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A LI CE N O P A ÍS D A M EN TI R A Depois de brigar com seu melhor amigo, Alice viaja ao maluquíssimo País da Mentira, desco- brindo que as mentiras não são todas iguais. Há algumas até engraçadinhas, como a Men- tira Caridosa, mas outras horrorosas, como a Calúnia e a Mentira Cabeluda. Fugindo desta, Alice acaba chegando ao País da Verdade e ali descobre que falar a verdade nem sempre é bom: há algumas, como a Verdade Absolu- ta, que podem ser tão feias quanto a Mentira Cabeluda! Depois de muito humor, confusões, perigos e descobertas, a menina volta pra casa tendo aprendido a importância do perdão... PEDRO BANDEIRA PE DR O B AN DE IR A Ilustrações Osnei Rocha MANUAL DO PROFESSOR Capa_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2002_LP.indd 1 6/29/18 5:17 PM f!)PITA R NGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS -- EDITORA 7� PITANGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS -- EDITORA 7� PITANGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS -- EDITORA 7� PITANGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS -- EDITORA 7� PITANGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS f!) PITARNGUA PNLD 2020 REPRODU<;AO E VENDAS PROIBIDAS ALICE NO PAÍS DA MENTIRA Ilustrações Osnei Rocha 1a EDIÇÃO, 2018 PEDRO BANDEIRA MANUAL DO PROFESSOR Professor, confira no final do livro a seção “Para saber mais” Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 1 6/29/18 5:18 PM Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bandeira, Pedro Alice no País da Mentira : manual do professor / Pedro Bandeira ; ilustrações Osnei Rocha. – 1. ed. – São Paulo : Editora Pitanguá, 2018. ISBN 978-85-60805-77-8 1. Literatura infantojuvenil I. Rocha, Osnei. II. Título. 18-17836 CDD-028.5 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil 028.5 2. Literatura juvenil 028.5 Cibele Maria Dias – Bibliotecária – CRB-8/9427 Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Todos os direitos reservados EDITORA PITANGUÁ LTDA. Rua Padre Adelino, 758, sala 4 – Quarta Parada São Paulo – SP – Brasil – CEP 03303-904 2018 COORDENAÇÃO EDITORIAL Maristela Petrili de Almeida Leite EDIÇÃO DE TEXTO Marília Mendes COORDENAÇÃO DE EDIÇÃO DE ARTE Camila Fiorenza DIAGRAMAÇÃO Isabela Jordani, Cristina Uetake ILUSTRAÇÕES DE CAPA E MIOLO Osnei Rocha COORDENAÇÃO DE REVISÃO Elaine Cristina del Nero REVISÃO Andrea Ortiz, Renata Brabo COORDENAÇÃO DE BUREAU Rubens M. Rodrigues PRÉ-IMPRESSÃO Everton L. de Oliveira, Vitória Sousa COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO INDUSTRIAL Wendell Jim C. Monteiro IMPRESSÃO E ACABAMENTO LOTE © PEDRO BANDEIRA, 2018 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 2 6/29/18 5:18 PM Para Melis sa, Michele, J úlia e Beatriz, minhas ne tas. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 3 6/29/18 5:18 PM Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 4 6/29/18 5:18 PM 1. A calúnia calunienta 8 2. Diga a mentira! 15 3. Verdade é uma mentira mal contada 21 4. Mentiras de todo jeito 27 5. A Boa Mentira 34 6. O Zoológico das Piores Mentiras 40 7. A Mentira Cabeluda 47 8. Uma Verdade de peso 54 9. Verdade de guarda-chuva 59 10. Tem gente que não gosta de ouvir a Verdade 65 11. O ataque da Dúvida 71 12. A cueca do seu avô subiu no telhado 77 13. O Calabouço das Piores Verdades 87 14. A melhor e a pior comida do mundo 94 15. O biscoito de chocolate 103 SUMÁRIO Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 5 6/29/18 5:18 PM 6 Apresentação dos personagens A Mentira Cabeluda Esta é mais horrível do que o pior dos pesadelos! Todo mundo foge dela! A Boa Mentira Essa daí só mente pra fazer bem às pessoas, e por isso todo mundo gosta das mentirinhas dela! Alice É uma menina cheia de ideias, quer saber de tudo e vive inventando novas brincadeiras, novos mundos. Mas está muito zangada com Juninho, seu melhor amigo. Barão Mimi ou Barão de Minch-ráuzen Esse é o comandante do País da Mentira. Mente tanto que deixa Alice maluca! Juninho Vizinho e melhor amigo de Alice. Os dois brincam juntos e o garoto nem sabe por que sua amiga está brava com ele. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 6 6/29/18 5:18 PM 7 Verdade Absoluta É tão horrorosa que todo mun- do prefere ouvir uma mentira mais ou menos cabeluda a se- quer ouvir falar dessa verdade! Bruxa da Dúvida Que horror de bruxa! Voa numa vassoura e seus ataques são destruidores! As pobres das Verdades têm de viver fugindo dessa malvada! Sábio Didi ou Diógenes de Sínope Além de sábio, é muito simpáti- co, embora só tenha mãos direi- tas. Sabe tudo, tudinho mesmo! Filósofo Totó ou Filósofo Aristóteles Esse daí é tão importante que nem aparece nesta história! Cozinheira da Duquesa Essa vive cozinhando o tempo todo e tem uma boa receita para biscoitos de fazer as pazes. E mais algumas Verdades e uma porção de Mentiras! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 7 6/29/18 5:18 PM 8 A CALÚNIA CALUNIENTA Eu queria que você conhecesse a Alice. A Alice, assim nos seus melhores dias, com a corda toda, perguntadeira, cheia de ideias, sempre disposta a inventar alguma nova maneira de ser feliz. Não a Alice deste dia, assim tão triste e tão zangada. Por que ela está assim tão triste e tão zangada? Por- que ela foi caluniada. Pobre Alice! Até aquele dia ela nem tinha ideia do que significasse a palavra “calúnia”, mas acabou recebendo a calúnia em cheio, bem no rosto, como uma bofetada. “Ai, que calúnia mais calunienta!”, remoía ela. E foi caluniada no quintal da Casa da Vovó, justo o lugar onde ela mais gostava de estar, de inventar, de dividir alegrias com o Juninho, seu melhor amigo, que morava bem ao lado. Qual foi a calúnia? Nem vou con- tar. Basta você ficar sabendo que o Juninho acusou Ali- ce de ter feito uma coisa bem feia, coisa que ela nunca fez nem nunca faria. Entendeu? Então basta você ima- ginar agora alguma calúnia bem horrorosa que alguém poderia fazer pra você, porque a calúnia do Juninho foi exatamente igual à que você pensou. 1 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 8 6/29/18 5:18 PM 9 Como? Você também não sabe o que quer dizer “ca- lúnia”? Deixa ver... Hum... Eu acho que é um tipo de mentira que... Bom, acho que não sei direito... Olha, é melhor nós dois passearmos junto com a Alice nesta história pra ficar sabendo. Vamos lá. Pobre Alice! A surpresa dela foi tão grande ao ouvir essa mentira (justo vinda da boca do Juninho!) que ela nem tentou se defender, nem saiu aos berros, chamando o Juninho de mentiroso. Não. O que ela fez foi entrar na Casa da Vovó, calada, vermelha como um tomate. Ela queria fugir de tudo. Pra onde fugir? Lugar melhor não poderia haver do que o Sótão da Casa da Vovó. O que é “Sótão”? Bom, eu nunca estive em nenhum, mas já ouvi falar. É um lugar que quase não existe mais, só em casa de velhinhas. É um espaço grande, entre o forro e o telhado, onde as velhinhas deixam suas lem- branças ficarem cobertas de poeira. Chegar ao Sótão era fácil: no andar de cima da Casa da Vovó, no final do corredor, uma pequena escada leva- va a um alçapão que se abria para o Sótão, um lugar mal iluminado, cheio de móveis sem uso,pacotes, caixas, tudo bem empoeirado. Alice sabia há muito tempo da existência daquele lugar, mas nunca tinha decidido xeretar ali. Desta vez, porém, ela pensou que aquele seria um bom lugar pra se ficar só. Não subiu lá pra chorar. Ela só queria ficar so- zinha um pouco, pra pensar na mentira do Juninho. Na calúnia. Não, ela não achava que o Juninho era o culpado Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 9 6/29/18 5:18 PM 10 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 10 6/29/18 5:18 PM 11 pela mentira. Aos poucos, ela foi chegando à conclusão de que a mentira do Juninho é que era a culpada. – Ah, se eu pudesse, eu esganava essa mentira! Bom, esganar de verdade acho que ela não esgana- ria, pois tinha aprendido que esganar significa apertar um pescoço até o dono do pescoço perder a respiração. Isso ela não queria, pois a mentira do Juninho não respirava – ela ca-lu-ni-a-va, o que era muito pior. No Sótão, no meio dos trastes, lá estava um espe- lhão refletindo a Alice e boa parte dos trastes espalha- dos pelo Sótão. Quase encostado no Espelho, havia um grande Baú todo cheio de taxões e enfeites de metal que teriam sido dourados um dia, mas que já estavam escu- recidos. Devia ter-se passado mesmo um tempão pra es- curecer tanto dourado. Alice sentou-se no chão, sobre as tábuas empoeira- das. Abraçou as pernas e ficou remoendo a mentira do Juninho, aquela coisa horrorosa, feia mesmo. “Ah, que mentira cabeluda!” Do outro lado, dava pra ver o Sótão do Espelho, igualzinho ao Sótão da Vovó. Só que tudo ao contrário. Na parede do Sótão do Espelho, ela viu um quadrinho pendurado, onde estava escrito “Lar doce lar” e, no seu lado, no Sótão da Vovó, no quadrinho pendurado esta- va escrito: lar doce lar Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 11 6/29/18 5:18 PM 12 “Não deveria ser ao contrário?”, estranhou a meni- na, mas logo se esqueceu daquilo e pôs a mão no fecho do Baú. “Ah, se eu pegasse a mentira do Juninho!” O que haveria dentro do Baú? Bom, se ela desse uma espiadinha, acho que não faria mal algum, até porque, pelo jeito, como a Vovó era velhinha mesmo, há muito tempo não subia no Sótão pra fuxicar dentro do Baú. Fuxicar era com a Alice. O fecho abriu-se facilmente, logo que Alice me- xeu nele. Levantou a tampa, com esforço. Lá dentro, só viu uma porção de roupas velhas. Foi aí que ela perce- beu uma luz fraquinha, azulada, logo ao seu lado. Olhou para o Espelho. Lá estava o Baú do Sótão do Espelho, também de tampa aberta. Era de dentro do Baú do Es- pelho que vinha a luz! “Que coisa mais estranha...”, estranhou ela, lem- brando-se de que também tinha estranhado a frase invertida do quadrinho. Estava até estranhando tanta estranheza. Estendeu o dedo, devagar, para o Espelho... Mais uma coisa estranha! A face do Espelho era mole como gelatina, não dura como devem ser os es- pelhos. “Ah, aí dentro do Baú do Sótão do Espelho acho que tem coisas maravilhosas de encontrar!” Estendeu o braço, que atravessou molemente a face do Espelho. Em seguida enfiou a cabeça e logo se viu do outro lado. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 12 6/29/18 5:18 PM 13 Na bagunça do Sótão, encontrou jogados pelo chão um grande baralho de cartas e um tabuleiro de xadrez, com todas as suas peças espalhadas. Depois, uma cai- xa cheia de fotografias. Fotos antigas, amareladas. Uma delas mostrava uma menina de cabelo escorrido como o dela, descalça, encostada em um muro todo manchado e com um vestidinho branco, bem antigo. A menina era a cara da Alice. E o Baú do Sótão do Espelho? Quanta coisa tinha lá dentro! Roupas de alguma menina assim da idade dela, mas de um tempo em que roupa de menina era cheia de babados e laçarotes. Havia até um chapéu todo enfeita- do, cheio de plumas, que coube direitinho na cabeça da Alice. Encontrou uma pilha de livros. Bonitos, coloridos, de histórias. Alice abriu o primeiro. Estava escrito em inglês e você pode escolher: ou esta história se passa na Inglaterra, ou a Vovó da Alice era neta de alguma inglesa que tinha se mudado para o Brasil há muito tempo. Junto das roupas embabadadas, havia um aven- talzinho com um bolso do lado. Alice experimentou o avental por cima de sua calça e blusa modernas. Com o avental e com o chapéu, mirou-se no grande Espelho e achou-se uma coisa mais ou menos assim como duas pessoas, uma antiga e uma moderna. “Como alguém pode viver no antigamente e no hoje em dia ao mesmo tempo? Bom, acho que é só querer, não é?” Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 13 6/29/18 5:18 PM 14 Continuou remexendo no Baú. Havia uma garrafi- nha com uma etiqueta amarrada no gargalo, onde esta- va escrito “Beba-me”. Mas nada havia dentro dela pra beber. Logo achou uma caixinha onde estava escrito “Coma-me” na tampa. Mas também estava vazia. Descobriu uma pimenteira que também trazia uma etiqueta: “Pimenta da Cozinheira da Duquesa”. “Quem será essa Duquesa?”, cismou a menina. “E por que a cozinheira dela veio guardar esta pimenteira justo no Baú da Vovó?” A pimenteira não estava vazia e, ao ser sacudida quando a menina a tirou do Baú, pelos buraquinhos da tampa saiu uma nuvenzinha de pimenta em pó. E a nu- venzinha flutuou até atingir o nariz da Alice! E, quando pimenta em pó entra por algum nariz adentro, o que acontece é um... – ... AAAA... ... um grande... – ... AAA... ... bem grande... – ... AAA ... ... maior ainda... – ... AAAATTTCHIMMMM! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 14 6/29/18 5:18 PM 15 DIGA A MENTIRA! Você já viu alguém espirrar de olhos abertos? É cla- ro que não. Pra espirrar, todo mundo fecha os olhos bem fechados, bem apertados, não é? Pois foi isso que Alice fez. Mas, quando abriu novamente os olhos... Estava num lugar muito diferente do Sótão do Espelho! Diferente como? Diferente demais, pois Alice viu- -se dentro de uma caverna! Uma caverna úmida, al- tíssima e larguíssima, iluminada apenas por algumas lanternas penduradas ao longo das paredes de pedra. Ao seu redor, percebeu uma porção de pequenos movimentos, uma agitaçãozinha que logo desapareceu pelas escuridões em volta, atrás das pedras, em cada bu- raco ou desvão que houvesse. Dos cantos onde a agitação havia desaparecido, Alice ouvia uma porção de murmú- rios. Um coro de cochichos. Não sentiu medo nenhum. Ela não era de sentir medos assim, só por causa de uma coisa boba como de repente ter saído de um sótão empoeirado e ver-se no meio de uma caverna escura, cercada por uma multidão de cochichadores misteriosos. 2 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 15 6/29/18 5:18 PM 16 E perguntou bem alto, para os murmúrios ouvirem: – Quem é que está se escondendo por aí e cochichando ao mesmo tempo? É brincadeira de esconde-esconde? Pois pra brincar de esconde-esconde a gente tem de ficar bem quietinho no esconderijo, senão a brincadeira não tem graça. O eco de sua voz reboou pelas paredes de pedra. Os cochichos pararam por um segundo e logo voltaram, ainda mais excitados, como se discutissem alguma coi- sa entre eles. Eles? Quem eram esses “eles”? – Quem são vocês? – perguntou Alice, falando bem alto. Os cochichos pararam e uma voz veio do fundo da caverna: – E quem não é você? Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 16 6/29/18 5:18 PM 17 – Quem eu não sou? Eu não sou uma porção de gen- te. Sou uma só. Eu sou Alice. – Alice? – continuou a voz. – Que tipo de Mentira não se chama Alice? – Tipo de mentira?! Que história é essa? Eu não sou mentira nenhuma. Sou uma menina. Dos cantos, de todos os vãos e esconderijos, várias figuras começaram a aparecer. Mas continuaram a dis- tância, ressabiadas, estranhando a recém-chegada. Mes- mo de longe, Alice notou que se tratava de uma porção de gentes, de gentinhas e de gentonas, mas umas gentes estranhas, cada uma diferente da outra. De comum, só tinham duas coisas: todas exibiam narizes compridos e pernas muito curtas, tãocurtas que os pés vinham quase logo depois da barriga, como os pinguins. À frente das gentes, destacou-se um personagem narigudo, de bigode espetado, roupa antiga cheia de ga- lões e com um chapéu de três bicos. Suas pernas eram curtinhas e segurava uma velha lanterna. – Entendi. Agora diga a mentira. Alice achou que seria mais educado chamar aquele engalanado tão pomposo de “senhor” e corrigiu: – O senhor quer dizer “diga a verdade”, não é? – Ora, você não entende de lógica? – devolveu o enga- lanado. – Se você é uma mentira, está mentindo quando diz que se chama Alice e que é uma menina. Pra saber quem você é, eu tenho de pedir que você fale a mentira, porque assim você será obrigada a fazer o contrário, que é falar a verdade, porque você é uma mentira mentirosa, Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 17 6/29/18 5:18 PM 18 e nós ficaremos sabendo que tipo de mentira você é. Isso porque, se você for uma verdade, é nossa inimiga e temos de botar você pra fora daqui. – Não estou entendendo nada – protestou Alice. – O senhor deve ser o chefe de todos, não é? Quem é o senhor? – Eu não sou o chefe e não sou o Barão de Minch- -ráuzen, e você não pode me chamar de Barão Mimi. Alice fez um “puf” de chateação: – Eu não perguntei quem o senhor não é. Já sei que o senhor não é qualquer pessoa que eu já vi antes. Quero saber quem o senhor é. – Eu sou uma verdade. Alice entendia cada vez menos: – Uma verdade? Mas o senhor não disse que as ver- dades são suas inimigas? – Não disse. “Vim parar numa terra de malucos!”, pensou a menina. “Bom, se eles são loucos, eu tenho de fazer o que ele pediu: pensar com a lógica dos loucos. Pra mim, que não sou nem um pouquinho louca, é lógico que esse sujeito é um grande mentiroso. Hum... deixe-me ver... Ele me mandou ‘falar a mentira’ e disse que eu sou uma mentira que precisa ser mandada falar a mentira pra ser obrigada a falar a verdade verdadeira. Acho que é isso. Vou jogar o jogo dele.” Voltou-se para o engalanado e ordenou: – Diga a mentira, toda a mentira, somente a menti- ra, nada mais que a mentira. Quem é o senhor? Quem são vocês? Que lugar maluco é este? Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 18 6/29/18 5:18 PM 19 O engalanado tirou um lenço rendado da manga do casaco e enxugou a testa: – Muito bem, eu sou o governador de todas as mentiras do País da Mentira. Sou o famoso Barão de Minch-ráuzen, mas você pode me chamar de Barão Mimi. A boca de Alice não se escancarou como a minha se escancararia se, de repente, eu estivesse em uma ca- verna escura e úmida, em pleno País da Mentira e na frente do mentiroso-chefe, porque Alice não era de se escancarar à toa: – E por que vocês estavam querendo brincar de es- conde-esconde comigo? – Nós, as Mentiras, vivemos brincando de esconde- -esconde, porque mentira vive escondida. É por isso que moramos nesta caverna, porque mentira tem de se es- conder em esconderijos, senão todo mundo descobre. Esconde-esconde é conosco mesmo. A gente só não pode brincar direito é de pegador. – Por quê? – Porque mentira tem perna curta e todo mundo pega a gente fácil, fácil. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 19 6/29/18 5:18 PM 20 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 20 6/29/18 5:18 PM 21 VERDADE É UMA MENTIRA MAL CONTADA Alice estava começando a achar que a maluquice do Barão até que tinha a sua lógica. A menina começava a entender que a coisa era bem simples: bastava fazer aquele pessoal falar mentira falando a verdade. Ou falar a verdade falando mentira, ou... sei lá. A Alice estava entendendo direito. Eu é que não entendi nada! – Quer dizer, então, Barão Mimi, que todas essas gentes estranhas daqui são mentirosas? A expressão do Barão mudou e o mentiroso veio com esta: – Não. Essas pessoas são incapazes de dizer uma mentira. Aqui tudo o que se diz é verdade verdadeira. – Como?! – Você jamais ouvirá uma mentira por aqui. Eu, por exemplo, quando estava caçando nas estepes da Rússia, encontrei de repente um lobo que abria a boca, faminto, prestes a pular em cima de mim. Mas minha espingarda estava descarregada. Foi então que eu... “Ai, ai, ai!”, pensou a menina. “Pelo jeito, a ordem que eu dei pra que ele parasse de mentir como um doido já perdeu o efeito...” 3 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 21 6/29/18 5:18 PM 22 E reforçou: – Barão Mimi: diga a mentira, toda a mentira, so- mente a mentira, nada mais que a mentira. Na mesma hora, a expressão do Barão voltou ao normal (ou ao anormal, sei lá!) e ele mudou o discurso: – Isso. Todos nós somos mentiras. E olhe que toda hora aparece por aqui alguma mentira nova, como você. O que esse povo inventa de mentira você não faz ideia! Por isso, temos por aqui todo tipo de mentira. Mentiras diferentes, mentiras de todo jeito. – Ora, Barão! Mentira é sempre igual. É uma coisa feia, muito ruim, muito má! – Espere um pouco, menina, espere um pouco. Você ainda não viu nada, se pensa que mentira é só coi- sa feia. Eu sei que, lá no mundo das gentes que pregam mentiras e nos inventam, todos são hipócritas e vivem falando mal de nós, as Mentiras. Mas dizer a verdade nem sempre é possível. A vida, só com a Verdade, torna- -se insuportável! – Não! – impacientou-se a menina. – Só a Verdade é lógica! Só a Verdade é justa! Vocês não sabem o que é a Verdade! – Sabemos sim! A discussão entre os dois começava a esquentar e várias Mentiras em volta começaram a cercar Alice, palpitando. – Sabemos sim! Sabemos sim! Sabemos sim! Uma delas, com cara de menino travesso, puxou Alice pela manga e disse, rindo: Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 22 6/29/18 5:18 PM 23 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 23 6/29/18 5:18 PM 24 – Verdade é uma Mentira mal contada! Outra, com cara de cigana, virou Alice para o seu lado e afirmou, cara a cara: – Verdade é a Mentira que está acontecendo! Uma mentira engraçada, igualzinha a uma bone- ca de pano, puxou o avental de Alice, fazendo a menina baixar a cabeça para ouvi-la: – Verdade é uma Mentira bem pregada, dessas que ninguém desconfia! Pelo jeito, eram todas as Mentiras contra Alice, mas ela não se entregava, porque não conseguia se es- quecer da mentira do Juninho: – Vocês estão querendo é me confundir! Mentira é uma coisa que faz mal às pessoas! O Barão afastou delicadamente as Mentiras que cercavam Alice e continuou, com a calma de um pro- fessor: – Ora, Mentira Alice, nós não queremos fazer mal às pessoas. Podemos até ajudá-las! Alice não aceitou: – Ajudar?! Mentiras prejudicam, não ajudam! O Barão sacudiu a cabeça, insistindo: – Raciocine comigo: já pensou se os jogadores de cartas não usassem o Blefe? – Blefe? O que é isso? – É aquele ali, veja! Alice viu um sujeito de bigode fininho e colete colorido, com as pontas de uma porção de cartas de baralho aparecendo em todos os bolsos. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 24 6/29/18 5:18 PM 25 – O Blefe – continuou o Barão – é uma mentirazinha desafiadora que serve pra fazer os adversários pensarem que o blefador tem nas mãos um jogo melhor do que o deles, caem no engano e acabam perdendo a partida. Alice tocou o queixo com um dedo, pensou um pouco e respondeu: – Bom, quando eu jogo mico-preto com o Juninho e os outros amigos, eu sempre finjo que o mico não está co- migo para o Juninho pensar que o danado está na mão de algum outro jogador. Isso é um blefe? – É exatamente isso. – Nesse caso, acho que os jogos de carta iam perder toda a graça sem o senhor Blefe... – É claro! E já pensou se as crianças reinadoras sempre confessassem suas peraltices? – Hum... Aí, todas as crianças iam ter de ficar de castigo o tempo todo... – Que coisa mais triste, não é? – continuou o Barão. – E já pensou se os médicos dissessem sempre a verdade para seus pacientes que estão prestes a bater as botas? Verdades do tipo “Mas com que cara mais pálida o se-nhor está! Garanto que não passa de hoje à noite!”. – Coitados! – lamentou a menina. – Aí os moribundos iam calçar as botas do desespero antes de bater as outras... – Está vendo? Você tem de concordar comigo que as mentiras podem ser uma escolha muito boa. E já pensou se... Alice achou que o Barão estava tentando enganá-la, na certa porque o efeito da ordem de dizer a mentira já estivesse enfraquecendo, e reforçou: Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 25 6/29/18 5:18 PM 26 – Não me enrole, Barão Mimi! Diga a mentira, toda a mentira, somente a mentira, nada mais que a mentira! – Eu não estou falando verdade nem mentira, Men- tira Alice. Eu estou ar-gu-men-tan-do! – Pois eu não aceito esses argumentos. Mentira é o contrário da verdade e pronto! – Que nada! As mentiras são diferentes como as pessoas são diferentes. Aqui, no esconderijo do País da Mentira, tem a mentira que você quiser. Alice não tinha se esquecido da mentira do Juni- nho e reclamou: – Eu não quero mentira nenhuma, Barão Mimi. Só estou interessada num tipo de mentira. É uma mentira horrível, uma mentira que... – Não, não, não! Não escolha ainda, sem ter co- nhecido todas nós. Você vai ficar até tonta com a nossa variedade! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 26 6/29/18 5:18 PM 27 MENTIRAS DE TODO JEITO O Barão levantou um pouco mais a lanterna, ilumi- nando melhor a menina, e falou, bem alto: – Queridas Mentiras, quero apresentar uma nova Mentira que foi inventada ainda agorinha. O nome dela é Alice. A Mentira Alice, que é bem bonitinha, não deve prejudicar ninguém. As gentes, as gentinhas e as gentonas já estavam por ali mesmo e não faziam outra coisa senão examinar a recém-chegada. E a recém-chegada pôs-se a observar atentamente aquele povo tão estranho: havia uns feiosos, barbudos, e outros até pareciam pessoas comuns. Havia alguns bonitinhos, como um bebê de pernas curtinhas que era a cara do Juninho, se o Juninho ainda fosse um bebezinho. – Mas, Barão Mimi, mentira é coisa feia. Aqui tem umas que não são lá essas belezas, mas mentira tem de ser muito pior que isso. Por que vocês não são tão feios como as mentiras devem ser? – perguntou a menina. – Ora, Alice! Quando eu estava lutando na Guerra da Crimeia e os russos avançavam com seus canhões, eu... 4 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 27 6/29/18 5:18 PM 28 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 28 6/29/18 5:18 PM 29 “Ai, ai, ai!” – Diga a mentira, toda a mentira, somente a mentira, nada mais que a mentira. Imediatamente, o Barão mudou o assunto: – Como eu ia dizendo, não são todas as mentiras que são feias. Ah, não! Depende da mentira – e o Barão apontou um deles, com cara de gaiato. – Examine, por exemplo, nosso amigo ali. – Aquele que não para de rir? Quem é ele? – É o Primeiro de Abril. Vive fazendo brincadeiras, mas tudo coisa pequena, sem má intenção nenhuma. É parente da Potoca, aquela ali, miudinha, que só preten- de divertir. – E aquele ali, com cara de bobo? – Aquele é o Engano. É parente da Bobagem. Gente boa, que não faz mal a ninguém. É como o Mal-Entendi- do, que, no fundo, não passa de um distraído. A atenção de Alice foi atraída por uma outra, uma mulherzinha que batia com a palma da mão na testa a toda hora. – Estranhou essa? – riu-se o Barão. – Essa é a Gafe. É casada com o Fora. Nem são bem mentiras. A Gafe, por exemplo, é sobrinha do Engano. Todos uns bobalhões! Havia duas mentiras ridículas, com línguas com- pridas, que não paravam de cochichar uma no ouvido da outra. O Barão apresentou-as, com um sorriso: – Essas são quase gêmeas. Uma é a Fofoca e a outra é o Fuxico. São quase iguais, mas têm de tomar cuidado... – Por que cuidado? Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 29 6/29/18 5:18 PM 30 – Porque, se exagerarem nas fofocas e nos fuxicos, elas podem virar uma mentira muito perigosa... Bom, mais tarde você vai ficar sabendo. Antes que Alice insistisse pra ficar sabendo em que as duas se transformariam, uma mentira com cara de boba tropeçou e estatelou-se no chão. – Ha, ha! – riu-se o Barão. – Essa é uma estabanada! É a Patacoada! Ninguém acredita nela. É igual à Lorota, uma brincadeirinha à toa! – E aquela ali? A menina apontava para uma gordona, toda altiva, supermaquiada e empetecada como se estivesse pronta para o Baile da Cafonice. – Aquela? Oh, ninguém simpatiza com ela. É a Ma- dame Vanglória. Pensa que é melhor do que as outras! Ela até tem um filho. É aquele jovenzinho ali, todo em- polado. O nome dele é Bravata. Vive se bacaneando! No fundo do grupo havia uma figura com jeito de professora, vestindo uma túnica branca. Conversava com outra mulher, que tinha um olhar sonhador e a toda hora mergulhava uma pena de ganso num tinteiro e punha-se a escrever num caderno bem grande. O Ba- rão notou que Alice examinava as duas e apresentou-os: – Essas são duas joias do País da Mentira. Aquela com cara de grega é a Fábula e a outra é a Ficção, que vive criando todo tipo de história, de conto, de poesia, de novela, coisas assim. Alice aproximou-se da personagem que escrevia com a pena de ganso e notou que escorriam lágrimas em seu rosto. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 30 6/29/18 5:18 PM 31 – Diga a mentira – ordenou, já se prevenindo de mais alguma maluquice. – Por que a senhora está cho- rando? – Não estou chorando – respondeu a escrivinhadora, sem parar de escrever. – Estou escrevendo um poe ma muito triste e tenho de fingir tão completamente, que chego a fingir que é dor a dor que deveras sinto... “Ai! Nem adiantou mandar que ela falasse a menti- ra...”, concluiu a menina. “Até falando a verdade essa tal de Ficção vem com maluquices!” Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 31 6/29/18 5:18 PM 32 O Barão comentou: – Está vendo, Mentira Alice? Nem esta nem a Fá- bula dizem a verdade, assim, na batata, pois tudo o que elas contam não aconteceu. Alice discordou: – Ora, mas fábulas e histórias não são mentiras! São coisas inventadas pra agradar os outros. Eu adoro histórias e acho um desaforo chamar isso de mentira! – Não é mesmo? – concordou o Barão. – Mas, como o que elas dizem é tudo inventado, as pobres têm de vi- ver aqui, no País da Mentira. – Pois eu acho isso uma coisa muito errada – pal- pitou a menina. – Em vez de morar no País da Mentira, essas senhoras deviam se mudar para o País da Ima- ginação, onde elas ficariam muito mais confortáveis do que nessa caverna maluca! O Barão fez um gesto com a cabeça, concordando: – Você disse “Imaginação”? Então isso é com aque- la menina ali. Veja. O que Alice viu foi uma garotinha que flutuava no ar, como um anjo, feliz da vida, sempre contente. – E que tal esta outra? É a Imaginação das Crian- ças. O nosso xodó. A menininha Imaginação era uma doçura mesmo, e Alice aproveitou pra apontar para o bebezinho que era a cara do Juninho: – E este, Barão? – Outra doçura, Alice. Esta é a Mentira Inocente. A gente se diverte demais com ela, e todo mundo quer pegar a Mentira Inocente no colo. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 32 6/29/18 5:18 PM 33 Alice olhou bem para o bebezinho e franziu as so- brancelhas: “Será?...” Mas seu pensamento foi interrompido pelo Barão Mimi, que apresentava uma senhora, toda enrugadinha, de touca e saia rodada, com os olhos mais bondosos que Alice já tinha visto. – Veja esta, Mentira Alice. É o Conto de Fadas! Alice olhava fascinada para a aparição sorridente do símbolo de tantas histórias emocionantes que a Vovó sabia contar, enquanto o Barão continuava: – Já sei que você vai dizer que Conto de Fadas não é mentira, Mentira Alice. Mas gente adulta vive sorrindo com superioridade e dizendo que lobos que falam com meninas de chapeuzinho vermelho e mocinhas que dei- xam o cabelo crescer mais que a altura de uma torre não passam de bobagens. E, se a Bobagem tem de viver aqui, no País da Mentira, o Contode Fadas também, não é? – Não é não, Barão Mimi – protestou Alice. – Boba- gem é dizer que Chapeuzinho Vermelho e Rapunzel são bobagens! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 33 6/29/18 5:18 PM 34 A BOA MENTIRA A cara do Barão, como já vinha acontecendo de vez em quando, mudou completamente, e o engalana- do personagem empolou-se, retomando suas velhas mentiras: – Aproveitando a ocasião, agora eu queria lhe con- tar sobre o dia em que os russos estavam bombar deando nossas tropas na Guerra da Crimeia e eu tinha de atra- vessar as linhas inimigas pra pedir reforço ao nosso ge- neral. Daí, como eu vi uma bala saindo de um de nossos canhões, não tive dúvida: agarrei-me na bala e... “Ai, ai, lá vamos nós de novo!” – Diga a mentira, toda a mentira, somente a menti- ra, nada mais que a mentira. – Como eu ia dizendo, nós somos mesmo muito dife- rentes. Eu, por exemplo, além de Barão de Minch-ráusen sou conhecido como a Bazófia, um tipo de mentira que se conta pra todo mundo pensar que a gente é mais do que realmente é. Nessa hora, Alice percebeu uma senhora, com a cara mais bondosa do mundo, dizendo para a exagerada Mentira Vanglória: 5 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 34 6/29/18 5:18 PM 35 – Como a senhora está elegante! Como está bonita! O Barão notou que Alice sorria vendo a senhora mentir para a outra, que suspirava com o elogio, feliz da vida, e explicou: – Esta senhora é muito querida por aqui, Mentira Alice. É a Mentira Caridosa. – Caridosa? Não entendi... – É fácil: vamos dizer que a sua vizinha acabou de ganhar nenê. Mas um nenê – sabe? – do tipo feinho, todo amassadinho, de orelha de abano, mais parecendo um joelho enrugado. E lá vem sua vizinha, toda lampeira, mostrar o filhinho pra você. O que você vai dizer? Acha que é justo dizer a verdade: “Mas que porcaria de bebê a senhora tem”? Alice torceu o nariz: – Ora, é claro que não! Num caso como esse, eu ia fazer um agradinho no queixo do bebê e dizer “Mas que gracinha! Bilu-bilu-bilu!”. O Barão riu-se às gargalhadas: – Ha, ha! Está vendo? Nessa hora você usa os servi- ços de nossa amiga ali, a Mentira Caridosa! Alice teve de confessar que o Barão estava certo: – É... acho que várias vezes eu usei essa Mentira Ca- ridosa. Semana passada, minha tia apareceu em casa de roupa nova, uma blusa roxa com bolas cor de abóbora e uma calça verde-alface, toda justa. A coitada veio se exibindo, crente que estava elegantérrima e... o senhor sabe o que eu tive de dizer? – Acho que sei... Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 35 6/29/18 5:18 PM 36 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 36 6/29/18 5:18 PM 37 – Eu tinha vontade de dizer que ela estava horro- rosa, mas engoli em seco e disse: “Mas como a senhora está... hum... elegaaaante, tchi-tchi-a...” – Está vendo? Você é uma Mentira Mentirosa das boas! Não deve ser uma mentira muito forte, das bem pregadas, porque seu narizinho é muito pequeno e suas pernas não são curtas o bastante. Só precisamos desco- brir direitinho qual é o tipo exato de mentira que você é, pra saber como usá-la na hora certa. O grupo, de repente, abriu-se, dando passagem a uma visão deslumbrante: apesar de ter um nariz um pouco espetado, era a mais linda fada que Alice jamais tinha visto desenhada em seus livros de histórias. Usava um vestido leve como o ar, que brilhava como se um céu azul claro pudesse mostrar-se estrelado feito noite de lua nova. A menina ficou maravilhada! Nunca poderia ima- ginar que haveria de encontrar uma beleza daquelas justo no País da Mentira! – Barão! Quem é essa? Orgulhosamente, o Barão fez uma mesura em dire- ção à fada e apresentou: – Mentira Alice, conheça a nossa rainha: a Boa Mentira! – Boa Mentira? Que nem a Mentira Caridosa? – Ainda melhor. Ela é usada quando alguém falta com a verdade pra ajudar outro alguém sem prejudicar ninguém. A Fada Boa Mentira mente pra proteger pes- soas e salvá-las das dificuldades. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 37 6/29/18 5:18 PM 38 – Ela é linda mesmo, Barão Mimi! O Barão fez que sim com a cabeça e continuou: – Dizem que, do Outro lado, há uma jovem que pa- rece uma cópia desta, mas isso só pode ser inveja desse povo sem graça lá do Outro Lado! – Outro lado? Que outro lado é esse? Hum... já sei. Deve ser o País da Verdade, não? – Sim, o nosso grande inimigo! É como a “cara” da “coroa” e a “coroa” da “cara”. As duas vivem grudadas, mas nunca se encontram. E é mesmo muito melhor que nunca se encontrem! Mas, infelizmente, essas danadas do País da Verdade vivem querendo nos dominar. Mais que isso: vivem querendo acabar com a gente! À frente de Alice, a Boa Mentira resplandecia, enchendo de luz a imensa caverna. – Ah... – suspirou a menina. – Seria muito triste se alguém acabasse com uma fada assim, tão maravi- lhosa... Alice lembrou-se daquela vez em que, sem querer, tinha quebrado um bibelô na sala da casa do Juninho e o menino, para protegê-la, acusou-se para a mãe, dizen- do que tinha sido ele mesmo o culpado. “Puxa... Naquele dia, o Juninho usou a Fada Boa Mentira pra me ajudar...” O Barão Mimi continuava orgulhoso, apresentando seus governados: – Está vendo, Mentira Alice? É por isso que nós, as Mentiras, vivemos em guerra com as Verdades. As Mentiras são muito mais interessantes. Nós damos um Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 38 6/29/18 5:18 PM 39 jeito nos problemas, nós disfarçamos as dificuldades e ajudamos o mundo a ser um lugar mais tranquilo, mais interessante de viver. Nós... – Ora, senhor Barão – cortou Alice. – Quer dizer então que neste país maluco só tem mentira boazinha? Essas mentirinhas que o senhor me apresentou nem po- dem ser chamadas de Mentiras. São Falsas Mentiras. E as Mentiras de Verdade? Hum... quer dizer... e as men- tiras mesmo, as MENTIRAS com letras grandes? Aque- las que fazem mal a todo mundo? Aquelas que... O Barão sorriu amarelo e confessou: – Sei, Mentira Alice. Sei muito bem do que você está falando. Mas essas são tristemente especiais. Você tem certeza de que quer conhecê-las? Então, venha comigo. Vamos conhecer o Zoológico das Piores Mentiras! Mas prepare-se, porque o negócio não é brincadeira não! “Ah, aposto que agora eu pego a Mentira do Juni- nho!”, pensou Alice, na mesma hora. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 39 6/29/18 5:18 PM 40 O ZOOLÓGICO DAS PIORES MENTIRAS O Barão ergueu a velha lanterna e guiou a menina para os fundos da caverna, seguido por um cortejo es- tranhíssimo, formado por uma multidão de mentiras de pernas curtas. Quanto mais andavam, mais frio ficava o ar, e o lu- gar pareceria assustador para qualquer pessoa que não fosse a Alice. Não. Ela não iria ficar assustada como uma boba, justo na hora em que estava perto de encon- trar a Mentira do Juninho. Além disso, ela queria ter o prazer de provar ao Barão que mentira é uma coisa feia e pronto. Chegaram a um ponto em que a caverna se afunila- va e dava numa porta maciça, de ferro. O Barão tirou da cinta uma grande chave e enfiou-a na fechadura. Nhéééc... – fez a porta, abrindo-se pesadamente. Logo depois do nhéééc, ouviu-se um urro assombro- so, reboando do outro lado da porta. – Ai! – exclamou o Barão. – Deve ser a Mentira Ca- beluda, furiosa novamente! 6 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 40 6/29/18 5:18 PM 41 Ao ouvir falar “Mentira Cabeluda”, a maior parte das mentiras de pernas curtas que acompanhavam a du- pla recuou, apavorada: – A Mentira Cabeluda! A Mentira Cabeluda! E essa maior parte escafedeu-se dali. Só uma meia dúzia das mais corajosas continuou junto dos dois. O Barão pegou no braço da menina e procurou acalmá-la: – Não tenha medo, Mentira Alice. As grades das jaulas são bem fortes. – Não estou com medo, Barão – tranquilizou Alice. – Estou é ansiosa pra conhecer essa fera. Vamos! E passou na frente do Barão, entrando corajo- samente no Zoológicoda Piores Mentiras do País da Mentira. – Cuidado, Mentira Alice! – avisou o mentiroso- -chefe. – Não chegue perto das grades! A Menina viu-se num corredor largo e comprido, ladeado por jaulas, como seria em um zoológico co- mum, se os zoológicos comuns fossem instalados dentro de cavernas. O urro assustador vinha do fundo do corredor, mas, quando os visitantes foram percebidos pelos ocupantes das outras jaulas, um coro de urros medonhos juntou-se ao urro inicial. Foi um pandemônio! As poucas mentiras que ti- nham tido a coragem de entrar com o Barão e com Alice deram meia-volta e desapareceram na mesma hora. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 41 6/29/18 5:18 PM 42 – Que bagunça, Barão! – protestou Alice, sem medo nenhum. – Com esse barulho todo, nem vai dar pra gen- te conversar! Por sorte, naquele país esquisito o comando mági- co funcionava para enfrentar qualquer dificuldade, e o Barão gritou: – Digam a mentira! Toda a mentira! Somente a mentira! Nada mais que a mentira! Na mesma hora, os urros cessaram e Alice sentiu- -se aliviada com o silêncio: – Ufa! Agora melhorou. Mas eu não entendi uma coi- sa, senhor Barão. O que é que tem a ver mentira com urros? O Barão sorriu: – Fácil, Mentira Alice! As mentiras perigosas ur- ram urros de mentira, é claro. E ordenar que elas só falem a mentira obriga que as danadas fiquem quietas, porque, se o urro é de mentira, o silêncio é de verdade, compreendeu? – Não. – Ótimo! Se você disse “não”, e é uma mentira men- tirosa, quer dizer que você diria “sim” se fosse verdade e isso mostra que você entendeu tudo direitinho. – Mas eu não entendi nada! – Está bem, Mentira Alice, está bem. Já entendi que você entendeu. Não precisa mentir mais. “Esse Barão ainda vai acabar passando a loucura dele pra mim!”, pensou a menina. “Ele está convencido de que eu sou uma mentira como todas as outras. Bom, o jeito vai ser aceitar a maluquice dele...” Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 42 6/29/18 5:18 PM 43 – Venha, Mentira Alice. Venha conhecer as menti- ras de que todo mundo tem medo! Aposto que você vai reconhecer algumas, sem que eu tenha de apresentar. Veja, esta aqui, na primeira jaula. Alice olhou para dentro da jaula e lá viu um ho- mem de terno e gravata e charuto na mão que, ao perce- ber que tinha plateia, começou a discursar: – Meus queridos eleitores! Vocês sabem que eu sempre dediquei minha vida à felicidade de vocês! Vo- tem em mim, que eu prometo construir três pontes, uma em cima da outra, sobre o rio que atravessa vossa cida- de. Se não houver nenhum rio atravessando a cidade, podem deixar que eu construo também o rio! Prometo que... prometo que... prometo que... O Barão chegou bem perto de Alice e perguntou: – E então? Preciso contar quem é esta daqui? – Não – respondeu a menina. – Esta é fácil. É a Mentira de Político. – Fácil mesmo. Ela tem uma irmã gêmea, a Dema- gogia, muito parecida com ela. Ao lado havia uma jaula ocupada por uma figura ma- gra, encovada, barbada, que dava desprezo só de olhar. – Essa daí, Mentira Alice, é o risco que correm a Fofoca e o Fuxico. Se exagerarem, as duas podem ficar como ela. É a Difamação! – Que horrível, Barão Mimi! Mas que cheiro tão ruim é esse? Puf! Vem daquela ali. Parece até que nun- ca tomou banho na vida. Por que vocês não a obrigam a tomar um banho? Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 43 6/29/18 5:18 PM 44 – Não é possível, Mentira Alice – respondeu o Ba- rão. – Essa é a Mentira Deslavada. Se a gente der um banho nela ela vira Mentira Lavada e perde a razão de continuar mentindo. – E esta outra? – apontou Alice, procurando ficar lon- ge da outra mentira tão fedida. – Gozado... uma hora ela pa- rece uma coisa, mas logo fica diferente! Por que isso? – Porque ela é a Falsidade, Mentira Alice. Vive mu- dando de aspecto. E note a companheira de jaula dela: é a Fraude, que volta e meia a gente encontra abraçada com a Mentira de Político. A Fraude, por sua vez, é irmã gêmea daquela figura horrorosa ali: é a Corrupção. Alice ainda examinava o desprezível aspecto da Corrupção quando, da próxima jaula, duas vozes roucas começaram a berrar insultos. Cada tipo mais tremendo do que o outro, e o Barão, segurando a menina pelo bra- ço, ajudou-a a afastar-se dali. – Vamos pra longe, Mentira Alice. Essas duas nem dá pra aguentar! Tape os ouvidos. Essas são a Injúria e a Calúnia! Alice parou de repente e fez força pra livrar-se das mãos do Barão: – Espere um pouco, Barão Mimi! Essa Calúnia eu quero ver de perto. Acho que é a ela que eu procuro! Tapou os ouvidos pra não ouvir tantos xingamentos e falsas acusações e encarou o bicho feio que o mentiroso- -chefe tinha apresentado como sendo a Calúnia. Mas achou estranho: aquela Mentira não tinha o menor jeito do Juninho... Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 44 6/29/18 5:18 PM 45 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 45 6/29/18 5:18 PM 46 – Está bem, Barão. Acho que não deve ser esta. Va- mos em frente. A próxima era uma personagem com ar bem sério, que olhou firme nos olhos da visitante: – Pode confiar em mim! Pode confiar em mim! – Que coisa maluca! – comentou Alice. – Por que eu deveria confiar nela? Que mentira é essa? O Barão baixou a cabeça. Mesmo sendo um menti- roso de pai e mãe, ele tinha seus princípios: – Essa é uma vergonha, Mentira Alice. É a Traição... – Ah, dessa eu quero distância – disse a menina. – Vamos conhecer a próxima. Enquanto se afastava da Traição, Alice não parava de pensar: “Até agora, nem uma dessas se parece com a Men- tira do Juninho. Onde é que essa danada se escondeu?” Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 46 6/29/18 5:18 PM 47 A MENTIRA CABELUDA Logo adiante, uma mentira franzina encolhia-se. Assim que percebeu a aproximação dos dois visitantes do Zoológico das Piores Mentiras, furtivamente procu- rou esconder-se nos fundos da jaula. – E essa daí, tão tímida? Quem é? – Tímida? Traiçoeira, você deveria dizer. Dessa ninguém gosta. Vive escondida aí, sem amigos nem en- tre as mais horrorosas das mentiras. É a Mentira Covar- de que, por desleixo ou preguiça, procura esconder res- ponsabilidades não assumidas. Uma coisa doida que... ahran... ahum... Coisa doida aconteceu quando eu che- guei a São Petersburgo, depois da maior nevasca que o mundo já viu! – Ai, ai, ai! Barão, diga a men... – Eu estava exausto, amarrei o cabresto do meu cavalo na ponta de uma vareta de ferro que estava es- petada na neve e acomodei-me pra passar a noite. De manhã, quando acordei, estava deitado na praça de uma cidadezinha e... nada do meu cavalo! Teria sido roubado durante a noite? – Diga a ment... 7 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 47 6/29/18 5:18 PM 48 – Que nada! É que eu havia parado pra descansar justo em cima de uma cidadezinha que tinha sido totalmente coberta pela neve no dia anterior. Com o sol da manhã, a neve derretera sem que eu percebesse e, adormecido, fui descendo suavemente, até continuar dormindo no chão firme da praça. Mas o meu cavalo relinchava de desconforto – coitado! –, amarrado como estava na cruz do campanário da igreja, cuja ponta eu tinha confundido com uma vareta de ferro espetada na neve. Daí, não tive outro jeito senão... Como você já percebeu, o comando de dizer somente mentiras pra parar com a confusão daquele país tão ma- luco tinha uma validade temporária. Por isso, naquele instante, enquanto o Barão punha-se a contar suas po- tocas, urros ameaçadores novamente levantaram-se de todas as jaulas! O efeito do comando havia se esgotado, tanto para o Barão quanto para as outras mentiras. E Alice tomou as devidas providências, berrando com toda a força: – Digam a mentira, toda a mentira, somente a men- tira, nada mais que a mentira! Como você já esperava, os urros cessaram na mes- ma hora e o Barão retomou o assunto, como se nada ti- vesse acontecido: – Como eu ia dizendo, a MentiraCovarde é... Alice cortou, apontando pra uma nova jaula: – Barão Mimi, veja que interessante: esta daqui fi- cou quietinha enquanto todas as outras mentiras urra- vam. Por quê? – Pif! – fez o Barão, com desdém. – Dessa aí eu pas- so longe! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 48 6/29/18 5:18 PM 49 – Por que, Barão? Quem é ela? – É a mais desprezada por todas nós, Mentira Alice. É a Mentira por Omissão, uma mentira muda, a Menti- ra que mente mesmo sem falar! “Puxa, numa coisa pelo menos esse mentiroso- -chefe tem razão”, raciocinou Alice. “Aqui tem mentira pra todo gosto! Ou pra todo desgosto...” Os dois continuavam avançando através do longo corredor úmido e mal iluminado, entre as jaulas que aprisionavam os mais tremendos monstros. À medi- da que avançavam, um fedor começava a empestear tudo em volta. Já estava se tornando insuportável, e Alice ia protestar com o Barão, quando, desta vez bem de perto, ouviu-se novamente o tremendo urro. E que urro! – Barão! – exclamou a menina. – O que é isso? Antes que o mentiroso-chefe pudesse responder, Alice viu-se ao pé de uma jaula imensa e, do outro lado das grades, bem pertinho dela, lá estava uma figura as- sustadora de verdade! Alice deu um pulo pra trás, refugiando-se atrás do Barão, e viu que até mesmo o mentiroso-chefe, governa- dor do País da Mentira, estava tremendo de medo. E ninguém teve de apresentar a figura monstruosa para Alice... Era um bicho enorme, peludo, barbado, com uma cabeleira comprida e desgrenhada, de onde pululavam piolhos e baratas... Tinha os olhos esbugalhados e a bocarra aberta, de onde escorria uma baba grossa e Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 49 6/29/18 5:18 PM 50 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 50 6/29/18 5:18 PM 51 esverdeada. E, além da baba, daqueles beiços bafejava-se um mau hálito capaz de infeccionar quem chegasse mais perto! Não, o monstro não precisava ser apresentado. Só poderia ser... – A Mentira Cabeluda! Que horror! Aquilo deveria representar a soma de todas as barbaridades que Alice tinha conhecido no Zoológico das Piores Mentiras. Aquela era a Pior Menti- ra, nada poderia ser tão horrendo quanto ela! “A Mentira do Juninho?”, pensou a menina, tre- mendo de emoção. Não, não poderia ser, nem de longe. Da fala do seu amigo querido jamais poderia sair alguma coisa medo- nha como aquela! “Será... será que eu estou errada?”, continuava ela a matutar. “Então, qual será a Mentira do Juninho?” Horror! Nesse momento, as garras peludas da Men- tira Cabeluda sacudiram as grades da jaula. Sua força era tremenda! – Não fuja! Não fuja, Mentira Alice! – gritou o Ba- rão, que já estava mentindo de novo e dizia tudo ao con- trário do que queria. – Fique onde está! Mas o aviso veio tarde demais! A Mentira Cabeluda já conseguira entortar as grades e seu corpanzil medo- nho espremia-se entre elas, procurando escapar! Seus olhos injetados de sangue fixavam-se em Alice. A meni- na era seu alvo! Apavorado, o Barão gritava suas mentiras: Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 51 6/29/18 5:18 PM 52 – Ela não pensa que você não é uma mentira porque suas pernas não são compridas e seu nariz não é peque- no! Ela não quer destruir você! Não fuja! Sem perder a calma, Alice logo viu que era só ti- rar os “nãos” do que o Barão Mimi falava pra entender que a fera babante estava prestes a arrebentar a jaula e devorá-la! O braço peludo da Mentira Cabeluda estendeu-se para Alice. A menina safou-se e correu na direção da grande porta de entrada do Zoológico das Piores Men- tiras. Atrás de si, ouviu um CRÁS! e adivinhou que a jau- la viera abaixo! Passos pesados ressoavam pelas paredes e pelo piso de pedra, correndo pra pegá-la! Mais forte ainda, porém, no meio daquela barulhei- ra toda, a menina ouviu a voz do Barão, agora mudada, que, estranhamente, passava a gritar: – Alice, aprenda a escolher o seu caminho! Você tem de descobrir a diferença! Aprenda a escolher o seu caminho, Alice! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 52 6/29/18 5:18 PM 53 Alice atravessou a porta e viu-se de novo na imensa caverna, lotada por todas as mentiras, que se puseram a correr feito baratas tontas ao ver que, atrás da menina em fuga, a Mentira Cabeluda vinha babando de ódio! Como fugir do monstro? Não parecia haver qual- quer porta ou abertura que servisse para escapar daquela caverna. Tudo continuava bem escuro, sem indicação de uma luz de saída. Repentinamente, a multidão de mentiras abriu-se, formando uma longa ala entre todos eles, como se indi- cassem um caminho para a fugitiva. Alice olhou e, no fim daquela passagem, um grande Espelho flutuava a meio metro do chão! “O Espelho do Sótão da Vovó!” Já sentindo o bafo da Mentira Cabeluda e vendo atrás de si refletida no Espelho a carantonha da fera, prestes a agarrá-la, Alice não hesitou: deu um pulo e atirou-se na direção do Espelho! Enquanto seu corpo atravessava molemente o Es- pelho, como se ele fosse feito de gelatina incolor, a meni- na pensava, aliviada: “Ufa! Que bom voltar para o Sótão da Vovó! Chega da maluquice dessas mentiras!” Fiuuuum... Lá atrás, do fundo da caverna do País da Mentira, continuava a ressoar a voz do Barão Mimi: – Aprenda a escolher o seu caminho! Você tem de descobrir a diferença! Aprenda a escolher o seu cami- nho, Alice! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 53 6/29/18 5:18 PM 54 UMA VERDADE DE PESO O salto de Alice não terminou no Sótão da Vovó. Ah, que lugar mais diferente do País da Mentira, aquele onde Alice aterrissou! Era uma campina vasta, ensolarada, sem uma só nuvem no céu, brilhando de tanta luz! Toda aquela sen- sação de liberdade, porém, tinha um estranho limite: a distância, para todos os lados que olhasse, a menina via grades muito altas, uma fileira de grades, cercando tudo, completamente. Um pouco à frente de onde a menina tinha chegado, havia um caminho de pedras que dava numa encruzilha- da. E ali estava um sujeito obeso, sentado num banquinho. Por incrível que pudesse parecer à menina, o sujeito prote- gia-se debaixo de um guarda-chuva, apesar do bom tempo. Alice andou até ele. Logo que chegou perto, viu que o peso exagerado do gordão forçava o banquinho, que se quebrou, derrubando-o no chão, numa queda espetacular! – Ooops! – fez o sujeito, levantando-se e pegando ou- tro banquinho em uma pilha de banquinhos que tinha atrás de si. 8 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 54 6/29/18 5:18 PM 55 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 55 6/29/18 5:18 PM 56 Voltou a sentar-se e o novo banquinho vergou-se e esfacelou-se, novamente derrubando o pobre homem. – Oooops! – fez ele, sacudindo-se da poeira e ar- mando mais um banquinho, que se arrebentou outra vez, e o desastrado caiu no momento em que Alice per- guntava: – Desculpe, meu senhor. Por que insiste em sentar- -se, se sabe que o banquinho vai quebrar? – Porque sou uma Verdade. E a Verdade tem de es- tar sempre bem assentada – respondeu o gordo, arman- do mais um banquinho do estoque atrás de si e caindo novamente. – Oooops! – Mas então por que o senhor se senta em banqui- nhos fracos como esses? – Porque as bases da Verdade são muito frágeis. Oooops! Desta vez Alice ajudou o caído a levantar-se, comentando: – Mas é que, com o seu peso... O homem interrompeu-lhe a frase: – Este é o Peso da Verdade. Ooops! Alice perdeu a paciência: como ia poder perguntar alguma coisa ao homem, se ele não parava de cair? – Espere um pouco! Fique caído aí só por um minu- tinho. Preciso saber uma coisa. Onde está todo mundo? – Todo mundo está no mundo inteiro. – Ora, o senhor entendeu o que eu perguntei. Não quero saber do “mundo inteiro”. Isso é só um modo de dizer. Onde estão as pessoas deste lugar? Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 56 6/29/18 5:18 PM 57 – Só há um modo de dizer a Verdade – respondeu o outro, levantando-se, sacudindo-see armando um novo banquinho. – E neste lugar não há pessoas. Só há Verdades. – Neste caso, onde estão essas “Verdades”? – Estão na reunião com o Sábio. É pra lá que eu estou indo – levantou-se, sentou-se no banquinho e... – Oooops! – Mas o senhor não está indo para lugar nenhum! O senhor está é tentando ficar sentado nesses banqui- nhos. E devo lhe dizer que não está sendo muito bem sucedido... – É que eu não sei qual desses dois caminhos da en- cruzilhada leva ao Sábio. Por isso, não posso ir pra lugar nenhum! Oooops! Alice desistiu. O gordão era maluco demais. E, já que não tinha mesmo mais nada pra fazer, decidiu que o melhor seria ir para onde estava o povo daquele lugar. O maluco tinha dito que havia uma reunião com um certo “Sábio”. Bom, se o tal Sábio fosse sábio mesmo, talvez pudesse indicar a ela como voltar para o Sótão da Vovó. Mas qual dos caminhos escolher? “Aprenda a escolher o seu caminho, Alice!”, tinha dito o Barão Mimi. “Mas como eu vou conhecer a diferença entre um caminho e outro?”, pensava ela. – É fácil – intrometeu-se o homem, como se tives- se adivinhado seu pensamento. – Há o caminho da Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 57 6/29/18 5:18 PM 58 esquerda e o caminho da direita. É só decidir no par ou ímpar. A sua mão esquerda é ímpar e a direita é par. Jo- gue par ou ímpar consigo mesma e vá pela estrada que ganhar o jogo. A menina achou boa a sugestão, mas perguntou: – E por que o senhor não fez a mesma coisa pra es- colher como chegar à reunião com o Sábio? – Porque as minhas duas mãos são direitas! – Ué... Então não tem ninguém canhoto neste lugar? – É claro que tem. Eles usam a outra mão direita. Resposta mais maluca do que esta Alice nunca ti- nha ouvido, mas achou boa a sugestão do gordo, pois ela sim tinha duas mãos, uma direita e uma esquerda. – Par! Ímpar! Ganhou a direita e para lá encaminhou-se Alice. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 58 6/29/18 5:18 PM 59 VERDADE DE GUARDA-CHUVA O caminho subia por uma pequena ladeira. Che- gando no alto dela, Alice viu um vale com uma multi- dão de guarda-chuvas e sombrinhas coloridas cobrindo quase todos os verdes da paisagem. Bem no centro da multidão, havia um grande tonel deitado sobre a relva. Desceu naquela direção, abrindo caminho entre o mar de uma gente esquisitíssima que, debaixo de seus guarda-chuvas, olhava-a de lado, pelo jeito achando-a muito mais esquisita. A multidão cercava o grande tonel. De dentro dele, Alice viu sair um velho de barbas brancas, vestindo um camisolão surrado e sandálias mais gastas ainda. E o mais engraçado é que o velho saía do tonel já de guarda-chuva aberto numa das mãos e, na outra, uma lanterna acesa, igualzinha à do Barão Mimi! – Bom dia – cumprimentou ela, timidamente. O velho olhou-a firme, examinando-a de alto a baixo: – Quem é você? – Sou Alice... – Alice? Você não é nenhuma Verdade conhecida. Então, deve ser uma Mentira. 9 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 59 6/29/18 5:18 PM 60 Alice fez uma cara desanimada: – Ai, ai, ai! Mais um que me chama de “mentira”! Já estou ficando cansada dessa história. Meu nome é Alice. E eu sou uma menina. Igual às outras! O velho levantou um pouco mais a lanterna e olhou- -a de perto: – Igual às outras?! Pelo que estamos vendo, você é muito pior do que as outras, pois tem pernas compridas. Deve então ser a Mentira de Perna Longa. Se todas as mentiras começarem a ser inventadas do seu jeito, nós nunca mais poderemos pegá-las! Mentiras de Perna Longa! Era só o que nos faltava! Aí Alice protestou: – Escute aqui, seu sábio: em vez de ficar pensando que eu sou uma mentira de perna longa, por que não conclui que, se eu não tenho pernas curtas, eu não sou uma mentira? Não seria mais lógico? – Não – respondeu o velho. – O lógico é concluir que, se as mentiras têm pernas curtas, o aparecimento de uma de perna comprida significa que você é uma menti- ra pior que as outras, pois é uma mentira que mente até o comprimento das pernas, só pra nos enganar! – Isso não é lógico. A lógica é que... O velho levantou uma de suas mãos direitas, inter- rompendo: – Não nos venha falar de lógica! De lógica entende- mos nós! – Ah, é? Bom, eu já me apresentei: sou uma menina e meu nome é Alice. E quem é o senhor? Que lugar é este? Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 60 6/29/18 5:18 PM 61 O velho acalmou-se subitamente e respondeu, de um modo gentil: – Nosso nome é Diógenes de Sínope, mas pode nos chamar de Sábio Didi, se você quiser. Alice olhou em volta, procurando outro velho de camisola e barbas brancas, pra entender quem eram aqueles “nós” a quem o velho se referia. Como não en- controu nenhum, a menina só poderia mesmo chegar a uma conclusão: “Pronto! Fui cair no meio de mais gente maluca! Esse velho fala de si mesmo como se fosse uma porção de pessoas! Bom, o jeito é aceitar o jogo.” – Prazer, Sábio Didi. E por que os senhores ficam segurando essa lanterna acesa, se o tempo não poderia ficar mais claro do que está? – Estamos procurando um homem honesto, que só fale a verdade! – respondeu o velho sábio. – Mas está di- fícil, menina, está difícil... – Oh, então os senhores já aceitaram que eu sou uma menina, não é? Que alívio! – Hum... uma menina? Não é lógico. Por aqui, só quem tem pernas normais somos nós, as Verdades, ou mentiras tão mentirosas que mentem até a própria apa- rência, como as mulheres vaidosas... As suspeitas de Alice confirmavam-se, então. A menina tinha atravessado o Espelho para o Outro Lado. Estava no País da Verdade. Ufa! Agora não precisava mais ficar mandando os outros falarem a mentira, pra que falassem a verdade e deixassem que ela entendesse Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 61 6/29/18 5:18 PM 62 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 62 6/29/18 5:18 PM 63 pelo menos um pouquinho daquela loucura toda aonde seu próprio espirro a tinha levado. – Este é o País da Verdade, não é? – Verdade – respondeu o Sábio Didi. – Aqui você só vai encontrar verdades das mais verdadeiras. Mentira, aqui, não tem vez. Nós, as Verdades, ficamos o tempo todo tentando acabar com as mentiras, assim como as mentiras ficam procurando nos destruir. Mas o problema é que nem nós nem elas podemos ganhar essa guerra... – Por quê? – Porque, pra continuarmos sendo Verdades, pre- cisamos da existência do Outro Lado. Se não houver o inverso da moeda, nós não existiremos mais. Para existirmos, é preciso que haja o avesso de nós mesmos. Do mesmo modo que a Mentira, pra existir, precisa contrastar com a Verdade, a Verdade precisa da exis- tência da Mentira. Se nós destruirmos as mentiras, va- mos ser o quê, já que não teremos nada com que nos comparar? Alice teve de concordar. Era um raciocínio bem maluco, mas parecia lógico. O velho olhava cismado para a menina. Coçou a barba, pensou muito e concluiu: – Hum... acho que agora descobrimos: você é menti- rosamente uma mentira! A menina sacudiu a cabeça, desanimada, sem sa- ber mais o que fazer pra convencer o sábio: – Ai, ai, já cansei de dizer aos senhores que não sou verdade nem mentira, sou uma menina e pronto! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 63 6/29/18 5:18 PM 64 – Você é uma mentira, das mais mentirosas! Sabe como nós descobrimos? Por que você não usa guarda- -chuva. E todas as verdades usam guarda-chuva! – Eu só uso guarda-chuva quando está chovendo! – protestou Alice. – Além do mais, quando eu espirrei, estava sem guarda-chuva. – Quando espirrou? Não entendemos o que tem a ver espirro com guarda-chuva... – Deixem pra lá, Sábio Didi. Mas a minha curiosi- dade é esta mesmo: por que vocês, as Verdades, estão sempre de guarda-chuva aberto, se nem está ameaçando chover? – Se você fosse uma de nós, menina, saberia muito bem que é por causa dela! – Dela? Quem é essa? – Nem adianta contar. Só uma Verdade de verdade poderia compreender o perigo que ela significapara nós! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 64 6/29/18 5:18 PM 65 TEM GENTE QUE NÃO GOSTA DE OUVIR A VERDADE A visita forçada de Alice ao País da Verdade estava sendo bem mais difícil de compreender do que a aven- tura no País da Mentira. Além da história do guarda- -chuva, havia mais dois outros pontos que precisavam ser tirados a limpo: – Sábio Didi, por que tudo aqui é tão iluminado? Por que não há nem nuvens no céu? – Porque a Verdade, pra ter valor, tem de viver às claras. – Hum... é um lugar muito claro mesmo, mas não entendi por que tudo está cercado por grades tão altas... O velho encolheu-se e baixou a cabeça: – Verdade é uma coisa perigosa de se dizer... Por isso, ficamos todas presas aqui, porque tem muita gente que não gosta de ouvir a verdade. Todo mundo adora ser enganado... Alice enlaçou o braço do velho, como se ele fosse um vovô carinhoso. – Oh, Sábio Didi, não fiquem tristes. Podem estar cer- tos de que ninguém pode viver sem a Verdade. Eu mes- ma vim parar aqui porque estava muito triste com uma 10 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 65 6/29/18 5:18 PM 66 mentira. Pois acabei de visitar o País da Mentira e des- cobri que elas são todas diferentes, nem todas são más. Mas agora, conhecendo o seu país, estou vendo que, ao contrário, a Verdade é uma só e... O Velho pôs a mão sobre a mãozinha de Alice: – Uma só? Que nada! Nós somos tão diferentes quanto as Mentiras. Venha. Vamos lhe mostrar. Levantou-se com a agilidade de um jovem e, levan- do a menina pela mão, guiou-a por entre aquele munda- réu de Verdades cobertas com guarda-chuvas: – As Verdades, menina, dependem do ponto de vis- ta, das necessidades, das oportunidades. Por isso, elas sempre são diferentes. Alice viu uma mulher luminosa, radiante. Até o guarda-chuva dela era iluminado! – Esta é a Sinceridade... – Linda! – Aquela ali é a Autenticidade... – Puxa, dessa não dá pra duvidar! – Esta outra é a Exatidão... A Exatidão, ao ser apresentada, aproximou-se de Alice e mediu-a com uma fita métrica. Depois, mediu a barba do Sábio Didi. Por fim, afastou-se, dizendo: – Exato! Chegaram a um sujeito muito elegante, vestido de fraque e cartola. – Este é o Rigor... Ao lado do Rigor, estava outra Verdade, com a cara mais emproada possível. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 66 6/29/18 5:18 PM 67 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 67 6/29/18 5:18 PM 68 – É o Caráter. Não muda nunca de expressão. Em seguida, Alice notou uma jovem sentada à frente de um bastidor, desligada de tudo, sem olhar pra ninguém, que bordava caprichosamente uma linda ta- peçaria. – Esta é uma das mais respeitadas Verdades que te- mos aqui, Alice – explicou o Sábio Didi. – É a Fidelida- de. Nós a chamamos de Penélope. – Esta tem nome próprio? Por quê? – É uma bela história. Uma vez, o marido dela, cha- mado Ulisses, saiu para a guerra e ninguém mais tinha notícias dele. Todo mundo dizia que ele havia morrido em uma batalha contra os troianos. Daí, como o reino de Ulisses era muito rico e como Penélope era muito bonita, vários pretendentes começaram a se aproximar da suposta viúva, querendo se casar com ela. Penélope, muito pressionada pelos pretendentes à sua mão, pro- meteu que escolheria um deles para esposo logo que acabasse de tecer uma tapeçaria. Mas, como ela amava muito o marido e não aceitava que ele tivesse morrido, toda noite desfazia tudo aquilo que havia bordado de dia, de modo que a tapeçaria nunca ficava pronta. E ela es- tava certa: um dia Ulisses voltou da guerra, acabou com os cobiçosos pretendentes e os dois continuaram sendo felizes para sempre! Alice aplaudiu: – Que história linda, Sábio Didi! Essa Penélope ser- viria pra representar a Dedicação, ou o Amor Verdadei- ro, ou... Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 68 6/29/18 5:18 PM 69 – Não, Alice. Isso tudo fica no País dos Bons Sen- timentos. Já fomos lá, quando éramos criança. Mas de- pois acabamos caindo no País dos Maus Sentimentos e deu um trabalhão pra sair de lá. Tinha o Ódio, a Inveja, a Cobiça, a Ganância... Nem queira saber! Chegaram perto de uma outra Verdade, que ficava o tempo todo com o indicador apontando para os outros. – Esta é uma das nossas mais necessárias Verda- des, menina – apresentou o Sábio Didi. – É a Denúncia. Mas vive sempre meio insegura, coitada... – Insegura? Por quê? – Porque, se for confundida com a Delação, ela se torna uma das Piores Verdades! – Não digam, Sábio Didi! Quer dizer que vocês aqui também têm um zoológico? – Não. – E onde estão essas Piores Verdades? – Estão na cadeia. – Puxa... cadeia é pior que zoológico, não é? O Sábio Didi parou subitamente o passeio: – Se elas são piores, têm de ficar num lugar pior. Ficam no Calabouço das Piores Verdades! Alice lembrou-se do sufoco que tinha sido a visita ao Zoológico das Piores Mentiras e já ia perguntar mais sobre o tal calabouço, quando o que viu à sua frente dei- xou-a de boca aberta: – Sábio Didi, quem é essa? Que coisa espetacular! Destacando-se na multidão de Verdades, a menina via a fada mais linda deste mundo! Se não tivesse duas Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 69 6/29/18 5:18 PM 70 mãos direitas e um narizinho tão delicado, Alice podia jurar que era a irmã gêmea da Boa Mentira! E se não estivesse de guarda-chuva aberto, é claro... Da linda fada, seus olhos se voltaram para o sábio, que sorria, enlevado: – O que você está vendo, Alice? – Estou vendo a fada mais deslumbrante deste e de todos os mundos... Os olhos do Sábio Didi encheram-se de lágrimas, emocionado: – Ah, estamos felizes de saber disso, Alice! Se o que você está vendo é mesmo tão maravilhoso assim, isso significa que você é uma ótima menina! Agora te- mos certeza de que você não é uma mentira, pois esta é a Verdade-de-cada-um. A aparência dessa Verdade de- pende de como cada um vê a sua própria Verdade... É você mesma que, no seu íntimo, é tão linda quanto ela! Alice ia até corando com o elogio, quando, de re- pente, aquela festa terminou! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 70 6/29/18 5:18 PM 71 O ATAQUE DA DÚVIDA Uma jovem Verdade vinha correndo de longe, esba- forida, e gritando: – Sábio Didi! Sábio Didi! Ela está nos atacando novamente! Foi uma balbúrdia! Todas as Verdades começaram a correr de um lado pra outro, a encolher-se debaixo de seus guarda-chuvas e sombrinhas, gritando: – Ela! É ela novamente! Estamos perdidos! O velho sábio imediatamente puxou Alice pra bai- xo do seu guarda-chuva: – Proteja-se, menina! Ela é mortal! Alice olhou para o céu. Que coisa mais impressio- nante! Uma revoada de corvos negros cercava uma bru- xa mais horrenda do que a bruxa da Branca de Neve! Cavalgando uma vassoura e dando voos rasantes como um bombardeiro, a danada gargalhava... – Qui-qui-qui-qui! Ca-ca-ca-ca-cá! ... enquanto lançava bolas de fogo na direção das Verdades, que corriam sem direção, desesperadas! 11 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 71 6/29/18 5:18 PM 72 As bolas explodiam em cima dos guarda-chuvas, numa sucessão de explosões coloridas como fogos de artifício! O barulho era demais, e Alice teve de gritar no ou- vido do velho: – Sábio Didi, quem é essa? O que está acontecendo? – É a Dúvida! Ela vive tentando abalar a confiança de nossas Verdades! Se não resolvermos as dúvidas que aparecem, como vamos afirmar que o que representa- mos é Verdade? “Ah...”, concluiu a menina. “Então é por isso que as Verdades usam guarda-chuva... Pra se protegerem da Dúvida!” – São as Bolas de Fogo da Dúvida! – uma das Verda- des gritava. – Protejam-se! Uma Verdade mais estabanada tropeçou e seu guar- da-chuva caiu-lhe de uma das mãos direitas. Na mesma hora, a Bruxa da Dúvida percebeu a oportunidade e não perdeu tempo, acertando a cabeça da vítima em cheio! “Bum!” Como numa mágica, a pobre Verdade desapareceu feito uma bolha de sabão, estourando noar! – Sábio Didi! Sábio Didi! – imploravam as Verdades mais próximas. – O que vamos fazer? Ela vai destruir a todas nós ! Já pegou algumas de nós! O velho sábio assumiu o comando: – Vamos resistir, Verdades! Coragem! Corram ao Arsenal da Verdade! Tragam os Axiomas! Vamos jogar pesado com essa danada! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 72 6/29/18 5:18 PM 73 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 73 6/29/18 5:18 PM 74 Alice viu algumas Verdades mais fortes e mais dis- postas saírem correndo pra cumprir a ordem e perguntou: – Aquiciômas?! O que é isso? – Artilharia antiaérea! – explicou o Sábio Didi, aos berros. – São as poucas afirmações que ninguém discute e todo mundo aceita. – Ainda não entendi direito... – Axiomas são Verdades Indiscutíveis. Um amigo nosso nos deu um exemplo: “Nada pode ser e não ser ao mesmo tempo”. É como você, que não pode ser Alice e não ser Alice ao mesmo tempo. O nome desse amigo é Aristóteles, mas, se você o encontrar, pode chamá-lo de Filósofo Totó, que ele não liga. As Verdades que tinham ido buscar as armas já es- tavam de volta e corajosamente começavam a lançar os tais Axiomas na direção da Bruxa da Dúvida. Os Axio- mas subiam como raios e estalavam em fagulhas ao des- truir as Bolas do Fogo da Dúvida! Os corvos perdiam o equilíbrio, soltando penas negras pra todo lado! Vendo-se cercada pelos Raios-Axiomas, a Bruxa da Dúvida sacudia o punho fechado para o lado do Sá- bio Didi: – Ah, miseráveis Verdades! Vou embora, mas vol- tarei! Eu voltarei! Qui-qui-qui-qui! Ca-ca-ca-ca-cá! Vocês não se livram de mim! Nunca se livrarão de mim! Nunca se livrarão da Dúvida! E voou em retirada, seguida pelos corvos, enquanto as Verdades gritavam de alegria e abraçavam-se, vitoriosas! Alice batia palmas: Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 74 6/29/18 5:18 PM 75 – Essa batalha foi demais! Por sorte, vocês tinham muitos Axiomas no arsenal. – Nada disso, menina – informou o sábio. – Os Axiomas são muito poucos. – São poucos? – admirou-se Alice. – E agora? E se a Bruxa da Dúvida voltar? Vai faltar munição! – Não. Os Axiomas são poucos, mas são indestru- tíveis. Podem ser usados vezes sem fim! Logo, o nosso pessoal vai recolher tudo o que a gente usou e guardar de novo no arsenal, até a próxima provocação da Dúvi- da. E a Dúvida, minha menina, pode atacar a qualquer hora! A luta contra a Dúvida nos fortalece! Nessa altura, o Sábio Didi resolveu impedir que a co- memoração durasse muito e mandou fazer o levantamento das baixas da batalha. Quando recebeu os resultados, sa- cudiu a cabeça, desanimado, comentando com a menina: – É sempre assim! Tem gente cabeça-dura que se sente tão segura do que sabe que nem teme a Dúvida! Olhe só: perdemos duas Verdades Teimosas que es- tavam fazendo doutorado e sentiam-se tão certas das ideias que defendiam que ficaram em campo aberto sem guarda-chuva! Coitadas... Havia também mais duas Verdades Inseguras que tinham desaparecido sob as Bolas de Fogo da Bruxa da Dúvida por não se defenderem direito, mas o resto es- tava bem, fora um ou outro arranhão ou queimadurazi- nha de nada. A glória de todos foi encontrar uma Verdade Hu- milde que, apesar de ter sido fortemente bombardeada, Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 75 6/29/18 5:18 PM 76 tinha conseguido defender-se de todas as bolas de fogo da Dúvida, rebatendo uma a uma e saindo com suas Verdades ainda mais fortalecidas. Com lágrimas nos olhos, emocionada, a jovem Ver- dade Humilde perfilou-se para receber uma medalha de bravura das próprias mãos do Sábio Didi. Muito compe- netrado, o velho sábio alfinetou a medalha na roupa da Verdade Humilde, dizendo: – Receba com orgulho esta condecoração, Verdade Humilde, pois tua coragem mais uma vez demonstrou que uma Verdade de verdade só pode provar a si mes- ma se não tiver medo da Dúvida! Você soube aproveitar o ataque da Dúvida pra provar a força da sua Verdade. Pra você, a Dúvida foi uma fada e não uma bruxa. De agora em diante, você será conhecida como a Verdade Provada! – Viva! – gritavam todos, que não conseguiam bater palmas, mas batiam palma com dorso da mão, pois to- das só tinham mãos direitas. – Viva a Verdade Provada! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 76 6/29/18 5:18 PM 77 A CUECA DO SEU AVÔ SUBIU NO TELHADO Alice não tinha compreendido direito o discurso: – Mas como pode a Dúvida ser uma bruxa perigosa para alguns e uma fada maravilhosa para outros? O velho encolheu os ombros: – Não é a Dúvida que é uma coisa ou outra. Na bata- lha de hoje, duas Verdades Teimosas, esnobes como elas só, viraram fumaça com o ataque da Dúvida, enquanto a Verdade Humilde até ficou mais forte com o mesmo ataque. Depende do modo que cada um recebe a Dúvida, menina. É preciso saber escolher os caminhos! – Gostei da explicação e da aventura, Sábio Didi – confessou Alice. – Ninguém pode com a Verdade! Agora eu sei que dá pra enfrentar a Dúvida quando ela é bruxa e até o mau hálito de qualquer Mentira Cabeluda: é só jogar uma Verdade, assim, na lata! O velho levantou a mão, discordando: – Não é assim, menina. A Verdade não pode ser jo- gada assim, como você diz, “na lata”. Verdade é como homeopatia: tem de ser dita aos poucos, em pequenas doses, pra não assustar. – Ué! Não entendi... 12 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 77 6/29/18 5:18 PM 78 Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 78 6/29/18 5:18 PM 79 – É simples. Vamos mostrar pra você. Chamou uma jovem Verdade que passava por perto e perguntou: – Amiga Verdade, vamos supor que você acabou de saber que o avô de um amigo seu tinha subido no telha- do pra fazer um conserto, caiu de lá e morreu. Você sabe que esse amigo gosta muito do avô e que ele poderia ficar desesperado quando recebesse a notícia de uma só vez. Como você agiria? A Verdade convocada nem pestanejou: – É simples. Primeiro, pra preparar o espírito do meu amigo, eu enviaria uma mensagem dizendo: “A cueca do seu avô subiu no telhado”. – Sim? – Em seguida, eu mandaria outra mensagem as- sim: “A cueca do seu avô caiu do telhado”. – E depois? – Fácil! E eu terminaria a comunicação dizendo: “O seu avô estava dentro da cueca”! Alice caiu na gargalhada: – Ah, mas que coisa sem jeito! E depois, o que você ia dizer? Que a cueca morreu? E, depois, que o avô mor- reu junto com a cueca? – Está bem, está bem – concordou o velho. – Vamos dizer que o exemplo não ficou bem claro. Então vamos chamar um especialista. Verdade Cuidadosa, venha cá, por favor! Um sujeitinho com cara de sonso apresentou-se, sorrindo timidamente. Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 79 6/29/18 5:18 PM 80 – Agora você, Verdade Distraída. Venha cá. Você será a Mulher do Fazendeiro e a Verdade Cuidadosa fará o papel do Capataz. Vamos representar para a visita a pecinha “Verdade é como homeopatia”. E o próprio velho começou, assumindo o papel de narrador: A mulher de um fazendeiro, muito rica na verdade, tinha ido fazer compras lá nas lojas da cidade. Bem na praça principal, a olhar pra um cartaz, de repente deparou com seu velho capataz. Ora vejam quem encontro! Que me contas, capataz? Como está nossa fazenda? Tudo vai na santa paz? Eu de lá cheguei agora, pra contar para a patroa: na fazenda tudo bem, lá vai tudo numa boa! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd 80 6/29/18 5:18 PM 81 Já comprei o que queria e pra lá quero voltar. Mas trocando em miúdos nada mais tens pra falar? A não ser por um detalhe, incidente bem vulgar, coisa pouca, uma bobagem, pouco tenho pra contar... Coisa pouca, tu me dizes? Ora, fala-me depressa! O que houve de verdade, Que coisinha será essa? Uma coisa bem pequena, foi o que aconteceu. Pra falar bem a verdade, foi seu burro que morreu... Mas afora o ocorrido, vou contar para a patroa: na fazenda tudo bem, lá vai tudo numa boa! Miolo_alice_no_pais_da_mentira_PNLD2020_LP.indd
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