitam seres inocentes e pacíficos, relatam ainda que havia grande liberdade social e moral. Seus habitantes desconheciam governos, moeda e a propriedade. a) Europeus b) Negros c) Lusitanos d) Índios 2. O Brasil na época da conquista era habitado por grupos etnicamente distintos. Os Tupis, melhor descritos pelas fontes quinhentistas e seiscentistas, viviam de caça, pesca, coleta, praticavam a horticultura e ficavam em uma determinada área até esgotar seus recursos, portanto é correto afirmar que: 40 Os (des)encontros entre as culturas a) Possuíam mobilidade espacial. b) Possuíam mobilidade social. c) Eram sedentários. d) Possuíam mobilidade global. 3. “É a tendência a colocar a Europa como protagonista da história do homem. Suas culturas e povos funcionam como o principal elemento na constituição da sociedade moderna.” A frase acima se refere ao: a) Americanismo b) Antropocentrismo c) Teocentrismo d) Eurocentrismo 4. A visão eurocêntrica tem tendência a menosprezar quais culturas? a) Todas as culturas de “costumes bárbaros”. b) Povos de cultura antropofágica. b) As culturas que não se enquadram no “modelo europeu” olhando-as de maneira exótica. c) As culturas que são tidas como populares ou “de massa”. 5. Conforme estudamos neste capítulo, o etnólogo francês Denys Cuche adverte que, apesar do caráter mutável e dinâmico da identidade, não se pode pensar que os atores sociais estão completamente livres para definir sua identidade de acordo com os interesses do momento. Segundo esse autor, a) Não é possível aos grupos e aos indivíduos fazer o que quer que desejem em matéria de identidade: a identidade é sempre resultante da identificação imposta pelos outros e da que o grupo ou indivíduo afirma por si mesmo. b) A representação que fazemos de nós mesmos é livre e não depende em hipótese alguma da identificação imposta por outras pessoas ou grupos. c) Tudo depende do status social de cada indivíduo, pois é sabido que nem todos têm condições de impor sua identidade conforme gostariam. d) Nenhuma das opções está correta. Gabarito: 1(A); 2(A); 3(D); 4(C); 5(A). 3 A posse da terra, poderes e exclusões Introdução A terra no Brasil sempre foi sinônimo de poder político, econômico e status social. Ocorreram várias mudanças na história política do nosso país, ele foi colônia, império e república. Entretanto, a importância de possuir a terra nunca foi alterada, pois o poder econômico e político emanariam dessa posse. Desde o início da colonização a terra, o poder e a política estão ligados. Os senhores rurais do Brasil colônia, cafeicultores do Império e os coronéis da República, todos sem exceção, por meio da posse da terra conquistaram o poder econômico e político no país. Mas e aqueles que não possuíam terra, os “excluídos” exerceram algum tipo de influência? Mesmo na atualidade, com as variadas formas de exercer a dominação econômica e política, a posse da terra continua sendo um instrumento importante. Neste capítulo iremos estudar as formas que se deram no contexto colonial a primeira doação de terras e quem foram os beneficiados, como se organizou a sociedade colonial, calcada na diferenciação social, a escravidão e as questões relacionadas ao cotidiano do escravo, bem como as formas utilizadas por eles para alterar ou amenizar sua condição social. 42 A posse da terra, poderes e exclusões 3.1 A ocupação do território Com o expansionismo marítimo e a descoberta da América, chamada de Novo Mundo, Portugal, pioneiro nas grandes navegações, e Castela (parte da atual Espanha), lançam mão de vários tratados para tentar solucionar os conflitos que se seguiram com a descoberta do Novo Mundo. As duas Coroas assinaram o Tratado de Tordesilhas em 1494, várias regiões que hoje pertencem ao território brasileiro, na época da assinatura desse tratado, ficaram sob o domínio espanhol. O Tratado de Madrid, de 1750, que suplantou o Tratado de Tordesilhas, foi a tentativa entre as duas Coroas de pôr fim aos conflitos territoriais e fronteiriços, mas ainda não temos o que na geografia moderna chamaríamos de um território. (...) o território é um espaço social que não pode existir sem uma sociedade que o crie e qualifique, logo inexiste como realidade puramente natural, sendo construído com base na apropriação e transformação dos meios criados pela natureza. O território é um produto socialmente produzido, um resultado histórico da relação de um grupo humano com o espaço que o abriga. (MORAES, 2000, p. 18) Após o Tratado de Madrid, vieram outros que evidenciaram a importância da posse dessas terras no cenário internacional, momento em que o poder estava ligado à posse de colônias. A partilha do mundo, apenas entre as duas Coroas, foi questionada por outras potências europeias, que logo se lançaram na costa brasileira e promoveram o comércio clandestino por meio do contato com os indígenas. No primeiro quartel do século XVI, notava-se pouco povoamento no Brasil. A Coroa portuguesa estava envolta com as rotas orientais e com os lucros imediatos que as mesmas ofereciam. A ação lusitana se limitava mais a objetivos geopolíticos e servindo de escala para os navios que iam para as Índias. No litoral brasileiro foram instaladas pequenas bases militares, cujo objetivo era auxiliar os navegantes, além de guardar alimentos, munições e ferramentas. Apesar de o Brasil possuir, inicialmente, poucos atrativos econômicos aos olhos de Portugal, ocorreram diversos tipos de escambo. Os comerciantes portugueses recolhiam43A posse da terra, poderes e exclusões produtos da costa brasileira, dentre eles o pau-brasil, retirado da mata pelos índios em troca de objetos até então desconhecidos por essas populações. Com a crise do comércio oriental, Portugal se viu endividado, e grande parte do seu comércio foi dominado pelo capital estrangeiro. Neste contexto de aparente decadência da Coroa lusitana, aguçou-se a cobiça das potências estrangeiras pelas novas terras. Esse fator, aliado à crise econômica, fez Portugal mudar sua política em relação ao Brasil, e a necessidade de defesa reforçou a iniciativa colonizatória (MORAES, 2000). Sem ter recursos para financiar a colonização a Coroa portuguesa, entregou o Brasil ao investimento privado. O território brasileiro foi dividido em extensas áreas, chamadas de capitanias hereditárias, que foram entregues à nobreza. Essas terras foram divididas em áreas menores chamadas de sesmarias. Criada em Portugal no século XIV, a sesmaria é um instituto jurídico que foi transposto para o Brasil com algumas adaptações. Uma de suas funções era a de estimular a produção. Eram estabelecidos prazos para o início da produção e, quando o titular não os cumpria, corria-se o risco de ter o direito à posse da terra cassado. O veto à transmissão hereditária das terras doadas a particulares foi suplantado devido a sua inviabilidade, e introduziu-se o direito à transmissão hereditária das mesmas (GORENDER, 1980). Em 1850, foi criada a primeira lei agrária nacional, a Lei de Terras, que colocou em prática e legitimou a obtenção de extensas aréas pertencentes a uma minoria privilegiada. Em contrapartida, a referida lei dificultou e excluiu os pequenos posseiros ao acesso à terra. A Lei de Terras contribuiu para generalizar o tratamento da terra como mercadoria. A partir da Lei de Terras (...) todas as terras tidas como devolutas tornaram-se objeto de venda pelo governo. A ocupação de terras não mais poderia ser “mansa e pacifica”, na expressão usada na época, mas sim através da compra. Dessa forma, o acesso à terra, do ponto de vista legal, ficou difícil para as camadas pobres da população camponesa, mas nem tanto para as elites locais, que além de regularizar suas propriedades procuravam avançar ou incorporar novas áreas onde viviam muitos posseiros pobres sem poder para reagir. (ZARTH,1997: 60) 44 A posse da terra, poderes e exclusões A Lei de Terras reconheceu as antigas sesmarias e legitimou de modo formal o regime das posses, estabelecendo a compra como a única forma de adquirir terras. Com o advento da República, o registro Torrens ou Lei de Torrens, de 1890, exerceu a tarefa de demarcar as terras devolutas e declarar, como tais, terras ocupadas sem o título formal de propriedade, além do estabelecimento de impostos territoriais, Com essa lei, as vendas informais de terra caíram, e esses impostos representaram, ao menos para os pequenos proprietários, um fardo pesado e, muitas vezes, impossível de carregar. Os impostos comprometeram a transmissão de heranças desses pequenos produtores. Essa lei teve um impacto muito grande para a população recém-liberta. A mobilidade espacial, que com a abolição era uma opção, a partir da Lei de Torrens passou a ser, para muitas famílias negras, uma obrigação. Diversas famílias negras, devido à impossibilidade de se fixar, tiveram que migrar pelas fazendas à procura de trabalho. O tempo viria cristalizar na região, para os libertos e seus filhos, duas possibilidades básicas, ou dois extremos polares (...). Por um lado, a estabilidade via contratos (...). E por outro, uma extrema mobilidade tanto para famílias como para a maioria de homens que, solteiros ou casados, iriam habitar os barracões das fazendas que abrigavam os trabalhadores sazonais. (MATOS & RIOS, 2005, p. 78) 3.2 A sociedade colonial Com a intensificação do processo colonizador, em 1532, o Brasil foi dividido em capitanias hereditárias (extensos territórios doados para os membros da pequena nobreza luzitana). Entre 1534 e 1536, foram concedidas 14 capitanias, cuja principal dificuldade eram os conflitos com indígenas, desentendimentos entre colonos e donatários e a dificuldade de contato com a Europa. Em uma carta envidada à Coroa por um desses sesmeiros ficaram explícitas as dificuldades existentes nas capitanias, “...se com tempo e brevidade Vossa Alteza não socorre a estas capitanias e costa do Brasil, ainda que nós percamos as vidas e fazendas, Vossa Alteza perderá a terra”. (Apud WEHLING, 2005, p. 69) 45A posse da terra, poderes e exclusões O apoio aos donatários veio em 1548 com a criação do Governo Geral, com sede na Bahia, e que tinha como função coordenar a colonização que estava em estado precário. Combateu também a ameaça exterior representada pelos franceses e espanhóis, cujas atividades começaram com escambo com os indígenas para exploração do pau-brasil e depois para a tentativa de ocupação efetiva do território. Os franceses ocuparam o Rio de Janeiro e os espanhóis tentaram ocupar toda a região sul de São Vicente. Em 1549, havia núcleos dispersos de colonização que se limitavam à exploração do pau-brasil e a uma pequena produção açucareira. As atividades econômicas foram marcadas pelo sitema colonial movido pelo mercantilismo, que tinha por função atender aos interesses da metrópole, suprir o mercado internacional e produzir com base no latifúndio, na escravidão e na dependência externa. A sociedade colonial estava dividida em segmentos e com diversos critérios classificadores dos estratos sociais. A cor da pele era um dos critérios que dividia a população em portugueses, índios e mestiços em uma região, ou brancos, pardos e negros em outra. A posse da terra, proprietários/não proprietários, era um classificador eficaz numa economia predominantemente agrária. Entretanto, deixava de fora do segmento superior as riquezas que não estavam ligadas à terra, como os enriquecidos mineradores. Um outro critério parcialmente eficaz era o paradoxo entre senhor e escravo, porém ignorava o trabalho livre, assalariado, que ocorreu, mesmo sendo a colônia um polo da escravidão. A sociedade colonial era um conjunto bem mais complexo do que simples dicotomias. No elemento superior da sociedade estavam os proprietários rurais, grandes comerciantes, mineradores e a alta burguesia. O setor intermediário era composto de diversos grupos que escapavam dos dois extremos da pirâmide social: os pequenos comerciantes, tropeiros e os pequenos fazendeiros que eram os antigos vaqueiros que tinham conseguido guardar gado suficiente para “montar fazenda”. A base da pirâmide social era formada pelos escravos, fossem eles índios ou negros, e a mobilidade social na colônia, com exceção do escravo, era bem maior do que na metrópole. A Igreja, exercendo seu papel de braço do Estado, esteve presente desde o início da colonização. A Companhia de Jesus foi a primeira ordem religiosa que oficialmente se estabeleceu no Brasil. Com a sua missão civilizatória, os jesuítas 46 A posse da terra, poderes e exclusões entraram no interior convertendo indígenas e batendo de frente muitas vezes com os colonizadores. Apesar do catolicismo português imposto pela Coroa, o sincretismo religioso esteve presente em todo o período colonial por meio das crenças e dos sentimentos religiosos diversos, que foram o resultado da mistura cultural e étnica entre portugueses, índios e negros. Obra do artista Victor Meirelles representando a primeira missa no Brasil dos jesuítas. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5d/Meirelles-primeiramissa2.jpg Apesar da moral social possuir bases católicas, ela variava de acordo com o número de mulheres brancas disponíveis. Em períodos de escassez, a tolerância aos costumes reprovados pela igreja, como o concubinato, aumentava. No século XVIII, diante do aumento do contigente feminino, as leis se tornaram mais rígidas (WEHLING, 2005). A sociedade colonial era hierarquizada e patriarcal,e a família estava dentro destes moldes. O chefe da família possuía inteira autoridade sobre a mulher, filhos, escravos, agregados e empregados. Uma grande família podia impor seus domínios até entre seus vizinhos. Esse 47A posse da terra, poderes e exclusões modelo patriarcal relegou a mulher a uma condição submissa ao homem, que só era quebrada em casos como a viuvez, situação em que a mulher tinha a oportunidade de sair da condição subalterna e comandar a casa. Fonte: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/ familia_na_colonia_um_conceito_elastico.html A cultura só se delineou como “cultura brasileira” um século após o início da colonização. Antes disso, portugueses, negros e comunidades autóctones ainda guardavam seus vínculos originais (WEHLENG, 2005). No Brasil colonial, a cultura possuía referências na religião e na política. A literatura e o teatro eram influenciados pelo universo religioso, obediente a Deus e ao rei. Em Minas Gerais, nasceram o Barroco, movimento plástico e arquitetônico, e o movimento literário denominado de Arcadismo. A valorização da cultura europeia foi, durante todo o período colonial, uma característica marcante no Brasil. Contudo, a subversão do cânone pôde ser percebida nos traços do artista e no gosto do literato pelos elementos locais. 48 A posse da terra, poderes e exclusões Obra de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/primeiro-reinado/periodo-colonial.php 3.3 A escravidão Em vigor no país desde 2003, a Lei n. 4.151/03, que determina que as universidades devem reservar um percentual de vagas a população negra, ainda gera polêmica. Para discutir a questão das cotas raciais, precisamos olhar para o passado colonial do Brasil, em que o negro escravizado foi a base da economia. Esse período da história deixou estigmas profundos, e muitos deles não desapareceram com a abolição institucional. A escravidão é um tema constante na historiografia brasileira e possui várias vertentes, muitas vezes conflitantes entre si. Não é nosso propósito fazer uma discussão historiográfica acerca da escravidão. O objetivo do texto é mostrar que as arbitrariedades ou a insubmissão dos escravos são importantes, mas não são suficientes para a compreensão da vida do negro na sociedade escravista. Existem o cotidiano do escravo, os laços familiares, os meios de conseguir a liberdade e as diversas formas encontradas por eles para tentar sobreviver dentro dessa dinâmica cruel a que estavam submetidos. O início do período colonial teve como característica o uso da mão de obra escrava do indígena. Entretanto, com a caracterização do índio como um 49A posse da terra, poderes e exclusões trabalhador débil, indolente e pouco resistente às doenças (há muito refutado pela historiografia), somada aos interesses mercantilistas do momento, iniciou- se no Brasil a escravização do negro. O tráfico desses escravos gerava para a Coroa portuguesa e traficantes lucros que a escravização dos indígenas não alcançava. “O estereótipo do índio incapaz foi muito útil à Coroa e aos traficantes que tinham no comércio de africanos fabulosa fonte de lucros” (GORENDER, 1980, p. 132). A base da economia e da sociedade brasileira passou a ser a escravidão, fazendo o Brasil dependente do tráfico atlântico de escravos. Não há consenso entre os historiadores acerca do número de escravos trazidos para o Brasil, os números são incertos, variando entre 3 e 13,5 milhões. O principal porto negreiro do Brasil foi o Rio de Janeiro, que, por volta de 1820, recebia cerca de 30.000 cativos por ano (SCHWARTZ, 2001, p. 83). Devido às pressões internacionais, o tráfico tornou-se ilegal em 1830, entretanto ele só cessou por volta de 1850, com a Lei Eusébio de Queirós. Um dos inúmeros destinos desses escravos eram as lavouras de cana-de- açúcar e os engenhos. As condições físicas nestes engenhos eram paupérrimas, faltava roupa, alojamento adequado e comida. Além disso, a disciplina era rígida com castigos cruéis. As proibições religiosas de trabalho em dias santos e nos sábados representavam um alívio para os cativos, que tinham a permissão de usar esses dias em seu próprio benefício. A Igreja também exigia que os escravos fossem batizados, e a responsabilidade de fazê-lo ficava por conta do senhor, e a punição para quem descumprisse a exigência era o confisco do escravo pela Coroa. As irmandades de Nossa Senhora do Rosário, presentes em todo o país, representavam um dos poucos meios de acesso à expressão por parte dos escravos, aceitos nessas irmandades e nos grêmios das igrejas por meio do sacramento do batismo. Uma das formas de laço fictício foi o compadrio, que, para a sociedade cristã, representava laços espirituais. No contexto do catolicismo, qualquer indivíduo livre ou escravo tornava-se membro da sociedade cristã com o batismo. Este sacramento criava laços cuja dimensão social ultrapassava o ambiente da Igreja. O compadrio podia ser usado para reforçar os laços de parentesco ou para consolidar relações de classes sociais semelhantes, como também estabelecer laços verticais entre indivíduos de classe sociais diferentes (SCHWARTZ, 2001, p. 243). 50 A posse da terra, poderes e exclusões Apesar da importância dos laços de compadrio, foi a família escrava que fez a diferenciação dentro da sociedade escravista, “negociando nas brechas da política de domínio senhorial” (MATTOS & RIOS, 2005, p. 89). Desde 1707, a Igreja exigia que os senhores permitissem o matrimônio de seus escravos e que mantivessem a família unida. Em 1869, já no processo de abolição e sob influência das ideias liberais, foi aprovada a lei que proibia a separação de casais e de seus filhos de até 12 anos. Até que ponto a lei foi respeitada ainda não sabemos, pois o estudo da família escrava no Brasil é recente e carece de poucas fontes. As sabotagens, doenças fingidas, corpo mole para o trabalho, incêndio nas plantações eram constantes no cotidiano do sistema escravista. A solução encontrada para amenizar essa situação e, assim, no caso das fazendas, melhorar a qualidade e a quantidade da produção foi a implantação de incentivos. Nos engenhos, além da distribuição de presentes, havia o sistema de quota: “[...] os escravos, ao menos teoricamente, ao completar a quota estavam livres para fazerem o que quisessem” (SCHWARTZ, 2001, p. 103). É importante lembrar que essas “brechas” não eliminam o caráter violento e opressor da escravidão, o sistema escravista continuava sendo sinônimo de açoites onde os castigos, fossem físicos ou morais, estavam sempre presentes. E, mesmo com a lei de 1886, que proibia a prática de açoites, esse castigo continuou recorrente. Para diminuir os gastos com a dieta dos escravos ou prendê-los à fazenda pelo amor à propriedade (SCHWARTZ, 2001), o senhor cedia pequenas áreas para que eles plantassem. O cultivo era realizado aos domingos e feriados religiosos. A horta destinada para o cultivo do escravo, em diversas regiões do Brasil, significava muito mais do que complemento na alimentação; era a possibilidade de vender o excedente. O resultado dessa venda poderia ser usado na compra de mercadoria nas cidades ou guardado para a compra de sua alforria. Para o escravo, essa “brecha camponesa” poderia significar uma abertura no sistema escravista vigente, uma forma de melhorar sua vida. Para os senhores, além de diminuição de gastos com a alimentação, a doação de pequenas áreas ligava o cativo à terra. “Um manual de agricultores de 1847 era favorável à doação de hortas aos escravos. “Isso os liga à terra pelo amor à propriedade. O escravo que é proprietário não foge nem provoca desordem” (WERNECK apud SCHWARTZ, 2001, p. 100). Apesar de o sistema funcionar com esse certo grau 51A posse da terra, poderes e exclusões de autonomia para os escravos e do acúmulo de pecúlio ter sido recorrente, isso só será legalizado a partir da Lei do Ventre Livre em 1871. Esses incentivos
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