Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL PARA A AÇÃO PSICOLÓGICA NA PRÁTICA E NA PESQUISA EM INSTITUIÇÕES HENRIETTE T. P. MORATO Buscar aproximar a Psicologia, como ciência, da Filosofia, como teoria do conhecimento, é tarefa im-pertinente. São modos de pensar que nem sequer caminham em paralelo. Cumpre ao filósofo resgatar o caminho próprio da Filosofia, enquanto ao psicólogo talvez seja possível caber compreender o modo de ser psicólogo, como humano que é, não pelo modelo de cientista da Psicologia. Desse modo, este trabalho se resume a uma ousadia: procurar articular algumas considerações da Fenomenologia (analítica) Existencial de Heidegger e a ação psicológica, no modo como ocorre na prática e na pesquisa em instituições. O caminho a percorrer envereda pelos existenciários e, a partir deles, poder compreender o modo de ser clínico pela sua acontescência em campo. Nesse percurso, recorre-se a uma tese de doutorado (ALMEIDA, 2005) orientada pela autora, que buscou compreender Aconselhamento Psicológico por uma leitura fenomenológica existencial. Entremeando, será tentada uma interpretação, tomando por base alguns textos anteriores a respeito de compreensões da prática e pesquisa em projetos de intervenção em instituições. I - Ser clínico: uma possibilidade de leitura fenomenológica existencial O termo clínica, provindo do grego kline, significa cama; assim clínica significaria debruçar-se sobre alguém que está ao leito. Clinicar seria debruçar-se ou inclinar- se para poder apreender e escutar aquele que precisa de cuidado em mal estar. Clínica, então, seria uma modalidade da solicitude1, fundamentada na escuta. De fato, ser-com implica em não apenas fazer com outros, mas também através e por eles, já que, ao preocupar-se com possibilidades de outros, o ser-aí realiza também suas 1 Solicitude diz respeito a procurar: composta pelo prefixo pro, que se refere a projeto no sentido de proyectum, traduzido por lançado adiante e por curar, em sua concepção de cuidar. Sendo o ser-aí é sempre projetivo, na acepção de lançar-se adiante em direção a possibilidades, equivale a dizer que o homem é um realizador de possibilidades, sempre conjuntamente com outros. 2 possibilidades. Nesse sentido, psicólogos da saúde e da educação são íntima e explicitamente engajados nesse ofício: o ser psicólogo deve compreensivamente mover-se no âmbito do ser- com, no modo de ser clínico, pois o outro é sempre alguém com o qual o psicólogo profissionalmente se pre-ocupa: solicitude não é ocupação, mas pre-ocupação. Partindo de considerações de Heidegger (1927/1984) acerca da solicitude, há duas formas básicas e extremas: a do modo da substituição e a do modo liberador. No primeiro, toma-se o lugar do outro em sua tarefa de cuidar de ser, retirando-o de realizador de suas próprias possibilidades. Refere-se a quando o profissional da saúde e da educação, ao invés de acompanhar seu cliente em suas possibilidades, como testemunha, compreende-o por interpretações de diversas teorias explicativas, ou por prescrições tecnicamente padronizadas, por atitude autoritária portadora da verdade sobre a experiência: substitui o cuidado do outro por si mesmo. Já no modo liberador, compreende-se o outro diante de suas próprias possibilidades, encarregando-o de seu poder-ser para conduzir-se em dada situação, pertinentemente a seu ser-no-mundo. Na experiência cotidiana, o primeiro modo, na esfera da saúde, revela-se por um saber fazer algo a alguém, intencionado atenuar o sofrimento do outro. Quanto ao segundo, quando uma supervisão educativa atenta ao modo como o supervisionando é tocado pelo cliente, possibilita que o psicólogo se compreenda nesse encontro, para poder dar seu testemunho como possível encaminhamento de uma história a seus cuidados; atento ao modo como é mobilizado em sua experiência com o supervisionando, o supervisor dirige sua atenção na ressonância estabelecida entre este e seu cliente, pois cuida do outro se dirigindo tanto a cenas do passado, quanto ao futuro, dando lugar à paciência, visto que a solicitude apresenta-se sob viés temporal. Desse modo, como ser-com, o ser-aí é para si mesmo e para outros, circulando o mundo da alteridade com o qual se implica e refere na teia de significatividade na qual é. Aparece em seu estado de aberto em seu próprio ser-no-mundo, porém também é do lançado ao mundo pelo outro, sempre o descobrindo numa certa mundanidade à qual se reporta: compreendendo o outro, o eu sabe de si mesmo através do outro em seu mundo. Assim, o eu nunca é dado a partir de si mesmo: é um poder-ser que desenvolve possibilidades dadas pelo mundo, pois que lançado, o ser-aí aceita ou refuta os modos através dos quais os outros cuidam de ser, identificando-se ou distinguindo-se. Por esse modo de ser, percebe diferenças ante a alteridade, simultaneamente desenvolvendo características específicas e organizando estilos que o diferenciam dos outros, nem sempre se revela como autenticidade. 3 Assim, a condição de ser-em e de ser-com do ser-aí recolhe e expressa, como logos, a maneira de ser do homem: pode dizer algo porque já recolheu, reuniu, juntou esse algo junto a outro, (de legen em alemão como colocar junto). Como conhecimento, recolher refere-se a captar o que foi visto, sendo possível falar sobre: sobre algo que se apreendeu, escutou. Desse modo, compreender, dizer e escutar são muito próximos e articulados, expressando o modo pelo qual o eu já se encontra no mundo junto a outros: o eu sempre é numa forma afetiva, humoral, de encontro com o que está acontecendo, constituindo o seu ser-no-mundo uma fatia de sua história. Para Almeida (2005, p. 178), “O encontrar-se, condição ontológica da manifestação ôntica do encontro humoral com o que há no mundo, surge da possibilidade do homem como ser-no-mundo, sendo os humores a manifestação pela qual a vida é dada ao humano”. 1. Ser afetado Uma escuta clínica atenta aos estados de humor, sendo possível, através deles, compreender o aí (mundo) no qual cada um está situado: medo em mundo ameaçador; mau humor em mundo que falha; alegria em mundo vibrante; angústia em mundo inóspito e carente de sentido, revelando o cotidiano transitar de uma emoção para outra. A este modo Heidegger (1927/1984) denomina de indiferença afetiva cotidiana: movimento com emoções sem grandes diferenças, uniformizadas e sem ressonância intensa. O estado de humor, como abertura para o mundo, revela o modo do ser aí nesse mundo: é nessa afetividade que está mais plenamente entregue a si mesmo como quem de fato é, e não pela idéia que tem do mundo. Através da emoção, o eu situa-se no mundo, compreendendo tal situação, pois a apreensão do mundo dá-se através do modo pelo qual o eu nele se insere. Emoção, por emergir do mundo, não é algo interno, mas sim se apresenta através do próprio ser-no-mundo: a emoção refere-se a como se está no mundo em tal preciso momento. Se as emoções expressam a situação na qual o eu já está imerso, mostrando sua circunstância, considerar a emoção algo intrapsíquico de um sujeito, como pregam teorias psicológicas, é algo a ponderar. Na constituição de ser aí, o mundo fere2 o eu, que, por sua vez, a ele se refere, respondendo na justa medida em que é ferido. Afetando o eu, o mundo lhe 2 Ferir, do latim ferre, em sentido próprio é levar, carregar, suportar. Assim, o mundo é levado para o eu, impactando-o; por sua vez o eu é trazido ao mundo, respondendo a esse impacto. (Webster's Third New International Dictionary, Unabridged. Merriam-Webster, 2002. http://unabridged.merriam-webster.com in 12 Aug. 2011). 4 é revelado nesse toque, implicando que o real só é real por ser experienciado de certa maneira, enão originariamente, modelado por conceito. “Implacavelmente, há uma realidade que se abre por uma emoção e uma emoção que se esculpe numa realidade” (ALMEIDA, 2005, p. 182): a emoção abre o real, que, por sua vez, dispõe o eu em determinado estado de ânimo. Na ação psicológica, pela escuta clínica pode-se captar que o mundo do cliente/narrador, se converte numa ameaça por feri-lo ameaçadoramente, respondendo com temor. Assim, compreende-se que não há um ato de vontade pelo qual se constitua uma emoção para ser vivida: a emoção convoca o eu, numa dada circunstância e o eu é por ela colhido. Tocado inapelavelmente pelos acontecimentos mundanos, “ao eu é entregue a responsabilidade de ser, respondendo a uma dada situação, mesmo que cale e não aja.” (ALMEIDA, 2005, p. 182) Mas como essa condição pode expressar-se e ser compreendida pela ação psicológica? No entanto, apesar de ser colhido, é o eu quem vive essa emoção: o eu é inescapável de si através de seus humores e dores. Inclinando-se ao eu com dores, o clínico não apreende um funcionamento psíquico perturbado por vicissitudes ou traumas, mas uma situação dolorosa composta por circunstâncias e por outros. Apresentando-se na condição de uma situação, na qual o eu é testemunhado no momento preciso de seu sofrimento e procura por cuidado, o Plantão [Psicológico] é um espaço possibilitador para que a situação do narrador possa desvelar-se em inteireza e complexidade articuladas: debruçando-se sobre a narrativa, o psicólogo pode silenciosamente escutar os desvios de rumo de uma história, que clama por um sentido pertinente. (ALMEIDA, 2005, p. 182) Ser quem se é diz de caráter de ser e aparecer para si mesmo já acolhido numa dada existência, numa determinada circunstância, e não numa realidade dada como algo independente do eu. Pelo olhar clínico, apreende-se que a rejeição é um tipo de acolhimento, pois o homem é sempre lançado acolhido, mesmo que seja, em demasia adversa, numa certa facticidade enigmática, já que o eu é abrigado de tal modo que só pode ver o que seu olhar permite e ouvir o que é possível. (ALMEIDA, 2005, p. 183) Encontrar-se é a condição de possibilidade pela qual o eu percebe sua facticidade: por seus humores, o eu apanha-se em sua facticidade, atualizando como é ferido e como se refere, por ser uma abertura numa facticidade, de uma facticidade e para uma facticidade, constituindo-se no modo pelo qual o eu é no mundo já acolhido3. Desse modo, na ação psicológica, debruçando-se solicitamente sobre uma história que clama por um redestinar-se, o clínico é atingido pela experiência narrada, constituindo sua própria experiência pela 3 O ontológico refere-se à estrutura de possibilidades e o ôntico à configuração das possibilidades. Só se chega ao ontológico pelo ôntico: compreende-se ontologicamente aquilo que se apanha onticamente, ou seja, o que está em manifestação. Assim, pela condição ontológica do encontrar-se, o eu se encontra consigo mesmo inapelavelmente. 5 referência a ela: sua compreensão do cliente dá-se por ressonância e não por empatia (MORATO, 1989). Isto porque a compreensão empática diz poder compreender o narrador indo ao mundo fenomenal da experiência “como se fosse ele”, assim, promovendo uma objetivação da subjetividade tanto do cliente quanto do psicólogo. Fenomenologicamente, compreende-se o outro tal como se foi por ele afetado, dada a condição de ser-com. Numa entrevista de Plantão, implica pôr-se diante do outro para trabalhar com o que está acontecendo, primeiramente, tal como4 se é tocado pelo cliente: a compreensão é originariamente afetiva e acontece no encontro do psicólogo com o cliente, acontecendo no entre, por ressonância. Assim, o encontrar-se do plantonista com o cliente não pode ser tomado como recurso para mero acolhimento afetivo incondicional, mas sim pelo olhar do tratamento ontológico do encontro: por sua própria condição de ser, se encontra com outro e a si mesmo. Ou seja, por não ser técnica de aproximação e acolhimento, “o encontro toca a historicidade: manifestando-se pelo passado, interroga-se pelo que está comprometido no presente e futuro. O encaminhamento dessa interrogação atrela-se ao estado de ânimo de cliente e plantonista, afetado pelo testemunho narrado.” (ALMEIDA, 2005, p. 184) É a experiência humorada/afetiva que abre a possibilidade do ser-aí deparar-se consigo mesmo, pois a emoção efetua a realização do real, dando significatividade a tudo que é: é por ela que o ser humano se dá conta de quão intransferível é sua possibilidade de ser, expressa no próprio estar presente num mundo aí lançado: o eu sempre está lançado numa situação, num certo sentido norteador, aberto pela emoção. Nesse sentido, a emoção é já uma forma de compreensão apesar de nada ter a ver com a racionalidade: ela é um modo específico de entendimento. O estar lançado não é caótico, pois o eu já se descobre numa situação acolhido por e nela, mesmo que sob a forma da rejeição, o que implica que há vários modos de acolhimento acontecido num entrelaçamento, no qual o eu, circunstancialmente, se experiencia. Todas as relações humanas são, assim, conotadas pelas emoções, o que alude a que o procurar pelos outros, por exemplo, a solicitude do conselheiro ou psicoterapeuta, sempre se dá numa relação sentida e, por isso, consistente. (ALMEIDA, 2005, p. 186) Através das emoções, o eu descobre-se ser-no-mundo com outros, não podendo deixar de considerar sua circunstância e facticidade. Talvez por isso, na entrevista psicológica clínica, a referência direta aos sentimentos do cliente propicia um alargamento da 4 “Tal como” pode ser compreendido como a coisa mesma hursserliana: o real validado pela experiência. 6 compreensão do que está experienciando, favorecendo-o não paralisar-se em uma dada situação. Citando Arendt (1993), é pela compreensão que o homem se reconcilia com o mundo, tornando-o familiar e novamente transitável. Ou seja, descobre-se no mundo, entendendo primeiro a mundanidade, os outros e si mesmo, pois que as emoções se originam do modo de habitar o mundo, modo esse cultural. Testemunhado pelo psicólogo, o cliente compreende que seu destino não é dado a priori nem pelo livre arbítrio, já que habitar o mundo orienta sua existência: pela facticidade do mundo e emoções que o afetam, o eu entende-se como alguém que tem direção, isto é, se destina por ires e vires na coexistência, percebendo-se na espacialidade do existir por aproximações e afastamentos. Refere-se à possibilidade do homem em dirigir-se – um sentido. Capturando o homem, o estado de ânimo/afetabilidade permite que este permaneça sempre referido a algo por aproximação ou distanciamento, porém sempre aberto a uma direção. As emoções chamam ao sair (cair) e ir para o mundo, tornando-o público na co- existência: embora atente a si, está voltado para o mundo. O único humor que não procede do mundo é a angústia: “sua proveniência é do poder-ser mais peculiar do eu, o que a torna no exclusivo estado de ânimo que o afasta do mundo, aproximando-o de si mesmo”. (ALMEIDA, 2005, p. 186). Desse modo, enquanto as emoções revelam a condição humana de aberta ao mundo, a angústia traz a experiência da ausência de mundo (do nada): “se todas as emoções possibilitam que se habite o mundo, a angústia nasce da ocorrência de um mundo inabitável, o qual clama para ser reabitado; a angústia é uma requisição para que o eu, sem morada e carente de sentido e destinação, habite de novo o mundo”. (ALMEIDA, 2005, p. 187) A vida cotidiana, pautada pela ameaça, abre ao homem compreender sua existência como uma carga/peso que pode esmagá-lo, provinda de algo do mundo ou junto aos outros. Ademais, nada nem ninguém pode defendê-lo contraa morte: sempre está lançado em perigo, sendo sua condição ontológica compreender tanto ser quanto não ser. Ao assumir atitudes de prevenção em relação a sua existência, a proteção de si mesmo não é uma aproximação de si mesmo, mas de dirigir a atenção àquilo que, provindo do mundo, o ameaça. Focado no perigo que pode atingi-lo, não foca si mesmo como segurança; ao contrário, há incerteza quanto a acontecimentos no mundo que podem feri-lo. Uma entrevista de Plantão é uma situação acolhedora na qual, às avessas desse exemplo acima, algo pode ser desmascarado do falso caráter ameaçador, emergido na circunstância de uma existência, na qual, havendo uma preponderância absoluta do medo, se teme por qualquer passo em direção à assunção de possibilidades mais 7 próprias. Esse desmascaramento pode abrir o aconselhando num outro estado de ânimo, o qual permite que esse algo apareça numa outra perspectiva; o aconselhando pode deixar-se tocar de uma nova maneira pelo que antes só se apresentava ameaçadoramente. Seu ver-em-torno via como temível quaisquer desses passos, porque seu estado de ânimo hegemônico era o temor. Nesses termos, cada emoção dá liberdade a tudo que se apresenta segundo o tipo de abertura que proporciona, conferindo-lhe, assim, consistência. (ALMEIDA, 2005, p. 194) Em outras palavras, algo temido nem sempre se apresenta assim; diz respeito a tirá-lo do lugar no qual se apresenta pela emoção de temor; temer é dar liberdade, pois deixar ser e aparecer é aletheia. Nesse sentido, contrariamente ao pensamento cartesiano, o verdadeiro se dá a ver pelas emoções: o que é verdadeiro de algo se apresenta torna-se o que é, aberto pelo que é sentido e não pelo que é pensado. A sensação experienciada é aletheia, dando liberdade para o que é pelas emoções. É ação psicológica abrir o cuidar de ser sob própria responsabilidade como bem- vindo, levando o cliente a assumir-se como referência de si mesmo para possibilidades dada pela situação: destinar-se em apropriação. Porém, sendo temerária a angústia que abre à propriedade, o cliente pode respoder a ela com desespero, des-responsabilizando-se por si mesmo. É próprio da ação psicológica acompanhar o cliente paralisado em projetar-se, abrindo o benefício da dúvida quanto à “certeza temerosa” experienciada. Assim, a ação psicológica na prática seria um modo do psicólogo procurar pelo cliente que cuida de ser si mesmo, testemunhando a narrativa do vivido como cuidado (MORATO, 2006). Nesse sentido, fenomenológica existencialmente, experiência diz do ser-aí como abertura temporal: “diz respeito a um dado projetar-se, pelo qual, vindo a si, o eu volta a si, retomando determinados modos do sido e, assim, se torna presente numa dada situação, atualizando uma determinada ação.” (ALMEIDA, 2005, p. 199) Como testemunha de uma narrativa, o psicólogo é afetado pelo que é experienciado pelo cliente: é próprio à clínica psicológica agir debruçando-se na direção do encontrar-se do cliente e do psicólogo, desvelando-os a si mesmos via a compreensão originária de si, manifestada pelo modo como se é tocado em cada situação. Na mesma direção, o psicólogo pesquisador encaminha sua investigação pelos vestígios da narrativa do pesquisado, compreendida como elaboração de experiência, ao mesmo tempo em que também registra suas sensações e compreensões prévias em “diários de bordo”, a fim de compor uma cartografia do contexto pesquisado (MORATO, 2007). Resgatando Heidegger (1927/1984), Almeida (2005, p. 201) diz que a “clínica só pode acontecer à medida que já se está aberto numa afetação, possibilitando um acesso direto 8 à própria historicidade e não personalidade e identidade do eu; o conselheiro deve permanecer atento à abertura do aconselhando, atentando à maneira pela qual é tocado nessa relação, o que se constitui numa compreensão originária.” Para Gendlin (1978/1979), a partir de Heidegger, a propriedade da afetabilidade (befindlichkeit) abre a possibilidade da ação psicológica como cuidado por abrir ao psicólogo experienciar em si a própria manifestação de disposições humorais, por ele denominada “felt-sense”: o real dado no próprio ato de experienciar. (MORATO, 2009). Seria legítimo dizer que a ação psicológica junto ao singular ôntico possibilita aproximar-se do ser humano como tal, isto é, a humanidade de cada um? 2. A compreensão e interpretação Compreender refere-se à apreensão do que está na abertura junto a outros; ou seja, diz do a fim de que da condição de existir, abrindo ao homem seu poder-ser e a dimensão de ser como projeto do ser-aí. Nesse sentido, o compreender acompanha sempre o encontrar-se: não há humor que já não seja compreensivo, como também não há compreensão que não seja humorada. O aberto ao mundo é compreensão no sentido originário, já que destinar-se ao mundo é destinar-se a si mesmo: ser-no-mundo é abertura para o que o ser-aí se interessa. Nessa abertura encontra-se a significatividade/interpretação do mundo, apresentada pela cultura (costumes, moral, leis, saberes); o compreender já está aí no fenômeno, uma vez que o compreendido é o desvelado. Sendo o compreender projetivo (aquilo a que se dirige), numa intervenção5 psicológica isso se pode se mostrar quando o cliente se vê possível, não nas referências, trazidas, mas em cada gesto seu em relação a elas. É tarefa da ação psicológica clarear que, antes de ir em direção a algo, o eu vai em direção ao que lhe é possível ser, diretamente implicado ao cuidar concreto realizado a cada momento: é pelo cuidado que se abre ao poder ser (realizar possibilidades), sendo o real possibilidades e não necessidades. Assim, vir a ser através do cuidar, confere à humanidade do homem o caráter de inauguração. Desse modo, numa ação psicológica procurar ser testemunhado em sua experiência pode ser manifestação do poder-ser re-clamando re-destinar-se a re-inaugurar sua história. Isto porque o possível é o que ainda não é, mas cujo significado pode ser antevisto pela compreensão. 5 Intervenção como interpor os bons ofícios. (engage to look after or attend to : accept the responsibility for the care of) (Webster's Third New International Dictionary, Unabridged. Merriam-Webster, 2002. http://unabridged.merriam- webster.com in 4 Oct. 2011). 9 A possibilidade já é anunciada no contexto em que a existência é lançada, ou seja, numa circunstância; podendo ser a partir do que já lhe é dado, o eu não é livre de sua circunstância, porém para poder ser além. O eu é livre para resgatar possibilidades ainda não configuradas; voltando-se para a realização do que ainda não é, o agir humano instaura a liberdade. Compreender é abertura para o possível, isto é, projetar-se sobre possibilidades, apreendidas não por entendimento, abrindo o poder-ser para responder em situação: trazer à luz o possível do oculto, não como saber/conhecer, mas como abarcar o sentido da existência humana, ou seja, pelo modo como vai se constituindo pela vida, situado num mundo junto a outros. Testemunhado pelo psicólogo, o cliente pode expressar como se encontra no mundo em relação aos demais, avaliando o quão está na direção ou não de seu poder-ser e o quão necessita de certa sujeição, necessária para prosseguir em seu projeto. É compreendendo em situação que se faz possível ao homem desconsiderar seu modo próprio de ser por convenientes determinações culturais. É nesse sentido que também se encaminha a ação psicológica em prática e pesquisa em instituições. Para este presente trabalho, recorremos a projetos, realizados por laboratórios universitários a partir de solicitações de instituições (públicas) de saúde, educação e segurança pública, de atenção psicológica tanto para usuários e seus familiares como para funcionários e profissionais que nelas atuam. Iniciados em2000, mantiveram-se alguns por 8 anos, enquanto outros se iniciaram em 2007 e ainda se mantêm. Desfiando a prática psicológica tradicional (MORATO, 2009) constituíram-se em elementos para pesquisa interventiva participativa (SZYMANSKI e CURY, 2004), ambas relendo a ação psicológica pela ótica da Fenomenologia Existencial. O questionamento implicava em considerar precisamente a compreensão da condição humana em suas dimensões de ser-aí-no mundo- com outros, a qual seria possível ser contemplada visto a ação ocorrer numa instituição, podendo se dar a ver bem como a todos os atravessamentos manifestos que implicam em seu modo de ser interpelado (MORATO, 2008). Sendo o poder-ser direcionado a sentido e duração, a compreensão se manifesta temporalmente como interpretação, decodificando o compreendido como possibilidades projetadas no compreender. Dizendo respeito ao modo pelo qual tudo se apresenta, constitui- se num como, sendo a interpretação aquilo que é. Existencialmente, a estrutura do como é uma interpretação articuladora, enunciada por proposição. “Sucintamente, a compreensão do possível desdobra-se temporalmente na interpretação, que sustenta a possibilidade de 10 entendimento da proposição, a qual pertence à ordem da língua e pela qual se exibe a interpretação.” (ALMEIDA, 2005, p. 203). No contexto da ação psicológica, ocorre um jogo interpretativo entre psicólogo e cliente através de enunciados como expressão de dada interpretação, o que permite ao cliente elaborar possibilidades por ele projetadas. Assim, interpretar não é obtenção de informações para explicar “funcionamento” mental por teoria explicativa. Refere-se a preencher lacunas presentes numa forma de compreensão do projetar-se desse cliente, manifesto em seu temporalizar-se, ou seja, de que modo um futuro incerto remete a eventos do passado dificultando sua atualização. Isto porque o homem já é imerso em trama de significações culturais interpretadas: o que a ele se abre já se abre num fundo de cultura que demanda compreensão prévia interpretativa. Assim, A interpretação permite que qualquer coisa que seja se mostre em sua significatividade. É pelo ver-em-torno que o mundo sempre já compreendido se interpreta, o que remete a que o à-mão é clareado pelo enxergar da compreensão em todo seu contexto de significações. Essa interpretação já está dada a priori a qualquer ver-em-torno, possibilitando, assim, seu referenciar-se; apreendendo a serventia, o ver-em-torno decodifica o que se apresenta. (ALMEIDA, 2005, p. 209). Tudo que é existe numa totalidade de nexos significativos, no contexto prévio (de antemão) da tradição, adquirindo um caráter de utilidade e uso (à-mão). Desse modo, ver de antemão é reconhecer que existe algo da tradição que também constitui o modo humano de ser, implicando uma concepção prévia da trama de significações: existir em uma situação atravessada pela cultura conduz a interpretações. Nessa medida, a ação psicológica, inclinando-se à narrativa do cliente, é interpretativa por requerer identificar como a tradição e a trama de significações são constituintes de seu modo de ser. É sua tarefa interpretativa dar a ver como concepções culturais podem estar conduzindo à ausência de sentido na existência. Sentido é a direção, o rumo para onde se vai, estando, assim, atrelado ao destinar- se; o destino último da existência é a morte, última paragem do ser. Ainda que não visível em si, o sentido é uma armação sem a qual o mundo não se arruma, organiza; configurando-se somente na dimensão humana, todos os demais entes são carentes de sentido. Fenomenológica existencialmente, a pergunta pelo ser não se dirige ao que é, porém ao sentido de ser; por esse viés, a pergunta pelo ser não passa pelo significado dos entes, os quais só fazem sentido quando são apanhados em modos de existir, desenvolvidos pelo homem. O sentido em si é inarticulável; sendo um fundo invisível, atua como um fundamento sobre o qual tudo o que é pode aparecer em sua especificidade. (...) só numa destinação é que algo faz sentido. Nessa medida, já que o sentido é inerente à estrutura da compreensão, o 11 que não faz sentido não chega a ser compreendido; o estado de compreensível de algo apóia-se sobre um fundo, que é o sentido. (ALMEIDA, 2005, p. 213) Pela proposta fenomenológica, o sentido é inerente ao projetar-se humano: destinar-se. Vir a ser diz de algo manifesto, mas desdobrando-se a um poder-ser. O que tem sentido é a existência do homem, pois apenas ele pode compreender sua direção, imprimindo modos que são e como podem ser: sentido é a direção na qual o humano articula os fatos de sua vida. Dessa forma, desorientar-se expressa ausência de sentido, que clama pela necessidade de encontrar-se. É este o preciso momento que a ação psicológica entra em cena: a emergência da urgência por sentido. Presta-se à demanda do cliente para encaminhamento de si testemunhado por outro, o psicólogo, inclinado à sua historicidade. Por outro lado, mas na mesma direção, na supervisão do psicólogo, como situação de aprendizagem, atentamente inclinada à compreensão do cliente pelo supervisionando, a ação psicológica do supervisor abre um “ver além”6: dirige-se ao modo como o supervisionando foi tocado na situação do atendimento e de supervisão, como forma de dar a ver como através de sua disposição afetiva abriu-se uma compreensão interpretativa do cliente, e pelo qual o cliente surge em sua singularidade. Contudo, ser tocado, compreender/interpretar não esclarece a questão do sentido se não houver uma sinalização responsiva a essas manifestações. Sendo no mundo com outros, o compreendido desdobra-se pela ordem da língua em comunicação: apreender e responder o que se mostra por palavras, para que outros apreendam o que foi apreendido, tornando-o comum, pois o dizer “torna presente tudo o que é para o ser-no-mundo, que sempre coexiste com outros.” (ALMEIDA, 2005, p. 219), ampliando tanto o próprio ouvir quanto o mundo como mundo comum pela significação comunicativa. Assim, numa situação de ação psicológica de prática e pesquisa em instituições, o testemunho do psicólogo, atento ao dizer narrativo de quem o solicita, possibilita um recolhimento para ampliar a compreensão de circunstâncias de vida por meio do desvelar sentido para re-encaminhamento de direção. Nesse sentido, pela ressonância afetiva ao expresso junto a outros e com ferramentas à mão, uma interpretação esclarecedora da experiência vivida pode se apresentar e sugerir a continuidade de uma história. Por esses projetos, a ação psicológica tem desvelado como o falar só consegue permitir que palavras possam conduzir a uma interpretação caso se apresentem apontando 6 Sentido etimológico de supervisão, encontrado na expressão latina super videre, mas do grego theorein (ato de ver, contemplar). (MORATO, 1989). 12 direção/sentido. Porém, palavras podem indicar sentido quando partem do sentimento/disposição afetiva, referindo que ser afetado/sentir é o fundo/sentido da palavra. O sentir abre-se como um sentido, em que a existência se põe, sendo o aí em que se forja o falar. De novo, fala-se do Plantão e também da supervisão como um exercício do logos, já que, nessas situações, pelo jogo interpretativo, se evoca o sentido e não o pensado, o qual, para adquirir tal condição, precisa destacar-se do sentido para tornar-se ante-os-olhos, num distanciamento sem envolvimento; o jogo interpretativo só pode acontecer na emergência da afetação do conselheiro, psicoterapeuta, supervisor, aconselhando, analisando e estagiário, dando-se numa absoluta proximidade, em que o envolvimento elicia a confiança. (ALMEIDA, 2005, p. 224) Nesses termos, a ação psicológica possibilita o clareamento de uma situação para tomada de decisões,testemunhando uma narrativa de história lacunar. O narrar, vindo por meio de conteúdos, vê-se atravessado pelo joga da interpretação como historicidade, dando a ver-se um entre que nem sempre conduz a um destinar-se pertinente, mas sim à lacuna de sentido. Por ser atravessado pela cultura, o homem é lançado no âmbito da pluralidade; contudo, buscando ser quem é, como singularidade, nem sempre suporta a angústia de seu ser ser-no-mundo com outros, levando-o a rupturas em sua história. Pela ação psicológica, é possível “reintegração pelo jogo interpretativo, que, operando no âmbito do desvelamento, traz à tona o fio de sentido seguido” (ALMEIDA, 2005, p. 221), que possibilita ao cliente recorrer a seus próprios recursos para ir adiante rumo a ser singular. 3. Linguagem: dizer e ouvir para “fazer sentido” Para Heidegger, o falar origina-se de logos, do verbo legein, cuja tradução é falar. Simultaneamente ao sentir e compreender, o falar é originário para o homem: é por ele que se expressa a articulação entre ser afetado e compreender, dando a ver o sentido. É fundamento ontológico-existenciário da linguagem, pelo qual o mundo dito e interpretado pelo homem expressa articuladamente sua significação: logos é fala/ expressão de compreensibilidade do mundo, por reunião e separação de palavras como significado, articular ou desarticular sentido/significações. Na ação psicológica clínica, o falar é modo fundante de procedimento. Inclinado à narrativa, o falar se apresenta como um falar sobre ou a respeito de, ou seja, daquilo do que se fala, num primeiro momento. Entretanto aquilo do que se fala se fala a outro, constituinte do ser-com: o cliente fala de experiência ao psicólogo. Porém, ao falar deixa entrever algo não 13 presente no falado, mas ocultamente expresso, como se a própria fala falasse por entre lacunas de compreensão (CRITELLI, 2002). Nesse sentido, a fala é comunicação, revelando intenções de quem fala, por outros modos que não por palavras: noticia algo. É esta a brecha da possibilidade interpretativa da ação psicológica. Desse modo, fala é comunicação, pois o homem é no mundo falando com outros, abrindo possibilidade para o que é comum entre homens: aquilo que é familiarmente compartilhado em co-existência, condição de ser humano. Ser psicólogo expressa a especificidade mesma do ser-com no sendo-com: o cuidado a que se dirige é solicitude pela pré-ocupação com o outro em seu padecimento. É essa a tarefa da ação psicológica: não se desincumbe de sua ação de cuidar limitante7, balizada, circunscrita numa situação de atendimento, procurando pelo outro naquilo que, nessa situação, possa ser testemunhado, o que possibilita um esclarecimento norteador ao aconselhando; assim, não se trata de ocupar-se com o aconselhando, fazendo um mero encaminhamento nos moldes de uma triagem. Numa entrevista de Plantão, a comunicação não se dá como transporte de mensagens e vivências entre aconselhando e conselheiro; o ser-com, condição de ser do ser-aí, já é patente nas manifestações do encontrar-se e nos desdobramentos temporais da compreensão, que se dão em concomitância, o que é expresso no jogo interpretativo pela fala. (...) A fala articula tanto o sentido fundado no sentir quanto o desdobramento das possibilidades projetadas no compreender, assim, vinculando o encontrar-se ao compreender e alimentando o ser comum. (ALMEIDA, 2005, p. 224) Nessa direção, a experiência da comunidade apresenta-se dentro de uma circularidade: articula-se pelo co-compreendido e co-sentido, estofo do jogo interpretativo numa ação que se proponha terapêutica ou educativa. Ao falar, o que se comunica é também uma notificação, manifestada pelo modo (modalidade) como se expressa a forma como foi tocado pelo mundo e como o compreende. A fala só pode articular uma compreensibilidade por sua dimensão do ouvir, constituinte básico do compreender, como apreender com. O ouvir dispõe um proceder em relação ao outro: acompanha-o, nega-o, não o ouve, acolhe-o, opõe-se a ele; sem o ouvir, não há acolhimento das crenças embutidas no estado de interpretado, impossibilitando a comunidade humana, pois ninguém ouve o não compreendido. É a interpretação, desdobrando o compreendido, que é a expressão do significado da realidade, tendo linguagem como organizadora do mundo. A fala difícil e raramente traz o estranho, já que é a articulação do já interpretado. 7 O substantivo limite remete-se à fronteira que perfaz um horizonte a partir do qual algo começa a se fazer presente. 14 Se o ouvir ocorre como possibilidade fundante do humano, o escutar é uma sua realização; nunca se escuta ruídos puros, porém, já imbricados na interpretação já articulada. A escuta permite a vinculação entre os homens, pois o ser-com acontece articulado pelo ouvir: o que está pendente é aberto pelo escutar. Contudo, o ouvir pode realizar-se como um mero escutar, não levando adiante qualquer crença e interrompendo a comunicação entre os falantes. A ação psicológica, como debruçar-se sobre o sofrimento do outro, constitui-se em solicitude apoiada na escuta: o ouvir radical. Acompanhar o cliente na expressão do que lhe dói, urge apreendê-lo em sua realidade e sentido do existir, é escuta que pode permitir se manifestarem certos elementos norteadores vindos da tradição, mas que emperram a singularização. Clinicamente, nunca se escutam queixas puras, mas já mescladas no caldo interpretativo de sua realidade, estado de interpretado no qual se forjam as relações da vida em situações com outros, em família, social e no trabalho. Também, é pela escuta que se estabelece a relação com o psicólogo, fundada na confiança pelo bom ouvinte. A escuta clínica, pelo ouvir, é fundamental em qualquer situação demandante de ampliação da compreensão. Em projetos de atenção psicológica em instituições, nas modalidades de Plantão, Psicogiagnóstico Colaborativo, Plantão Psicoeducativo, Supervisão de Apoio e Oficina de Recursos Expressivos, o ouvir se apresenta como abertura à compreensão de mal estares em relações situadas, indicando caminhos para aprendizagem significativa como direção/sentido. O falar propriamente dito é o falar com outros, o que se dá pela enunciação de proposições; é resposta a uma escuta que já realizou a articulação do interpretado, tratando-se de uma contra-fala, que faz parte de um mesmo circuito, como complemento do compreendido. Nesse sentido, o falar propriamente dito, tomado como contra-fala da escuta, é um dizer; contudo, esse falar pode assumir as vezes de um mero falar, associado a uma mera escuta. (ALMEIDA, 2005, p. 225) O dizer do psicólogo se apresenta como contra-fala8 própria ao jogo interpretativo. Nesse sentido, responde completando e abrindo possibilidade de ampliar a compreensão emergente do cliente; assim, apreende temporalmente a experiência narrada, conduzindo à indicação de sentido. O dizer responsivo do psicólogo, pela escuta primeira, completa o círculo da com-fiança (fiar-se-com): “ser fiador do outro no encontro, o que 8 Questiona-se “contra-fala”, na medida em que “contra” pode ser compreendida como “contrária” 15 acarreta que se acredite nesse dizer que, por ter recolhido, expressa aquilo que é, constituindo-se na contra-fala do bom ouvinte.” (ALMEIDA, 2005, p. 225) Outra dimensão da fala, além do dizer e ouvir, diz respeito ao calar, que colhe e acolhe o ouvido. É uma forma de dizer, articulando o compreendido, embora se revele no silenciar, não expressando o compreendido em palavras, pois o compreensível, para além da palavra, pode ser apreendido pelo silêncio: é a silenciosidade como fala. Silêncio não é mutismo, pelo qual nada se tem a dizer. Falando sem palavras, no silêncio, ocalar refere-se a uma compreensão que “calou fundo”; cala porque corta a palavra pela genuinidade da interpretação. A compreensão funda, não passível de apreensão em palavras, debuta no silêncio: ao genuíno falar compete o calar, no qual fulgura o sentido. O insight, acontecimento fundante em qualquer situação terapêutica e de aprendizagem, ocorre na silenciosidade; pelo jogo interpretativo, abre-se, caladamente, ao aconselhando a direção em que seu existir navega, possibilitando-lhe uma visão clara e genuína de seu mundo e o discernimento de seu poder-ser nesse mundo. (ALMEIDA, 2005, p. 228) Sendo a condição fundante do homem ser-em, é um aí aberto, ou seja, o si- mesmo, como centro dessa clareira, pode exercer o logos que, ouvindo, dizendo e calando, tira o véu e traz à luz a coisa mesma como realmente é. Por recolher e expressar, falar se constitui num desvelar o mundo, os outros e si mesmo. Assim, na situação de ação psicológica clinica e/ou de aprendizagem acontece o exercício do logos como aletheia. O Plantão Psicológico e a Supervisão de Apoio, modalidades da ação psicológica, ocorrem como um acontecimento; trata-se de uma paragem na qual o psicólogo, debruçado e atento à narrativa, testemunha o entre, ou seja, a condição do cliente de ser em história. Através do jogo interpretativo, é possível deixar ver um sentido na temporalização de uma experiência: “uma história oculta, mas repleta de lacunas, agora passíveis de serem perscrutadas pelo exercício do logos”, revelando filamentos desconectadamente conexos. Dá-se a ver que o falar não é apreensível por análise formal, mas sua acontescência é própria ao humano, e pela qual constitui sua humanidade em seu falar cotidiano. Como cada um de nós se humaniza pela forma aprendida em dada cultura, somos também, ao mesmo tempo, todos nós e nenhum. Desse modo, o homem tem na fala a possibilidade de se inserir no mundo, expressando/comunicando sua compreensão de mundo comum pelo falar cotidiano, que a todos captura. Nesse sentido, esse falar é impessoal, dizendo respeito ao que Heidegger denomina por impropriedade, que exerce imperativo domínio no humano. Se a questão fundamental é ser humano como se é humano, a fala como 16 falada no cotidiano, por todos nós, a fala imprópria, é aquela que possibilita uma compreensão, por “pôr em andamento a publicidade em suas formas de equivalência, uniformização e distanciamento”, empurrando cada um para o mundo comum: o cotidiano, estando na dimensão da impropriedade, apresenta um modo característico de falar, cujas três formas Heidegger denomina falação, avidez de novidades e ambigüidade. O modo de ser do ser-aí poder realizar seu ser mostra que a linguagem originariamente não é um sistema. Sustenta-se como um enunciado de uma interpretação prévia, pois expressa algo já interpretado. Nesses termos, a fala regula o que é comum entre os homens, um modo cultural de apreensão do mundo que tudo articula. Desse modo, o que se interpreta não são fatos em si, mas modos de ser. Pela sua abertura, o ser aí encontra-se com si mesmo no mundo com outros através da linguagem, numa rede de significatividade por ela apresentada. É ela que intermedeia, pela abertura, o ser-aí junto ao mundo e outros. Assim, a fala mesma é um modo de abertura, pelo qual o eu cuida de ser, cuidando de como é no mundo: é isso que a fala fala. Nessa medida, o falar cotidiano é possibilidade de manter o contato junto a outros no mundo, garantindo o real; daí não importar sobre o que se fala, mas que se fale. A “falação” (“falar por falar”) é uma dimensão da fala cotidiana que não explora o que se passou, mas apenas permitir a circulação do falado, mantendo julgamentos e crenças pelos quais cada um se vai constituindo, sustentando a trama da realidade e explicitando a condição de homem (HEIDEGGER, 1927/1984). Trata-se de um levar adiante da fala, favorecendo a entrada na publicidade, porém sem uma apropriação do que é dito. “Põe-se veladamente em cena o que é falado, sabendo-se tudo por alto; embora não tenha o propósito de promoção de engano, ao invés de explicitar, o falar da falação vela.” (ALMEIDA, 2005, p. 229) Numa situação de ocorrência da ação psicológica, dois aspectos da falação podem se apresentar. O primeiro diz respeito a que é pela falação que o cliente se introduz, trazendo o já é interpretado e comum; no entanto, não há como negar que esse momento é possibilidade de entrar em contato com sua experiência. Por sua vez, o segundo revela como o cliente se traz longe de ser propriamente, mas como que guiado por circunstâncias da realidade de um mundo inóspito. Nesse sentido, esses dois aspectos permitem compreender como a versão primeira da experiência trazida pelo cliente chega sob a forma de queixas, ou seja, a emergência do mal estar incômodo sentido pelas circunstâncias da vida. É especificidade da ação psicológica como atenção e cuidado, a tarefa de acompanhando a realidade apresentada pela falação do cliente, sugerir-lhe, através do jogo interpretativo, 17 encaminhar-se para a apropriação de si mesmo, ou seja, dizer de sua demanda/necessidade, como urgência na procura por poder ser. (MORATO, 2006). Junto à falação, surge a “avidez de novidade” (HEIDEGGER, 1927/1984): maneira da fala cotidiana apoiada no ver à distância, ou seja, vendo tudo por cima, não se demorando junto a nada, passando rapidamente para o que vem depois. “É sofreguidão de acúmulo do visto pelo aspecto, o que incide numa dissipação, pela qual o eu não tem paragem e, assim, moradia; passando-se rapidamente a outros aspectos, instala-se um distanciamento para que não haja envolvimento. Está-se diante da perdição do eu...” (ALMEIDA, 2005, p. 230) No tocante à “ambigüidade” (HEIDEGGER, 1927/1984), refere-se a um modo cotidiano da fala acerca de possibilidades que não podem ser atualizadas, apenas rastreadas, numa esfera pública em que tudo parece ser acessível, com uma conseqüente compreensão subliminar de que pode ser feito. Essa forma é bem reconhecida no discurso tanto político, notadamente ideológico-partidário, quanto institucional: há uma essencial e evidente ambigüidade entre o falar e agir. Afinal, a ambigüidade pressupõe que não se saia do lugar, pois requer uma ação, que, se realizada, provocaria restrições. Desse modo, impede as alternativas do agir pela fala das possibilidades. Realizar alguma possibilidade aventada implicaria sair-se da impessoalidade, dando a ver a própria irresponsabilidade. Pela fala ambígua, mantém-se o descompromisso em fazer o que deve ser feito, relegado à dimensão da suspeita. No cotidiano, busca-se a impessoalidade, porque não se quer puxar para si o gasto que uma situação configurada possa deflagrar. Embora se queira algo, não se suporta que aconteça, ou seja, deseja-se profundamente uma realidade diferente, mas recusa- se, também, profundamente que o sonhado se torne real. Quem age responde pela realização do que estava em possibilidade: o eu é colocado em questão e cobrança; permanecendo no possível, o eu exime-se de qualquer responsabilidade. Por isso é que a ambigüidade resolve a questão na fala, dispensando qualquer realização, que pode abortar ou fracassar. (ALMEIDA, 2005, p. 229) É nesse sentido que a tarefa da ação psicológica em instituições dirige-se a testemunhar o outro fugidio em sua responsabilidade perante o que lhe diga respeito. Procura servir como “cama elástica” ao outro em seu lento tempo de empreendimento para poder ser si mesmo, contrastando com o tempo rápido da fala cotidiana. “O tempo do fazer genuíno dá- se sob a égide do empenho, que medra no silêncio: a silenciosidade é realizadora, já o marketing não faz, só fala.” O psicólogo acompanha o cliente que ainda teme fracassar caso se empenhe em realizar uma possibilidade cabível. Testemunhando a ameaça, possibilita ao 18 clientetanto a discernir sua situação e como disponibilizar-se para a consecução de seu projeto. Contudo, a ambigüidade caminha sobre um saber dar conta de uma situação, não pela prescrição do que deve ser feito, mas por suspeitas: “se isso... então...”, resolvendo pela fala e não pela ação, visto operar por projeções. Porém estas surgem não como possibilidades próprias, mas aquelas disponíveis a todos, escolhendo fazer algo no âmbito do público no qual se perde, por prevalecer o ninguém. É deste modo que a fala cotidiana, pela ambigüidade, falação e avidez de novidades aproximam os homens entre si, mas sem que se esteja com o outro, porém com todos. Assim, na ação psicológica, em instituições de saúde ou educação, precisamente pelo caráter do “todos nós... ninguém”, há que cuidar para acompanhar o cliente em suas peculiaridades de ser conforme suas possibilidades públicas de realização, a fim de não se estar “contra” ele, na dissimulação peculiar, mas não deliberada, ao ser um com o outro na cotidianidade. Afinal, competir e não cooperar revela ser um contra o outro também um modo de ser-com. Na fala cotidiana, sendo na impropriedade, o ser-aí é impessoalmente equivalente a outros modos de ser: um desvio de si, abafando a angústia para a propriedade. Assim, embora a tarefa de ser humano convoque para a impropriedade, sempre permanece a abertura de ser quem se é na propriedade. Isto porque ser si mesmo não é dado a priori, mas sim vai se afirmando que ser si mesmo ocorre pela aprendizagem, na fala da co-existência, mesmo que se desviando, já que ser-aí é uma absorção de ser lançado aí no mundo prévio. Está-se diante do fenômeno denominado por Heidegger (1927/1984) de queda, que, de modo algum, significa que o eu nasça formado e depois decaia; trata-se de ser absorvido pelo mundo no qual é lançado: não é posterior, mas integrante ao nascimento. Assim, não se trata de um novo fenômeno, porém a junção das condições de lançamento e absorção. Sendo capturados, tragados pelo mundo, os homens são submissos a modos de usar os úteis e sujeitados aos outros, por exemplo, na moralidade; o ser-no-mundo é anterior à percepção do eu e a queda, tanto condição da própria existência, quanto situação presente e permanente. A captura do eu pelo mundo dá-se na e pela fala cotidiana. Na falação, o eu flutua, sem base, num lago de como se é dito; na avidez de novidades, está em todas as partes e, ao mesmo tempo, em nenhuma; na ambigüidade, nada está ocultado à compreensão do eu, com o propósito de reforço da situação anterior. Realizando-se através desse falar uns com os outros, a queda apresenta quatro características fundamentais: sedução, tranqüilização ou aquietamento, alienação e enredamento, as quais se intercambiam num movimento contínuo de derrubamento, no qual uma é levada para outra, perfazendo um redemoinho. (ALMEIDA, 2005, p. 230) Sempre é possível que pela falação já se possa encontrar si mesmo recorrendo a interpretações já dadas no público para dizer o que se é (usos e costumes). Isto seduz pois significa já ter uma resposta para si de antemão, encobrindo a angústia para apropriar-se do 19 poder-ser, reconhecendo-se bem situado no mundo. Desse modo, tranqüilizado, os outros passam a ser a referência de ser, porém alienado de si mesmo absorto que é pelo mundo. Assim enredado em si mesmo em suas questões, diluído nos outros, porém aquietado, ocorre a sensação de estar conduzindo sua vida adiante, esi.mbora a presumida segurança esteja no que é dado e não apropriado de Na ação psicológica, através do exercício do logos, acompanha-se como naquilo que crer seu próprio o cliente está interpretando-se pelo que é dado, perdendo-se de si nas vozes comuns. Nem se dá conta como esse modo de ser impessoal o incomoda, desespera e faz sofrer pela ausência de sentido próprio. Enredado, interpreta a angústia por sensações corpóreas, aflito e desamparado que está. Nessa situação de atropelado por si mesmo, o cliente prende-se à ocupação percebendo, contudo, que está sendo derrubado, mas não por si mesmo. “É nessa dimensão da queda, como experiência da impropriedade, que se tem a maior dimensão do que é ser-no- mundo; no dia-a-dia, o eu está nesse enovelamento. É um modo de ser que significa estar no mundo, habitando-o.” (ALMEIDA, 2005, p. 231) É pelo jogo interpretativo que o psicólogo pode acompanhar o cliente, realçando o enovelamento em que se encontra, buscando juntos re-tecer fios para que ele se encaminhe em seu poder-ser no mundo como é. Debruçado atento, pela com-fiança cooperativa, o psicólogo pode agir, legitimado pelo cliente, na direção do des-envolvimento da própria experiência para sentido de ser si mesmo. II - Para a ação psicológica na prática e na pesquisa em instituições. O des-enrolamento da experiência do humano pela ação psicológica revela-se também uma escuta afinada com a ação educativa. Educar, do latim educere, compõe-se pelo prefixo ex (para fora) e pela palavra ducere (conduzir, levar, guiar), referindo-se a conduzir para fora, ou seja, promover que algo possível de si possa surgir (eduzir) no no mundo pelo ensinar e aprender. Ensinar, do latim insignare, remete a in-signum (em sinal): como diz Rosa (1989), aquele que ensina não se ensimesma, mas sim sai de si, indicando sinais no mundo que são relevantes para o aprendiz. Por sua vez, aprender vem do latim ad-prendere, cujo prefixo ad (por, para) indica direção, enquanto prendere diz de tomar, agarrar, pegar. Assim, aprendizagem refere-se a fazer uso de sinais no mundo que apontem para mudanças: aprendiz é aquele que se transforma em trânsito pela existência, narrando sua experiência para levá-la 20 adiante e abrir brechas para outras aprendizagens. Por sua vez, a experiência, pela ótica fenomenológica existencial, sendo uma abertura temporal, na qual presente, passado e futuro se co-pertencem, é a manifestação da historicidade do ser aí: faz-se como acontecimento e apresenta-se, pela fala, como narrativa, a qual se constitui num dizer no fazer situado. O psicólogo, seja numa entrevista de Plantão em clínica-escola ou em cartografia por uma instituição de saúde ou de educação, mantendo-se inclinado à narrativa daquele com quem fala, está sempre in-vestigando a experiência clinicamente, experiência essa que, vindo do mundo com outros, se apresenta enovelada no público, porém sem fio de sentido ao narrador. Em outras palavras, a ação psicológica conduz-se a ir por entre os vestígios do vivido para des-ocultar outras facetas que se mostram nas situações de homens e atores institucionais. Buscando des-enredar a experiência da trama sedutora de significados na qual se encontra, acompanha o cliente testemunhando sua narrativa pela desorientação e desamparo para, junto a ele, sugerir o encaminhar-se para fora de seu sofrimento, levando-se adiante dessa urdidura do público na qual se enroscou. E isso só pode acontecer em experiência em ação, ou seja, quando a interpretação da compreensão pudesse conduzir-se para “fora do perigo”, considerando a etimologia latina de experiência: ex-perire. Estruturando-se a partir da escuta, a ação psicológica, amparada na perspectiva fenomenológica existencial, conduz-se pela narrativa na prática e na pesquisa, já que ambas dizem de experiência e história que urgem por uma compreensão mais ampla. Na trilha do sofrimento na história, outros modos de seu enfrentamento são per-seguidos pela atenção e cuidado psicológicos, sem jamais percorrer modelos clássicos de triagem, amparados no psicodiagnóstico tradicional ou na psicopatologia, nem de intervenção, quase sempre acompanhamento psicoterápico. Apenas emerge no encontro entre o cliente e o psicólogo/pesquisador como testemunha que autoriza e legitima uma continuação da história desse cliente numa dimensão em que possa existir em bem estar e autenticidade.A ação psicológica, por esta ótica, sempre se vincula a uma situação, que tem tanto uma vertente institucional referida à pertença do profissional e do cliente, quanto uma vertente vinculada à realidade sociocultural e existencial do cliente e do psicólogo. Desse modo, é importante que busque uma compreensão da realidade do cliente para cotejá-la com o que a realidade da instituição pode oferecer. Assim, a ação psicológica pode ser ainda caracterizada como uma prática e pesquisa psicossocial. De qualquer forma, nela importa a demanda do cliente do que uma explicação que se possa ter dele, assim como também a relação estabelecida importa mais do que uma “interioridade” a ser perscrutada. Nesse sentido, a “interioridade” é manifestada na relação e 21 não tomada como um “em-si”: a relação é o campo de aparência, tanto dessa “interioridade” quanto de uma realidade sócio-econômica cultural, uma vez que é nela que a experiência do cliente encontra lugar para ser compreendida e clareada. Trata-se de contextos originários em que a experiência ocorre, pois não há homem sem mundo com outros: trata-se de uma perspectiva fáctica, que é histórica e concreta. A ação psicológica se apresenta para além de âmbito de intimidade, não se restringindo a qualquer um, mas se referindo a mundo trazido pela apresentação que cada cliente faz de si próprio. Nesse contexto, emergem modos de cuidar, já que o cuidar-se de si requer a explicitação da teia de relações estabelecidas na sociedade, que “sustenta representações que, ideologicamente, vinculam o sofrimento psíquico a fatores individuais, velando suas determinações sócio-culturais.” (ALMEIDA, 2005, p. 232) Assim, partindo do contexto psico-sócio-existencial, a ação psicológica intenta uma visão compreensiva de sofrimento embutido na narração de uma história que, embora singular, diz respeito a outras pessoas em vários contextos. Nesse sentido, o cuidado do pesquisador/psicólogo considera as questões de quem se é, como se é, com quem se está e onde se está, dando a ver como modos de cuidado, apoiados na experiência do encontro psicólogo/cliente, que consideram a situação existencial do cliente, incluindo a esfera sociocultural. Desse modo, na perspectiva fenomenológica existencial, o sofrimento psíquico não é da ordem do patológico, assim determinando uma história. É algo que aparece nessa história, revelando um destinar-se conturbado no mundo do narrador e em suas situações de vida com outros: enraizado na história, o sofrimento psíquico diz de um acontecimento pertinente a seu modo de ser, não sendo considerado como proveniente de doença mental. Ao mesmo tempo em que a ação psicológica na prática e pesquisa em instituições contempla um aspecto clínico, também pode apresentar um elemento educativo, voltado tanto para a formação profissional de psicólogos quanto de outros profissionais de saúde e educação. Nos projetos de atenção psicológica, o estudante/estagiário tem a oportunidade de entrar em contato com as mais diversas realidades trazidas pela clientela e por instituições, conduzindo-o a pensar o sentido originário de clínica, de prática, de pesquisa, de intervenção, de público e privado, de ser quem se é de modo próprio a poder ser. Desse modo, o estagiário experiencia debruçar-se não ao entendimento de uma doença, seus mecanismos e sua repercussão na mente e na conduta de um “doente” ou de uma instituição, mas ao modo de ser do qual emergem as experiências existenciais que sustentam as atividades da pessoa que está 22 a sua frente, cliente ou ator institucional. Na perspectiva existencial, a experiência humana não é conseqüência de um processo de desenvolvimento da sexualidade, da cognição e da volição, mas a condição historial9 do homem, fundamentando a constituição de quaisquer das esferas da experiência pelas quais o homem transita. O modo de condução da ação psicológica nos projetos de atenção não compreende uma automática continuidade de atendimento aos encontros com a clientela. Orientam-se a cada encontro a possíveis desdobramentos para questões apresentadas como demanda, considerando-se, no diálogo com o cliente, outras intervenções de práticas especializadas ou populares, contando com recursos institucionais, comunitários ou familiares, quando se fizer necessário. Assim, cliente e psicólogo consideram conjuntamente aquilo que melhor atende ao que é preciso e não ao que é explicitado como pedido. Este modo faz-se particularmente pertinente quando o cliente é um dirigente de uma instituição: compreende-se a necessidade institucional, do dirigente como seu ator, mas também se abre a perspectiva de considerar qual a demanda da comunidade a quem está sendo pedida a atenção psicológica. É a isto que se dirige a cartografia, amparada na atitude clínica. Ao aluno esta é uma situação que o pro-voca a procurar por seu próprio modo de ser psicólogo, não enovelado nas malhas publicas da trama de significações implicadas em sua formação. Experiencia ele mesmo orientar-se a um poder-ser de modo próprio e não impessoal. Tal aprendizagem se manifesta em sua forma de cuidar tanto do cliente quanto do autor institucional, conduzindo o outro a encontrar-se propriamente em sua vida e/ou em seu trabalho, tornando-se, ele mesmo estagiário, um multiplicador de possibilidades de poder-ser junto a outros: uma aprendizagem significativa. Esse comprometimento, em várias oportunidades, árduo e sofrido, aponta a direção que se trilha na ação psicológica: ao invés de circunscrever-se a aspectos referentes a alterações de personalidade e presença de doenças psíquicas, trata-se de, decisivamente, atentar à possibilidade de um redestinar-se da existência no que plausivelmente se anuncia. Por esse viés, a história pessoal, emergindo da história coletiva, é narrada ao psicólogo/ouvinte, o qual, via essa intervenção, passa também a ser narrador. Enquanto uma atividade com sentido educativo na formação profissional de psicólogo, contemplando a supervisão do trabalho prático e de pesquisa realizado pelos estudantes/estagiários, a ação psicológica se apresenta em dimensão clínico-pedagógica. É o caráter de acompanhamento junto ao estagiário que constitui a especificidade dessa 9 Historial remete-se à dimensão ontológica humana. 23 supervisão: elaborar a experiência de testemunha de uma história que, de algum modo, o afetou. Assim, entre o supervisor e o estagiário surgem possibilidades de compreensão de si mesmo e do outro, na medida em que o supervisor atenta ao modo como o estagiário foi tocado, compreensivamente, pelo cliente, suspendendo as pré-concepções que, normalmente, um aluno de psicologia tem sobre psicoterapia e entendimento do sofrimento; na supervisão, a ação psicológica é experienciada na mesma direção em que foi realizada junto ao cliente Muitas vezes, a supervisão atém-se a dimensões bem concretas do atendimento. No entanto, isso não quer dizer orientar-se por uma visão pragmática do ser humano e da atividade clínica. Trata-se, mais uma vez, de partir da situação para nela encontrar saídas concretas, plausíveis de postura e conduta, considerando-se a singularidade de cada encontro. Assim, a própria ação psicológica constitui-se numa situação de passagem, na qual se avaliam e decidem os possíveis encaminhamentos10 disponíveis para o enfrentamento de um sofrimento emergente de uma pessoa que clama por cuidados. Desse modo, ação psicológica na prática e pesquisa em instituições, em seu exercício, requer recursos institucionais e comunitários que possam re-dirigir o caminhar de uma existência, requisando uma específica paragem como abertura de recursos necessários a des-dobramento harmonioso de sua história para tornar tolerável um sofrimento. Nesse sentido, a ação psicológica demanda uma rede de apoio socialque acompanhar e atender modalidades de cuidados clínicos e/ou pedagógicos de que a clientela possa necessitar. Em suma, essa rede de apoio social constitui-se num “organismo”, em relação mútua, que possibilita a prática da solicitude própria ao trabalho da ação psicológica, viabilizando a seqüência de atendimentos necessários na realidade emergente. Sendo realizada dentro da Universidade e de outras instituições públicas, a elas servindo pelo exercício das responsabilidades civis de ensino, pesquisa e extensão universitária, compete que os desdobramentos solicitados pela ação psicológica dirijam-se por esses mesmos objetivos. A Universidade, por sua vez, não se deve constituir em apenas ser um banco de dados e informações de interesse da comunidade; é sua tarefa poder ser um centro de referência para os profissionais de várias áreas, possibilitando a circulação de colaboração, como trabalho de co-autoria. Nesse contexto, uma de suas funções é poder subsidiar pesquisas que concorram na efetivação de modalidades de prática da ação 10 Por encaminhamento compreende-se o encaminhar-se do próprio cliente em direção ao que sua demanda lhe desvendou durante a ação psicológica. 24 psicológica, propiciadoras de tal trabalho: é ação política11 realizar pesquisas interventivas em instituições demandantes. III – Para arrematar Finalizando, este trabalho teve o propósito de apresentar a possibilidade de uma leitura da ação psicológica na prática e pesquisa de profissionais de saúde e educação através de uma compreensão fenomenológica existencial, que subsidiasse sua propriedade de ação humana entre homens. Nesse sentido, configura-se a necessidade de refletir temáticas pertinentes à ação psicológica destinada à demanda de humanidade do homem contemporâneo. Percorrer tais temáticas implica conduzi-la a pensar sua legitimação de um agir comprometido a interpor os bons ofícios, ou seja, intervenção, junto a profissionais de saúde e educação, apresentando-lhes um modo de pensar diverso daquele implicitamente comprometidos com modelos tradicionais explicativos, percorrendo sentido de “homem, existência e história”12. Assim, esta contribuição consistiu em apresentar temas básicos segundo uma ótica fenomenológica existencial: o modo de ser clínico implicado na ação psicológica, ressaltando o ser afetado, a compreensão desdobrando-se em interpretação e fala (ouvir, dizer, calar). O desenvolvimento desses temas é um esforço de leitura de ação psicológica em prática e pesquisa em instituições de saúde e educação através da ontologia fundamental de Martin Heidegger, em “El ser y el tiempo” (1927/1984), recorrendo, a situações dessa ação em suas várias modalidades. Enfim, a interrogação que se leva adiante ao abordar tais temáticas é a busca de subsídios para a ação psicológica pela antropologia filosófica proposta nessa obra, que apresenta uma compreensão do humano pela aproximação da pergunta pelo ser. Na experiência da própria prática e da pesquisa na ação psicológica, a compreensão aqui empreendida abriu questões ainda a serem esclarecidas. No entanto, procurou-se sempre conservar, ao alcance dos olhos, um todo que pudesse paulatinamente crescer e, concomitantemente, oferecer uma possibilidade para encaminhamento do sentido da ação psicológica. Mas, sem dúvida, o que se pretendeu com essa retomada em perspectiva foi 11 MORATO, H. T. P. Plantão Psicológico: inventividade e plasticidade. In: Anais do IX Simpósio de Práticas Psicológicas em Instituições - Atenção psicológica: fundamentos, pesquisa e prática. Recife: UNICAP, 2009. v. 1. p. 1-15. 12 Não se trata de compreender a existência segundo o critério de uma concretude aparente; mas, de compreendê-la como um modo humano de ser. 25 abrir outros horizontes para uma aproximação existencial da ação psicológica clínica na prática e na pesquisa em instituições de saúde e educação. Referências ALMEIDA, F. M. Ser clínico como educador: uma leitura fenomenológica existencial de algumas temáticas na prática de profissionais de saúde e educação. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano) - Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo, 2005. ARENDT, H. A dignidade da política. 2ª. Ed. Tradução de Helena Martins, Frida Coelho, Antônio Abranches, César Almeida, Cláudia Drucker e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. CRITELLI, D. M. Caminho existencial. São Paulo: Existentia – Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana, 2002. GENDLIN, E. T. Befindlichkeit: Heidegger and the philosophy of psychology. Review of existencial psychology and psychiatry, 16 (1-3), p. 43–71, 1978/1979. HEIDEGGER, M. El ser y el tiempo. 5ª. Ed. Tradução de José Gaos. México, Madrid, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1984. MORATO, H. T. P. "Eu-Supervisão": Em cena uma ação buscando significado sentido. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano) - Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo, 1989. MORATO, H. T. P. Pedido, Queixa e demanda no plantão psicológico: querer, poder ou precisar. Anais do VI Simpósio Nacional de Práticas Psicológicas em Instituição - Psicologia e Políticas Públicas, 2006, Vitória - Espírito Santo. UFES, v. 1. p. 38-43, 2006. MORATO, H. T. P. Pesquisa Interventiva e Cartografia na prática psicológica em instituições. Anais do VII Simpósio Nacional de Práticas Psicológicas em Instituição - Fronteiras da Ação Psicológica entre educação e saúde, São Paulo. v. 1. p. 1-13, 2007. MORATO, H. T. P. Prática Psicológica em Instituições: ação política. Anais do VIII Simpósio Nacional Prática Psicológica em Instituição - Atenção Psicológica: experiência, intervenção e pesquisa, São Paulo. v. 1, pag. 1-19, 2008. MORATO, H. T. P. Atenção Psicológica e Aprendizagem Significativa. In: MORATO, H. T. P.; BARRETO, C. L. B. T.; NUNES, A. P. (Org.). Aconselhamento Psicológico numa perspectiva fenomenológica existencial, Rio de Janeiro: Editora: Guanabara Koogan, 2009, v. 1, p. 22-40, 2009. MORATO, H. T. P. Uma Introdução. In MORATO, H. T. P.; BARRETO, C. L. B. T.; NUNES, A. P. (Org.). Aconselhamento Psicológico numa perspectiva fenomenológica existencial – Uma Introdução. Rio de Janeiro: Editora: Guanabara Koogan, 2009. 26 MORATO, H. T. P. Plantão Psicológico: inventividade e plasticidade. Anais do IX Simpósio Nacional Práticas Psicológicas em Instituições - Atenção Psicológica: fundamentos, pesquisa e prática. Recife - PE: UNICAP. p. 31-45, 2009. SZYMANSKI, H. e CURY, V. E.. A pesquisa interventiva em psicologia da educação e clínica: pesquisa e prática psicológica. Estudos de Psicologia, 9 (2), 355-364, 2004. ROSA, J. G. Tutaméia. São Paulo: Nova Fronteira, 1989.
Compartilhar