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EXCELENTÍSSIMO SR. MINISTRO EDSON FACHIN, RELATOR DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 635/RJ FELIPE DA SILVA FREITAS, brasileiro, solteiro, pesquisador na área de segurança pública e justiça criminal, portador do RG. N. 097.060.46 10, inscrito no CPF sob o n. 027.583.955 92, residente e domiciliado à Rua H, I Travessa, 05, Feira de Santana, Bahia, CEP: 44034 202, venho, por meio da presente, requer a HABILITAÇÃO PARA AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE LETALIDADE POLICIAL NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO com base nos fatos e fundamentos que passo a expor: I - DA TRAJETÓRIA PESSOAL E ACADÊMICA NO ESTUDO DA AÇÃO POLICIAL Ingressei na graduação em Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) no ano de 2005 quando, por força da iniciativa política de organizações do movimento negro, debatia-se a adoção de política de ações afirmativas na universidade, fato que marcou profundamente a minha trajetória. Já nos primeiros meses de estudo engajei-me ao Núcleo de Estudantes Negros e Negras da Universidade (NENNUEFS) e passei a frequentar espaços de reflexão política e acadêmica acerca das relações raciais na sociedade brasileira. Paralelamente a tal engajamento também fortaleci meus vínculos com as Pastorais da Juventude, da qual fui dirigente nacional, e também passei a me relacionar com inúmeros movimentos e organizações sociais tendo atuado na Cáritas Arquidiocesana de Feira de Santana, na Pastoral Carcerária e na ONG Cipó Comunicação Interativa. Entre 2008 e 2010 atuei como coordenador nacional da Campanha contra o Extermínio de Jovens, promovida pelas Pastorais da Juventude. Nessa condição pude acompanhar iniciativas importantes de movimentos sociais no campo da prevenção à violência, debater no âmbito político estratégias para o enfrentamento ao problema da violência no Brasil e, o mais importante, pude conhecer diferentes realidades políticas e territoriais relacionadas à essa significativa temática. Também na esfera dessa Campanha coordenei seminários, fóruns, encontros e conferências articulando tanto a dimensão acadêmica, presente através das parcerias com a Rede Brasileira de Centros e Institutos de Juventude, quanto a dimensão política e institucional, assegurada pelas parcerias da Campanha com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e com outras organizações do campo da segurança pública e da justiça criminal. Também ao longo da graduação realizei intercâmbio de pesquisa com a Universidade Católica de Louvain – Bélgica, na área de Criminologia e Direitos Humanos (2009) participando de uma série de cursos, visitas técnicas e formações acerca de metodologia da pesquisa empírica, funcionamento do sistema de justiça criminal e segurança pública; bem como trabalhei junto a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do estado da Bahia, atuando no monitoramento do acesso aos direitos e benefícios de pessoas privadas de liberdade no Presídio Regional de Feira de Santana e no encaminhamento à corregedoria de denúncias de tortura, abusos e maus tratos. Nessas experiências acumulei diferentes tipos de abordagem em relação à temática da violência policial e pude acessar múltiplas leituras sobre como se organizações as polícias, sobre como as políticas de segurança pública impactam na formulação de modelos de projetos sociais no âmbito dos governos e, o mais importante, sobre como, no âmbito da gestão governamental a temática das políticas de segurança vinham sendo tematizadas em diferentes níveis. Como resultado dessas múltiplas reflexões realizei em meu trabalho de conclusão de curso uma investigação sobre a segurança pública no Brasil que resultou em monografia intitulada: “Tematizando a Segurança Pública no Brasil: Tendências, Programas e Conceitos (1988 – 2007)”1 onde discuto a noção de segurança pública, a partir das políticas públicas em nível federal, destacando tendências apontadas no campo da política criminal e as representações produzidas pela sociedade civil e pelo poder público na construção da ideia de segurança no país. Com base na pesquisa qualitativa, discuti em minha monografia de fim de curso o Plano Nacional de Segurança Pública (2000), Projeto Segurança Pública (2002) e o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (2007), identificando as categorias pelas quais estes programas interpretam, explicam e intervém na questão da violência. Após a graduação trabalhei na gestão pública federal e estadual com os temas da juventude, policiamento, enfrentamento ao racismo e com o sistema de justiça criminal; cursei mestrado em Direito na Universidade de Brasília, onde realizei estudo sobre políticas públicas e segurança, analisando a experiência do programa Pacto pela Vida no estado da Bahia produzindo a dissertação: Discursos e Práticas das políticas de controle de homicídios: uma análise do “Pacto pela Vida” do estado da Bahia (2011 – 2014)2. Neste trabalho busquei analisar os conceitos e estratégias adotados em relação ao controle de homicídios a partir da análise do Plano Estadual de Segurança Pública da Bahia e dos documentos do programa Pacto pela Vida instituído no estado no ano de 2011. Na minha dissertação de mestrado amparei-me no referencial teórico da criminologia crítica e da análise cognitiva de políticas públicas e pude explorar a dimensão executiva de uma política criminal de controle de homicídios 1 FREITAS, Felipe da Silva. Tematizando a segurança pública no Brasil: tendências, programas e conceitos (1988 - 2007). Monografia. Graduação em Direito, Universidade Estadual de Feira de Santana, 2010. 2 FREITAS, Felipe da Silva. Discursos e Práticas das políticas de controle de homicídios: uma análise do "Pacto pela Vida" do estado da Bahia. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, 2015. aprofundando temas que, na época, eram também meu objeto de trabalho em outras áreas profissionais No âmbito da gestão pública trabalhei como assessor da coordenação de juventude da Secretaria de Relações Institucionais e da coordenação de juventude da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial no estado da Bahia novamente implicado com o tema da segurança pública e do debate com as forças policiais. Neste período, integrei a Câmara de Prevenção Social do Programa Pacto pela Vida (programa estadual de prevenção a violência letal) acompanhando a implementação das Bases Comunitárias de Segurança (BCS’s), com destaque para o monitoramento dos dados sobre violência policial e para a realização de visitas técnicas e audiências públicas nas comunidades atendidas pelo programa para escuta sobre denúncias e relatos de violência institucional e tortura e seus encaminhamentos. Em face da minha experiência na articulação de políticas de segurança e construção de estratégias de controle da violência policial fui convidado a compor os quadros do governo federal onde pude assumir a função de coordenador nacional do Plano Juventude Viva – Plano de Enfrentamento à Violência contra Jovens Negros – (2012 – 2014) e, no período seguinte, de Secretário Executivo do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (2015 - 2016). Nestas experiências fui um dos responsáveis por: • Articular o Protocolo de intenções com o objetivo de reduzir as barreiras de acesso a Justiça para a juventude negra em situação de violência firmado entre a União; Conselho Nacional de Justiça; Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais; Conselho Nacional do Ministério Público e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil • Negociar com governos de 6 unidades da federação a adesão ao Plano Juventude Viva e pactuar com os governadores a adoção de medidas específicas para o enfrentamento à violência policial nos territórios especialmente impactados pelo problema,e, • Apoiar tecnicamente a a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, SENASP, na elaboração de condicionantes contratuais para vinculação do financiamento estadual das políticas de prevenção à violência ao atingimento de metas relativas ao controle de letalidade na ação policial e a uma maior transparência na gestão da informação relativa às operações da polícia. Parte dessas experiências foram objeto da minha reflexão durante o curso de doutorado em direito realizado entre 2016 e 2020, também pela Universidade de Brasília. Nesse trabalho, investiguei a relação entre polícia e racismo a partir da análise do debate teórico acerca do conceito de mandato policial3. Nesse estudo pude investigar a produção acadêmica brasileira no campo dos estudos policiais entre 1987 e 2017 e discutir os limites e possibilidades das abordagens hegemônicas acerca do tema do racismo na atuação policial. O principal achado desse trabalho foi a constatação da presença das reações raciais como uma rede de signos e significados na qual o mandato policial é formulado e exercido e a verificação da prevalência das noções de desumanização e de descartabilidade do corpo negro como matriz cognitiva das abordagens e das intervenções logísticas realizadas pelas polícias. Tais aspectos são especialmente decisivos na compreensão do tema da letalidade policial – objeto da presente ADPF – e na compreensão dos arranjos policiais e modelos de policiamento. Além desse dos elementos contidos nesse relato biográfico tenho também me dedicado a atividades de pesquisa, consultoria e formação junto a organismos internacionais, governos, universidades, movimentos sociais e organizações não governamentais com foco nos estudos sobre segurança pública, polícia e justiça criminal como se pode constatar no curto rol abaixo apresentado: - Atividades de Pesquisa e Consultorias 3 FREITAS, Felipe da Silva. Polícia e Racismo: um estudo sobre mandato policial. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, 2020. No campo da pesquisa e da consultoria atuei junto Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2016 – 2017); ao United Nations Development Programme – UNDP Brasil (2016 – 2017) e UNDP Moçambique (2019 – 2020) e ao Escritório das Nações Unidas sobre Crimes e Drogas (2019 – 2020) quando desenvolvi as seguintes atividades e publicações: Elaboração do Revisão da Curricular da Escola Nacional de Serviços Penais (2016) publicado pelo Ministério da Justiça, Organização, em parceria com Thula Pires, do livro Vozes do Cárcere: ecos da resistência política (2018) publicado pela editora Kitabu; Sistematização do Manual de Formação sobre Penas Alternativas à Pena de Prisão (2020) publicado pelo Centro de Formação Jurídico e Judiciário do Ministério da Justiça e Assuntos Constitucionais de Moçambique; Participação da equipe de elaboração do Manual de Prevenção e Combate à Tortura e Maus-Tratos na Audiência de Custódia, publicado pelas Nações Unidas e pelo Conselho Nacional de Justiça (2020). Nesse período também publiquei inúmeros artigos científicos, artigos de opinião e capítulos de livro sobre controle da atividade policial, funcionamento das corregedorias de polícia e controle judicial do trabalho policial, com destaque para: - Artigos publicados em periódicos VALENÇA, Manuela Abath ; FREITAS, Felipe da Silva . O direito à vida e o ideal de defesa social em decisões do STJ no contexto da pandemia de COVID-19. Revista Direito Público, v. 17, p. 570-595, 2020. ZACKSESKI, Cristina ; OLIVEIRA NETO, Edi Alves de ; FREITAS, Felipe da Silva . O controle interno da atividade policial no Nordeste: Uma análise das representações sociais dos corregedores e dos policiais que trabalham em Corregedorias sobre seu próprio trabalho. DILEMAS: REVISTA DE ESTUDOS DE CONFLITO E CONTROLE SOCIAL, v. 12, p. 381-400, 2019. ZACKSESKI, Cristina ; OLIVEIRA NETO, Edi Alves de ; FREITAS, Felipe da Silva . Controle interno da atividade policial: um estudo qualitativo sobre as Corregedorias Civis e Militares do Nordeste brasileiro. REVISTA BRASILEIRA DE SEGURANÇA PÚBLICA, v. 12, p. 66-90, 2019. MUNIZ, Jacqueline; CARUSO, Haydée ; FREITAS, Felipe da Silva . Os estudos policiais nas ciências sociais: um balanço sobre a produção brasileira a partir dos anos 2000. REVISTA BRASILEIRA DE INFORMAÇÃO BIBLIOGRÁFICA EM CIÊNCIAS SOCIAIS - BIB, p. 148-187, 2018. FLAUZINA, Ana Luiza P. ; FREITAS, Felipe da Silva . Do paradoxal privilégio de ser vítima: terror de Estado e a negação do sofrimento negro no Brasil. REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS CRIMINAIS, v. 135, p. 15-32, 2017. FREITAS, Felipe da Silva. Pelo Direito à vida segura: um estudo sobre a mobilização negra pela aprovação do Estatuto da Juventude no Congresso Nacional. REVISTA DIREITO E PRÁXIS, v. 10, p. 1335-1355, 2019. FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para criminologia brasileira: Poder, Racismo e Direito no centro da roda. Cadernos do CEAS, v. 1, p. 489-499, 2016. - Capítulos de livros FREITAS, Felipe da Silva. O que a gente quer que a polícia faça? Ódio e racismo como mandato policial no Brasil. In: Ana Flauzina; Thula Pires. (Org.). Rebelião. 1ed.Brasília: Brado Negro, 2020, v. 1, p. 84-86. DUARTE, Evandro Piza ; FREITAS, Felipe da Silva . Racism and Drug Policy: Criminal Control and the Management of Black Bodies by the Brazilian State. In: Kojo Koram. (Org.). The War on Drugs and the Global Colour Line. 1ed.London: Pluto Press, 2019, v. 1, p. 100-134. FREITAS, Felipe da Silva. A violência real e as ciladas do punitivismo: Reflexões sobre atividade policial e a Lei 13.142, de 6 de julho de 2015. In: Ana Flauzina; Felipe Freitas. (Org.). Discursos Negros: legislação penal, política criminal e racismo. 1ed.Brasília: Brado Negro, 2015, v. , p. 10-40. FREITAS, Felipe da Silva. Juventude Negra: qual é mesmo a diferença?. In: Regina Novaes; Eliane Ribeiro; Gustavo Venturi; Diógenes Pinheiro. (Org.). Agenda juventude Brasil: leituras sobre uma década de mudanças. 1ed.Rio de Janeiro: Unirio, 2016, v. 1, p. 103-128 - Artigos em jornais e revistas Intervenção federal é cortina de fumaça para reais problemas da segurança pública. Justificando (ISSN 25270435), São Paulo, p. 1 - 1, 17 fev. 2018. As UPP’s e o descaso com o tema da segurança públicam o tema da segurança pública. Justificando (ISSN 25270435), 13 mar. 2017 Slogans vazios e práticas autoritárias: precisamos debater a questão da polícia no Brasil. Justificando (ISSN 25270435), 14 fev. 2017. O que é a “PEC da Polícia Penal” e porque ela não melhorará em nada o sistema prisional?. Justificando (ISSN 25270435), São Paulo, 09 ago. 2017. Outras perguntas sobre a violência policial. Brado Negro, Brasília, 29 dez. 2015. Mais recentemente, em ano de 2020, atuei como consultor do Observatório Direitos Humanos e Crise Covid-19, formado por mais de quinze organizações nacionais do campo dos direitos humanos, para elaboração de um informe acerca dos impactos da pandemia na vida das populações historicamente excluídas. O documento foi publicado em setembro de 2020 sob o título “Serviços Públicos e Direitos Humanos no contexto da pandemia no Brasil”. Como ativista político, docente e pesquisador, participei ao longo dos últimos anos de dezenas de palestras, cursos, oficinas e formações acerca das políticas públicas, direitos humanos e enfrentamento ao racismo entres os quais destaco: Palestrante no painel “A seletividade do sistema: da abordagem à condenação” promovido pela Associação de Magistrados Brasileiros, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Embaixada dos EUA, U.S Bureau of Economic Analysis (BEA), International Visitor Leadership Program- Havard University, 2020. Aula sobre Mandato Policial, Genocídioe Hiperencarceramento durante o XIV Curso de Teoria Política das Questões da Diáspora África, realizado por Criola, Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, 2020. Palestrante no Painel Racismo e Polícia durante o 14º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Minicurso Direitos Fundamentais, Processo Penal e Polícias ministrado junto com a professora Manuela Abath Valença para estudantes dos cursos de Pós Graduação em Direito (mestrado e doutorado) da Universidade Federal de Pernambuco, agosto/2020. Aula Magna Narrativas da violência no Brasil: segurança pública e racismo em debate no Course Racial and Gender Inequalities in Latin America in Center for Latin American Studies, Stanford University, 2019. Participação na audiência pública: Segurança pública e violações de direitos: impactos da Intervenção Federal do Rio de Janeiro para o Brasil durante o Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), 2018. Conferência “O Controle da Polícia e os Desafios da Democracia no Brasil” durante o VII Seminário Nacional do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, 2018. participação no painel “Juventude e vulnerabilidade à tortura: marcadores de exclusão de raça, de gênero e de classe” durante o III Encontro Nacional de Comitês e Mecanismos de Prevenção e Combate a Tortura, em julho/2018. palestra sobre Indicadores sociais de violência na América Latina durante o Deutschen Katholikentag promovido pela ONG alemã Adveniat, em abril de 2012. conferência sobre Lutas antirracistas no Brasil realizada em setembro de 2010 na cidade de Los Teques, na Venezuela, durante o III Congresso Latino Americano de Jovens. - Atividades atuais Atualmente mantenho vínculo com o Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana, do qual sou co- fundador e pesquisador voluntário e trabalho junto a várias organizações como consultor na área de segurança pública, direitos humanos e relações raciais. No âmbito da docência sou professor do Instituto Brasiliense de Direito Público e professor colaborador do Curso de Mestrado em Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia. Além disso, sou colunista do site Justificando e da Seção Justiça do site da Revista Carta Capital; membro do Conselho Consultivo da Plataforma Brasileira sobre Política de Drogas; membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Sociologia do Direito (ABraSD) biênio 2020 - 2021; sócio da Associação Brasileira de Pesquisadores Negras e Negros (ABPN), desde 2020; coordenador de pesquisa no Núcleo de Justiça Racial da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá 2020 - 2021. - Interesses de pesquisa Interessam-me especialmente os estudos sobre direito e política, com destaque para a relação entre teoria do Estado, polícia, relações raciais e processo penal. O objetivo atual das minhas investigações é compreender, no campo das discussões sobre direito e segurança pública, as interrelações entre instituições democráticas, espaço público, desigualdade e violência no contexto brasileiro onde tenho investigado: • Estado Democrático de Direito e suas tensões com práticas extra-legais no âmbito do sistema de justiça criminal e de segurança pública, • Peso dos saberes e práticas policiais na conformação dos modelos brasileiros de direito e processo penal, • As conexões entre a doutrina constitucional brasileira em matérias processual penal e as práticas jurisprudenciais no que se refere à validação do trabalho da atividade policial, analisando, em específico, precedentes brasileiros e internacionais atinentes a controle da abordagem policial, • Impacto das hierarquias raciais e sociais na condução do processo penal e na conceituação dos institutos jurídicos referentes às práticas policiais, Passo à exposição de linhas gerais do que pretendo apresentar, caso habilitado, como contribuição a este Tribunal para o debate da ADPF 635. II – CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE SOBRE LETALIDADE POLICIAL O que fazer diante da constatação do colapso total do modelo de policiamento ostensivo? O que fazer diante dos altos custos, alta letalidade, baixa eficácia em termos de controle da criminalidade e baixa legalidade das ações policiais realizadas no Brasil? Essas questões povoam a atuação e a reflexão política de intelectuais, ativistas políticos de direitos humanos, militantes do movimento negro e juristas e são objeto da ADPF 635 tanto a partir da discussão sobre os protocolos de atuação, internos e externos, das forças policiais quanto no debate sobre a relação entre racismo e ação policial - aspecto que me parece central na agenda dos estudos policiais e na compreensão das dinâmicas de letalidade no Brasil. Assim, penso considero central para responder a essas questões a reflexão sobre o modelo de policiamento brasileiro e sobre o tipo de baliza jurídica – constitucional e processual penal – necessária para a preservação dos direitos fundamentais e garantia da ordem democrática tanto em relação a ação dos governos no controle das polícias como também no papel do poder judiciário na recepção (ou não) do produto do trabalho das polícias na esfera da atuação judicial. Nessa intervenção, pretendo oferecer a E. Corte algumas questões, a partir dos dados disponíveis no Brasil acerca da questão da ação policial, sobre o padrão brasileiro de policiamento indicando alguns desafios nos seguintes aspectos: (i) crítica ao modelo brasileiro de policiamento e discussão sobre os custos da ação policial em especial às ações policiais estratégicas em comunidades pobres e em territórios de maioria negra, (ii) necessidade de uma intervenção judicial ativa no que tange à apreciação das ações policiais e da legalidade dos resultados do trabalho das polícias, (iii) limites e métricas para a intervenção policial, em especial no que tange ao uso da força, instrumentos e táticas empregadas, (iv) revisão crítica dos parâmetros raciais de formação da suspeição com bases raciais, com ênfase para os critérios de legalidade, igualdade e proporcionalidade previstos na Constituição e nas recentes diretrizes das Cortes Internacionais quanto a abordagem, suspeição e transparência da ação policial (em especial das manifestações das Nações Unidas sobre racial profiling e das decisões da Corte Interamericana no caso Tumbeiro e Pietro vs. Argentina e no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil). Uma reflexão sobre o modelo brasileiro de policiamento ostensivo O tema segurança pública fora tratado na Constituição de 19884 em um brevíssimo capítulo em que se definem quais são as instituições públicas encarregadas de prover segurança e em que se fixa o modelo bipartido de organização policial (civil e militar), herdados de períodos anteriores. Na Constituição Federal de 88 é resgatado o conceito da CF de 1937 repetindo-se um capítulo específico sobre o tema, contudo sem definir o seu significado e sem precisar os seus limites5: 4 “O termo segurança ‘pública’ parece ter sido usado pela primeira vez na Constituição Federal (CF) de 1937. Em outras Constituições, como a de 1934, aparece o termo segurança ‘interna’ para tratar com matérias atinentes ao controle da ordem, fato que irá gerar vários dilemas organizacionais no país e em seu pacto federativo. É interessante constatar que, na CF de 1937, cabia exclusivamente à União a competência de regular a matéria e garantir ‘o bem-estar, a ordem, a tranquilidade e a segurança públicas, quando o exigir a necessidade de uma regulamentação uniforme’ (artigo 16, inciso V)”. LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira; MINGARDI, Guaracy.Estado, polícias e segurança pública no Brasil. Revista de Direito GV, São Paulo , v. 12, n. 1, p. 49-85. 5 Idem. A Carta Constitucional de 1988 prevê duas polícias estaduais – uma civil, voltada para a investigação criminal e uma militar, vocacionada à preservação da ordem pública – todavia, mantêm-se os ruídos no pacto federativo e criam-se novas situações de fricção por meio da introdução dos municípios na formulação e execução de políticas de prevenção e combate à violência. A CF de 1988 avançou na construção de um novo conceito de segurança “pública”, mas, ao que tudo indica, apenas em oposição ao de segurança “nacional”, na tentativa instrumental de fornecer ao Estado condições e requisitos democráticos de acesso à justiça e garantia de direitos6. Persistiu portanto, no âmbito da relação entre PM e PC, uma sobreposição perigosa em matéria de atividade de investigação7, ao tempo que também persistiram hierarquias institucionais injustificadas dentro das estruturas militarizadas. No interior de cada policial militar mantiveram-se duplas cadeias de comando – uma relacionada ao Comando da própria Polícia e outra vinculada ao comandante do Exército e ao ministro da Defesa.8 Em outras palavras, o modelo policial de 1988 não estabeleceu qual exatamente seria o papel e a função da Polícia Militar em termos de atribuições na coordenação, planejamento das políticas de administração da violência e de combate à criminalidade. Ou seja, relegou-se o maior contingente policial do país (o dos policiais militares) a um “não lugar” do ponto de vista político e da representação institucional, de modo que o cotidiano do fazer dessas polícias resta violentamente pressionado por demandas insistentes por produção e resultado versus a constatação de que o modelo não funciona. 6 LIMA, Renato Sérgio de. Entre palavras e números: violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo: Alameda, 2011. 7 A despeito da configuração legal, persiste nas organizações policiais militares setores de inteligência que muitas vezes conflitam com as atribuições normativas previstas para a Polícia Civil (ou mesmo para o Ministério Público). É o que os próprios policiais chamam, enquanto categoria nativa, de P2. Segundo Maria Gorette Jesus: “Os policiais do P2 têm como uma de suas atividades principais desempenhar um serviço de inteligência dessa organização. Esses policiais não usam uniformes e podem andar ‘descaracterizados’, tanto que não é possível identificá-los como policiais militares justamente pela atuação que desenvolvem”. (JESUS, Maria Gorete Marques de. “O que está no mundo não está nos autos”: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2016, p. 90). 8 SOARES, Luiz Eduardo. Política Militar e Justiça Criminal como promotoras de desigualdades. In: SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 33. É como descreve Luiz Eduardo Soares: proibidas de investigar as polícias militares - mais numerosas e as que se encontram nas ruas 24 horas - têm sobre seus ombros imensas responsabilidades e, por isso, são pressionadas por todos – mídia, opinião pública, políticos, autoridades. Contudo, pressionadas a quê? Cobradas a produzir, a fazer atos de visibilidade, a transpor a arena silenciosa da prevenção e a ocuparem o palco da cena pública com medidas de força, confronto e combate. Assim, produzir é visto com frequência pelas polícias como sinônimo de prender. E, não podendo investigar, só lhes cabe prender em flagrante. Eis aí a razão do fenômeno: a imensa maioria da população carcerária foi presa em flagrante delito9. Tal modelo de policiamento (marcado por disfuncionalidades e focado na prisão em flagrante) resulta em sérios problemas em termos de alto grau de discricionariedade policial e judicial e baixo grau de legitimidade democrática. O modo impreciso e autoritário com que o sistema judicial assimila o resultado do trabalho policial e o valida, enquanto lastro probatório de suas decisões, representa o mais grave problema de violação de direitos constitucionais e de erosão do sentido democrático do modelo de polícia, segurança pública e justiça criminal. A questão pode ser dividida em pelo menos três pontos: (i) a centralidade dos flagrantes para a movimentação da máquina criminal, (ii) a imprecisão ao definir os limites da investigação e da abordagem pelas polícias, e, (iii) a seletividade contra negras e negros que corrói a legitimidade do sistema e que põe em risco toda narrativa de igualdade e justiça que se tenta construir. Flagrantes A prisão em flagrante está prevista no Código de Processo Penal entre os artigos 301 e 310 e consiste na hipótese de prender quem esteja cometendo uma infração penal, quem acabe de cometê-la, quem é perseguido em situação que faça presumir ser autor da infração ou que é encontrado, logo depois da infração. Ou seja, trata-se de um tipo de prisão muito excepcional que deve 9 Idem, p. 34 – 35. ocorrer apenas em contextos específicos para fazer cessar os efeitos do delito ou para pôr o agente à disposição do Poder Judiciário que deve, rapidamente, avaliar a legalidade do flagrante e a hipótese de autorizar (ou não) a continuidade da investigação policial.10 Entretanto, a prisão em flagrante vulgarizou-se no direito brasileiro. Pelos motivos que expus antes, o flagrante passou a centralizar muito do trabalho da polícia e “perseguir o flagrante” passou a funcionar como um resultado desejado, mais do que como um fato específico resultante de uma situação própria de ocorrência criminal. Promoções profissionais, reconhecimentos e títulos, estímulos informais e benefícios de lotação passaram a ser, cada vez mais, obtidos por meio da central e decisiva “correria pelo flagrante”, que passou ao posto de eixo em torno do qual se prende e se condena no Brasil. O grande problema dessa centralidade da prisão em flagrante como indicador de sucesso do trabalho da polícia é que se desloca para a autoridade policial militar a atribuição de julgar (com os mecanismos de que dispõe para atuação na rua) quem é suspeito da prática de crimes e qual a tipificação inicialmente definida para o caso, por conseguinte, abre-se um largo espaço para abusos e para arbitrariedades de toda sorte11 e fragiliza-se o papel do Juiz e do Promotor que, ao fim e ao cabo, pegam carona naquilo que faz a polícia e encurtam caminho para impulsionar sua própria produtividade naquilo que Manuela Abath denominou como “caso de soberania policial”12. Na prática, o policial passa a produzir, ele mesmo, um juízo de suspeição que nada tem a ver com o que está descrito na lei e que, quase sempre, é apenas a repetição de estigmas, estereótipos, clichês e discriminações e um ethos em busca de reconhecimento, produtividade e estabilidade profissional. Como 10 Sobre o processo de decisão judicial no âmbito da audiência de custódia, ver o material produzido pelo Conselho Nacional de Justiça sob coordenação da professora Maíra Machado: CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Manual sobre Tomada de Decisão na Audiência de Custódia: Parâmetros Gerais. Série Justiça Presente: Coleção Fortalecimento da audiência de custódia. Brasília: 2020. 11 MELLO, Marília Montenegro Pessoa de; ARAUJO, Higor Alexandre Alves de. Presunção de culpa: o Tribunal de Justiça de Pernambuco e o flagrante forjado. Revista Direito Público, Porto Alegre, vol. 16, n. 2019, 133 – 155, set./out. 2019. 12 VALENÇA, Manuela Abath. Soberania policial no Recife do início do século XX. Tese de Doutorado, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2018. destacam Laís Avelar e Bruna Novais ao analisarem o controle do espaço público na cidade de Salvador: O que fica evidenciadoé que a autoridade policial cria, na sua prática, um léxico do que é ordem e desordem, sem respaldo normativo. A polícia, uma agência “executiva”, retroalimenta o seu poder à medida em que decide autonomamente os contornos de sua atuação. Em outras palavras, é a polícia quem define o que é “caso de polícia”. A criação de um léxico entre ordem e desordem, ou seja, entre o que deve ou não ser perseguido não parece aqui outra lógica que não a do multifacetado genocídio.13 Limites da investigação e da abordagem: busca e fundada suspeita Outro aspecto relevante na atuação policial refere-se aos critérios utilizados pelas forças de segurança para realizar (ou não) a busca (pessoal ou domiciliar). Segundo o Código de Processo Penal, está autorizado que se proceda a busca pessoal quando “houver fundada suspeita” de que alguém oculte consigo arma proibida ou para apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; colher qualquer elemento de convicção. Como se vê, trata-se de uma descrição ampla e genérica que já oferece à autoridade policial um campo interpretativo bastante amplo para definir o modo e o espectro da sua atuação. É importante, aqui, que entre na análise sobre a fundada suspeita o sopesamento de princípios e normas da Constituição – com destaque para a inviolabilidade do domicílio, a dignidade da pessoa humana, a intimidade e a vida privada e a incolumidade física e moral do indivíduo – e a necessária atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário que, no momento 13 AVELAR, Laís da Silva; NOVAIS, Bruna Portella. Há mortes anteriores à morte: politizando o genocídio negro dos meios através do controle urbano racializado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 135, ano 25, São Paulo: Ed. RT, set. 2017. da audiência de custódia, deverão apreciar ponto a ponto cada item da justificativa apresentada pelo policial para ancorar sua atuação. Todavia, uma vez que a polícia tem como seu principal indicador de sucesso o ato de “prender em flagrante”, o que acaba funcionando são os repertórios técnicos e políticos disponíveis para que as polícias façam a aferição de qual situação justifica, ou não, uma abordagem policial e não há, da parte do sistema judicial, qualquer reexame ou censura acerca daquilo que é produzido em fase pré-processual pela autoridade da polícia. Pelo contrário, o MP e o Poder Judiciário estimulam e legitimam as atuações policiais - mesmo que abusivas ou letais - consagrando o que Orlando Zaccone chama de “legalidade autoritária” para se referir ao processo de validação judicial de práticas policiais violentas e abusivas: As chamadas “falhas” dos inquéritos policiais instaurados para apurar as mortes praticadas por policiais em serviço nada mais são do que a racionalidade do descaso sistêmico do poder político-jurídico manifesta em relação aos altos índices de letalidade do nosso sistema penal. O que seria uma ineficiência da Justiça é na verdade a sua própria lógica.14 Na prática, o policial aciona nessa atividade o saber-experiência adquirido e transmitido entre os colegas caracterizando um saber-poder do chão da fábrica com o que ele decide, atua e julga a ação dos seus colegas e parceiros de trabalho. A atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público é, majoritariamente, a de corroborar com o modo dessas decisões policiais ou mesmo de “legalizá-las” por meio de movimentações processuais que superlativizam o peso do depoimento policial e subdimensiona o valor da narrativa das vítimas e de todo o restante do conjunto probatório. Na literatura sobre o tema fala-se dos critérios de construção da suspeição, ou, do papel do tirocínio na definição dos padrões de abordagem 14 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. policial.15 Tais elementos caracterizam-se como um “modo de fazer” de geração em geração dentro das polícias informando um saber-prático, que organiza a ação e que legitima e retroalimenta os resultados. É como relata um policial brasiliense com mais de 14 anos de serviço entrevistado por Gilvan Silva em sua pesquisa de mestrado: O policial olha pro cidadão, se a pessoa tiver alguma coisa errada ele vai demonstrar em algum momento insegurança, é o que vai motivar o policial a abordar. Então o policial tem que estar atento, quando for abordar o cidadão, tem que olhar no olho e realmente estudar, fazer um estudo psicológico daquela pessoa, porque o visual conta muito, porque às vezes a pessoa tá com alguma coisa errada e quando ver a polícia ela treme no sentido figurado e no sentido literal às vezes também. Então o policial tem como perceber a situação.16 Ou seja, trata-se de um juízo formado, completamente, com base na experiência e que se beneficia da imprecisão e vagueza da lei para instituir um outro modo de ação policial, que se centra na atividade de abordagem, paradas e busca pessoal e que relativiza o papel da inteligência, da investigação e da previsibilidade na definição de seus meios e planos de ação. Na prática, o modelo de policiamento deixa os policiais à própria sorte e pressiona-lhes a “dar resultado” em termos de produtividade confundida com prisões realizadas pelos meios disponíveis, no caso, os flagrantes.17 15 RAMOS, Silvia; MUSUMECI, Leonarda. "Elemento suspeito". Abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Boletim Segurança e Cidadania, n. 8, novembro de 2004; SILVA, Gilvan Gomes da. A lógica da Polícia Militar do Distrito Federal na Construção do Suspeito. Dissertação Mestrado em Sociologia UnB; ALBERNAZ, Elizabete. “Faro Policial”: um estudo de caso acerca dos critérios de construção e operação de padrões de suspeição e seletividade na ação policial. 39º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, 2015. 16 SILVA, Gilvan Gomes da. A lógica da Polícia Militar do Distrito Federal na Construção do Suspeito. Dissertação Mestrado em Sociologia UnB. 17 SOARES, Op. Cit. Seletividade racial e violência policial Assim, o ato de policiar transforma-se em uma profecia que se auto cumpre: o policial vai à caça do socialmente vulnerável, que teme, o temor inspira o juízo de estranheza (“a suspeição”), dá-se a abordagem (fraudulenta ou não) que gera estatística e que faz a roda do sistema punitivista girar. É um ciclo de performances de violência e terror de Estado que encontra na política de drogas seu palco de execução e na eliminação e encarceramento de negros, seu fim último não declarado. A atuação policial baseada em abordagens em massa e em flagrantes como indicador de eficiência policial é um convite às práticas de discriminação e violência, que se traduzem em mortes, em abusos, em genocídio. De um lado, a lei aparece como suficientemente “aberta” em suas hipóteses para criar o espaço de “discricionariedade” do policial, de outro, a cultura jurídica é suficientemente formalista para negar a possibilidade de observar os padrões cotidianos de violência. Por fim, haverá aqueles casos em que os juízes e tribunais “descobrem”, “surpresos”, a violência dos agentes policiais. Esse modelo de “convivência” entre “padrões jurídicos” ambíguos (liberais e autoritários) decorre de uma historicidade concreta do controle social em que o racismo institucional é um elemento central das políticas públicas empreendidas pelo Estado. A convivência entre escravidão e instituiçõesliberais durante quase um século propõe tal explicação.18 Os dados não deixam dúvidas quanto aos resultados dessa política e quanto aos seus efeitos dirigidos à população negra de modo absolutamente particular. Pesquisa coordenada pelo Grupo de Estudos sobre violência e administração de conflitos da Universidade Federal de São Carlos, em parceria com pesquisadoras/es da UnB, FJP e PUC-RS, conforma o que já vinha sendo assinalado por outros estudos19 e evidencia que: negros têm mais chances de 18 DUARTE, Evandro et alli. Quem é o suspeito do crime de tráfico de drogas? Anotações sobre a dinâmica de preconceitos raciais e sociais na definição das condutas de usuário e traficante pelos policiais militares nas cidades de Brasília, Curitiba e Salvador. Col. Pensando a Segurança Pública. Vol. 5, Brasília: Ministério da Justiça/Senasp, 2014, p. 90. 19 REIS, Dyane Brito. O Racismo na Determinação da Suspeição. Mestrado em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2001; BARROS, Geová da S. Filtragem racial: a cor na seleção do suspeito. Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 2, edição 3, jul./ago. 2008, p. 134-155.; SCHLITTLER, Maria Carolina. “MATAR MUITO, PRENDER MAL”: a produção da serem presos que uma pessoa branca e mais chance de serem mortos pelas forças policiais.20 De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, 6.357 pessoas foram vítimas de mortes por intervenções policiais (13,3% das mortes violentas intencionais ocorridas no período). Nesse universo,79,1% das vítimas eram negros, (enquanto os negros são pouco mais de 50% da população); 74,3% era de jovens até 29 anos e 99,2% era de homens. Ainda que, entre as polícias (e no conjunto das instituições do sistema de justiça e de segurança pública), predomine a leitura de que o racismo existe na sociedade brasileira, mas que não orienta as ações policiais, sabe-se que o racismo funciona como um amálgama que articula, sustenta e organiza a ação policial e o funcionamento de todo o sistema de justiça criminal. 21 Pontos importantes para a formatação de critérios técnicos para o controle de legalidade na ação policial, contrução de protocolos de atuação e ampliação da transparência nas atividades das polícias Como alterar as representações sobre o modelo de policiamento brasileiro e gestar outras formas de controle da violência em nossa sociedade? De que modo é possível construir outros sentidos do que é “fazer policial” e de que maneira esse “outro fazer” pode se tornar viável ante a incomensurabilidade desigualdade racial como efeito do policiamento ostensivo militarizado em SP. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2016. 20 De acordo com pesquisa do GEVAC, UFSCar: a razão de chance de ser preso em flagrante em Minas Gerais segundo cor/raça entre 2013/2018 é de 3 e 2,3 vezes mais chances de uma pessoa negra ser presa do que uma pessoa branca e 4 e 5 vezes mais chances de pessoa negra ser vítima de letalidade policial do que uma pessoa branca. Segundo a mesma pesquisa no município de São Paulo a taxa de negros mortos em ações policiais chega a 3 a 7 vezes maior do que a de não negros (entre 2014 – 2018). SINHORETTO, Jacqueline (coord.). Policiamento e relações raciais: estudo comparado sobre formas contemporâneas de controle do crime. Relatório de Pesquisa. CNPq / MCT 01/2016. Universidade Federal de São Carlos, Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos, 2020. 21 FREITAS, Felipe da Silva. Política e Racismo: um estudo sobre mandato policial. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2020. do racismo e do seu papel desconstituinte da subjetividade de mulheres e homens negros? A iniciativa dos movimentos sociais ao consorciarem-se para propor a ADPF 635 representa uma virtuosa possibilidade de como explorar as tensões do próprio sistema e fazer brotar medidas que restrinjam a violência e explicitem contradições do próprio modelo, conforme já reconheceram os próprios Ministros no julgamento da medida cautelar concedida por V. Excia. A questão é como se amplia o controle público sobre a ação policial discutindo não apenas a responsabilização penal dos agentes policiais após os atos abusivos mas, sobretudo, agindo preventivamente a partir do debate sobre as técnicas e sobre os modelos de formação e de estratégia de policiamento. Sobre esse assunto emergem as seguintes propostas apresentadas na peça inicial da Ação e que podem ser aprofundadas na Audiência a partir do debate sobre suas formas de operacionalização. A este respeito destaco: • A necessidade de reconhecimento da dimensão estruturalmente violenta do modelo de policiamento baseado em mega operações e o combate às práticas de seletividade racial das ações de busca e abordagem policial, • A importância da divulgação dos custos das operações policiais realizadas no estado do Rio de Janeiro, com destaque para o gasto de armas e munições; • Possibilidade de discussão técnica sobre os meios de força empregados e sobre a pertinência tática das estratégias abordadas pelas polícias, inclusive com necessidade de fundamentação nos relatórios de operação policial para: número de disparos, tipo de armamento e de veículos utilizados, bem como necessidade de disposição dos planos técnicos operacionais para fiscalização do MP e apuração da justificação logística da distribuição de efetivos de policiais e de veículos nas diferentes regiões da cidade; • A necessidade de observação das diretrizes apresentadas pelo Conselho Nacional de Justiça no Manual sobre Tomada de Decisão na Audiência de Custódia e no Manual de Prevenção e Combate à Tortura e Maus-Tratos na Audiência de Custódia, ambos publicados em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, • Construção de um plano de estruturação de perícias com apuração técnica sobre os padrões balísticos para formação da prova técnico processual e reafirmação da indispensabilidade da realização imediata de perícia de local quando da ocorrência de lesão ou morte por armas de fogo em operações policiais, • Discussão sobre o peso das representações raciais na formação da suspeição policial e sobre os padrões de distribuição dos efetivos policiais, padrões de abordagem e resultado racial das ações. Sobre esse assunto importante discutir os apontamentos do Manual sobre Tomada de Decisão na Audiência de Custódia do CNJ no que tange a (i) a justificativa da abordagem policial indicada no APF e (ii) os elementos que indicam a “presunção” de autoria da infração que autoriza o flagrante no art. 302, III e IV do CPP. Tais aspectos podem servir como referência para pensar o enfrentamento ao racial profiling em todas as operações policiais, inclusive no que diz respeito à apreciação de legalidade da própria fundamentação da mobilização de efetivo apresentada pelo comando policial. III – REQUERIMENTO Nesta perspectiva, submeto o PEDIDO DE HABILITAÇÃO À AUDIÊNCIA PÚBLICA DA ADPF 635 RJ com o objetivo de aprofundar algumas das impressões e hipóteses aventadas no bojo da minha trajetória política e acadêmica e colaborar com a consolidação de saberes e práticas públicas sobre esta importante área temática tão fundamental para a vida, a liberdade e cidadania de milhões de brasileiras e brasileiros. Nestes Termos, Pede Deferimento. Feira de Santana – BA, 29 de janeiro de 2021. Felipe da Silva Freitas Pesquisador Voluntário do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana – GPCRIM UEFS
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