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ANTROPOLOGIA JURÍDICA [...] os Esquimós do Alasca, viveram por mais de 3.000 anos sem qualquer contato com o Estado. Para eles toda comida deveria ser repartida, principalmente na época de maior dificuldade. “Armazena comida é crime mortal na visão deste povo”; o crime mortal não era roubo, mas a ganância, motivo pelo qual mataram várias vezes comerciantes ocidentais que queriam vender comida nos períodos de inverno, quando a comida era mais rara. Matar, assim, era um ato de “justiça” na visão desse povo. Por outro lado, os indivíduos que não podiam produzir comida (caça ou pesca) não deviam comer. Por isso deixavam morrer crianças que nascessem no inverno e esperavam que as pessoas mais idosas, consideradas inúteis, se matassem. Em muitos casos os filhos auxiliavam os pais muito velhos a se suicidar [...] (ROCHA, 2015, p.46). 1 ANTROPOLOGIA DO DIREITO1 Alguns problemas surgidos na pré-história da antropologia e seus desdobramentos na sociedade contemporânea demonstram que o estudo do direito não pode restringir-se apenas ao aspecto dogmático, que implica meras sistematizações e classificações de normas jurídicas emanadas do Estado. O mundo jurídico é mais articulado e complexo do que aparece nesse tipo de estudo. A ciência do direito, como diz Tercio Sampaio Ferraz Jr. (1995: 92), envolve sempre um problema de decisão de conflitos sociais, motivo pelo qual tem por objeto central o próprio ser humano que, por seu comportamento, entra em conflito e cria normas para decidi-lo. O ser humano é, pois, o centro articulador não apenas do pensamento antropológico, mas também do pensamento jurídico. As conexões do direito com a antropologia são evidentes, visto que o ser humano constitui objeto central dessas duas áreas do conhecimento, motivo pelo qual temas como igualdade e diferença são, ao mesmo tempo, jurídicos e antropológicos. Além disso, o direito constitui um dos aspectos da cultura, e esta constitui objeto específico da antropologia cultural. A antropologia, tal como o direito, também se interessa pelos conflitos sociais, principalmente no que diz respeito à intervenção normativa na decisão jurídica desses conflitos, bem como pelo desdobramento da ordem jurídica diante das transformações culturais, sociais, políticas e econômicas. 1.1. APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS Não há acordo entre os teóricos do direito sobre o método e o objeto da ciência jurídica. Também não há acordo sobre a definição do conceito de direito. Dizer o que o direito é torna-se uma tarefa extremamente difícil e controversa. Há, entre os teóricos, uma preocupação no sentido de construir uma compreensão universal do fenômeno jurídico. Essa preocupação está presente nas definições que elaboram sobre o conceito de direito. Nessa atitude, que consiste em compreender o direito como um fenômeno universal, há, segundo Ferraz Jr. (1995: 34), algo de humano, mas sobretudo de cultural. Podem-se colher entre os juristas dois tipos de definições: as genéricas e as restritivas. As definições genéricas, quando isoladas do contexto donde emanam, isto é, do complexo teórico que as fundamentam, são imprestáveis para traçar os limites daquilo que se define. Nesse sentido, uma definição inspirada nos jurisconsultos romanos expressa que o direito é a intenção firme e constante de dar a cada um o que é seu, não lesar os outros e realizar a justiça. Já as definições restritivas esbarram em dificuldades insuperáveis, porque, em virtude de serem muito circunstanciadas, perdem a sua pretendida universalidade. Nesse sentido, uma definição inspirada no positivismo jurídico estabelece que o direito é o conjunto das regras dotadas de coatividade e emanadas do poder constituído. A universalidade dessas duas definições pode ser questionada. Há, entretanto, entre elas uma diferença acentuada no que diz respeito ao enfoque teórico adotado. Na primeira (definição genérica) predomina um enfoque zetético; enquanto na outra (definição restritiva) predomina um enfoque dogmático. Não há uma linha divisória entre zetética e dogmática, porque toda investigação jurídica sempre utiliza os dois enfoques. Mas a diferença é importante quando se aponta o predomínio de um enfoque sobre o outro. 1 ASSIS, Olney Queiroz. KÜMPEL, Vitor Frederico. Manual de antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012. O enfoque dogmático não questiona suas premissas (dogmas); predomina o sentido diretivo do discurso; visa dirigir o comportamento de uma pessoa, induzindo-a a adotar uma ação. Nessa trilha, a dogmática jurídica enfoca mais as premissas técnicas (normas jurídicas), suas sistematizações, classificações, divisões e conceitos. O enfoque zetético preocupa-se com o problema especulativo; predomina o sentido informativo do discurso; visa descrever certo estado das coisas. Nessa linha, a zetética jurídica enfatiza os aspectos antropológicos, filosóficos, históricos e sociológicos, insistindo sobre a inserção do direito no universo da cultura, da justiça, da história e dos fatos sociais. Assim, numa perspectiva dogmática, o direito tende a se afastar da antropologia e de outras áreas do conhecimento; já, na perspectiva zetética, o direito se aproxima da antropologia e de outras áreas do conhecimento. Conforme investigações de Boaventura de Sousa Santos (1988: 70, 71), mesmo entre os antropólogos não há acordo sobre a definição do conceito de direito. Essa tensão, segundo Santos, tem suas raízes nas obras de Malinowski e de Radcliffe-Brown, considerados os fundadores da antropologia jurídica. Malinowski propõe uma estratégia conceitual em que o objetivo da generalidade se sobrepõe ao da especificidade, motivo pelo qual conclui que, em todos os povos, qualquer que seja o grau de seu “primitivismo”, existe direito. Radcliffe-Brown, ao contrário, segue uma estratégia conceitual em que o objetivo da especificidade tem precedência sobre o da generalidade, motivo pelo qual conclui que algumas sociedades “primitivas” não têm direito. 1.2. O FENÔMENO JURÍDICO Para Ferraz Jr. (1995: 21, 22), o direito é um dos fenômenos mais notáveis na vida humana. Compreender o direito é compreender uma parte de nós mesmos. É saber por que obedecemos, por que mandamos, por que nos indignamos, por que aspiramos mudar em nome de ideais e por que em nome de ideais conservamos as coisas como estão. Ser livre é estar no direito e, no entanto, o direito também nos oprime e nos tira a liberdade. O direito é um mistério, o mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana. O direito nos introduz num mundo fantástico de piedade e impiedade, de sublimação e de perversão. O direito serve para expressar e produzir a aceitação da situação existente, mas aparece também como sustentação moral da indignação e da rebelião. Assim, de um lado, o direito nos protege do poder arbitrário exercido à margem de toda regulamentação, dá oportunidades iguais e ampara os desfavorecidos. Por outro lado, é também um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e permite o uso de técnicas de controle e dominação. O estudo do direito exige precisão e rigor científico, mas também abertura para o humano, para a história, para o social, numa forma combinada que a sabedoria ocidental, desde os romanos, vem esculpindo como uma obra sempre por acabar. Na medida em que o direito se abre para o humano, a história e o social, ele se depara com a antropologia, daí a ideia de uma antropologia jurídica. 1.3. ESTUDO DO DIREITO A partir do século XIX, como resultado da positivação do direito, passa a predominar no estudo jurídico o enfoque dogmático e a ciência jurídica passa a ser concebida como ciência dogmática. Essa ciência enxerga seu objeto, o direito posto e dado previamente pelo Estado, como um conjunto compacto de normas que lhe compete sistematizar, classificar e interpretar, tendo em vista a decisão de possíveis conflitos.Assim, no mundo contemporâneo, o direito aparece como um fenômeno burocratizado, um instrumento de poder, e a ciência jurídica, como uma tecnologia. Sob a inspiração desse modelo, formou-se, entre os juristas, uma tendência bastante forte, que consiste em identificar a ciência jurídica com um tipo de produção técnica destinada apenas a atender às necessidades do profissional (advogado, promotor, juiz, delegado etc.) no desempenho imediato de suas funções. Sob o império dessa premissa, muitos desses profissionais ficam alienados em relação ao processo de construção do próprio direito positivo (sistema de normas); não percebem o direito como instrumento de gestão social; não visualizam a função social das normas jurídicas; não compreendem o direito como um saber que também serve à luta social exigida pelo mundo em que vivemos; não entendem o direito como instrumento de mudança; enfim, não enxergam o direito como uma prática virtuosa a favor do ser humano. Há, entretanto, uma tendência no sentido de redirecionar o estudo do direito até como forma de evitar a alienação na qual a dogmática jurídica tende a colocar o profissional do direito. Essa tendência reconhece que o estudo do direito não se reduz a mera sistematização de normas, visto que, se as normas condicionam comportamentos, os comportamentos também condicionam as normas. Isso significa que não é possível isolar normas jurídicas de suas condicionantes situadas na antropologia, sociologia, economia, biologia, filosofia, ética, política etc. Ferraz Jr. (1995: 28, 29) alerta que as sociedades estão em transformação e a complexidade do mundo está exigindo novas formas de manifestação do fenômeno jurídico. Segundo ele, é possível que no futuro (não tão distante) esse direito instrumentalizado, uniformizado e generalizado sob a forma estatal de organização venha a implodir, recuperando-se em manifestações espontâneas e localizadas, um direito de muitas faces, peculiar aos grupos e às pessoas que os compõem. Por isso, a consciência da nossa circunstância atual não deve ser entendida como um momento final, mas como um ponto de partida. Afinal, diz ele, a ciência não nos libera porque nos torna mais sábios, mas é porque nos tornamos mais sábios que a ciência nos libera. 2 ANTROPOLOGIA JURÍDICA Para Norbert Rouland (2003: 405), a antropologia jurídica demonstra sua utilidade quando permite descobrir (e entender) o direito que se encontra encoberto pelos códigos. Essa utilidade também se evidencia quando prepara e alerta a sociedade para aceitar as evoluções jurídicas que estão em curso e que apontam para um direito mais maleável, punições flexíveis, transações ou mediações em vez de julgamentos, regras que mais formam modelos do que prescrevem ordens. Tudo isso, segundo ele, pode ser aceito mais naturalmente quando as pessoas tomam conhecimento de que há muito tempo ou que em algumas sociedades, homens e mulheres, aos quais chamamos primitivos, já reconheceram esses procedimentos, ou os empregam ainda. De modo geral, a sociologia jurídica sempre se preocupou com o estudo do direito das sociedades complexas, sociedades metropolitanas e industriais, enquanto a antropologia jurídica investigava o direito das sociedades simples ou primitivas. A partir da década de 1960, contudo, houve, conforme observa Boaventura de Sousa Santos (1988), uma subversão dessa divisão de trabalho, de modo que a antropologia do direito também passou a se interessar pelo estudo das sociedades complexas ou metropolitanas. Deu- se assim origem a um sincretismo teórico e metodológico, ainda hoje em processo de evolução. Foi nesse contexto científico que o conhecimento antropológico saiu do seu “gueto primitivo”. Essa nova orientação da antropologia jurídica tem auxiliado a corrigir o desvirtuamento teórico que consistiu em suprimir dos estudos acadêmicos a produção jurídica não estatal. Nessa trilha, a antropologia jurídica tem colocado em evidência o fenômeno conhecido como pluralismo jurídico. REFERÊNCIAS ASSIS, Olney Queiroz e KRÜMPEL, Vitor Frederico. Manual de antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 2011. ROCHA, José Manuel de Sacadura. Antropologia jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
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