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Diccionario-da-Linguagem-das-Flores

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Ficha Técnica
Título: Diccionario da Linguagem das Flores
Autor: António Lobo Antunes
Edição: Maria da Piedade Ferreira
Revisão filológica: Norberto do Vale Cardoso
Revisão tipográfica: LeYa, SA.
Capa: Rui Garrido
ISBN: 9789722071109
 
Publicações Dom Quixote
uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
 
1.a edição: outubro de 2020
© 2020, António Lobo Antunes e Publicações Dom Quixote
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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ANTÓNIO 
LOBO 
ANTUNES
DICCIONARIO 
DA LINGUAGEM 
DAS FLORES
 
Romance
1.ª edição
 
 
* Edição ne varietur de acordo com a vontade do autor
Fixação de texto
Norberto do Vale Cardoso
1 
O MECÂNICO AMANTE DELE
Quando acabei a tropa um colega ruço de olho esquerdo desviado que quase nunca andava
conosco, sempre metido em assuntos lá dele, arranjou-me emprego na oficina de automóveis do
pai no alto das Pedralvas, uma colina de pobres a norte de Lisboa com casas velhas e barracas e
ruazitas estreitas, de modo que aluguei um quarto por ali com direito a banho duas vezes por
semana, às terças e sábados, e um janelico para um quintalzinho vedado a tábuas de andaime no
qual existia um limoeiro ferrugento onde nunca vi nenhum limão, só vespas desiludidas,
inclinado sobre o pedaço de muro em que poisava o cotovelo, a senhoria, sempre de avental e
chinelos que a adivinhar pelo tamanho deviam ter pertencido ao marido, evaporado há anos na
confusão da cidade que não pára de engolir gente, também com tantas esquinas não admira, só
não entendo como é que não nos devora a todos, chamava-me às vezes para uma sopita comida
na cozinha minúscula sem olharmos um para o outro, ela no único banco que sobrava e eu
encostado ao lava loiça, sob uma lâmpada insegura a pestanejar
(dava-se um piparote, melhorava num soslaio agudo para nós e recomeçava a tremer, que vida
difícil têm as coisas sem uma alma caridosa que as ajude)
enquanto um cão ladrava num beco às escuras e calava-se sei lá onde num suspiro comprido
em que agonizavam fogareiros, no fim da sopa a senhoria lavava os pratos com uma esponja
sumária e fechava-se na salita porque de quando em quando lhe escutava a tosse, puxando
pedaços de si mesma até à garganta de modo que os chinelos solitários lá em baixo e ela na
alegria aflita de me saber por ali enquanto as acácias das redondezas se calavam uma a uma,
mais longe do que os comboios no escuro, dava-me ideia que nas Pedralvas nós apenas, presos
um ao outro por um fio de silêncio que apesar de tudo sempre diminuía a solidão, quase apostava
que de tempos a tempos vinha espreitar-me a dormir, cobrindo-me um tornozelo com o fim do
lençol a reprimir uma festa desajeitada com demasiados dedos que me tropeçavam na pele,
deixando-me, depois de se ir embora, mais abandonado ainda, a lembrar-me da minha mãe nas
Caldas da Rainha, debruçada para mim a apontar o queixo ao meu pai
– Achas que o miúdo continua vivo?
comigo imóvel, espreitando-a por uma frinchazita das pálpebras, alarmado
– Continuarei vivo a sério?
a tentar encolher um joelho que se calhar não encolhia, imagino que encolhe e é tudo,
provavelmente os defuntos nos velórios sentem o mesmo e no entanto quietos, julgam que
conversam com as pessoas, coitados, lhes fazem perguntas, as escutam
– Quem te garante que não os vamos encontrar logo no café?
como de costume a olharem os cisnes de pupila distraída, como de costume a pensarem noutra
coisa
– Perdão?
as Pedralvas tão melancólicas no inverno quando chovia, dava ideia de serem as casas a
tombarem do céu em gotas sujas alastrando no passeio, numa mesa do cafezito, perto do balcão,
um homem que não conhecia, mais alto do que eu, mais distinto, claro, a olhar para mim
enquanto rasgava um pacote de açúcar sobre a chávena e a seguir a colher, o bico agudo dos
lábios, o pescoço comprido e a mão achatada no peito a fim de proteger a gravata, o que faz este
aqui, como diabo deu com o bairro, uma ocasião por mês, ao fim de semana, apanho a camioneta
para as Caldas da Rainha porque o meu pai doente, de pijama na sala, a lutar com os remédios
que a minha mãe lhe traz, os amarelos, as cápsulas, o pó de dissolver na água, passados de
bochecha a bochecha, cravado na parede fronteira
– Não consigo engolir isto
enquanto a minha mãe lhe vai dando mais um copito
– Experimenta agora
e ele
– Que sina
a esmagar os pés um no outro, a minha mãe com uma tigela
– Os doutores querem que comas o caldo
debruçada para mim num soslaio cheio de cochichos
– Não é nada no estômago dizem eles é à beira do fígado
admirada com a vida
– O que a gente tem dentro
o meu pai a bolinar na nossa direcção desfazendo-lhe a prosa
– Essa acredita em tudo à beira do fígado é só tripas e gases se existissem médicos como deve
ser metiam-me um tubo no umbigo e chupavam aquilo
enquanto as caravelas dos cisnes, a regressarem da Índia cheios de especiarias, flutuavam no
lago, pelos vistos do oriente aqui, mais coisa menos coisa, é um instante, depois trepam a rampa
e entram a baloiçar, todos colorau e pimenta, na casota, os olhos do meu pai tão diferentes agora,
baços, pálidos, fugindo de nós, ele que construía barcos dentro de garrafas com pedaços de cana,
restos de fronhas e madeira, nos quais saía para países distantes preocupando-nos à minha mãe e
a mim que o esperávamos no sofá, nervosos com as tempestades
– Felizmente já passou a Guiné já passou a ilha de Moçambique
o meu pai no convés, distantíssimo, de chapéu de plumas, a comandar marujos ele que não
conseguia comandar o que há à beira do fígado, desiludido
– Nem a tripa me obedece
de pantufas, o pobre, e uma botija morna a tentar consolar-lhe os interiores, incerto, pálido,
impedido de construir batéis porque o canivete falhava, a minha mãe, entristecida
– Lembras-te das voltas ao mundo que ele dava conosco aqui sentados à espera?
e as naus alinhadas em frascos de xarope acolá na cómoda, com as rolhas a impedirem-nas de
deslizar dos gargalos, eu sempre na ilusão que você nos anunciasse
– Um dia destes regresso
e a gente à espera no capacho da entrada tão preocupados por sua causa, desejando que um
veleiro, no rés do chão, a aproximar-se pelas ondas das escadas acima, o meu pai na ponte de
comando
– Podem aquecer o jantar
e logo a seguir sentado à mesa a prender o guardanapo no colarinho
– Se ao menos tivessem visto Madagáscar se tivessem visto Bornéu
a tresandar a sereias e ao cânhamo do Ceilão
– Convidei o marajá com um cachucho em cada dedo para almoçar no domingo faz-lhe um
arroz malandro que ele gosta
sentado na única cadeira de braços que tínhamos, a descansar um momento de olhos fechados
– Se sonhassem o que navegar exige
enquanto a minha mãe, na cozinha, preparava um petisco de alto lá com o charuto porque da
comida a bordo nem merece a pena falar
– Palavra de honra que até sola comemos
cercado por deuses de oito braços e dragões que o ameaçavam de longe a cuspirem fogo, o
doutor para a minha mãe cujas pestanas vibravam
– Os problemas do pâncreas minha senhora nunca dão muita margem
mas a esposa de um almirante aprende a aguentar-se não é verdade e portanto ela na consulta
equilibrando lágrimas no interior dos olhos de modo que nem uma para amostra a descer-lhe a
bochecha, de quando em quando parecia-me entrever uma cintilação que espreitava no rebordo
da pálpebra
– Não há um medicamento mais forte?
não desgostos, apenas a sombra deles enquanto o meu pai se justificava para o médico
– Desculpe estava a pensar em naufrágios
o meu pai que trabalhava no escritório de um armazém, entre caixotes e fardos, somando
números todo o santo dia sem que os gritos dos cisnes em outubro, no lago das Caldas, o
perturbassem, aos domingos de manhã passeava comigo sob as árvores, de cabeça muito acima
da minha que eu mal conseguia enxergar
– Tens de estar sempre a dar pulos?
e garanto-lhe que não pulava há séculos, de quando em quando, perdoe, lá me sai um semquerer, a minha mãe para mim numa espécie de eco envergonhado
– Foi a primeira coisa em que reparei nele
a mover-se, redondo, sempre que falava, dando-me a impressão que as palavras não lhe saíam
da goela, vinham directamente do ar, o meu pai quando chegava
– Ora viva
empurrando a morte para um canto
– Isto vai
sabendo que não ia, com pena da minha mãe, com pena de si porque a comida a bordo nem é
preciso falar
– Sonho tanto com vocês
e a gente no meio das embarcações de Goa lado a lado nas prateleiras, com marujos nos
mastros a preparem as velas
– Infelizmente daqui a nada tenho de me ir embora para uma entrevista no Paço Real mas
prometo que volto
enquanto a minha mãe secava um resto de desgosto na cara e o meu pai, é lógico, a ralhar-lhe
– Até parece que não voltei sempre não é?
e voltou sempre às sete, sete e meia, poisando a pasta do escritório junto à porta
– Ora cá estamos nós
a endireitar os naperons, a compor a cortina, a sentar-se no seu canto do sofá a observar-nos a
ambos
– Os meus marujos
palpando qualquer coisa na barriga com indicadores preocupados
– Um desarranjo isto passa
o médico atrás do biombo do hospital com ele
– Respire fundo agora
e a impressão que a maré a subir e as Caldas subitamente um oceano dorido, o meu pai uma
espécie de queixa e o doutor
– Tenha paciência está quase
saindo do biombo a levantar as sobrancelhas para a gente, baixinho
– Pois é
um
– Pois é
que continua a perseguir-me como as moscas de julho que não nos largam nunca, o meu pai
atrás a apertar-se no cinto
– Ora cá está o almirante outra vez
poisando na boca um sorriso precário que se aguentava tem-te não caias, de cotovelos mais
agudos e joelhos mais finos, a senhoria das Pedralvas através da parede
– Não consegue dormir?
e é evidente que consigo dona Teresinha, não se rale, enquanto um cão invisível ladrava e
ladrava, no caso de me aproximar da janela bicho algum, eu sozinho a espreitar, a minha mãe
viúva rodeada de batéis embora Goa tão longe, um feriado destes convido-a para passear no lago
entre os patos, os cisnes e a sombra das árvores como o meu pai fazia, comigo na margem a vê-
los, diga-me adeus senhora, para a semana ou daqui a quinze dias venho de camioneta de novo
na esperança que o meu pai no largo da feira, homens que achava parecidos com ele, também
morenos, também magros, que não me viam sequer ou ignoravam quem eu era, uma parente da
minha mãe
– Rapaz
a explicar-me a uma amiga de botas ortopédicas que baloiçavam como o pêndulo do relógio da
sala sempre a responder
– Não
a tudo e enquanto a escutava eu de novo nas Pedralvas tão melancólicas no inverno se calhava
chover, eram as casas, não a água, quem caía do céu em gotas sujas amontoando-se umas contra
as outras e erguendo-se aos poucos do chão, um fulano no café, mais velho do que eu, quase no
género do meu pai de volta da Índia antes da doença, melhor arranjado, é lógico, sozinho numa
mesa afastada da porta, espiando a rua de tempos a tempos como se alguém, que não desejava
encontrar, entrasse de súbito e o levasse consigo, espiando-me no que se me afigurava conter um
sorriso lá dentro, fazendo-me uma espécie de convite com o nariz na direcção do baldiozito em
baixo ou seja ervas de acaso, tijolos, pranchas de andaime, lixo, de quando em quando crianças
onde quase sempre rafeiros e ciganos, uma mulher descalça, um bêbedo, um pedaço de máquina
de costura, o meu pai no hospital não olhando para nós, a minha mãe
– Roberto
sem som, apenas os lábios a moverem-se, com o vestido dos domingos e a carteira de verniz
no colo, cujo fecho ela encaixava e desencaixava em estalinhos murchos, eu surpreendido pelo
cabelo ralo, já começa a não servir, você, é a vida, acontece com todos, conforme-se, percebia-
se-lhe a respiração porque o pescoço aumentava um bocadinho e desistia logo, nunca hei-de
entender o mistério da velhice, o queixo que abana, as bochechas sem força, as tenazes dos olhos
do fulano apanharam os meus puxando-os contra si, tenho uma namorada chamada Idalete, tenho
uma namorada chamada Idalete, tenho uma namorada chamada Idalete, não sou, alguns colegas
meus da tropa ganhavam dinheiro durante as licenças assim porque havia sempre um ou outro
caramelo junto à porta de armas à espera, um ou outro automóvel com o polvo de uma silhueta
dentro, até adolescentes a fumarem para espantar o nervoso, não sou maricas, sentia-lhes os
passos hesitantes mas se me virasse de repente fugiam, se os agarrasse pelo colarinho tentavam
escapar
– Não me faça mal largue-me
paguei ao dono do café enquanto pensava
– O que se passa comigo?
e a enfermeira mudava o frasco que desistiu de pingar para o interior do meu pai com mais três
pessoas no quarto, um deles não na cama, numa cadeira à janela com vista para nada e um casal
que deviam ser filhos a insistir
– Tem de vender o pomar
mostrando-lhe papéis, facturas, mãos abertas, o da cadeira para ninguém
– Logo o pomar caramba lembram-se daqueles figos?
com o pijama do hospital descosido na manga, quase sem cor, e a marca de um carimbo,
também quase sem cor, na lapela, enquanto o homem no café se dirigia ao balcão perguntando
– Devo quanto?
sem pressa, bicando moedas na palma com o indicador e o polegar, mais ou menos da idade do
major rodeado de mapas com bandeirinhas espetadas a atender o telefone
– É um problema de facto
enquanto ordenava que me aproximasse desenhando círculos com o braço livre num gesto em
espiral
– Chega-te aqui rapaz
sublinhado a vermelho por um sorriso que não era sorriso, era o queixo a alargar-se ainda mais
à minha espera enquanto o retrato do presidente se distraía contando os plátanos da parada,
qualquer coisa a crescer em mim enquanto, perto daquilo que crescia, a voz do major parecida
com a da senhoria das Pedralvas a soprar
– Cara de um anjo
à medida que por reflexo eu me dilatava em sentido, o meu pai para mim, no hospital
– Vejo-te desfocado
e os cisnes das Caldas a girarem em arabescos lisos, sentia o homem descer a colina atrás de
mim num assobiozito que me atrapalhava as pernas e uma cadela magra, de orelhas desiguais,
que me cheirou um momento e se aborreceu do cheiro, não me imaginava tão desagradável, o
médico guardou o estetoscópio, cujos tubos de borracha deviam ter sido contorcionistas de circo,
na bata
– Vamos ver vamos ver nada é seguro na vida
caravelas que iam e vinham frente a Nagar Aveli, o meu pai a respirar a custo com tantas peças
soltas, sacudindo-se ao acaso no interior dos pulmões, não propriamente a fitar-nos, a olhar para
dentro na expressão atenta de quando consertava o mastro de uma nau na mesa de jantar, eu para
a minha mãe
– Não tarda nada vai-se embora naquilo
à medida que o major se endireitava à secretária
– Desaparece-me da vista camelo
furioso consigo mesmo, furioso comigo, envergonhado de nós dois a esconder-se nas mãos, de
ombros para baixo e para cima num silêncio comprido
– Não mereço viver
embrulhando-se de aflição em si mesmo, o retrato da esposa, de filha ao colo, desprezava-o, a
cabeça dele desceu devagarinho, quase líquida, até à secretária enquanto a voz me chicoteava as
costas
– Não me apareças mais tu
numa espécie de soluço que parecia rasgá-lo e não dei pelo tiro na semana seguinte, dei pelos
enfermeiros a correrem, a maca levada para a ambulância com uma coberta em cima, o tenente
coronel a bater o pingalim na perna
– Depressa
a ambulância a sair, baloiçando, a porta de armas e depois, quase à noite, a bandeira a meia
haste na parada vazia, um furriel a cochichar para outro, gente com baldes a limpar o gabinete, a
esposa saiu com o tenente coronel num automóvel opaco, as árvores do parque mais espessas que
dantes, os cães da tropa, agitados, farejando a parada, cá em baixo, no início das Pedralvas, um
terreno baldio com uma ou duas acácias e a ruína de um armazém deserto onde casais à noite,
separando-se à saída cada qual para seu lado enquanto sacudiam a roupa, o primeiro para Benfica
e o segundo na direcção da Pontinha, subitamente estranhos, sem se voltarem sequer, além de um
tractor palharessequida, trapos, não sei quê embrulhado em não sei quê contra uma sobra de
andaime, cheiro a bafio e a fechado, a sombra improvável da minha mãe
– Sou eu
apesar de ela nas Caldas da Rainha, debruçada para o espelho do lavatório a estudar um
arranhão, virei para a direita avisando o homem numa espécie de tosse e desequilibrando-me ao
pisar uma lata de conservas vazia, passei junto a um mulato sentado numa pedra a comer sei lá o
quê de um cartucho enquanto o major defunto, amontoado na secretária, me ordenava sem me
olhar
– Vai-te embora
não com força, baixinho, quase em segredo, de boca imóvel
– Vai-te embora
com o homem calado a fitar-me, a olhar em torno, a fitar-me de novo em busca de mais
pessoas
– Trouxeste alguém contigo?
a verificar sombras, a assustar-se quando uma telefonia não sei onde gritou de repente e o som
de um automóvel antes de recomeçar a descer, o homem
– Vamos lá para fora rapaz
ainda desconfiado de mim, a avaliar-me, a medir-me, a espreitar uma a uma, fingindo que não
espreitava, as entradas das casas, quer dizer um olhar rápido sem mover a cabeça, de vez em
quando a mão dele quase a roçar a minha, de vez em quando o corpo, embora sem me tocar, dava
ideia de me cobrir por inteiro, passando sobre mim numa leveza tão rápida como a sombra de um
cisne, a voz da minha mãe a acordar-me
– Menino
poisando devagarinho a mão que cheirava a café e ao cobertor deles, sempre mais quente que o
meu, na minha testa, lembro-me dela a acariciar-me a cabeça na almofada, da voz, ainda com
sono dentro, a alongar-lhe as palavras, algumas delas já vivas, outras por enquanto confusas que
iam ganhando sentido a pouco e pouco, o tempo que demoramos a acordar, gestos se calhar
meus, corpos a retomarem a sua leveza, o meu pai a afastar-se, de voz junto ao tecto
– Já estou atrasado desculpem
e o soalho, não os passos, distanciando-se de mim, o fecho da porta a regressar a si mesmo
deixando-me sozinho no quarto, sozinho no mundo, ainda não bem pessoa, a recuperar a pouco e
pouco gestos esquecidos, já de pé na cozinha éramos nós de novo, você tornava a ser você e eu
achava o meu medo do escuro
– Mãe
– O que é?
e a minha voz
– Nada
com vontade de pedir
– Pegue-me ao colo agora
a sentir-me tão dentro de si, sem vontade nenhuma de perder o seu corpo, não o corpo de
manhã a aquecer uma cafeteira, aquele onde eu morava, tranquilo, sem ruído nem vozes, o sítio
que habitei lá no fundo e que ninguém, graças a Deus, alcançaria nunca, como deixei que isto
acabasse, como
(ignoro de que maneira)
nos tornámos dois, quem veio de quem, quem principiou a crescer, quem se afastou do outro,
quem volta a entrar em nós, a senhoria para mim
– Não se levanta hoje?
e não é a si que oiço, desculpe, é uma voz mais nova e mais antiga
– Não queres crescer menino?
sentada no banco da cozinha, em roupão, afastada de mim, despenteando-me com a palma e
tudo enorme ainda, as caravelas, a mesa de toalha de oleado com um rasgão consertado a
adesivo, a minha cara sem pregas a quem o médico arrancou um dente à frente e eu olhando a
ausência do dente a chorar desolado, eu de cabeça nos seus joelhos, mãe, a rodear-lhe a cintura
com o pouco braço que tinha, eu consigo na sala de espera do hospital aguardando que o médico
nos chamasse para falar do meu pai, primeiro de pé à nossa frente, em silêncio, depois a inclinar
uma cabeça que parecia ter feições a mais
– Ora bem
várias sobrancelhas, vários olhos sérios, vários narizes, traços que se multiplicavam à medida
que falava e o vento das monções em Goa lhe desarrumava o penteado, tantos barcos enormes à
entrada do quarto, o homem para mim junto à esquina de um muro
– Anda cá
atrás do qual mastros de troncos cujas copas se arredondavam como velas crescendo, o homem
quase encostado a mim
– Filho
ou o que me pareceu
– Filho
o que iria jurar ser
– Filho
enquanto o médico para o meu pai
– Temos aqui um problema
comigo inerte, de olhos fechados, à medida que um punho me puxava para si, à medida que os
cisnes da Índia ou do lago nas Caldas da Rainha a descerem, sacudindo as asas, e a garganta do
major, no seu gabinete no quartel, não paravam de aumentar.
2 
UM CAMARADA DELE
Não gosto de comboios porque não gosto do mundo inteiro a sacudir-se nas janelas, casas,
árvores, passagens de nível e homens de bandeirinha e corneta a mandarem-nos para Lisboa a
fim de que a cidade nos coma porque é a única coisa que sabe fazer, comer-nos, não se imagina o
número de pessoas que as esquinas engolem transformando-as em retratos sorridentes sobre
naperons, elas que em vida
– Só me dás desgostos tu
não sorriam nunca, o Partido arranjou-me duas assoalhadas a norte da cidade, num desses
bairros em equilíbrio difícil sobre a pobreza, sempre com um dos elevadores avariado e
paquistaneses de turbante a darem bofetadas à tijoleira com os chinelos enormes, poisando em
mim, por um instante, as pestanas barbudas, o meu apartamento quase a cavalo no rio de modo
que não se sabe ao certo se é um edifício ou um barco que se prende a um espigão a fim de
mastigar ondas, deixando ossinhos de caniços na margem, um controleiro, de pupilas
independentes das órbitas, que mantinha com o ar uma relação complicada, engulo não engulo, a
hesitar, a pensar, a desistir, a pensar de novo, e se exprimia numa dificuldade mole de pneu
vazio, com mais suspiros de borracha que ditongos, explicou-me, encalhado a esbracejar a meio
das frases porque há consoantes terríveis que a língua não dissolve, os acessos mais discretos e
as trajectórias de fuga bem como a localização de refúgios de segurança ou seja os destroços de
uma capela antiga que uma sucessão de crises de fé, a que estamos todos sujeitos, transformou
em arrecadação primeiro e em refúgio de gatos depois e cujo cheiro de urina paralisaria a polícia,
como sou educado e as hierarquias contam acompanhei o controleiro, apertando-lhe o cotovelo
inseguro no receio que me ficasse na mão, o que aliás faria eu com aquilo, até ao apeadeiro dos
comboios no centro da cidade, colocando-lhe o bigode postiço, mais para cima à direita do que à
esquerda o que não faz mal, há tromboses, enquanto as cegonhas principiavam a chegar a Lisboa,
contornando os plátanos da estrada lá em baixo e passando umas sobre as outras num silêncio
lento, o comboio do controleiro surgiu ao fundo, perto do que restava de uma fábrica, comigo a
pensar
– Durante quanto tempo não vou ver os meus pais?
e ninguém na estação porque estávamos ao princípio da tarde, apenas um cão vadio, de focinho
junto aos desníveis da terra, a cheirar coelhos invisíveis dado que aquilo que não falta no país são
cães, este com uma das patas imóvel no ar, à escuta, palpando recordações longínquas de bichos,
talvez ratos, talvez texugos, o país é uma arca de Noé, caralho, que se fodam os bichos, ajudei o
controleiro a subir para a carruagem, de pernas trocadas e sem força, amparando-lhe as calças até
ele se equilibrar mais ou menos, tão enrugado do esforço, tão desarticulado, tão leve, comigo
com pena
– Upa upa
a pensar
– O Partido envelhece as pessoas meu Deus o que vamos fazer com este asilo?
vendo-o amparar-se a um banco já esquecido de mim, fingindo não olhar os outros passageiros
embora à cata de pides, desconfiado, hesitante, se calhar realmente estou cheché, pronto, a
quantidade de tralha de que não consigo lembrar-me, como se chamavam os irmãos da minha
mãe, por exemplo, tio Eleutério, tio Germano, tio Quê, todos a mesma cor de olhos, todos a
mesma penca e a mesma vozinha a hesitar nas frases, será assim que se diz, acho que me faltam
palavras, a minha mulher Celeste, a minha filha Noémia, ou Natividade, ou Amélia, o comboio
levou o controleiro eu que não gosto de comboios porque não gosto do mundo todo a sacudir-se
nas janelas cada vez mais distante de mim, mal chegue a Lisboa a cidade come-me e pronto, o
que posso fazer pelo infeliz a não ser esquecê-lo, sei lá se teve parentes, sei lá quem é ele, há
alturas em que me sinto tão sozinho que invento tudo, o apartamento que me entregaram aqui
dois quartitos nastraseiras do prédio, voltados para um baldio de lixo, ervas, rafeiros, mulheres
idosas sentadas num talude, sempre com o tachinho do almoço ao lado, à espera de clientes sob
um renque de acácias, a minha companheira que tarda em chegar vinda de não sei onde e que
não imagino quem seja, a olhar-me depois de um relance à única cama
– Não te ponhas com ideias que isto é só trabalho
e que horas depois, com a luz já apagada, me toca com um dedo nas costas
– Se não estás a dormir chega aqui
e por acaso estava quase mas pronto, eu chego, cansado e com sono mas chego, de boca
encostada ao seu ombro
– Se correr mal perdoa
e não corre mal nem bem, cumpre-se não pensando seja no que for, o que há para pensar e
pronto, nenhumas instruções por enquanto, nenhum trabalho, ela a compor os lençóis, ela a
cozinhar, o telefone surdo, o dinheiro para as mercearias quase no fim, os meus pais a
imaginarem que eu a trabalhar na província, as cegonhas a ensurdecerem-me ao fim do dia
estalando os bicos numa chaminé, um papelito dobrado na caixa do correio, com terça feira às
quinze horas a lápis, de que entornei a cinza na pia, a tosse dos paquistaneses no andar de baixo
fazia estremecer o quadro da entrada que era um Jesus de coração ao léu torturado de espinhos,
às vezes, ao principiar a adormecer, a palma da minha mãe aumentava-me na testa
– Pelo menos febre não tens
e logo o barulho antigo das páginas do jornal quando o meu avô as voltava, sempre a massajar
a perna aleijada
– Esta rótula esta rótula
e um trapo de água quente em cima, a minha fé no Partido ia mirrando, a filha de um dos
paquistaneses, que cheirava a perfumes lilazes e me sorria sempre no elevador, acariciou-me o
queixo na semana passada antes de fugir, com brincos enormes que tilintavam sininhos, não
mencionando a gota vermelha entre as sobrancelhas e a pintura negra das pálpebras, pensei
– Vou voltar para casa
pensei
– Não posso voltar para casa antes de a companheira chegar
de modo que deixei um bilhete no esconderijo das comunicações urgentes e nem ao cabo de
uma semana os cabrões responderam, não valho um tusto para estes camelos de modo que me
veio uma fúria e juntei as minhas coisas no saco de campismo com o fecho eclére encravado a
meio do caminho, eu que nem dinheiro quanto mais sabonete, esperei sentado nos degraus do
prédio pela paquistanesa dos brincos que trabalhava num restaurantezeco de comida oriental a
fim de me despedir dela antes de me pôr a milhas, pensando no carvão das pálpebras e nos
sininhos que me alegravam as glândulas, de vez em quando a luz do patamar acendia-se e via-
me, quer dizer via as minhas pernas, os sapatos, a mão direita a tocar piano na coxa, passado um
momento a luz apagava-se e não me via mais, escutava os acordes dos dedos apenas, o que
existia de mim era um miúdo no escuro com ganas de chamar
– Mãe
e
– Mãe
e
– Mãe
até que ela, ensonada, do quarto
– O que se passa agora?
e passa-se que uma voz numa garganta qualquer, julgo, embora não esteja seguro, que minha
– Não me deixe
com o controleiro a desprezar-me
– Não serves para o Partido tu
e não sirvo de facto, os comunistas são fortes, não se deixam abater, resistem sempre
prosseguindo na luta, se necessário é óbvio que sacrificam a vida, o meu pai sem acreditar em
mim
– És comunista tu?
que para ele eram criaturas prontas a matar fosse quem fosse com um tiro na orelha ou uma
injecção no peito enquanto as cegonhas continuavam a voar em roda do prédio dos paquistaneses
onde eu abria uma a uma gavetas vazias de despensa e a lata amarela do chá sem encontrar
sequer uma folhinha desmaiada esquecida no fundo, a companheira, que devia ter chegado há
séculos, com outro militante junto a outra estação de comboios, a comprar-lhe sabonete, a
aquecer-lhe a comida, a concordar
– Pode ser
a concordar
– Está bem
enquanto aqui apenas cegonhas neste abril hesitante, nesta primavera indecisa, comigo à espera
que me toquem à porta e não me tocarão à porta, hei-de ouvir um dia destes uma chave lá ao
fundo que o ruído dos elevadores tornará silenciosa, sentir esperança no ar onde qualquer coisa
vibra, a sensação que uma voz
– Não está ninguém?
a chamar-me ou nem voz sequer, apenas o roçar de um vestido, uma respiração prudente, um
passo cauteloso, um pescoço interrogativo no vestíbulo a segredar o meu nome num ecozinho
tímido, devíamos chegar sempre assim a casa num murmúrio que cresce mais dentro do que fora
de nós, ao mesmo tempo familiar e intrigante, o que me atraiu no Partido foi que não estava
sozinho, alguém finalmente entrou aqui, percorre os quartos um a um, inclina para eles a metade
de cima do corpo, procura-me
– Já devia ter vindo há que tempos não é?
comigo a lembrar-me do meu irmão mais velho
(Teotónio)
quando a mulher se foi embora com outro, nunca me olharam tão intensamente mal dando por
mim, ele quase a perguntar, sem me largar o braço
– Estás aí?
a entrar na sala, a sair da sala, a lançar para os cantos a bola de borracha do cão a que o animal
não ligava, era eu quem a devolvia e o meu irmão que ladrava atrás dela, deixava-a cair ao pé de
mim e olhava-me na esperança que a atirasse outra vez, quando a polícia política o prendeu levou
a bola para a cadeia e guardou-a no bolso
– Obrigado
passados tempos soltaram-no, passados tempos foi à praia um domingo com os amigos ou isso,
jogou a bola às ondas e apesar de ter esperado até à noite ninguém a trouxe, o mar no escuro é
um espaço ao mesmo tempo inexistente e real, quer dizer um vazio com escamazinhas de luz
aqui e ali, reflexos, murmúrios, qualquer coisa muito funda, que dava ideia de pulsar, crescendo,
o meu pai passou uma semana inteira no quintal a sachar, nunca ninguém cavou tanto, a minha
mãe vinha chamá-lo à horta, ou seja, ficava em silêncio e depois voltava para dentro a arrumar a
cozinha, jamais vi nada tão em ordem na vida, facas, garfos, colheres, canecas, tudo, o meu outro
irmão
– Senhora
e ela a compor um gancho no cabelo
– Olá
com o sorriso de quando tinha vinte anos, não um sorriso da sua idade, uma expressão de
menina
– Olá
uma veia na testa, que eu não conhecia, sem parar de bater, o controleiro para mim
– Achas que a vida é só isto?
e se calhar é só isto, sei lá, quem a conhece que diga, estive no bairro a norte da cidade durante
dois ou três anos, sempre a odiar os comboios que devoram a gente, mandam-nos para Lisboa
que nos come um a um, bem os vejo desaparecer nas ruas, nas praças, nos prédios que à noite
continuam ainda mas tão gastos, os pobres, sem paquistaneses, sem luz, quase sem gás, quase
sem água, um ou outro cigano de olhos furtivos, um ou outro preto a desequilibrar-se nas
palavras que colava umas às outras numa espécie de riso, o controleiro para mim na expressão de
quem procurava no interior dos meus olhos
– A vida de facto é só isto
e é escusado protestar, amigo, é só isto, habitue-se à ideia de ser só isto, continue a imprimir
panfletos contra o governo e a deitá-los à noite nas caixas do correio tentando convencer quem
não o vê a protestar na rua, deixe de vez em quando uma bombita de carnaval no caixote do lixo
de um empresário qualquer, lembre-se dos amanhãs que cantam, da liberdade que ninguém sabe
o que é, nunca existiu, não existe, a minha companheira
– Isto vai ser sempre assim viver escondido?
a arrumarmos os pratos do jantar e a olharmos para nada numa sala vazia, duas cadeiras
apenas, uma mesita, há quanto tempo não sabes da tua família, nem o nome verdadeiro da
mulher que cozinha para ti conheces, quase a certeza, não, a certeza que outro homem com ela a
perguntar por mim, onde fui, o que disse ontem, uma interrogação desconfiada
– Não falou mal do Partido?
não se cansa da vida que tem, o que faz ele em casa quando não faz nada, não te olha como se
não existisses, não segreda
– Estou farto
não te propõe fugirem
– Podemos ir para Espanha
ou
– Tenho um primo em Paris
se por acaso acordas à noite não o encontras sentado no colchão a olhar o escuro em silêncio, o
controleiro
– Não te sentes preso não te apetece deixar isto ter uma vidanormal ir ao cinema ao bilhar há
quanto tempo não vês tu o rio?
paquetes, barcos de carga, um casal de bicicleta que sorri um ao outro, não te fala de quando
era pequeno, não te dá o braço na rua, não te menciona a mulher porque é casado, é casado, é
casado, sabias que era casado não sabias, não podes esperar seja o que for, uma companhia
quando isto acabar, um homem ao teu lado e planos, projectos, desejos, é o amor ao Partido que
o faz estar contigo entendes, quando libertarmos Portugal desce as escadas e pronto, nem o nome
dele conheces, onde nasceu, onde morou, o que fazia o pai, do que gostava em pequeno, não
quero romances entre vocês, pieguices, asneiras, mete bem nessa cabeça que isto é trabalho e
pronto, é a derrota do capital, é a libertação, que pomposo, de um povo, não é uma léria cor de
rosa nem uma história de adolescentes patetas, é a Pátria rapariga, é a dignidade do Homem, é o
único sentido da existência, é a tua Razão e daqui a nada setembro e o adeus das cegonhas, as
palmeiras desertas, apenas as palhas e o lodo que escorregam dos troncos, o último círculo, tão
alto, em redor dos prédios, ele quieto, de pé, à janela e tu no banquinho que faz as vezes de
cadeira a segui-lo, ele e outro camarada em Coimbra por causa de um bufo que chegou a destruir
uma célula, gordo, pequeno, sempre cheio de ideias, planos, propostas, apanharam-no, cegonhas,
cegonhas, perto da estação, entre duas camionetas de passageiros meio escondidas num renque
de arbustos e enquanto ele
– O que é isto?
amassaram-lhe o rim com uma coronha até ao parque de estacionamento de um supermercado
já sem luzes, só sombras, corredores e reflexos de vidro para além dos ecos dos passos deles
enquanto empurravam o gordo que lhes perguntava a tropeçar
– Que é isto?
desequilibrado, a pisar-se a si mesmo
– Estão enganados vocês
na esperança de se cruzar com um vigilante, um guarda, uma saída para a rua que se
esqueceram de trancar e nenhum vigilante, nenhum guarda, apenas embalagens, garrafas,
escadotes, fardos a um canto, sacos por abrir, o gordo para eles
– Isto é a brincar não é?
enquanto o colarinho parecia romper-se e a fralda da camisa inchava e desinchava em redor da
cintura, nisto um corredor à esquerda com a silhueta de um homem, a silhueta de uma mulher e a
silhueta de uma cadeira de rodas em três portas idênticas, um chão de azulejos diferentes,
cintilações vagas de loiça, um postigo fechado no alto e para lá do postigo copas que uma ilusão
de vento inclinava, o gordo a tentar levantar os braços
– Não
e o meu camarada a plantar-lhe a coronha na orelha, na fonte, no queixo, a deixá-lo no
monturo de um baldio esperando que cães sem sono, ratos, a chuva ou então uma curva do rio
mais acima, um depósito de lixo, o antigo matadouro que ninguém usa nunca ou os mendigos
que o inverno esqueceu, uma furgoneta abandonada há anos e uma árvore, tombada pelo vento,
sobre ela, a minha companheira para o controleiro
– Tem a certeza que um dia destes não me deixam para aqui como um trapo?
e claro que ninguém te deixa como um trapo rapariga, não somos fascistas entendes, não
largamos as pessoas, às vezes, no verão, passeávamos no bairro depois do jantar e dava-me
prazer senti-la ao meu lado embora me irritasse ser uma mão travessa mais atarracado e portanto
escolhia a parte alta do passeio julgando, os homens são tão parvos, que ela não dava por isso
mas dava eu, gaita, e dava eu que ela dava, tentando curvar sempre um bocadinho as costas,
calçava sapatos rasos quando saíamos o que me fazia pensar que talvez gostasse um bocadinho
de mim ou pelo menos se preocupava, como amiga, com o meu desconforto, eu habituado a que
as mulheres não me prestassem muita atenção, o meu nariz um pedaço esquisito, um dos olhos
mais apagado que o outro, o cabelo que principiava a rarear na moleirinha, o controleiro
– Agora há umas ampolas baratas na farmácia cortam-se as pontas com uma serrita despeja-se
aquilo na cabeça massaja-se e o único problema é o cheiro
embora se mantivesse a questão da altura que umas palmilhas especiais não resolviam, desde
criança que o meu pai
– Caga tacos
puxando o desprezo do fundo do jornal que o escondia da gente, ele só pés e notícias, mais
bronquite que pessoa, a única coisa que lhe herdei foi o amor pelas cegonhas empoleiradas a
leste do bairro à espera de outubro, quando os telhados se transformam em vento para lhes
auxiliar a partida, às vezes sobrava um pássaro pequeno incapaz de girar sobre as casas, caído
numa berma a olhar-me no que parecia um pedido e um outro bicho já grande, inquieto, a pairar-
lhe por cima, igual à minha mãe quando parti este braço e ela a sacudir o meu pai
– Estás à espera de quê?
ao mesmo tempo que vestia à pressa o casaco dos domingos, o médico cheirava-me sempre a
farmácia e a lágrima
– Senhor doutor senhor doutor
numa salita de armários cheios de instrumentos cromados onde uma senhora de touca me
instalou num banco na energia com que se enterra um pedaço de rolha num gargalo
– Não te mexas agora rapaz
eu calado a olhar perguntando a mim mesmo
– Choro não choro
a apertar o cotovelo contra o peito, indeciso, enquanto a senhora de touca anunciava à minha
mãe
– Descanse que ainda não é desta que ele morre
a fungar atrás ruídos de sopa ao lume, ou seja a cabeça dela um tacho onde ferviam soluços e
estalos de bolhas, a voz do meu pai invisível a recomendar
– Aguenta-te
deu-me ideia que a si mesmo, não a mim, enquanto os sapatos gemiam solas novas, cada passo
um grito de cabedal ou de porta empenada que dava ideia de rasgar-se e de súbito um silêncio
respeitoso porque uma voz a tossir se informava num resmungo
– O que é que temos aqui?
entre relentos de tabaco que até então não havia, embaciando o mundo de fumo ao qual
chamavam
– Senhor doutor
num respeito cuidadoso, escolhendo palavras sem arestas, macias, que a minha mãe enfeitava
de vários
– Ai meu Deus
baixinho, baloiçando, hesitante, entre o desespero e a esperança, ainda esta noite, passados
tantos anos, sonhei consigo senhora, isto é o casaco cinzento e os brincos que usava
(o esquerdo sem pedrinha)
perdidos numa recordação confusa que não cessa de enevoar o passado, comendo vozes e
pessoas, onde pára o primo Abílio, quem foi a minha madrinha, lembro-me de uma voz
– Maroto
a entupir o mundo de rebuçados que tornavam peganhentas as coisas, os gestos e o enfermeiro
cujas palavras e dedos se pegavam a tudo, há semanas, palavra de honra, a caminho de uma
reunião de célula, deu-me ideia de tornar a ver o médico, sem autoridade nem cigarro e com a
roupa no fio que é o destino da velhice, sentado sozinho num banco de jardim tremendo as
palmas nos joelhos, indiferente aos pássaros e aos cães, com um sapato num pé e uma pantufa no
outro, de boca a aumentar num pedido de ajuda a, não gosto de comboios, num pedido de ajuda a
ninguém mas se calhar engano-me porque a infância passa o tempo a regressar quando não deve,
em geral acompanhada de lembranças erradas, o controleiro, por exemplo, já me ofereceu a
dúvida, no mínimo, de existirem infâncias diferentes, de vez em quando vou espreitar de longe o
prédio dos meus pais, as cortinas são ainda as mesmas mas ninguém pendura roupa à janela e as
persianas quase sempre descidas, de vez em quando um braço que a esta distância não conheço
(de quem?)
a sacudir um pano, se por acaso me aproximo desaparece na sombra de modo que se calhar
esqueceram-me, já não existo, não sou, e se já não existo não existi nunca, não fui, a tabacaria
ainda lá está mas não me aproximo por medo de não encontrar o senhor Viegas, sempre de boné,
lá dentro, ainda se sentará na mesma cadeira, ainda me dirá
– Miúdo
porque acho que derivado aos anos já não consegue falar, girando a aliança a advertir-me
– Vocês
sem nenhuma zanga na voz, mais um mês ou um mês e meio se tanto e as cegonhas regressam,
lá andarão elas muito alto esmiuçando telhados, os paquistaneses e basta e nós dois em cima,
com um dos elevadores encravado entre o quinto e o sexto que por causa das tosses me dei ao
trabalho de irver, já de lâmpada fundida, claro, e um bocadinho inseguro, comuniquei ao Partido
que respondeu
– Vamos tentar qualquer coisa
o que me pareceu estranho para materialistas científicos mas pronto, está bem, não abundam
Lenines, com a chegada das cegonhas o ar mais limpo, mais claro, onde tudo ecoava numa
nitidez alegre, se ficava em casa à tarde com um relatório tinha um pardal na varanda a olhar
para mim, ora de frente ora de lado em saltinhos eléctricos daquelas patas que eram molas de
arame, o voo dele parecido com um papelito sem direcção certa amarrotando-se sozinho à
medida que se afastava, isto mais ou menos na altura em que me mandaram vigiar um camarada
do Comité Central muito mais velho que eu, quarenta anos ou isso, parece que de famílias ricas,
parece que fidalgo, volta e meia topavam-no a passear nas Pedralvas, ou seja um bairro perto de
Benfica com umas fabriquetas, uns comércios sem importância nenhuma como aqueles que se
encontram nas vilas de província, casas de pobres, oficinas, quintalecos, uns eucaliptos com
raparigas da vida a ganharem dinheiro dizendo adeus aos camionistas com a mão com que
reconstruíam o calcanhar depois do tormento dos saltos e no meio disto tudo os tropeções dos
comboios que chegavam de Lisboa a sacudirem o mundo, como tudo nesta vida estremece
senhores, o camarada sentado num cafezito à espera do rapaz com chaves de fendas nos bolsos
que trabalhava numa oficinazeca lá em cima, antes de começarem os campos e a estrada de
Sintra, a impressão que caravelas, dessas que se constroem com pinças compridas, dentro de
garrafas, a caminho da Índia pelas ruelas fora, caravelas, cachorros vadios, crianças a
vasculharem no lixo, a minha mãe para o meu pai, quando pensava já eu estar a dormir
– Anda cá
e o colchão um sopro, dois sopros, a minha mãe
– Estás a aleijar-me
e ecos de tábuas com o meu pai dentro, sem entender
– Não te encontro
a minha mãe a afastar-se indignada
– Desde há meses que não encontras seja o que for
a minha mãe para a irmã quando o meu pai no trabalho
– Palavra de honra que deixou de encontrar há séculos
fazendo-lhe sinais que eu estava ali com o queixo
– Já viste a minha vida?
de modo que um silêncio comprido, repleto de murmúrios com gestos dentro, a minha tia que
trabalhava num supermercado
– A vaca da tabacaria já desapareceu do mapa?
e silêncio e suspiros e fungadelas e queixas, a minha mãe a imitar a voz do marido
– É que não encontro mesmo
engrossando a garganta num resmungo de ódio
– E agora?
comigo sentado no chão a olhar para ela, tentando salvar as coisas
– E se eu chorasse?
na esperança que a minha mãe se interessasse por mim
– O que se passa contigo?
e esquecesse o meu pai mas a minha tia bateu-me na palma
– Cala-te
de modo que não se interessou, comentava para a irmã
– Não encontro dá vontade de rir
comigo a escutá-la melhor, nas Pedralvas agora, do que em pequeno, enquanto elas arrumavam
a loiça da véspera na cozinha, a minha tia mais nova, sem tornozelos inchados nem aliança no
dedo, para quem o meu pai se inclinava como um caniço ao vento
– Se quisesses fazias-me feliz rapariga
a minha tia baixinho
– E se depois não faço?
a afastar-lhe o braço que ao lembrar-me disto se me afigurava o meu, não o dele
– Arreda
comigo não na casa de eu pequeno, no cafezito das Pedralvas a espiar o camarada mais velho
enquanto as cegonhas não paravam de chegar, vindas do Egipto ou assim em grandes nuvens
brancas muito acima de nós, ultrapassando a serra, ultrapassando os comboios com o mundo
inteiro a sacudir-se nas janelas, casas, árvores, passagens de nível, homens de bandeirinha e
corneta a mandarem-nos para Lisboa a fim de que a cidade nos coma porque é a única coisa que
faz, comer-nos, não se imagina a quantidade de pessoas que as esquinas engolem, todas aquelas
que deixei de ver devoradas por rodas e fumo, nós fuligem, nós sombras distantes que se
afastam, nós bandeirinhas ao vento nas estações desertas, nós carruagens que nos esmagam
desaparecendo num vale e reaparecendo entre oliveiras cinzentas que mastigavam pardais, eu
para o meu pai
– Não encontra?
enquanto ele se sentava na poltrona de ler o jornal
– Perdão?
a encaixar os óculos no sítio deles com os olhos muito maiores por causa das lentes, maiores
do que Lisboa, maiores do que o mundo
– Não encontro o quê?
inclinado para mim porque derivado ao tempo as orelhas endurecem, o meu pai a afastar-se
permanecendo ali
– Não encontro o quê?
dito exactamente no momento em que a primeira cegonha encontrava a sua palmeira ou o seu
telhado ou a sua chaminé enquanto outras cegonhas, dúzias, centenas, milhares, poisavam nos
mastros das caravelas que subiam as Pedralvas aproximando-se da gente, comigo deitado na
cama deste prédio a norte de Lisboa, de elevadores avariados entre o quinto e o sexto andar, a
minha companheira
– Não tens sono?
apoiando de leve a mão no meu ombro
– Não tens sono?
de boca próxima do meu ouvido
– Não tens sono?
de boca tão próxima do meu ouvido
– Sono?
enquanto eu, de olhos fechados para ver melhor, principio a dormir.
3 
A IRMÃ DELE
Durante muitos anos não soube o que o meu irmão fazia, explicava aos meus pais que a
empresa em Lisboa uma canseira obrigando-o a estar fora grande parte do tempo, às vezes dias
seguidos de modo que o encontrava volta e meia aos fins de semana a passear na quinta ou
diziam-me que lá em cima no quarto a dormir, a minha mãe para mim
– Não batas com as portas enquanto ele descansa coitado
escondendo lágrimas e perguntas nas algibeiras das pálpebras enquanto me pedia
– Tem paciência finge que acreditas nele para eu acreditar também
a cobrir inquietações com o véu torto do sorriso difícil
– Ele dantes não mentia
lá dentro sem que eu desse por isso, estou velha, a minha mãe achava-se velha desde que me
lembro de a conhecer, ou seja aí pelos trinta anos ou menos, quando era pequena concordava
com ela e vejo agora que menos que a minha idade nessa altura e portanto novíssima, são tão
cruéis as crianças ou talvez tenham razão
(chove lá fora)
não sei, é esquisito o tempo, qualquer espera uma eternidade ao passo que os anos um
piscarzinho de lâmpada, nem um segundo e logo a gente quem é esta nos espelhos que não se
parece comigo, a expressão surpreendida, o cabelo sem brilho, vou morrer e pronto, o meu pai
que já não falava coitado a olhar-me, só o mindinho que tremia, o mindinho era o meu pai inteiro
– Tu
acenando para ninguém na janela, esperei sempre o médico no corredor e em lugar de palavras
tocava-me de leve caminhando sempre, de casaco comprado feito, o que faltava no comprimento
sobrava nos ombros, como é que uma pessoa com um casaco assim pode curar alguém e eu
quieta a olhá-lo nesta casa de súbito diferente onde só o cheiro da cera continua, até o da roupa
nas gavetas mudou e já não se parece comigo, parece tecido puído e o resto ausências, que não
respiram já, entre móveis antigos, marcas das jarrinhas que não existem nos tampos onde
estiveram, a minha mãe
– O teu irmão
a engolir-se a si mesma, enchendo o espaço que nos separava de hesitações e saliva e os
objectos logo cheios de bolor, não moro numa casa aliás, estou numa caixa de cartão num fundo
de armário, cheia de rendas de episódios defuntos e de maçanetas antigas, algumas com um
parafuso meio solto ainda, o som dos meus passos não me acompanha, vai ficando para trás de
mim com os seus sapatos de criança, o seu medo do escuro e a tosse do meu pai no escritório,
tranquilizando a minha mãe
– Não te preocupes porque acontece sempre isto no inverno
e não era sempre isto, era diferente, não havia esta fraqueza nem esta boca que hesitava,
tremia, dava-me ideia que a contar os dentes com a língua
– Tudo se vai perdendo não é?
dizia ele devagarinho
– Tudo se vai perdendo
a bater com o indicador no cinzeiro e repetindo num eco de si mesmo
– Perdendo
o retrato da minha avó sobre a secretária, uma natureza morta na parede que uma tia prendada
aguarelou ou seja maçãs, pepinos, uvas, que tristes as casas antigas quando não há sol, quem,
depois de acabado o quadro, terácomido as maçãs que envelhecem como as pessoas só que
ainda mais depressa, tantas rugas nelas uma semana depois, falta apenas uma gargalhadinha
distante, Tia Maçã bom dia, a minha mãe fechava sempre a porta sem ruído ao sair do escritório
– Trabalha tanto ele
e não trabalhava assim tanto, lia mais o jornal ou conversava com o feitor
senhor Gonçalves
na escada para a quinta onde florzinhas de trevo nos intervalos de pedra dos degraus
juntamente com caracóis pequeninos
– Podes ter a certeza que isto não muda o que muda na vida diz lá?
puxando o pescoço para diante como sempre que se enervava, o meu irmão para mim
– Parece um galo a catar sementes já viste?
abanando as asas inúteis incapazes de voarem, dava ideia de erguer-se acima da terra ao olhar
os empregados de boné de cócoras na vinha, com os braços a surgirem e a desaparecerem nas
mangas da camisa, depois da visita de um primo do meu pai que dava ideia de interessar-se pelos
camponeses conversando com eles na latada da venda, outra parente a propósito do meu irmão,
reprovadora
– Também gosta deles esse
enquanto a minha mãe abria o leque num suspiro
– Tal pai tal filho tudo se lhes pega até os cães e os pobres a irmã é diferente
e de facto sou, mãezinha, continuo a não gostar de confianças e portanto não casei ainda, desde
que o meu pai morreu e o meu irmão preso tenho de tomar conta disto tudo, diminuir as dívidas,
substituir as máquinas, espevitar os feitores, reunir-me com os sujeitos do banco para aliviar os
empréstimos, pôr a minha mãe na ordem, sempre a chorar pelos cantos derivado ao filho, enxotar
os homens que de quando em quando tentam poisar em mim como as cegonhas nos campanários,
equilibrados lá em cima de olho no meu dinheiro, convencidos que lá por ser gorda me tornei um
sapo, pendurado por uma pata, cada vez mais mole e com um olho para cada banda, a espernear
– Até tem sala de música
explicavam eles no café aos compinchas
– Até tem sala de música
e de facto tenho mas sou eu quem a toca, de há uns tempos para cá recebemos em junho meia
dúzia de cegonhas na quinta, a prima da minha mãe, que me dava aulas de piano, a desesperar-se
baixinho
– Não são dedos que ela tem são chouriços
a prima da minha mãe, trocista
– Queres comer um ao jantar?
não gosto muito desses pássaros mas tínhamos em média meia dúzia de cegonhas na quinta
sempre a baterem os bicos quando não estão a voar, recados entre elas, parece-me,
recriminações, zangas, comiam cobras de água no ribeiro, comiam girinos, sempre tanto lodo nas
pernas fininhas, comigo a pensar num colega do meu irmão que não tornei a ver, acocorado num
desnível de queixo na palma e uma cicatriz na metade direita da cara que o meu irmão nunca me
explicou, encolhia os ombros ou dizia
– Não sei
sem voltar o queixo para mim, nunca lhe escutei a voz nem soube quem era, o meu irmão
explicava
– Um colega lá do curso
os dois a fitarem-se numa concordância rápida e pela hesitação da voz eu certa que mentira,
tantos mistérios na vida das pessoas, tanta coisa escondida, quem são vocês, quem sou eu, a
minha mãe, por exemplo, a certeza que o meu pai outro filho, não sei, sei mais ou menos mas
não pos, porque é que o piano não toca mesmo sem pessoas na sala, mas não posso dizer, o meu
irmão comia quase sempre calado, se lhe falávamos acenava que sim, devia simpatizar com a
mana porque me ofereceu nos anos, eu treze ou catorze, uma pulseirita que parecia de prata com
o meu nome gravado, embrulhada em papel de seda numa caixinha, quando quis abraçá-lo
afastou logo a cara e compreendi que ele aflito, a fitar a parede, a minha modista, que tinha uma
irmã a viver nas Pedralvas, um bairro pobre qualquer que sei lá onde fica, a norte de Lisboa disse
ela, garantiu-me que o topou lá com um sujeito mais novo, a entrarem ou a saírem de um café, já
não sei, que diferença me faz, só quando o prenderam a primeira vez e me chamaram à polícia,
dois homens educados, um deles por sinal mulato de modo que um cheiro diferente na pele, sou
tão sensível aos cheiros, só quando me chamaram comecei a compreender onde o meu irmão se
metia, até de caravelas falaram, a subirem os becos tropeçando no entulho, restos miúdos, tijolos,
latas vazias e um cachorro a tropeçar naquilo, tudo igual à miséria da vida, o lixo em que vivo
comigo existe apenas por dentro e faço os possíveis para que os outros não vejam, quero que
continuem
– Menina
olhando-me com consideração, a respeitarem-me, se por exemplo as cegonhas respeitassem as
pessoas não me acordavam antes do sol com os seus gritos e os estrondos das asas antes de
descerem uma após outra no sentido do rio, antes que um peixe lhes aparecesse esperneando
(há quem ache esquisito mas os peixes esperneiam, se por acaso tivessem patas nem quero
pensar)
um bicho miúdo, feito de alumínio flexível, a agitar-se, aí está, no bico, não conheço nada mais
contraditório que a vida, um dos polícias tropeçava nas palavras como se um fio de cabelo,
desses que a pinça dos dedos não consegue libertar-nos, a atrapalhar a língua, a sala em que me
receberam cheirava a papel tão húmido quanto as suas gengivas e quando falavam escutava-lhes
as unhas a atormentarem a pele, se trabalhassem aqui na quinta não destoavam dos outros, os
mesmos verbos errados e o mesmo anelzito barato que magoava a orelha ao coçarem-se, eu de
carteira nos joelhos enquanto uma voz no corredor
– Costa ó Costa
cortada de súbito por um estrondo de porta enquanto a prima da minha mãe, ao meu lado
diante do piano na sala de música, me sugeria resignada
– Vamos experimentar outra vez
num estertor de agonia, a minha mãe morreu há quatro anos de modo que eu sozinha com duas
empregadas meio tontas e a sobrinha do feitor a cozinhar, quer dizer a maior parte do tempo
sentada no degrau do roseiral conversando com os mortos que volta não volta respondem e a
impressão que o meu pai vinha espreitar os tachos em bicos de pés, enfiando uma colher de sopa
lá dentro
– Livra-te de contares à senhora
e para ele tudo sem sal, tão triste, mastigando melancolias enquanto a minha mãe
– Não tens vergonha tu vou queixar-me ao doutor enquanto não morreres não descansas
o meu irmão sei lá onde a conspirar sei lá o quê com sujeitos invisíveis, entre panfletos e
bombas
– Achas que isso rebenta?
e de quando em quando, à noite, um tiro na rua e ele para os colegas, afastando-se a correr
– Isto vai camaradas
ele aqui na quinta a cavalo, trotando vinha acima, as pessoas mais idosas
– Menino
alinhadas contra um muro a fumarem os dedos, ao sairmos de Lisboa o tempo não passa, deixa
isso às cegonhas e o resto parado, olha a minha família toda ela ainda viva, eu perto do tanque
maior com uma boneca ao colo
Mimi
só com um braço mas desperta, o que a gente falava, hei-de espreitar as Pedralvas agora que o
meu irmão morreu, a oficina de automóveis em cima, os becos, o café, rafeiros que não ladram,
se nos escapam de lado, comboios ao fundo, as cegonhas é claro, isto é um país de pássaros,
sinto penas rugosas e asas cruéis por toda a parte sem falar naqueles olhos fixos, terríveis, além
dos pássaros o café, comboios em baixo, as cegonhas, é claro, isto realmente é um país de
pássaros, sinto patas rugosas e asas cruéis por toda a parte sem mencionar os olhos fixos,
tremendos, para lá dos pássaros há sempre uma caravela a regressar da Índia, penso eu, cheia de
uma espécie de mendigos barbudos, raios partam os livros de História e a sombra do meu irmão
por ali, a sumir-se tentando não fazer barulho numa daquelas barracas instáveis a que chamam
casas, algumas com vasos de flores que os cães ainda não descobriram e quem diz cães diz os
velhos de alpercatas que tropeçam em si mesmos, ao acaso, de bonezinho de xadrez a ocultar os
olhos, sobram os queixos que murmuram enquanto a cidade não cessa de engolir pessoas e eu
com saudades da quinta e das mimosas do jardim sob as quais o meu pai tinha um banco onde se
sentava aos domingos à tarde a olhar para nada, com os dedos enfiados uns nos outros como os
mortos na igreja, comigo cheia de medo do seu silêncioque se transformava em careta mal
imaginava que eu a aproximar-me, fabricando um
– Então?
que julgava um sorriso e não era, era a sua forma de dizer
– Menina
conseguindo tornar a palavra uma única sílaba, havia alturas em que a capacidade de
sofrimento dele quase me comovia, os olhos, abandonados um pelo outro, ambos fixos nas
próprias mãos mas cada qual sozinho e os sapatos lado a lado enquanto o
– Menina
se dissolvia, desamparado, no ar, lembrando um lenço que acenava ao acaso numa estação do
caminho de ferro deserta, só faltava um resto de jornal às cambalhotas no seu corpo vazio à
medida que o fato ia chovendo no chão, comigo a pensar
– Ainda bem que já cá não estava quando o meu irmão foi preso da primeira vez
ou seja dois automóveis a pararem de repente à porta, as cegonhas indiferentes no telhado do
celeiro e na ruína da casa antiga mais acima, com a chaminé que resistia a inclinar-se, inclinar-se
e depois os polícias a trotarem, a minha mãe de roupão
– O que é isto?
e gritos e ordens e pés a correrem e vozes
– Quietinho
e escadas a vacilarem e estrondos no andar de cima e as cegonhas a estalarem os bicos e o meu
irmão com algemas e um sujeito de metralhadora e empurrões e
– Mexe-te
e
– Entra no carro depressa
e
– Mais depressa do que isso
e um dos rafeiros atrás da polícia a ladrar, a ladrar e uma jarra ou um candeeiro que caía, e não
me faças a desfeita de tropeçar num degrau, e ficam-te bem as algemas, e os marinheiros da
caravela à espera cá em baixo, e a minha mãe
– Por favor
a minha mãe
– Por favor por favor
e eu no primeiro andar, moro entre cegonhas a voarem em torno do celeiro e as asas delas tão
grandes, os bicos enormes a pescarem enguias na barragem e eu comam o meu irmão, não me
comam a mim, o meu irmão tão diferente dos pobres, a roupa dele, os modos, o colarinho
engomado, o nó da gravata igual ao do meu pai, a delicadeza das mãos poisadas uma sobre a
outra como as infantas nos túmulos das igrejas, tão macias, tão leves, o meu irmão sentado no
cafezito das Pedralvas, sobre um lenço aberto para se proteger das nódoas, com um dos
mecânicos da oficina lá em cima e uma palmeira meio tombada a pesar no telhado porque aquilo
que pertence aos pobres, para além de baço e gasto, sempre à beira da queda, sempre amolgado,
torto, se a minha mãe ali estivesse
– Que horror tudo isto
com receio de tocar nas coisas porque a higiene deles já se sabe e tem razão, mãezinha, a
higiene e os olhos, sem nada dentro, que nos fixam vazios, se por acaso lhes estendo a mão e
quase nunca lhes, as cegonhas não param, lhes estendo a mão limpam-se antes de ma apertarem e
os dedos grossos, moles, os dois carros da polícia foram-se embora a chiar no graveto com um
cão que desistiu de correr atrás deles a enrolar-se num canteiro e a desaparecer quando fechou os
olhos, se fecho os meus é o mundo que desaparece e apenas eu continuo no interior de mim, eu e
uma miúda com vocação de craveiro amparada à muleta, a minha mãe na poltrona do meu avô
que dizia patetices de velho e julgava comandar o mundo
– E agora?
e agora olhe, é assim, o que quer que lhe diga, o advogado
– Vou falar com o director da polícia e vamos ver vamos ver não prometo nada mas vamos ver
ainda temos alguma influência ainda conhecemos pessoas claro que ele foi imprudente mas
vamos ver
e o que vimos eram pássaros indiferentes a nós e um amigo do meu pai, próximo do governo, a
desenhar círculos num bloco
– Ele sempre foi um bocado cabeça no ar não é?
círculos idênticos aos das cegonhas lá fora, cada vez mais perfeitos, mais lentos, os olhos a
deterem-se na minha mãe
– Pois é
e a partirem de novo, um juiz que devia favores ao meu pai
– Garanto-lhes que estou atento
ou seja com medo da polícia igualmente, filhos de pobres a quem deram pistolas e se vingam
de nós por não terem dinheiro, na sede lá deles dois sujeitos a tomarem conta da porta e a seguir
corredores, sombras de cabelo apanhado a atenderem telefones, um sujeito para o colega que
torturava uma borbulha na cara
– Enquanto não apanhares uma infecção não descansas
telefones que não cessavam de tocar, máquinas de escrever, a voz de um fulano invisível atrás
de uma porta fechada
– Que gaita
sons de carimbos, alguém a rir-se até que o riso se transformou em tosse e gaguejos aflitos
– Não consigo respirar
um colega a bater-lhe nas costas em ecos de barrica vazia, o meu irmão não sei onde debaixo
daquilo tudo, paredes, pessoas, campainhas de telefone, ecos de grilhetas sobre a palha num
cubículo húmido, um pijama às riscas com um número e a minha mãe dobrada para ele a dar-lhe
água como nas gravuras das biografias das santas, sempre esmoleres conforme o senhor abade
jurava, é engraçado que continue a lembrar-me da minha avó aqui, a bordar sob o caramanchão
do laguito cheio de folhas, mesmo quando dormitava a agulha ia e vinha, ela de lábio de baixo
sobre o lábio de cima sem falar com ninguém, aliás quem a ouvia enquanto enchia a casa de
naperons de modo que arcas e arcas a vibrarem no sótão com a alegria das traças, depois houve
aquela fuga da prisão de que os jornais falaram e uma ou duas ocasiões, antes da noite, ia apostar
que o meu irmão a espreitar-me da vinha, ao tentar aproximar-me desaparecia em silêncio e
durante meses a fio passou a habitar os meus sonhos, quer dizer não bem sonhos, esses
momentos esquisitos antes de adormecer, quando o corpo se distancia numa espiral confusa,
entre segredos, fragmentos de vozes e imagens que empalideciam, o tractorista, o meu pai, outras
pessoas a dizerem-me adeus com braços compridíssimos como se eu fosse morrer e a angústia da
minha agonia a aumentar, a aumentar, tentava sentir a cama e a cama evaporou-se, queria pedir
ajuda e a minha voz não saía, recuava, as minhas lágrimas tentavam
– Ajudem-me
num aceno de afogada a desaparecer no lençol, chamava o meu irmão em gritos afinal mudos
porque a garganta cerrada e ao desistir de respirar, de olhos quase fechados, ele
– Miúda
a pegar-me ao colo numa leveza fácil apanhando-me do chão
– És a minha miúda
tão feliz como quando dava por ele na vinha, afinal não calado, afinal como dantes
– Garotita
porque sou a tua garotita também, fui sempre a tua garotita, serei sempre a tua garotita, estou a
escrever isto e
– Garotita
a adormecer e
– Garotita
mesmo com cinquenta e três anos continuo a
– Garotita
a pedir-te que não me deixes nunca ouviste, o meu irmão, de novo na vinha, um aceno rápido
antes de desaparecer num socalco
– Adeus garotita
podem acreditar que é verdade
– Adeus garotita
e eu ao mesmo tempo infeliz e alegre, tão infeliz e tão alegre a pedir
– Espera
a pedir
– Não vás ainda espera um bocadinho
escutando o eco da minha, da minha voz
– Um bocadinho
que desaparecia em mim
– Um bocadinho
parecia repetir
– Um bocadinho
mas sumiu-se para sempre e no entanto quero o meu irmão na vinha mesmo em silêncio
– Mano
mesmo morto como agora
– Mano
desaparecido e no entanto ali, eu estou viva, eu estou viva mano, eu estou viva, tão
surpreendente esta verdade que digo
– Estou viva
como as cegonhas estão vivas, como a casa está viva, o meu pai para mim, também vivo
– Pimpolha
continua conosco, olhe as cegonhas senhor, olhe eu, olhe os almoços de Páscoa, olhe as
tacinhas com amêndoas, olhe o cabrito no forno, olha tu, mano, a pegares-me ao colo e o cheiro
da loção para a barba, o cheiro da água de colónia na camisa, a voz no meu ouvido
– Ainda cá estamos não é?
e ainda cá estamos, juro que ainda cá estamos de facto nesta casa cheia de presenças e ecos e o
som do piano lá em cima como se a mãe diante dele a hesitar nas notas
– Ando tão esquecida meu Deus
a repetir a tecla, a tornar a repetir a tecla, a repetir sempre a tecla e atrás de cada tecla o meu
irmão
– Garotita
enquanto as cegonhas, mais lentas, a pressentirem a noite entre ventos escuros, eu sozinha,
quase a adormecer, com a única empregada que tenho agora
Silvana
– Precisa de mais alguma coisa menina?
a limpar-se como de costume na orla do avental da que se jogou ao poço
Benilde
por causa do jardineiro que a deixou semsequer
– Temos de conversar
sem sequer
– Adeus
empregou-se noutra quinta, imitava o som das corujas e de repente noite em toda a parte, de
repente o mar, tão longe ainda, a crescer, as ondas cor de rosa antes da noite, o meu irmão um
último
– Garotita
afastando-se embora eu continuasse a ser a sua pimpolha não é, quem mais gosta de ti, se por
acaso um circo aqui perto, com um leão já sem pêlo, o pobre, e a rapariga que se dobrava como
um metro articulado, levavas-me sempre a ver, a rapariga de costelas de fora quando encostava a
nuca aos tornozelos e mirava o meu irmão com os olhos ao contrário, sem falar nas madeixas
soltas que baloiçavam de esforço, ao sairmos encontrávamo-la encostada a uma rulote ou sentada
numa pedra, sozinha, a comer caldo de um tachito, quase de cabeça toda lá dentro, tão pequena
afinal, tão nova, empurrando madeixas soltas com o braço, olhando através de nós os candeeiros
da vila de cara sem nenhuma feição dentro como eu agora, sozinha nesta casa à tua espera,
cegonhas, o que posso fazer além de esperar-te, diz-me, escutar
– Garotita
outra vez, a minha mãe e eu em Peniche aos domingos com as ondas e os pássaros mais dentro
do forte que lá em baixo, passos que se afastavam permanecendo ali, gritos, ecos, paredes e
paredes, chaves constantes a darem corda ao vento e aumentando-lhe a zanga, pedras roucas de
pássaros, não distingui o meu irmão da chuva, deu-me ideia que a sombra da tua voz feita de
ecos de passos não à minha frente, no meu ouvido apenas
– Olá
que dois dedos embrulhados num sorriso a beliscarem-me a bochecha
– Isto não é para a minha garotita vai-te embora depressa
mais magro, mais alto, com tantos ossos que não tinha na cara, metido numa blusa velha,
apertada com um cordel à cintura, esperando o quê Santo Deus, talvez a sua voz que escorregava
do corpo, não da garganta, do corpo, emagrecendo-o mais enquanto eu recuava, apesar de quieta,
afastando-me dele, era uma onda feita de mim que desaparecia, uma cartilagem na sua garganta a
lacerar-nos aos dois
– És a minha única namorada sabias?
mas era difícil ouvir-te derivado às gaivotas e aos ecos das ondas, a minha mãe só o braço com
que secava a boca e eu ajudando-a a levantar-se porque deixara de conhecer o seu corpo, tão
aflita coitada, morreu em abril, há seis meses
– Aconteceu-nos tanta coisa filha
pouco antes de as cegonhas chegarem, as chaminés ainda sem ninhos por mais um mês ou
assim, tirando restos de lama do ano passado que resistiam ainda e eu sentada ao piano enquanto
ela sozinha no quarto, tão sozinha no quarto sem chamar por ninguém, sem ver ninguém, de
terço terrível nos dedos, nesse ano o primeiro pássaro em junho, não um casal sequer, o primeiro
pássaro apenas na palma aberta do vento, comigo sentada ao piano no outro lado da casa, duas
notas ou gotas hesitantes de uma torneira avariada que rodavam vibrando sem caírem do bico de
metal conforme a cegonha não poisava nunca, afastava-se, desaparecia no ar, voltava, o director
da cadeia para nós
– Não pensem que isto me agrada
a olhar a janela, a olhar-nos, a olhar de novo a janela batendo o lápis na mesa
– Não pensem que isto me agrada
com um sorriso vazio
– Alguém tem de trabalhar pelos outros não é?
e uma cicatriz na bochecha a crescer e a diminuir rugas adiante à medida que falava, de quando
em quando um dente de baixo surgia entre palavras e afogava-se de novo enquanto palpava uma
borbulha no queixo
– Herdei a pele do meu pai imagine-se
preocupado com as infecções, as doenças
– Não calculam as maçadas de saúde que eu já tive
muito direito, sem olhar para nada enquanto o feitor, mais longe, se afastava no pomar não me
vendo, claro, quem me vê neste mundo, o que será feito das Pedralvas onde nunca mais voltei,
provavelmente galinhas cheias de fome na rua, uma caravela ao longe, três ou quatro pretos a
conversarem, naquelas vozes lá deles, a caminho dos comboios, a minha mãe para o director do
forte
– Tem a certeza de que não pode fazer nada senhor?
e infelizmente não posso fazer nada minha senhora, sou um funcionário e pronto, as coisas são
mesmo assim, é o ministro quem resolve tudo, deu-me ideia que a cegonha me olhava até eu
perceber que nem sequer me via, ninguém sabe da minha mãe, ninguém sabe de mim, a minha
mãe e eu duas provincianas enterradas numa quinta que não conhecemos como em Lisboa, das
poucas vezes que lá vamos, nos perdemos sempre nas ruas
– O hotel será onde?
a procurar papéis na carteira
– Palavra de honra que até o nome esqueci
quer dizer lembro-me da placa com três estrelas à entrada agora o nome não faço ideia palavra,
como saímos daqui, a minha mãe a olhar as fachadas
– Só nos faltava isto
apesar de haver tanta coisa que nos faltava mãezinha, a nossa maneira de falar um bocado
saloia não é, como a nossa maneira de vestir, a nossa maneira de comer, os nossos gestos,
cegonhas, às vezes, juro, até uma gaivota igual às gaivotas de Peniche só que uma apenas, a
gritar, a gritar, aparece, desaparece, aparece de novo, uma única gaivota que não vejo há meses,
meu Deus o espaço que a passarada ocupa na minha vida, ao sairmos de Peniche, a minha mãe e
eu, chovia e nevoeiro no mar, chuva e nevoeiro ou então chuva apenas, nem eu nem o meu irmão
estamos no forte já, a quinta de novo ao longe, a surgir numa curva e a sumir-se, quando
tornámos a vê-la crescia, olha o muro, o portão, a fachada da casa, as duas chaminés, o pomar, o
meu pai cá fora, na cadeira de lona azul e branca, a desdobrar o jornal, a procurar os óculos no
bolso do colete, a perguntar-nos
– Que tal o rapaz?
sem tirar os olhos das páginas
– Que tal o rapaz?
com aquela ruga a meio da testa que o ajudava, melhor que os óculos, a perceber as palmeiras,
o meu pai
– Que tal o rapaz?
mais interessado nas notícias do que no meu irmão, o meu pai que já morrera há anos
– Que tal o rapaz?
sem pensar nele, nem na minha mãe, nem em mim, a dobrar as folhas com uma palmada, a
descruzar as pernas, a cruzá-las de novo, o meu pai apesar de falecido
– Que tal o rapaz?
quando eu sabia que não lhe interessava o rapaz, nunca lhe interessou o rapaz, interessava-o a
cegonha que poisou finalmente numa chaminé a estudar-nos com o que me deu ideia, o que se
me afigurou, o que ia apostar, o que tenho a certeza de ser pena de nós.
4 
O FILHO DO CASEIRO DELE
Meu Deus que patética a velhice, aqui estou eu aos setenta e seis anos sob a mimosa do
quintal, sentado numa cadeira de lona na claridade cada vez mais pálida do crepúsculo, sem
reparar na quinta deles à minha esquerda nem na casa ao fundo, sem nenhuma luz nas janelas,
que dava ideia de crescer, riscada pelos primeiros morcegos ainda hesitantes, vermelhos,
tombando para um lado e para o outro na direcção da noite, ou seja a terra a esvaziar-se de si
mesma antes de nos deixar, comigo a sentir-me, palavra de honra, a única pessoa viva no mundo,
o coração ou o estômago
(acho que o estômago, cheio de aurículas)
ainda a pulsarem cá dentro e eu a agradecer, senhores, que pelo menos uma parte minha,
mesmo insignificante, tímida, com interrupções e desistências, continue a tentar existir, sinal que
ainda não morri todo, obrigado, e abre um postigo de esperança no que teimo em chamar a
minha vida, onde estão as costelas flutuantes, onde está o piloro, não me abandonem meu Deus,
dantes não precisava de pedir, nada me largava, ao passo que agora acabou-se a papa doce,
rapaz, tenho de mendigar a cada célula, as pobres, que não me deixem por enquanto, tenham
paciência meninas, lembrem-se do que durante tantos anos fiz por vocês, levantar-me cedo,
comer a horas, passear depois das refeições até o estômago moer o peixinho, não desejo, palavra
de honra, mais do que um quinto daquilo que vos ofereci, eu quase de chapéu na mão como os
mendigos
– Ajudem-me
enquanto por exemplo o baço, a supra renal direita, ou uma glândula sudorípara me respondem
pelo biquinho dos lábios
– Não consigo senhor tenha paciência
e os distingo, pelos retrovisores de mim, a amontoarem-se sem força numa berma até que um
mendigo os leve ou a minha netase me pendure da orelha
– Estás a rezar?
e não deves andar boa tu, não agradeço a Deus, esse barbas, o que Ele não me entregou, fiquei
para aqui a lembrar-me de ingratidões e abandonos que foi o que recebi neste mundo, morre-se
sozinho e nasce-se sem companhia a esbracejar os olhos, quem não tem dedos é que agarra mais
e ela a coçar a bochecha com uma unha que pensava e a esquecer-me logo porque o namorado,
um pindérico meio ruivo com ademanes de leque, o idiota, a chamou, o mau gosto das mulheres
deixa-me sempre de boca à banda, a minha mãe apesar de tudo, vá lá, um bocadinho menos
defeituosa que as outras, morreu nova, de um ataque de bom senso, mal o corpo principiou a
desamparar-lhe a loja poupando-a aos degraus que a partir dos cinquenta se multiplicam, cada
vez mais altos, nas escadas, que patética a velhice de facto, que vergonha, talvez um aguilhão de
vitaminas, espetado com firmeza no rabo, lhe levantasse a alma conforme os caniços ajudam as
plantas a treparem no interior de si mesmas a caminho do sol e agora que tudo escurece, a
começar por mim, eis que chegam os últimos pássaros da encosta acolá, tentando libertarem-se
das mangas de gabardina das asas, provavelmente os mesmos que dantes, quando ela e o irmão
moravam com os pais na casa grande à entrada da quinta e eu escutava os cavalos que passeavam
a esta hora ao comprido da vinha porque eram ricos eles, eram ricos, não habitavam numa
barraca com duas divisões como os meus pais e eu, mais a chuva de janeiro no tecto que o vento
trazia segredando-me
– Tu
ou seja a chuva que nos acompanhou toda a vida a chamar-me, eu já não filho do caseiro, eu
estudante, eu doutor, eu advogado, voltando aqui no Natal, voltando aqui em agosto, queria
comprar-lhes o terreno, o pomar, a quinta inteira, eu na esperança que me aparecessem a cavalo
lá em cima, umas ocasiões não me vendo, outras um aceno enquanto pulavam atrás das crinas
dos bichos, o bigode dele tão alto enquanto o carrapito da irmã a soltar-se e a sua voz agora no
sofá da sala enquanto eu de pé diante dela, sufocado na gravata, com as minhas mãos
despedaçando-se uma à outra nas costas enquanto as falanges caíam no chão continuando a
dobrarem-se, os dois numa salita pequena junto ao roseiral onde os sininhos das flores, apesar de
novembro, continuavam a cantar
– Quer comprar isto você?
com cinquenta e tal anos, agora gorda ou antes, quer dizer, um bocadinho mais forte, usava
olhos diferentes dos olhos de eu pequeno e as feições baratas, de roupão, de que as mulheres se
servem para pequenos almoços solitários na cozinha enquanto a boca pede em silêncio
– Socorro
quando o indicador, molhado na língua, apanha uma a uma as migalhas das torradas e do
tempo, quando até os azulejos perguntam
– Para quê?
os tornozelos se apertam num nó debaixo da bancada e a maquilhagem que o algodão da noite
não tirou se transforma num cartaz de touradas rasgado a baloiçar numa fachada, uma voz
diferente do que eu imaginava
– Comprar isto?
e um sorriso mais antigo baloiçando no sorriso que tinha, os pais já falecidos, o irmão já
falecido, para haver ecos ali era preciso que uma porta a bater ou um prego a desistir de um
quadro, talvez o vento nas janelas à tarde ou um objecto a cair na esperança que se lembrassem
dele, tão patética a velhice, não é, mesmo não mencionando os cheiros, o da roupa, o da pele,
aposto que a cozinha na penumbra com um tacho, de colher lá dentro, a dormitar no fogão, quer
comprar isto mesmo já sem vida
– Nem pássaros aqui sobram notou?
o irmão, com uma malinha, a beliscar-lhe a bochecha
– Dois ou três dias e volto
ou seja um automóvel com um fulano de chapéu lá dentro, à espera nas traseiras, o meu pai
para mim, sem me olhar
– Nenhum de nós viu nada
numa expressão de
– Cala-te
e qual o problema de ver, o que se passa senhor, de tempos a tempos ele e o meu pai a falarem
junto ao poço maior, o meu pai coçando o ombro como sempre que se preocupava e pombos
brancos às voltas, ela para mim
– Quer mesmo comprar isto você?
sentando-se numa cadeira mais próxima depois de lhe tirar uma revista adormecida enquanto
os corvos da colina passavam na janela retalhando o ar e então vi os barcos da Índia mas por
saber quem sou não me sentei com ela, continuei de pé a esconder as mãos na boina que não
tinha, eu que agora sou um advogado caro não é, dono do escritório, importante, os clientes
respeitam-me, os colegas esperam que eu decida, recebo de certeza muito mais dinheiro que ela,
a roupa da minha mulher mais cara do que a sua e no entanto eu acanhado, eu tenso, eu humilde,
pensando
– O que é feito da minha boina?
para esconder as mãos nela, as unhas quebradas, as cicatrizes, os calos, a última falange do
mindinho da direita que a tesoura de podar levou, esta mancha entre o indicador e o polegar que
não me larga, não sai, de onde veio, estes vincos no pescoço quase iguais aos do meu pai, este
boné de xadrez que apesar de o ter jogado fora há séculos às vezes, sem me dar conta, procuro na
algibeira na esperança de lhe sentir a pala torta que me prende como uma âncora a mim mesmo,
não sei se falei ou não das naus mas hão-de vir, hão-de vir, ela para mim, a apontar a varanda
onde uma cegonha, duas cegonhas, uma gaivota, tanto faz, pássaros e para que servem os
pássaros, vocês ao menos comem-nos depois de os assarem num pauzito, uma gota de carne com
penas por fora e sonzitos queixosos, ela sem entender
– Comprar isto?
apontando a janela com o braço e lá estava o celeiro, lá estavam as carroças que transportavam
as sementes, uma delas tombada de lado, outra sem rodas já, lá estava um daqueles cães sem
dono que a seguiam de longe a coçarem-se e subiam da aldeia farejando os ratos gordos do
campo, toupeiras, um texugo de súbito, equilibrado nas patas de trás, aqueles ratos enormes,
cinzentos, os advogados do meu escritório para mim
– Senhor doutor
sem que eu os visse sequer, via uma leira por acabar, duas leiras, o meu pai a zangar-se
– Madraços
e as botas dele enormes, o nariz enorme, as mãos que nunca se tocavam, enrolavam uma
mortalha, à noite, quando se sentava sozinho, sem dar pela minha mãe ou por mim, no degrau do
quintal, distinguia-o pela luz do cigarro
– Quero comprar senhora
e não é isto que quero comprar, é o silêncio do escuro, é a paz das sombras, o olho enorme da
minha mãe
– Menino
quando se voltava para mim com um pescoço de frango pendurado na mão e as patas do bicho
enormes, se calhar vivas ainda, com aquelas unhas horríveis procurando alcançar-me o pescoço,
a minha mãe a troçar
– Tens medo?
e isto na casa da quinta porque de súbito eu não sessenta anos, apenas um miúdo que buscava
equilibrar-se, e não se equilibrava, nas botas velhas do pai, a irmã não já
– Quer comprar isto?
mais baixo, quase divertida, quase com pena de mim
– Garoto
dando-me ideia que prestes a tocar-me mas claro que não se toca no filho do feitor, sabe-se lá
por onde é que ele andou, mesmo tendo tomado banho como tomava agora, mesmo havendo
aprendido a usar os talheres, mesmo de fato completo, mesmo educado, mesmo rico porque
nunca saímos do sítio onde nascemos, nunca saímos do campo e olha o vento, olha as nuvens,
olha a chuva de outubro acolá no pomar e os tordos a tremerem escondidos nas folhas, o cavalo
dela quase tão grande quanto o cavalo do irmão, o suor no pescoço, uma órbita que de repente
me fita espantada culpando-me sei lá de quê e continuando a trotar, no verão apenas uma
cegonha longíssimo, não um bando de cegonhas, uma única cegonha no vértice de um ulmeiro,
sem bater o bico, calada, às vezes o irmão ausente dias a fio, uma ou duas ocasiões um homem
com ele sem nos olhar sequer, dava-me ideia que a esconder a cara evitando-me, outras um
automóvel com dois ou três sujeitos e ele escondido no pomar, não vou esquecer os seus olhos
quando passou por mim não vendo fosse quem fosse, ocos, e a irmã à entrada da casa a apertar
um roupão cujo cinto se desfazia logo, despenteada, sem pintura, de súbito mais nova ou mais
velha, não consigo explicar, tanto faz, enquanto os pombos do

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