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Ficha Técnica Título: Diccionario da Linguagem das Flores Autor: António Lobo Antunes Edição: Maria da Piedade Ferreira Revisão filológica: Norberto do Vale Cardoso Revisão tipográfica: LeYa, SA. Capa: Rui Garrido ISBN: 9789722071109 Publicações Dom Quixote uma editora do grupo Leya Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01 1.a edição: outubro de 2020 © 2020, António Lobo Antunes e Publicações Dom Quixote Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.dquixote.leya.com www.leya.pt http://www.dquixote.leya.com http://www.leya.pt ANTÓNIO LOBO ANTUNES DICCIONARIO DA LINGUAGEM DAS FLORES Romance 1.ª edição * Edição ne varietur de acordo com a vontade do autor Fixação de texto Norberto do Vale Cardoso 1 O MECÂNICO AMANTE DELE Quando acabei a tropa um colega ruço de olho esquerdo desviado que quase nunca andava conosco, sempre metido em assuntos lá dele, arranjou-me emprego na oficina de automóveis do pai no alto das Pedralvas, uma colina de pobres a norte de Lisboa com casas velhas e barracas e ruazitas estreitas, de modo que aluguei um quarto por ali com direito a banho duas vezes por semana, às terças e sábados, e um janelico para um quintalzinho vedado a tábuas de andaime no qual existia um limoeiro ferrugento onde nunca vi nenhum limão, só vespas desiludidas, inclinado sobre o pedaço de muro em que poisava o cotovelo, a senhoria, sempre de avental e chinelos que a adivinhar pelo tamanho deviam ter pertencido ao marido, evaporado há anos na confusão da cidade que não pára de engolir gente, também com tantas esquinas não admira, só não entendo como é que não nos devora a todos, chamava-me às vezes para uma sopita comida na cozinha minúscula sem olharmos um para o outro, ela no único banco que sobrava e eu encostado ao lava loiça, sob uma lâmpada insegura a pestanejar (dava-se um piparote, melhorava num soslaio agudo para nós e recomeçava a tremer, que vida difícil têm as coisas sem uma alma caridosa que as ajude) enquanto um cão ladrava num beco às escuras e calava-se sei lá onde num suspiro comprido em que agonizavam fogareiros, no fim da sopa a senhoria lavava os pratos com uma esponja sumária e fechava-se na salita porque de quando em quando lhe escutava a tosse, puxando pedaços de si mesma até à garganta de modo que os chinelos solitários lá em baixo e ela na alegria aflita de me saber por ali enquanto as acácias das redondezas se calavam uma a uma, mais longe do que os comboios no escuro, dava-me ideia que nas Pedralvas nós apenas, presos um ao outro por um fio de silêncio que apesar de tudo sempre diminuía a solidão, quase apostava que de tempos a tempos vinha espreitar-me a dormir, cobrindo-me um tornozelo com o fim do lençol a reprimir uma festa desajeitada com demasiados dedos que me tropeçavam na pele, deixando-me, depois de se ir embora, mais abandonado ainda, a lembrar-me da minha mãe nas Caldas da Rainha, debruçada para mim a apontar o queixo ao meu pai – Achas que o miúdo continua vivo? comigo imóvel, espreitando-a por uma frinchazita das pálpebras, alarmado – Continuarei vivo a sério? a tentar encolher um joelho que se calhar não encolhia, imagino que encolhe e é tudo, provavelmente os defuntos nos velórios sentem o mesmo e no entanto quietos, julgam que conversam com as pessoas, coitados, lhes fazem perguntas, as escutam – Quem te garante que não os vamos encontrar logo no café? como de costume a olharem os cisnes de pupila distraída, como de costume a pensarem noutra coisa – Perdão? as Pedralvas tão melancólicas no inverno quando chovia, dava ideia de serem as casas a tombarem do céu em gotas sujas alastrando no passeio, numa mesa do cafezito, perto do balcão, um homem que não conhecia, mais alto do que eu, mais distinto, claro, a olhar para mim enquanto rasgava um pacote de açúcar sobre a chávena e a seguir a colher, o bico agudo dos lábios, o pescoço comprido e a mão achatada no peito a fim de proteger a gravata, o que faz este aqui, como diabo deu com o bairro, uma ocasião por mês, ao fim de semana, apanho a camioneta para as Caldas da Rainha porque o meu pai doente, de pijama na sala, a lutar com os remédios que a minha mãe lhe traz, os amarelos, as cápsulas, o pó de dissolver na água, passados de bochecha a bochecha, cravado na parede fronteira – Não consigo engolir isto enquanto a minha mãe lhe vai dando mais um copito – Experimenta agora e ele – Que sina a esmagar os pés um no outro, a minha mãe com uma tigela – Os doutores querem que comas o caldo debruçada para mim num soslaio cheio de cochichos – Não é nada no estômago dizem eles é à beira do fígado admirada com a vida – O que a gente tem dentro o meu pai a bolinar na nossa direcção desfazendo-lhe a prosa – Essa acredita em tudo à beira do fígado é só tripas e gases se existissem médicos como deve ser metiam-me um tubo no umbigo e chupavam aquilo enquanto as caravelas dos cisnes, a regressarem da Índia cheios de especiarias, flutuavam no lago, pelos vistos do oriente aqui, mais coisa menos coisa, é um instante, depois trepam a rampa e entram a baloiçar, todos colorau e pimenta, na casota, os olhos do meu pai tão diferentes agora, baços, pálidos, fugindo de nós, ele que construía barcos dentro de garrafas com pedaços de cana, restos de fronhas e madeira, nos quais saía para países distantes preocupando-nos à minha mãe e a mim que o esperávamos no sofá, nervosos com as tempestades – Felizmente já passou a Guiné já passou a ilha de Moçambique o meu pai no convés, distantíssimo, de chapéu de plumas, a comandar marujos ele que não conseguia comandar o que há à beira do fígado, desiludido – Nem a tripa me obedece de pantufas, o pobre, e uma botija morna a tentar consolar-lhe os interiores, incerto, pálido, impedido de construir batéis porque o canivete falhava, a minha mãe, entristecida – Lembras-te das voltas ao mundo que ele dava conosco aqui sentados à espera? e as naus alinhadas em frascos de xarope acolá na cómoda, com as rolhas a impedirem-nas de deslizar dos gargalos, eu sempre na ilusão que você nos anunciasse – Um dia destes regresso e a gente à espera no capacho da entrada tão preocupados por sua causa, desejando que um veleiro, no rés do chão, a aproximar-se pelas ondas das escadas acima, o meu pai na ponte de comando – Podem aquecer o jantar e logo a seguir sentado à mesa a prender o guardanapo no colarinho – Se ao menos tivessem visto Madagáscar se tivessem visto Bornéu a tresandar a sereias e ao cânhamo do Ceilão – Convidei o marajá com um cachucho em cada dedo para almoçar no domingo faz-lhe um arroz malandro que ele gosta sentado na única cadeira de braços que tínhamos, a descansar um momento de olhos fechados – Se sonhassem o que navegar exige enquanto a minha mãe, na cozinha, preparava um petisco de alto lá com o charuto porque da comida a bordo nem merece a pena falar – Palavra de honra que até sola comemos cercado por deuses de oito braços e dragões que o ameaçavam de longe a cuspirem fogo, o doutor para a minha mãe cujas pestanas vibravam – Os problemas do pâncreas minha senhora nunca dão muita margem mas a esposa de um almirante aprende a aguentar-se não é verdade e portanto ela na consulta equilibrando lágrimas no interior dos olhos de modo que nem uma para amostra a descer-lhe a bochecha, de quando em quando parecia-me entrever uma cintilação que espreitava no rebordo da pálpebra – Não há um medicamento mais forte? não desgostos, apenas a sombra deles enquanto o meu pai se justificava para o médico – Desculpe estava a pensar em naufrágios o meu pai que trabalhava no escritório de um armazém, entre caixotes e fardos, somando números todo o santo dia sem que os gritos dos cisnes em outubro, no lago das Caldas, o perturbassem, aos domingos de manhã passeava comigo sob as árvores, de cabeça muito acima da minha que eu mal conseguia enxergar – Tens de estar sempre a dar pulos? e garanto-lhe que não pulava há séculos, de quando em quando, perdoe, lá me sai um semquerer, a minha mãe para mim numa espécie de eco envergonhado – Foi a primeira coisa em que reparei nele a mover-se, redondo, sempre que falava, dando-me a impressão que as palavras não lhe saíam da goela, vinham directamente do ar, o meu pai quando chegava – Ora viva empurrando a morte para um canto – Isto vai sabendo que não ia, com pena da minha mãe, com pena de si porque a comida a bordo nem é preciso falar – Sonho tanto com vocês e a gente no meio das embarcações de Goa lado a lado nas prateleiras, com marujos nos mastros a preparem as velas – Infelizmente daqui a nada tenho de me ir embora para uma entrevista no Paço Real mas prometo que volto enquanto a minha mãe secava um resto de desgosto na cara e o meu pai, é lógico, a ralhar-lhe – Até parece que não voltei sempre não é? e voltou sempre às sete, sete e meia, poisando a pasta do escritório junto à porta – Ora cá estamos nós a endireitar os naperons, a compor a cortina, a sentar-se no seu canto do sofá a observar-nos a ambos – Os meus marujos palpando qualquer coisa na barriga com indicadores preocupados – Um desarranjo isto passa o médico atrás do biombo do hospital com ele – Respire fundo agora e a impressão que a maré a subir e as Caldas subitamente um oceano dorido, o meu pai uma espécie de queixa e o doutor – Tenha paciência está quase saindo do biombo a levantar as sobrancelhas para a gente, baixinho – Pois é um – Pois é que continua a perseguir-me como as moscas de julho que não nos largam nunca, o meu pai atrás a apertar-se no cinto – Ora cá está o almirante outra vez poisando na boca um sorriso precário que se aguentava tem-te não caias, de cotovelos mais agudos e joelhos mais finos, a senhoria das Pedralvas através da parede – Não consegue dormir? e é evidente que consigo dona Teresinha, não se rale, enquanto um cão invisível ladrava e ladrava, no caso de me aproximar da janela bicho algum, eu sozinho a espreitar, a minha mãe viúva rodeada de batéis embora Goa tão longe, um feriado destes convido-a para passear no lago entre os patos, os cisnes e a sombra das árvores como o meu pai fazia, comigo na margem a vê- los, diga-me adeus senhora, para a semana ou daqui a quinze dias venho de camioneta de novo na esperança que o meu pai no largo da feira, homens que achava parecidos com ele, também morenos, também magros, que não me viam sequer ou ignoravam quem eu era, uma parente da minha mãe – Rapaz a explicar-me a uma amiga de botas ortopédicas que baloiçavam como o pêndulo do relógio da sala sempre a responder – Não a tudo e enquanto a escutava eu de novo nas Pedralvas tão melancólicas no inverno se calhava chover, eram as casas, não a água, quem caía do céu em gotas sujas amontoando-se umas contra as outras e erguendo-se aos poucos do chão, um fulano no café, mais velho do que eu, quase no género do meu pai de volta da Índia antes da doença, melhor arranjado, é lógico, sozinho numa mesa afastada da porta, espiando a rua de tempos a tempos como se alguém, que não desejava encontrar, entrasse de súbito e o levasse consigo, espiando-me no que se me afigurava conter um sorriso lá dentro, fazendo-me uma espécie de convite com o nariz na direcção do baldiozito em baixo ou seja ervas de acaso, tijolos, pranchas de andaime, lixo, de quando em quando crianças onde quase sempre rafeiros e ciganos, uma mulher descalça, um bêbedo, um pedaço de máquina de costura, o meu pai no hospital não olhando para nós, a minha mãe – Roberto sem som, apenas os lábios a moverem-se, com o vestido dos domingos e a carteira de verniz no colo, cujo fecho ela encaixava e desencaixava em estalinhos murchos, eu surpreendido pelo cabelo ralo, já começa a não servir, você, é a vida, acontece com todos, conforme-se, percebia- se-lhe a respiração porque o pescoço aumentava um bocadinho e desistia logo, nunca hei-de entender o mistério da velhice, o queixo que abana, as bochechas sem força, as tenazes dos olhos do fulano apanharam os meus puxando-os contra si, tenho uma namorada chamada Idalete, tenho uma namorada chamada Idalete, tenho uma namorada chamada Idalete, não sou, alguns colegas meus da tropa ganhavam dinheiro durante as licenças assim porque havia sempre um ou outro caramelo junto à porta de armas à espera, um ou outro automóvel com o polvo de uma silhueta dentro, até adolescentes a fumarem para espantar o nervoso, não sou maricas, sentia-lhes os passos hesitantes mas se me virasse de repente fugiam, se os agarrasse pelo colarinho tentavam escapar – Não me faça mal largue-me paguei ao dono do café enquanto pensava – O que se passa comigo? e a enfermeira mudava o frasco que desistiu de pingar para o interior do meu pai com mais três pessoas no quarto, um deles não na cama, numa cadeira à janela com vista para nada e um casal que deviam ser filhos a insistir – Tem de vender o pomar mostrando-lhe papéis, facturas, mãos abertas, o da cadeira para ninguém – Logo o pomar caramba lembram-se daqueles figos? com o pijama do hospital descosido na manga, quase sem cor, e a marca de um carimbo, também quase sem cor, na lapela, enquanto o homem no café se dirigia ao balcão perguntando – Devo quanto? sem pressa, bicando moedas na palma com o indicador e o polegar, mais ou menos da idade do major rodeado de mapas com bandeirinhas espetadas a atender o telefone – É um problema de facto enquanto ordenava que me aproximasse desenhando círculos com o braço livre num gesto em espiral – Chega-te aqui rapaz sublinhado a vermelho por um sorriso que não era sorriso, era o queixo a alargar-se ainda mais à minha espera enquanto o retrato do presidente se distraía contando os plátanos da parada, qualquer coisa a crescer em mim enquanto, perto daquilo que crescia, a voz do major parecida com a da senhoria das Pedralvas a soprar – Cara de um anjo à medida que por reflexo eu me dilatava em sentido, o meu pai para mim, no hospital – Vejo-te desfocado e os cisnes das Caldas a girarem em arabescos lisos, sentia o homem descer a colina atrás de mim num assobiozito que me atrapalhava as pernas e uma cadela magra, de orelhas desiguais, que me cheirou um momento e se aborreceu do cheiro, não me imaginava tão desagradável, o médico guardou o estetoscópio, cujos tubos de borracha deviam ter sido contorcionistas de circo, na bata – Vamos ver vamos ver nada é seguro na vida caravelas que iam e vinham frente a Nagar Aveli, o meu pai a respirar a custo com tantas peças soltas, sacudindo-se ao acaso no interior dos pulmões, não propriamente a fitar-nos, a olhar para dentro na expressão atenta de quando consertava o mastro de uma nau na mesa de jantar, eu para a minha mãe – Não tarda nada vai-se embora naquilo à medida que o major se endireitava à secretária – Desaparece-me da vista camelo furioso consigo mesmo, furioso comigo, envergonhado de nós dois a esconder-se nas mãos, de ombros para baixo e para cima num silêncio comprido – Não mereço viver embrulhando-se de aflição em si mesmo, o retrato da esposa, de filha ao colo, desprezava-o, a cabeça dele desceu devagarinho, quase líquida, até à secretária enquanto a voz me chicoteava as costas – Não me apareças mais tu numa espécie de soluço que parecia rasgá-lo e não dei pelo tiro na semana seguinte, dei pelos enfermeiros a correrem, a maca levada para a ambulância com uma coberta em cima, o tenente coronel a bater o pingalim na perna – Depressa a ambulância a sair, baloiçando, a porta de armas e depois, quase à noite, a bandeira a meia haste na parada vazia, um furriel a cochichar para outro, gente com baldes a limpar o gabinete, a esposa saiu com o tenente coronel num automóvel opaco, as árvores do parque mais espessas que dantes, os cães da tropa, agitados, farejando a parada, cá em baixo, no início das Pedralvas, um terreno baldio com uma ou duas acácias e a ruína de um armazém deserto onde casais à noite, separando-se à saída cada qual para seu lado enquanto sacudiam a roupa, o primeiro para Benfica e o segundo na direcção da Pontinha, subitamente estranhos, sem se voltarem sequer, além de um tractor palharessequida, trapos, não sei quê embrulhado em não sei quê contra uma sobra de andaime, cheiro a bafio e a fechado, a sombra improvável da minha mãe – Sou eu apesar de ela nas Caldas da Rainha, debruçada para o espelho do lavatório a estudar um arranhão, virei para a direita avisando o homem numa espécie de tosse e desequilibrando-me ao pisar uma lata de conservas vazia, passei junto a um mulato sentado numa pedra a comer sei lá o quê de um cartucho enquanto o major defunto, amontoado na secretária, me ordenava sem me olhar – Vai-te embora não com força, baixinho, quase em segredo, de boca imóvel – Vai-te embora com o homem calado a fitar-me, a olhar em torno, a fitar-me de novo em busca de mais pessoas – Trouxeste alguém contigo? a verificar sombras, a assustar-se quando uma telefonia não sei onde gritou de repente e o som de um automóvel antes de recomeçar a descer, o homem – Vamos lá para fora rapaz ainda desconfiado de mim, a avaliar-me, a medir-me, a espreitar uma a uma, fingindo que não espreitava, as entradas das casas, quer dizer um olhar rápido sem mover a cabeça, de vez em quando a mão dele quase a roçar a minha, de vez em quando o corpo, embora sem me tocar, dava ideia de me cobrir por inteiro, passando sobre mim numa leveza tão rápida como a sombra de um cisne, a voz da minha mãe a acordar-me – Menino poisando devagarinho a mão que cheirava a café e ao cobertor deles, sempre mais quente que o meu, na minha testa, lembro-me dela a acariciar-me a cabeça na almofada, da voz, ainda com sono dentro, a alongar-lhe as palavras, algumas delas já vivas, outras por enquanto confusas que iam ganhando sentido a pouco e pouco, o tempo que demoramos a acordar, gestos se calhar meus, corpos a retomarem a sua leveza, o meu pai a afastar-se, de voz junto ao tecto – Já estou atrasado desculpem e o soalho, não os passos, distanciando-se de mim, o fecho da porta a regressar a si mesmo deixando-me sozinho no quarto, sozinho no mundo, ainda não bem pessoa, a recuperar a pouco e pouco gestos esquecidos, já de pé na cozinha éramos nós de novo, você tornava a ser você e eu achava o meu medo do escuro – Mãe – O que é? e a minha voz – Nada com vontade de pedir – Pegue-me ao colo agora a sentir-me tão dentro de si, sem vontade nenhuma de perder o seu corpo, não o corpo de manhã a aquecer uma cafeteira, aquele onde eu morava, tranquilo, sem ruído nem vozes, o sítio que habitei lá no fundo e que ninguém, graças a Deus, alcançaria nunca, como deixei que isto acabasse, como (ignoro de que maneira) nos tornámos dois, quem veio de quem, quem principiou a crescer, quem se afastou do outro, quem volta a entrar em nós, a senhoria para mim – Não se levanta hoje? e não é a si que oiço, desculpe, é uma voz mais nova e mais antiga – Não queres crescer menino? sentada no banco da cozinha, em roupão, afastada de mim, despenteando-me com a palma e tudo enorme ainda, as caravelas, a mesa de toalha de oleado com um rasgão consertado a adesivo, a minha cara sem pregas a quem o médico arrancou um dente à frente e eu olhando a ausência do dente a chorar desolado, eu de cabeça nos seus joelhos, mãe, a rodear-lhe a cintura com o pouco braço que tinha, eu consigo na sala de espera do hospital aguardando que o médico nos chamasse para falar do meu pai, primeiro de pé à nossa frente, em silêncio, depois a inclinar uma cabeça que parecia ter feições a mais – Ora bem várias sobrancelhas, vários olhos sérios, vários narizes, traços que se multiplicavam à medida que falava e o vento das monções em Goa lhe desarrumava o penteado, tantos barcos enormes à entrada do quarto, o homem para mim junto à esquina de um muro – Anda cá atrás do qual mastros de troncos cujas copas se arredondavam como velas crescendo, o homem quase encostado a mim – Filho ou o que me pareceu – Filho o que iria jurar ser – Filho enquanto o médico para o meu pai – Temos aqui um problema comigo inerte, de olhos fechados, à medida que um punho me puxava para si, à medida que os cisnes da Índia ou do lago nas Caldas da Rainha a descerem, sacudindo as asas, e a garganta do major, no seu gabinete no quartel, não paravam de aumentar. 2 UM CAMARADA DELE Não gosto de comboios porque não gosto do mundo inteiro a sacudir-se nas janelas, casas, árvores, passagens de nível e homens de bandeirinha e corneta a mandarem-nos para Lisboa a fim de que a cidade nos coma porque é a única coisa que sabe fazer, comer-nos, não se imagina o número de pessoas que as esquinas engolem transformando-as em retratos sorridentes sobre naperons, elas que em vida – Só me dás desgostos tu não sorriam nunca, o Partido arranjou-me duas assoalhadas a norte da cidade, num desses bairros em equilíbrio difícil sobre a pobreza, sempre com um dos elevadores avariado e paquistaneses de turbante a darem bofetadas à tijoleira com os chinelos enormes, poisando em mim, por um instante, as pestanas barbudas, o meu apartamento quase a cavalo no rio de modo que não se sabe ao certo se é um edifício ou um barco que se prende a um espigão a fim de mastigar ondas, deixando ossinhos de caniços na margem, um controleiro, de pupilas independentes das órbitas, que mantinha com o ar uma relação complicada, engulo não engulo, a hesitar, a pensar, a desistir, a pensar de novo, e se exprimia numa dificuldade mole de pneu vazio, com mais suspiros de borracha que ditongos, explicou-me, encalhado a esbracejar a meio das frases porque há consoantes terríveis que a língua não dissolve, os acessos mais discretos e as trajectórias de fuga bem como a localização de refúgios de segurança ou seja os destroços de uma capela antiga que uma sucessão de crises de fé, a que estamos todos sujeitos, transformou em arrecadação primeiro e em refúgio de gatos depois e cujo cheiro de urina paralisaria a polícia, como sou educado e as hierarquias contam acompanhei o controleiro, apertando-lhe o cotovelo inseguro no receio que me ficasse na mão, o que aliás faria eu com aquilo, até ao apeadeiro dos comboios no centro da cidade, colocando-lhe o bigode postiço, mais para cima à direita do que à esquerda o que não faz mal, há tromboses, enquanto as cegonhas principiavam a chegar a Lisboa, contornando os plátanos da estrada lá em baixo e passando umas sobre as outras num silêncio lento, o comboio do controleiro surgiu ao fundo, perto do que restava de uma fábrica, comigo a pensar – Durante quanto tempo não vou ver os meus pais? e ninguém na estação porque estávamos ao princípio da tarde, apenas um cão vadio, de focinho junto aos desníveis da terra, a cheirar coelhos invisíveis dado que aquilo que não falta no país são cães, este com uma das patas imóvel no ar, à escuta, palpando recordações longínquas de bichos, talvez ratos, talvez texugos, o país é uma arca de Noé, caralho, que se fodam os bichos, ajudei o controleiro a subir para a carruagem, de pernas trocadas e sem força, amparando-lhe as calças até ele se equilibrar mais ou menos, tão enrugado do esforço, tão desarticulado, tão leve, comigo com pena – Upa upa a pensar – O Partido envelhece as pessoas meu Deus o que vamos fazer com este asilo? vendo-o amparar-se a um banco já esquecido de mim, fingindo não olhar os outros passageiros embora à cata de pides, desconfiado, hesitante, se calhar realmente estou cheché, pronto, a quantidade de tralha de que não consigo lembrar-me, como se chamavam os irmãos da minha mãe, por exemplo, tio Eleutério, tio Germano, tio Quê, todos a mesma cor de olhos, todos a mesma penca e a mesma vozinha a hesitar nas frases, será assim que se diz, acho que me faltam palavras, a minha mulher Celeste, a minha filha Noémia, ou Natividade, ou Amélia, o comboio levou o controleiro eu que não gosto de comboios porque não gosto do mundo todo a sacudir-se nas janelas cada vez mais distante de mim, mal chegue a Lisboa a cidade come-me e pronto, o que posso fazer pelo infeliz a não ser esquecê-lo, sei lá se teve parentes, sei lá quem é ele, há alturas em que me sinto tão sozinho que invento tudo, o apartamento que me entregaram aqui dois quartitos nastraseiras do prédio, voltados para um baldio de lixo, ervas, rafeiros, mulheres idosas sentadas num talude, sempre com o tachinho do almoço ao lado, à espera de clientes sob um renque de acácias, a minha companheira que tarda em chegar vinda de não sei onde e que não imagino quem seja, a olhar-me depois de um relance à única cama – Não te ponhas com ideias que isto é só trabalho e que horas depois, com a luz já apagada, me toca com um dedo nas costas – Se não estás a dormir chega aqui e por acaso estava quase mas pronto, eu chego, cansado e com sono mas chego, de boca encostada ao seu ombro – Se correr mal perdoa e não corre mal nem bem, cumpre-se não pensando seja no que for, o que há para pensar e pronto, nenhumas instruções por enquanto, nenhum trabalho, ela a compor os lençóis, ela a cozinhar, o telefone surdo, o dinheiro para as mercearias quase no fim, os meus pais a imaginarem que eu a trabalhar na província, as cegonhas a ensurdecerem-me ao fim do dia estalando os bicos numa chaminé, um papelito dobrado na caixa do correio, com terça feira às quinze horas a lápis, de que entornei a cinza na pia, a tosse dos paquistaneses no andar de baixo fazia estremecer o quadro da entrada que era um Jesus de coração ao léu torturado de espinhos, às vezes, ao principiar a adormecer, a palma da minha mãe aumentava-me na testa – Pelo menos febre não tens e logo o barulho antigo das páginas do jornal quando o meu avô as voltava, sempre a massajar a perna aleijada – Esta rótula esta rótula e um trapo de água quente em cima, a minha fé no Partido ia mirrando, a filha de um dos paquistaneses, que cheirava a perfumes lilazes e me sorria sempre no elevador, acariciou-me o queixo na semana passada antes de fugir, com brincos enormes que tilintavam sininhos, não mencionando a gota vermelha entre as sobrancelhas e a pintura negra das pálpebras, pensei – Vou voltar para casa pensei – Não posso voltar para casa antes de a companheira chegar de modo que deixei um bilhete no esconderijo das comunicações urgentes e nem ao cabo de uma semana os cabrões responderam, não valho um tusto para estes camelos de modo que me veio uma fúria e juntei as minhas coisas no saco de campismo com o fecho eclére encravado a meio do caminho, eu que nem dinheiro quanto mais sabonete, esperei sentado nos degraus do prédio pela paquistanesa dos brincos que trabalhava num restaurantezeco de comida oriental a fim de me despedir dela antes de me pôr a milhas, pensando no carvão das pálpebras e nos sininhos que me alegravam as glândulas, de vez em quando a luz do patamar acendia-se e via- me, quer dizer via as minhas pernas, os sapatos, a mão direita a tocar piano na coxa, passado um momento a luz apagava-se e não me via mais, escutava os acordes dos dedos apenas, o que existia de mim era um miúdo no escuro com ganas de chamar – Mãe e – Mãe e – Mãe até que ela, ensonada, do quarto – O que se passa agora? e passa-se que uma voz numa garganta qualquer, julgo, embora não esteja seguro, que minha – Não me deixe com o controleiro a desprezar-me – Não serves para o Partido tu e não sirvo de facto, os comunistas são fortes, não se deixam abater, resistem sempre prosseguindo na luta, se necessário é óbvio que sacrificam a vida, o meu pai sem acreditar em mim – És comunista tu? que para ele eram criaturas prontas a matar fosse quem fosse com um tiro na orelha ou uma injecção no peito enquanto as cegonhas continuavam a voar em roda do prédio dos paquistaneses onde eu abria uma a uma gavetas vazias de despensa e a lata amarela do chá sem encontrar sequer uma folhinha desmaiada esquecida no fundo, a companheira, que devia ter chegado há séculos, com outro militante junto a outra estação de comboios, a comprar-lhe sabonete, a aquecer-lhe a comida, a concordar – Pode ser a concordar – Está bem enquanto aqui apenas cegonhas neste abril hesitante, nesta primavera indecisa, comigo à espera que me toquem à porta e não me tocarão à porta, hei-de ouvir um dia destes uma chave lá ao fundo que o ruído dos elevadores tornará silenciosa, sentir esperança no ar onde qualquer coisa vibra, a sensação que uma voz – Não está ninguém? a chamar-me ou nem voz sequer, apenas o roçar de um vestido, uma respiração prudente, um passo cauteloso, um pescoço interrogativo no vestíbulo a segredar o meu nome num ecozinho tímido, devíamos chegar sempre assim a casa num murmúrio que cresce mais dentro do que fora de nós, ao mesmo tempo familiar e intrigante, o que me atraiu no Partido foi que não estava sozinho, alguém finalmente entrou aqui, percorre os quartos um a um, inclina para eles a metade de cima do corpo, procura-me – Já devia ter vindo há que tempos não é? comigo a lembrar-me do meu irmão mais velho (Teotónio) quando a mulher se foi embora com outro, nunca me olharam tão intensamente mal dando por mim, ele quase a perguntar, sem me largar o braço – Estás aí? a entrar na sala, a sair da sala, a lançar para os cantos a bola de borracha do cão a que o animal não ligava, era eu quem a devolvia e o meu irmão que ladrava atrás dela, deixava-a cair ao pé de mim e olhava-me na esperança que a atirasse outra vez, quando a polícia política o prendeu levou a bola para a cadeia e guardou-a no bolso – Obrigado passados tempos soltaram-no, passados tempos foi à praia um domingo com os amigos ou isso, jogou a bola às ondas e apesar de ter esperado até à noite ninguém a trouxe, o mar no escuro é um espaço ao mesmo tempo inexistente e real, quer dizer um vazio com escamazinhas de luz aqui e ali, reflexos, murmúrios, qualquer coisa muito funda, que dava ideia de pulsar, crescendo, o meu pai passou uma semana inteira no quintal a sachar, nunca ninguém cavou tanto, a minha mãe vinha chamá-lo à horta, ou seja, ficava em silêncio e depois voltava para dentro a arrumar a cozinha, jamais vi nada tão em ordem na vida, facas, garfos, colheres, canecas, tudo, o meu outro irmão – Senhora e ela a compor um gancho no cabelo – Olá com o sorriso de quando tinha vinte anos, não um sorriso da sua idade, uma expressão de menina – Olá uma veia na testa, que eu não conhecia, sem parar de bater, o controleiro para mim – Achas que a vida é só isto? e se calhar é só isto, sei lá, quem a conhece que diga, estive no bairro a norte da cidade durante dois ou três anos, sempre a odiar os comboios que devoram a gente, mandam-nos para Lisboa que nos come um a um, bem os vejo desaparecer nas ruas, nas praças, nos prédios que à noite continuam ainda mas tão gastos, os pobres, sem paquistaneses, sem luz, quase sem gás, quase sem água, um ou outro cigano de olhos furtivos, um ou outro preto a desequilibrar-se nas palavras que colava umas às outras numa espécie de riso, o controleiro para mim na expressão de quem procurava no interior dos meus olhos – A vida de facto é só isto e é escusado protestar, amigo, é só isto, habitue-se à ideia de ser só isto, continue a imprimir panfletos contra o governo e a deitá-los à noite nas caixas do correio tentando convencer quem não o vê a protestar na rua, deixe de vez em quando uma bombita de carnaval no caixote do lixo de um empresário qualquer, lembre-se dos amanhãs que cantam, da liberdade que ninguém sabe o que é, nunca existiu, não existe, a minha companheira – Isto vai ser sempre assim viver escondido? a arrumarmos os pratos do jantar e a olharmos para nada numa sala vazia, duas cadeiras apenas, uma mesita, há quanto tempo não sabes da tua família, nem o nome verdadeiro da mulher que cozinha para ti conheces, quase a certeza, não, a certeza que outro homem com ela a perguntar por mim, onde fui, o que disse ontem, uma interrogação desconfiada – Não falou mal do Partido? não se cansa da vida que tem, o que faz ele em casa quando não faz nada, não te olha como se não existisses, não segreda – Estou farto não te propõe fugirem – Podemos ir para Espanha ou – Tenho um primo em Paris se por acaso acordas à noite não o encontras sentado no colchão a olhar o escuro em silêncio, o controleiro – Não te sentes preso não te apetece deixar isto ter uma vidanormal ir ao cinema ao bilhar há quanto tempo não vês tu o rio? paquetes, barcos de carga, um casal de bicicleta que sorri um ao outro, não te fala de quando era pequeno, não te dá o braço na rua, não te menciona a mulher porque é casado, é casado, é casado, sabias que era casado não sabias, não podes esperar seja o que for, uma companhia quando isto acabar, um homem ao teu lado e planos, projectos, desejos, é o amor ao Partido que o faz estar contigo entendes, quando libertarmos Portugal desce as escadas e pronto, nem o nome dele conheces, onde nasceu, onde morou, o que fazia o pai, do que gostava em pequeno, não quero romances entre vocês, pieguices, asneiras, mete bem nessa cabeça que isto é trabalho e pronto, é a derrota do capital, é a libertação, que pomposo, de um povo, não é uma léria cor de rosa nem uma história de adolescentes patetas, é a Pátria rapariga, é a dignidade do Homem, é o único sentido da existência, é a tua Razão e daqui a nada setembro e o adeus das cegonhas, as palmeiras desertas, apenas as palhas e o lodo que escorregam dos troncos, o último círculo, tão alto, em redor dos prédios, ele quieto, de pé, à janela e tu no banquinho que faz as vezes de cadeira a segui-lo, ele e outro camarada em Coimbra por causa de um bufo que chegou a destruir uma célula, gordo, pequeno, sempre cheio de ideias, planos, propostas, apanharam-no, cegonhas, cegonhas, perto da estação, entre duas camionetas de passageiros meio escondidas num renque de arbustos e enquanto ele – O que é isto? amassaram-lhe o rim com uma coronha até ao parque de estacionamento de um supermercado já sem luzes, só sombras, corredores e reflexos de vidro para além dos ecos dos passos deles enquanto empurravam o gordo que lhes perguntava a tropeçar – Que é isto? desequilibrado, a pisar-se a si mesmo – Estão enganados vocês na esperança de se cruzar com um vigilante, um guarda, uma saída para a rua que se esqueceram de trancar e nenhum vigilante, nenhum guarda, apenas embalagens, garrafas, escadotes, fardos a um canto, sacos por abrir, o gordo para eles – Isto é a brincar não é? enquanto o colarinho parecia romper-se e a fralda da camisa inchava e desinchava em redor da cintura, nisto um corredor à esquerda com a silhueta de um homem, a silhueta de uma mulher e a silhueta de uma cadeira de rodas em três portas idênticas, um chão de azulejos diferentes, cintilações vagas de loiça, um postigo fechado no alto e para lá do postigo copas que uma ilusão de vento inclinava, o gordo a tentar levantar os braços – Não e o meu camarada a plantar-lhe a coronha na orelha, na fonte, no queixo, a deixá-lo no monturo de um baldio esperando que cães sem sono, ratos, a chuva ou então uma curva do rio mais acima, um depósito de lixo, o antigo matadouro que ninguém usa nunca ou os mendigos que o inverno esqueceu, uma furgoneta abandonada há anos e uma árvore, tombada pelo vento, sobre ela, a minha companheira para o controleiro – Tem a certeza que um dia destes não me deixam para aqui como um trapo? e claro que ninguém te deixa como um trapo rapariga, não somos fascistas entendes, não largamos as pessoas, às vezes, no verão, passeávamos no bairro depois do jantar e dava-me prazer senti-la ao meu lado embora me irritasse ser uma mão travessa mais atarracado e portanto escolhia a parte alta do passeio julgando, os homens são tão parvos, que ela não dava por isso mas dava eu, gaita, e dava eu que ela dava, tentando curvar sempre um bocadinho as costas, calçava sapatos rasos quando saíamos o que me fazia pensar que talvez gostasse um bocadinho de mim ou pelo menos se preocupava, como amiga, com o meu desconforto, eu habituado a que as mulheres não me prestassem muita atenção, o meu nariz um pedaço esquisito, um dos olhos mais apagado que o outro, o cabelo que principiava a rarear na moleirinha, o controleiro – Agora há umas ampolas baratas na farmácia cortam-se as pontas com uma serrita despeja-se aquilo na cabeça massaja-se e o único problema é o cheiro embora se mantivesse a questão da altura que umas palmilhas especiais não resolviam, desde criança que o meu pai – Caga tacos puxando o desprezo do fundo do jornal que o escondia da gente, ele só pés e notícias, mais bronquite que pessoa, a única coisa que lhe herdei foi o amor pelas cegonhas empoleiradas a leste do bairro à espera de outubro, quando os telhados se transformam em vento para lhes auxiliar a partida, às vezes sobrava um pássaro pequeno incapaz de girar sobre as casas, caído numa berma a olhar-me no que parecia um pedido e um outro bicho já grande, inquieto, a pairar- lhe por cima, igual à minha mãe quando parti este braço e ela a sacudir o meu pai – Estás à espera de quê? ao mesmo tempo que vestia à pressa o casaco dos domingos, o médico cheirava-me sempre a farmácia e a lágrima – Senhor doutor senhor doutor numa salita de armários cheios de instrumentos cromados onde uma senhora de touca me instalou num banco na energia com que se enterra um pedaço de rolha num gargalo – Não te mexas agora rapaz eu calado a olhar perguntando a mim mesmo – Choro não choro a apertar o cotovelo contra o peito, indeciso, enquanto a senhora de touca anunciava à minha mãe – Descanse que ainda não é desta que ele morre a fungar atrás ruídos de sopa ao lume, ou seja a cabeça dela um tacho onde ferviam soluços e estalos de bolhas, a voz do meu pai invisível a recomendar – Aguenta-te deu-me ideia que a si mesmo, não a mim, enquanto os sapatos gemiam solas novas, cada passo um grito de cabedal ou de porta empenada que dava ideia de rasgar-se e de súbito um silêncio respeitoso porque uma voz a tossir se informava num resmungo – O que é que temos aqui? entre relentos de tabaco que até então não havia, embaciando o mundo de fumo ao qual chamavam – Senhor doutor num respeito cuidadoso, escolhendo palavras sem arestas, macias, que a minha mãe enfeitava de vários – Ai meu Deus baixinho, baloiçando, hesitante, entre o desespero e a esperança, ainda esta noite, passados tantos anos, sonhei consigo senhora, isto é o casaco cinzento e os brincos que usava (o esquerdo sem pedrinha) perdidos numa recordação confusa que não cessa de enevoar o passado, comendo vozes e pessoas, onde pára o primo Abílio, quem foi a minha madrinha, lembro-me de uma voz – Maroto a entupir o mundo de rebuçados que tornavam peganhentas as coisas, os gestos e o enfermeiro cujas palavras e dedos se pegavam a tudo, há semanas, palavra de honra, a caminho de uma reunião de célula, deu-me ideia de tornar a ver o médico, sem autoridade nem cigarro e com a roupa no fio que é o destino da velhice, sentado sozinho num banco de jardim tremendo as palmas nos joelhos, indiferente aos pássaros e aos cães, com um sapato num pé e uma pantufa no outro, de boca a aumentar num pedido de ajuda a, não gosto de comboios, num pedido de ajuda a ninguém mas se calhar engano-me porque a infância passa o tempo a regressar quando não deve, em geral acompanhada de lembranças erradas, o controleiro, por exemplo, já me ofereceu a dúvida, no mínimo, de existirem infâncias diferentes, de vez em quando vou espreitar de longe o prédio dos meus pais, as cortinas são ainda as mesmas mas ninguém pendura roupa à janela e as persianas quase sempre descidas, de vez em quando um braço que a esta distância não conheço (de quem?) a sacudir um pano, se por acaso me aproximo desaparece na sombra de modo que se calhar esqueceram-me, já não existo, não sou, e se já não existo não existi nunca, não fui, a tabacaria ainda lá está mas não me aproximo por medo de não encontrar o senhor Viegas, sempre de boné, lá dentro, ainda se sentará na mesma cadeira, ainda me dirá – Miúdo porque acho que derivado aos anos já não consegue falar, girando a aliança a advertir-me – Vocês sem nenhuma zanga na voz, mais um mês ou um mês e meio se tanto e as cegonhas regressam, lá andarão elas muito alto esmiuçando telhados, os paquistaneses e basta e nós dois em cima, com um dos elevadores encravado entre o quinto e o sexto que por causa das tosses me dei ao trabalho de irver, já de lâmpada fundida, claro, e um bocadinho inseguro, comuniquei ao Partido que respondeu – Vamos tentar qualquer coisa o que me pareceu estranho para materialistas científicos mas pronto, está bem, não abundam Lenines, com a chegada das cegonhas o ar mais limpo, mais claro, onde tudo ecoava numa nitidez alegre, se ficava em casa à tarde com um relatório tinha um pardal na varanda a olhar para mim, ora de frente ora de lado em saltinhos eléctricos daquelas patas que eram molas de arame, o voo dele parecido com um papelito sem direcção certa amarrotando-se sozinho à medida que se afastava, isto mais ou menos na altura em que me mandaram vigiar um camarada do Comité Central muito mais velho que eu, quarenta anos ou isso, parece que de famílias ricas, parece que fidalgo, volta e meia topavam-no a passear nas Pedralvas, ou seja um bairro perto de Benfica com umas fabriquetas, uns comércios sem importância nenhuma como aqueles que se encontram nas vilas de província, casas de pobres, oficinas, quintalecos, uns eucaliptos com raparigas da vida a ganharem dinheiro dizendo adeus aos camionistas com a mão com que reconstruíam o calcanhar depois do tormento dos saltos e no meio disto tudo os tropeções dos comboios que chegavam de Lisboa a sacudirem o mundo, como tudo nesta vida estremece senhores, o camarada sentado num cafezito à espera do rapaz com chaves de fendas nos bolsos que trabalhava numa oficinazeca lá em cima, antes de começarem os campos e a estrada de Sintra, a impressão que caravelas, dessas que se constroem com pinças compridas, dentro de garrafas, a caminho da Índia pelas ruelas fora, caravelas, cachorros vadios, crianças a vasculharem no lixo, a minha mãe para o meu pai, quando pensava já eu estar a dormir – Anda cá e o colchão um sopro, dois sopros, a minha mãe – Estás a aleijar-me e ecos de tábuas com o meu pai dentro, sem entender – Não te encontro a minha mãe a afastar-se indignada – Desde há meses que não encontras seja o que for a minha mãe para a irmã quando o meu pai no trabalho – Palavra de honra que deixou de encontrar há séculos fazendo-lhe sinais que eu estava ali com o queixo – Já viste a minha vida? de modo que um silêncio comprido, repleto de murmúrios com gestos dentro, a minha tia que trabalhava num supermercado – A vaca da tabacaria já desapareceu do mapa? e silêncio e suspiros e fungadelas e queixas, a minha mãe a imitar a voz do marido – É que não encontro mesmo engrossando a garganta num resmungo de ódio – E agora? comigo sentado no chão a olhar para ela, tentando salvar as coisas – E se eu chorasse? na esperança que a minha mãe se interessasse por mim – O que se passa contigo? e esquecesse o meu pai mas a minha tia bateu-me na palma – Cala-te de modo que não se interessou, comentava para a irmã – Não encontro dá vontade de rir comigo a escutá-la melhor, nas Pedralvas agora, do que em pequeno, enquanto elas arrumavam a loiça da véspera na cozinha, a minha tia mais nova, sem tornozelos inchados nem aliança no dedo, para quem o meu pai se inclinava como um caniço ao vento – Se quisesses fazias-me feliz rapariga a minha tia baixinho – E se depois não faço? a afastar-lhe o braço que ao lembrar-me disto se me afigurava o meu, não o dele – Arreda comigo não na casa de eu pequeno, no cafezito das Pedralvas a espiar o camarada mais velho enquanto as cegonhas não paravam de chegar, vindas do Egipto ou assim em grandes nuvens brancas muito acima de nós, ultrapassando a serra, ultrapassando os comboios com o mundo inteiro a sacudir-se nas janelas, casas, árvores, passagens de nível, homens de bandeirinha e corneta a mandarem-nos para Lisboa a fim de que a cidade nos coma porque é a única coisa que faz, comer-nos, não se imagina a quantidade de pessoas que as esquinas engolem, todas aquelas que deixei de ver devoradas por rodas e fumo, nós fuligem, nós sombras distantes que se afastam, nós bandeirinhas ao vento nas estações desertas, nós carruagens que nos esmagam desaparecendo num vale e reaparecendo entre oliveiras cinzentas que mastigavam pardais, eu para o meu pai – Não encontra? enquanto ele se sentava na poltrona de ler o jornal – Perdão? a encaixar os óculos no sítio deles com os olhos muito maiores por causa das lentes, maiores do que Lisboa, maiores do que o mundo – Não encontro o quê? inclinado para mim porque derivado ao tempo as orelhas endurecem, o meu pai a afastar-se permanecendo ali – Não encontro o quê? dito exactamente no momento em que a primeira cegonha encontrava a sua palmeira ou o seu telhado ou a sua chaminé enquanto outras cegonhas, dúzias, centenas, milhares, poisavam nos mastros das caravelas que subiam as Pedralvas aproximando-se da gente, comigo deitado na cama deste prédio a norte de Lisboa, de elevadores avariados entre o quinto e o sexto andar, a minha companheira – Não tens sono? apoiando de leve a mão no meu ombro – Não tens sono? de boca próxima do meu ouvido – Não tens sono? de boca tão próxima do meu ouvido – Sono? enquanto eu, de olhos fechados para ver melhor, principio a dormir. 3 A IRMÃ DELE Durante muitos anos não soube o que o meu irmão fazia, explicava aos meus pais que a empresa em Lisboa uma canseira obrigando-o a estar fora grande parte do tempo, às vezes dias seguidos de modo que o encontrava volta e meia aos fins de semana a passear na quinta ou diziam-me que lá em cima no quarto a dormir, a minha mãe para mim – Não batas com as portas enquanto ele descansa coitado escondendo lágrimas e perguntas nas algibeiras das pálpebras enquanto me pedia – Tem paciência finge que acreditas nele para eu acreditar também a cobrir inquietações com o véu torto do sorriso difícil – Ele dantes não mentia lá dentro sem que eu desse por isso, estou velha, a minha mãe achava-se velha desde que me lembro de a conhecer, ou seja aí pelos trinta anos ou menos, quando era pequena concordava com ela e vejo agora que menos que a minha idade nessa altura e portanto novíssima, são tão cruéis as crianças ou talvez tenham razão (chove lá fora) não sei, é esquisito o tempo, qualquer espera uma eternidade ao passo que os anos um piscarzinho de lâmpada, nem um segundo e logo a gente quem é esta nos espelhos que não se parece comigo, a expressão surpreendida, o cabelo sem brilho, vou morrer e pronto, o meu pai que já não falava coitado a olhar-me, só o mindinho que tremia, o mindinho era o meu pai inteiro – Tu acenando para ninguém na janela, esperei sempre o médico no corredor e em lugar de palavras tocava-me de leve caminhando sempre, de casaco comprado feito, o que faltava no comprimento sobrava nos ombros, como é que uma pessoa com um casaco assim pode curar alguém e eu quieta a olhá-lo nesta casa de súbito diferente onde só o cheiro da cera continua, até o da roupa nas gavetas mudou e já não se parece comigo, parece tecido puído e o resto ausências, que não respiram já, entre móveis antigos, marcas das jarrinhas que não existem nos tampos onde estiveram, a minha mãe – O teu irmão a engolir-se a si mesma, enchendo o espaço que nos separava de hesitações e saliva e os objectos logo cheios de bolor, não moro numa casa aliás, estou numa caixa de cartão num fundo de armário, cheia de rendas de episódios defuntos e de maçanetas antigas, algumas com um parafuso meio solto ainda, o som dos meus passos não me acompanha, vai ficando para trás de mim com os seus sapatos de criança, o seu medo do escuro e a tosse do meu pai no escritório, tranquilizando a minha mãe – Não te preocupes porque acontece sempre isto no inverno e não era sempre isto, era diferente, não havia esta fraqueza nem esta boca que hesitava, tremia, dava-me ideia que a contar os dentes com a língua – Tudo se vai perdendo não é? dizia ele devagarinho – Tudo se vai perdendo a bater com o indicador no cinzeiro e repetindo num eco de si mesmo – Perdendo o retrato da minha avó sobre a secretária, uma natureza morta na parede que uma tia prendada aguarelou ou seja maçãs, pepinos, uvas, que tristes as casas antigas quando não há sol, quem, depois de acabado o quadro, terácomido as maçãs que envelhecem como as pessoas só que ainda mais depressa, tantas rugas nelas uma semana depois, falta apenas uma gargalhadinha distante, Tia Maçã bom dia, a minha mãe fechava sempre a porta sem ruído ao sair do escritório – Trabalha tanto ele e não trabalhava assim tanto, lia mais o jornal ou conversava com o feitor senhor Gonçalves na escada para a quinta onde florzinhas de trevo nos intervalos de pedra dos degraus juntamente com caracóis pequeninos – Podes ter a certeza que isto não muda o que muda na vida diz lá? puxando o pescoço para diante como sempre que se enervava, o meu irmão para mim – Parece um galo a catar sementes já viste? abanando as asas inúteis incapazes de voarem, dava ideia de erguer-se acima da terra ao olhar os empregados de boné de cócoras na vinha, com os braços a surgirem e a desaparecerem nas mangas da camisa, depois da visita de um primo do meu pai que dava ideia de interessar-se pelos camponeses conversando com eles na latada da venda, outra parente a propósito do meu irmão, reprovadora – Também gosta deles esse enquanto a minha mãe abria o leque num suspiro – Tal pai tal filho tudo se lhes pega até os cães e os pobres a irmã é diferente e de facto sou, mãezinha, continuo a não gostar de confianças e portanto não casei ainda, desde que o meu pai morreu e o meu irmão preso tenho de tomar conta disto tudo, diminuir as dívidas, substituir as máquinas, espevitar os feitores, reunir-me com os sujeitos do banco para aliviar os empréstimos, pôr a minha mãe na ordem, sempre a chorar pelos cantos derivado ao filho, enxotar os homens que de quando em quando tentam poisar em mim como as cegonhas nos campanários, equilibrados lá em cima de olho no meu dinheiro, convencidos que lá por ser gorda me tornei um sapo, pendurado por uma pata, cada vez mais mole e com um olho para cada banda, a espernear – Até tem sala de música explicavam eles no café aos compinchas – Até tem sala de música e de facto tenho mas sou eu quem a toca, de há uns tempos para cá recebemos em junho meia dúzia de cegonhas na quinta, a prima da minha mãe, que me dava aulas de piano, a desesperar-se baixinho – Não são dedos que ela tem são chouriços a prima da minha mãe, trocista – Queres comer um ao jantar? não gosto muito desses pássaros mas tínhamos em média meia dúzia de cegonhas na quinta sempre a baterem os bicos quando não estão a voar, recados entre elas, parece-me, recriminações, zangas, comiam cobras de água no ribeiro, comiam girinos, sempre tanto lodo nas pernas fininhas, comigo a pensar num colega do meu irmão que não tornei a ver, acocorado num desnível de queixo na palma e uma cicatriz na metade direita da cara que o meu irmão nunca me explicou, encolhia os ombros ou dizia – Não sei sem voltar o queixo para mim, nunca lhe escutei a voz nem soube quem era, o meu irmão explicava – Um colega lá do curso os dois a fitarem-se numa concordância rápida e pela hesitação da voz eu certa que mentira, tantos mistérios na vida das pessoas, tanta coisa escondida, quem são vocês, quem sou eu, a minha mãe, por exemplo, a certeza que o meu pai outro filho, não sei, sei mais ou menos mas não pos, porque é que o piano não toca mesmo sem pessoas na sala, mas não posso dizer, o meu irmão comia quase sempre calado, se lhe falávamos acenava que sim, devia simpatizar com a mana porque me ofereceu nos anos, eu treze ou catorze, uma pulseirita que parecia de prata com o meu nome gravado, embrulhada em papel de seda numa caixinha, quando quis abraçá-lo afastou logo a cara e compreendi que ele aflito, a fitar a parede, a minha modista, que tinha uma irmã a viver nas Pedralvas, um bairro pobre qualquer que sei lá onde fica, a norte de Lisboa disse ela, garantiu-me que o topou lá com um sujeito mais novo, a entrarem ou a saírem de um café, já não sei, que diferença me faz, só quando o prenderam a primeira vez e me chamaram à polícia, dois homens educados, um deles por sinal mulato de modo que um cheiro diferente na pele, sou tão sensível aos cheiros, só quando me chamaram comecei a compreender onde o meu irmão se metia, até de caravelas falaram, a subirem os becos tropeçando no entulho, restos miúdos, tijolos, latas vazias e um cachorro a tropeçar naquilo, tudo igual à miséria da vida, o lixo em que vivo comigo existe apenas por dentro e faço os possíveis para que os outros não vejam, quero que continuem – Menina olhando-me com consideração, a respeitarem-me, se por exemplo as cegonhas respeitassem as pessoas não me acordavam antes do sol com os seus gritos e os estrondos das asas antes de descerem uma após outra no sentido do rio, antes que um peixe lhes aparecesse esperneando (há quem ache esquisito mas os peixes esperneiam, se por acaso tivessem patas nem quero pensar) um bicho miúdo, feito de alumínio flexível, a agitar-se, aí está, no bico, não conheço nada mais contraditório que a vida, um dos polícias tropeçava nas palavras como se um fio de cabelo, desses que a pinça dos dedos não consegue libertar-nos, a atrapalhar a língua, a sala em que me receberam cheirava a papel tão húmido quanto as suas gengivas e quando falavam escutava-lhes as unhas a atormentarem a pele, se trabalhassem aqui na quinta não destoavam dos outros, os mesmos verbos errados e o mesmo anelzito barato que magoava a orelha ao coçarem-se, eu de carteira nos joelhos enquanto uma voz no corredor – Costa ó Costa cortada de súbito por um estrondo de porta enquanto a prima da minha mãe, ao meu lado diante do piano na sala de música, me sugeria resignada – Vamos experimentar outra vez num estertor de agonia, a minha mãe morreu há quatro anos de modo que eu sozinha com duas empregadas meio tontas e a sobrinha do feitor a cozinhar, quer dizer a maior parte do tempo sentada no degrau do roseiral conversando com os mortos que volta não volta respondem e a impressão que o meu pai vinha espreitar os tachos em bicos de pés, enfiando uma colher de sopa lá dentro – Livra-te de contares à senhora e para ele tudo sem sal, tão triste, mastigando melancolias enquanto a minha mãe – Não tens vergonha tu vou queixar-me ao doutor enquanto não morreres não descansas o meu irmão sei lá onde a conspirar sei lá o quê com sujeitos invisíveis, entre panfletos e bombas – Achas que isso rebenta? e de quando em quando, à noite, um tiro na rua e ele para os colegas, afastando-se a correr – Isto vai camaradas ele aqui na quinta a cavalo, trotando vinha acima, as pessoas mais idosas – Menino alinhadas contra um muro a fumarem os dedos, ao sairmos de Lisboa o tempo não passa, deixa isso às cegonhas e o resto parado, olha a minha família toda ela ainda viva, eu perto do tanque maior com uma boneca ao colo Mimi só com um braço mas desperta, o que a gente falava, hei-de espreitar as Pedralvas agora que o meu irmão morreu, a oficina de automóveis em cima, os becos, o café, rafeiros que não ladram, se nos escapam de lado, comboios ao fundo, as cegonhas é claro, isto é um país de pássaros, sinto penas rugosas e asas cruéis por toda a parte sem falar naqueles olhos fixos, terríveis, além dos pássaros o café, comboios em baixo, as cegonhas, é claro, isto realmente é um país de pássaros, sinto patas rugosas e asas cruéis por toda a parte sem mencionar os olhos fixos, tremendos, para lá dos pássaros há sempre uma caravela a regressar da Índia, penso eu, cheia de uma espécie de mendigos barbudos, raios partam os livros de História e a sombra do meu irmão por ali, a sumir-se tentando não fazer barulho numa daquelas barracas instáveis a que chamam casas, algumas com vasos de flores que os cães ainda não descobriram e quem diz cães diz os velhos de alpercatas que tropeçam em si mesmos, ao acaso, de bonezinho de xadrez a ocultar os olhos, sobram os queixos que murmuram enquanto a cidade não cessa de engolir pessoas e eu com saudades da quinta e das mimosas do jardim sob as quais o meu pai tinha um banco onde se sentava aos domingos à tarde a olhar para nada, com os dedos enfiados uns nos outros como os mortos na igreja, comigo cheia de medo do seu silêncioque se transformava em careta mal imaginava que eu a aproximar-me, fabricando um – Então? que julgava um sorriso e não era, era a sua forma de dizer – Menina conseguindo tornar a palavra uma única sílaba, havia alturas em que a capacidade de sofrimento dele quase me comovia, os olhos, abandonados um pelo outro, ambos fixos nas próprias mãos mas cada qual sozinho e os sapatos lado a lado enquanto o – Menina se dissolvia, desamparado, no ar, lembrando um lenço que acenava ao acaso numa estação do caminho de ferro deserta, só faltava um resto de jornal às cambalhotas no seu corpo vazio à medida que o fato ia chovendo no chão, comigo a pensar – Ainda bem que já cá não estava quando o meu irmão foi preso da primeira vez ou seja dois automóveis a pararem de repente à porta, as cegonhas indiferentes no telhado do celeiro e na ruína da casa antiga mais acima, com a chaminé que resistia a inclinar-se, inclinar-se e depois os polícias a trotarem, a minha mãe de roupão – O que é isto? e gritos e ordens e pés a correrem e vozes – Quietinho e escadas a vacilarem e estrondos no andar de cima e as cegonhas a estalarem os bicos e o meu irmão com algemas e um sujeito de metralhadora e empurrões e – Mexe-te e – Entra no carro depressa e – Mais depressa do que isso e um dos rafeiros atrás da polícia a ladrar, a ladrar e uma jarra ou um candeeiro que caía, e não me faças a desfeita de tropeçar num degrau, e ficam-te bem as algemas, e os marinheiros da caravela à espera cá em baixo, e a minha mãe – Por favor a minha mãe – Por favor por favor e eu no primeiro andar, moro entre cegonhas a voarem em torno do celeiro e as asas delas tão grandes, os bicos enormes a pescarem enguias na barragem e eu comam o meu irmão, não me comam a mim, o meu irmão tão diferente dos pobres, a roupa dele, os modos, o colarinho engomado, o nó da gravata igual ao do meu pai, a delicadeza das mãos poisadas uma sobre a outra como as infantas nos túmulos das igrejas, tão macias, tão leves, o meu irmão sentado no cafezito das Pedralvas, sobre um lenço aberto para se proteger das nódoas, com um dos mecânicos da oficina lá em cima e uma palmeira meio tombada a pesar no telhado porque aquilo que pertence aos pobres, para além de baço e gasto, sempre à beira da queda, sempre amolgado, torto, se a minha mãe ali estivesse – Que horror tudo isto com receio de tocar nas coisas porque a higiene deles já se sabe e tem razão, mãezinha, a higiene e os olhos, sem nada dentro, que nos fixam vazios, se por acaso lhes estendo a mão e quase nunca lhes, as cegonhas não param, lhes estendo a mão limpam-se antes de ma apertarem e os dedos grossos, moles, os dois carros da polícia foram-se embora a chiar no graveto com um cão que desistiu de correr atrás deles a enrolar-se num canteiro e a desaparecer quando fechou os olhos, se fecho os meus é o mundo que desaparece e apenas eu continuo no interior de mim, eu e uma miúda com vocação de craveiro amparada à muleta, a minha mãe na poltrona do meu avô que dizia patetices de velho e julgava comandar o mundo – E agora? e agora olhe, é assim, o que quer que lhe diga, o advogado – Vou falar com o director da polícia e vamos ver vamos ver não prometo nada mas vamos ver ainda temos alguma influência ainda conhecemos pessoas claro que ele foi imprudente mas vamos ver e o que vimos eram pássaros indiferentes a nós e um amigo do meu pai, próximo do governo, a desenhar círculos num bloco – Ele sempre foi um bocado cabeça no ar não é? círculos idênticos aos das cegonhas lá fora, cada vez mais perfeitos, mais lentos, os olhos a deterem-se na minha mãe – Pois é e a partirem de novo, um juiz que devia favores ao meu pai – Garanto-lhes que estou atento ou seja com medo da polícia igualmente, filhos de pobres a quem deram pistolas e se vingam de nós por não terem dinheiro, na sede lá deles dois sujeitos a tomarem conta da porta e a seguir corredores, sombras de cabelo apanhado a atenderem telefones, um sujeito para o colega que torturava uma borbulha na cara – Enquanto não apanhares uma infecção não descansas telefones que não cessavam de tocar, máquinas de escrever, a voz de um fulano invisível atrás de uma porta fechada – Que gaita sons de carimbos, alguém a rir-se até que o riso se transformou em tosse e gaguejos aflitos – Não consigo respirar um colega a bater-lhe nas costas em ecos de barrica vazia, o meu irmão não sei onde debaixo daquilo tudo, paredes, pessoas, campainhas de telefone, ecos de grilhetas sobre a palha num cubículo húmido, um pijama às riscas com um número e a minha mãe dobrada para ele a dar-lhe água como nas gravuras das biografias das santas, sempre esmoleres conforme o senhor abade jurava, é engraçado que continue a lembrar-me da minha avó aqui, a bordar sob o caramanchão do laguito cheio de folhas, mesmo quando dormitava a agulha ia e vinha, ela de lábio de baixo sobre o lábio de cima sem falar com ninguém, aliás quem a ouvia enquanto enchia a casa de naperons de modo que arcas e arcas a vibrarem no sótão com a alegria das traças, depois houve aquela fuga da prisão de que os jornais falaram e uma ou duas ocasiões, antes da noite, ia apostar que o meu irmão a espreitar-me da vinha, ao tentar aproximar-me desaparecia em silêncio e durante meses a fio passou a habitar os meus sonhos, quer dizer não bem sonhos, esses momentos esquisitos antes de adormecer, quando o corpo se distancia numa espiral confusa, entre segredos, fragmentos de vozes e imagens que empalideciam, o tractorista, o meu pai, outras pessoas a dizerem-me adeus com braços compridíssimos como se eu fosse morrer e a angústia da minha agonia a aumentar, a aumentar, tentava sentir a cama e a cama evaporou-se, queria pedir ajuda e a minha voz não saía, recuava, as minhas lágrimas tentavam – Ajudem-me num aceno de afogada a desaparecer no lençol, chamava o meu irmão em gritos afinal mudos porque a garganta cerrada e ao desistir de respirar, de olhos quase fechados, ele – Miúda a pegar-me ao colo numa leveza fácil apanhando-me do chão – És a minha miúda tão feliz como quando dava por ele na vinha, afinal não calado, afinal como dantes – Garotita porque sou a tua garotita também, fui sempre a tua garotita, serei sempre a tua garotita, estou a escrever isto e – Garotita a adormecer e – Garotita mesmo com cinquenta e três anos continuo a – Garotita a pedir-te que não me deixes nunca ouviste, o meu irmão, de novo na vinha, um aceno rápido antes de desaparecer num socalco – Adeus garotita podem acreditar que é verdade – Adeus garotita e eu ao mesmo tempo infeliz e alegre, tão infeliz e tão alegre a pedir – Espera a pedir – Não vás ainda espera um bocadinho escutando o eco da minha, da minha voz – Um bocadinho que desaparecia em mim – Um bocadinho parecia repetir – Um bocadinho mas sumiu-se para sempre e no entanto quero o meu irmão na vinha mesmo em silêncio – Mano mesmo morto como agora – Mano desaparecido e no entanto ali, eu estou viva, eu estou viva mano, eu estou viva, tão surpreendente esta verdade que digo – Estou viva como as cegonhas estão vivas, como a casa está viva, o meu pai para mim, também vivo – Pimpolha continua conosco, olhe as cegonhas senhor, olhe eu, olhe os almoços de Páscoa, olhe as tacinhas com amêndoas, olhe o cabrito no forno, olha tu, mano, a pegares-me ao colo e o cheiro da loção para a barba, o cheiro da água de colónia na camisa, a voz no meu ouvido – Ainda cá estamos não é? e ainda cá estamos, juro que ainda cá estamos de facto nesta casa cheia de presenças e ecos e o som do piano lá em cima como se a mãe diante dele a hesitar nas notas – Ando tão esquecida meu Deus a repetir a tecla, a tornar a repetir a tecla, a repetir sempre a tecla e atrás de cada tecla o meu irmão – Garotita enquanto as cegonhas, mais lentas, a pressentirem a noite entre ventos escuros, eu sozinha, quase a adormecer, com a única empregada que tenho agora Silvana – Precisa de mais alguma coisa menina? a limpar-se como de costume na orla do avental da que se jogou ao poço Benilde por causa do jardineiro que a deixou semsequer – Temos de conversar sem sequer – Adeus empregou-se noutra quinta, imitava o som das corujas e de repente noite em toda a parte, de repente o mar, tão longe ainda, a crescer, as ondas cor de rosa antes da noite, o meu irmão um último – Garotita afastando-se embora eu continuasse a ser a sua pimpolha não é, quem mais gosta de ti, se por acaso um circo aqui perto, com um leão já sem pêlo, o pobre, e a rapariga que se dobrava como um metro articulado, levavas-me sempre a ver, a rapariga de costelas de fora quando encostava a nuca aos tornozelos e mirava o meu irmão com os olhos ao contrário, sem falar nas madeixas soltas que baloiçavam de esforço, ao sairmos encontrávamo-la encostada a uma rulote ou sentada numa pedra, sozinha, a comer caldo de um tachito, quase de cabeça toda lá dentro, tão pequena afinal, tão nova, empurrando madeixas soltas com o braço, olhando através de nós os candeeiros da vila de cara sem nenhuma feição dentro como eu agora, sozinha nesta casa à tua espera, cegonhas, o que posso fazer além de esperar-te, diz-me, escutar – Garotita outra vez, a minha mãe e eu em Peniche aos domingos com as ondas e os pássaros mais dentro do forte que lá em baixo, passos que se afastavam permanecendo ali, gritos, ecos, paredes e paredes, chaves constantes a darem corda ao vento e aumentando-lhe a zanga, pedras roucas de pássaros, não distingui o meu irmão da chuva, deu-me ideia que a sombra da tua voz feita de ecos de passos não à minha frente, no meu ouvido apenas – Olá que dois dedos embrulhados num sorriso a beliscarem-me a bochecha – Isto não é para a minha garotita vai-te embora depressa mais magro, mais alto, com tantos ossos que não tinha na cara, metido numa blusa velha, apertada com um cordel à cintura, esperando o quê Santo Deus, talvez a sua voz que escorregava do corpo, não da garganta, do corpo, emagrecendo-o mais enquanto eu recuava, apesar de quieta, afastando-me dele, era uma onda feita de mim que desaparecia, uma cartilagem na sua garganta a lacerar-nos aos dois – És a minha única namorada sabias? mas era difícil ouvir-te derivado às gaivotas e aos ecos das ondas, a minha mãe só o braço com que secava a boca e eu ajudando-a a levantar-se porque deixara de conhecer o seu corpo, tão aflita coitada, morreu em abril, há seis meses – Aconteceu-nos tanta coisa filha pouco antes de as cegonhas chegarem, as chaminés ainda sem ninhos por mais um mês ou assim, tirando restos de lama do ano passado que resistiam ainda e eu sentada ao piano enquanto ela sozinha no quarto, tão sozinha no quarto sem chamar por ninguém, sem ver ninguém, de terço terrível nos dedos, nesse ano o primeiro pássaro em junho, não um casal sequer, o primeiro pássaro apenas na palma aberta do vento, comigo sentada ao piano no outro lado da casa, duas notas ou gotas hesitantes de uma torneira avariada que rodavam vibrando sem caírem do bico de metal conforme a cegonha não poisava nunca, afastava-se, desaparecia no ar, voltava, o director da cadeia para nós – Não pensem que isto me agrada a olhar a janela, a olhar-nos, a olhar de novo a janela batendo o lápis na mesa – Não pensem que isto me agrada com um sorriso vazio – Alguém tem de trabalhar pelos outros não é? e uma cicatriz na bochecha a crescer e a diminuir rugas adiante à medida que falava, de quando em quando um dente de baixo surgia entre palavras e afogava-se de novo enquanto palpava uma borbulha no queixo – Herdei a pele do meu pai imagine-se preocupado com as infecções, as doenças – Não calculam as maçadas de saúde que eu já tive muito direito, sem olhar para nada enquanto o feitor, mais longe, se afastava no pomar não me vendo, claro, quem me vê neste mundo, o que será feito das Pedralvas onde nunca mais voltei, provavelmente galinhas cheias de fome na rua, uma caravela ao longe, três ou quatro pretos a conversarem, naquelas vozes lá deles, a caminho dos comboios, a minha mãe para o director do forte – Tem a certeza de que não pode fazer nada senhor? e infelizmente não posso fazer nada minha senhora, sou um funcionário e pronto, as coisas são mesmo assim, é o ministro quem resolve tudo, deu-me ideia que a cegonha me olhava até eu perceber que nem sequer me via, ninguém sabe da minha mãe, ninguém sabe de mim, a minha mãe e eu duas provincianas enterradas numa quinta que não conhecemos como em Lisboa, das poucas vezes que lá vamos, nos perdemos sempre nas ruas – O hotel será onde? a procurar papéis na carteira – Palavra de honra que até o nome esqueci quer dizer lembro-me da placa com três estrelas à entrada agora o nome não faço ideia palavra, como saímos daqui, a minha mãe a olhar as fachadas – Só nos faltava isto apesar de haver tanta coisa que nos faltava mãezinha, a nossa maneira de falar um bocado saloia não é, como a nossa maneira de vestir, a nossa maneira de comer, os nossos gestos, cegonhas, às vezes, juro, até uma gaivota igual às gaivotas de Peniche só que uma apenas, a gritar, a gritar, aparece, desaparece, aparece de novo, uma única gaivota que não vejo há meses, meu Deus o espaço que a passarada ocupa na minha vida, ao sairmos de Peniche, a minha mãe e eu, chovia e nevoeiro no mar, chuva e nevoeiro ou então chuva apenas, nem eu nem o meu irmão estamos no forte já, a quinta de novo ao longe, a surgir numa curva e a sumir-se, quando tornámos a vê-la crescia, olha o muro, o portão, a fachada da casa, as duas chaminés, o pomar, o meu pai cá fora, na cadeira de lona azul e branca, a desdobrar o jornal, a procurar os óculos no bolso do colete, a perguntar-nos – Que tal o rapaz? sem tirar os olhos das páginas – Que tal o rapaz? com aquela ruga a meio da testa que o ajudava, melhor que os óculos, a perceber as palmeiras, o meu pai – Que tal o rapaz? mais interessado nas notícias do que no meu irmão, o meu pai que já morrera há anos – Que tal o rapaz? sem pensar nele, nem na minha mãe, nem em mim, a dobrar as folhas com uma palmada, a descruzar as pernas, a cruzá-las de novo, o meu pai apesar de falecido – Que tal o rapaz? quando eu sabia que não lhe interessava o rapaz, nunca lhe interessou o rapaz, interessava-o a cegonha que poisou finalmente numa chaminé a estudar-nos com o que me deu ideia, o que se me afigurou, o que ia apostar, o que tenho a certeza de ser pena de nós. 4 O FILHO DO CASEIRO DELE Meu Deus que patética a velhice, aqui estou eu aos setenta e seis anos sob a mimosa do quintal, sentado numa cadeira de lona na claridade cada vez mais pálida do crepúsculo, sem reparar na quinta deles à minha esquerda nem na casa ao fundo, sem nenhuma luz nas janelas, que dava ideia de crescer, riscada pelos primeiros morcegos ainda hesitantes, vermelhos, tombando para um lado e para o outro na direcção da noite, ou seja a terra a esvaziar-se de si mesma antes de nos deixar, comigo a sentir-me, palavra de honra, a única pessoa viva no mundo, o coração ou o estômago (acho que o estômago, cheio de aurículas) ainda a pulsarem cá dentro e eu a agradecer, senhores, que pelo menos uma parte minha, mesmo insignificante, tímida, com interrupções e desistências, continue a tentar existir, sinal que ainda não morri todo, obrigado, e abre um postigo de esperança no que teimo em chamar a minha vida, onde estão as costelas flutuantes, onde está o piloro, não me abandonem meu Deus, dantes não precisava de pedir, nada me largava, ao passo que agora acabou-se a papa doce, rapaz, tenho de mendigar a cada célula, as pobres, que não me deixem por enquanto, tenham paciência meninas, lembrem-se do que durante tantos anos fiz por vocês, levantar-me cedo, comer a horas, passear depois das refeições até o estômago moer o peixinho, não desejo, palavra de honra, mais do que um quinto daquilo que vos ofereci, eu quase de chapéu na mão como os mendigos – Ajudem-me enquanto por exemplo o baço, a supra renal direita, ou uma glândula sudorípara me respondem pelo biquinho dos lábios – Não consigo senhor tenha paciência e os distingo, pelos retrovisores de mim, a amontoarem-se sem força numa berma até que um mendigo os leve ou a minha netase me pendure da orelha – Estás a rezar? e não deves andar boa tu, não agradeço a Deus, esse barbas, o que Ele não me entregou, fiquei para aqui a lembrar-me de ingratidões e abandonos que foi o que recebi neste mundo, morre-se sozinho e nasce-se sem companhia a esbracejar os olhos, quem não tem dedos é que agarra mais e ela a coçar a bochecha com uma unha que pensava e a esquecer-me logo porque o namorado, um pindérico meio ruivo com ademanes de leque, o idiota, a chamou, o mau gosto das mulheres deixa-me sempre de boca à banda, a minha mãe apesar de tudo, vá lá, um bocadinho menos defeituosa que as outras, morreu nova, de um ataque de bom senso, mal o corpo principiou a desamparar-lhe a loja poupando-a aos degraus que a partir dos cinquenta se multiplicam, cada vez mais altos, nas escadas, que patética a velhice de facto, que vergonha, talvez um aguilhão de vitaminas, espetado com firmeza no rabo, lhe levantasse a alma conforme os caniços ajudam as plantas a treparem no interior de si mesmas a caminho do sol e agora que tudo escurece, a começar por mim, eis que chegam os últimos pássaros da encosta acolá, tentando libertarem-se das mangas de gabardina das asas, provavelmente os mesmos que dantes, quando ela e o irmão moravam com os pais na casa grande à entrada da quinta e eu escutava os cavalos que passeavam a esta hora ao comprido da vinha porque eram ricos eles, eram ricos, não habitavam numa barraca com duas divisões como os meus pais e eu, mais a chuva de janeiro no tecto que o vento trazia segredando-me – Tu ou seja a chuva que nos acompanhou toda a vida a chamar-me, eu já não filho do caseiro, eu estudante, eu doutor, eu advogado, voltando aqui no Natal, voltando aqui em agosto, queria comprar-lhes o terreno, o pomar, a quinta inteira, eu na esperança que me aparecessem a cavalo lá em cima, umas ocasiões não me vendo, outras um aceno enquanto pulavam atrás das crinas dos bichos, o bigode dele tão alto enquanto o carrapito da irmã a soltar-se e a sua voz agora no sofá da sala enquanto eu de pé diante dela, sufocado na gravata, com as minhas mãos despedaçando-se uma à outra nas costas enquanto as falanges caíam no chão continuando a dobrarem-se, os dois numa salita pequena junto ao roseiral onde os sininhos das flores, apesar de novembro, continuavam a cantar – Quer comprar isto você? com cinquenta e tal anos, agora gorda ou antes, quer dizer, um bocadinho mais forte, usava olhos diferentes dos olhos de eu pequeno e as feições baratas, de roupão, de que as mulheres se servem para pequenos almoços solitários na cozinha enquanto a boca pede em silêncio – Socorro quando o indicador, molhado na língua, apanha uma a uma as migalhas das torradas e do tempo, quando até os azulejos perguntam – Para quê? os tornozelos se apertam num nó debaixo da bancada e a maquilhagem que o algodão da noite não tirou se transforma num cartaz de touradas rasgado a baloiçar numa fachada, uma voz diferente do que eu imaginava – Comprar isto? e um sorriso mais antigo baloiçando no sorriso que tinha, os pais já falecidos, o irmão já falecido, para haver ecos ali era preciso que uma porta a bater ou um prego a desistir de um quadro, talvez o vento nas janelas à tarde ou um objecto a cair na esperança que se lembrassem dele, tão patética a velhice, não é, mesmo não mencionando os cheiros, o da roupa, o da pele, aposto que a cozinha na penumbra com um tacho, de colher lá dentro, a dormitar no fogão, quer comprar isto mesmo já sem vida – Nem pássaros aqui sobram notou? o irmão, com uma malinha, a beliscar-lhe a bochecha – Dois ou três dias e volto ou seja um automóvel com um fulano de chapéu lá dentro, à espera nas traseiras, o meu pai para mim, sem me olhar – Nenhum de nós viu nada numa expressão de – Cala-te e qual o problema de ver, o que se passa senhor, de tempos a tempos ele e o meu pai a falarem junto ao poço maior, o meu pai coçando o ombro como sempre que se preocupava e pombos brancos às voltas, ela para mim – Quer mesmo comprar isto você? sentando-se numa cadeira mais próxima depois de lhe tirar uma revista adormecida enquanto os corvos da colina passavam na janela retalhando o ar e então vi os barcos da Índia mas por saber quem sou não me sentei com ela, continuei de pé a esconder as mãos na boina que não tinha, eu que agora sou um advogado caro não é, dono do escritório, importante, os clientes respeitam-me, os colegas esperam que eu decida, recebo de certeza muito mais dinheiro que ela, a roupa da minha mulher mais cara do que a sua e no entanto eu acanhado, eu tenso, eu humilde, pensando – O que é feito da minha boina? para esconder as mãos nela, as unhas quebradas, as cicatrizes, os calos, a última falange do mindinho da direita que a tesoura de podar levou, esta mancha entre o indicador e o polegar que não me larga, não sai, de onde veio, estes vincos no pescoço quase iguais aos do meu pai, este boné de xadrez que apesar de o ter jogado fora há séculos às vezes, sem me dar conta, procuro na algibeira na esperança de lhe sentir a pala torta que me prende como uma âncora a mim mesmo, não sei se falei ou não das naus mas hão-de vir, hão-de vir, ela para mim, a apontar a varanda onde uma cegonha, duas cegonhas, uma gaivota, tanto faz, pássaros e para que servem os pássaros, vocês ao menos comem-nos depois de os assarem num pauzito, uma gota de carne com penas por fora e sonzitos queixosos, ela sem entender – Comprar isto? apontando a janela com o braço e lá estava o celeiro, lá estavam as carroças que transportavam as sementes, uma delas tombada de lado, outra sem rodas já, lá estava um daqueles cães sem dono que a seguiam de longe a coçarem-se e subiam da aldeia farejando os ratos gordos do campo, toupeiras, um texugo de súbito, equilibrado nas patas de trás, aqueles ratos enormes, cinzentos, os advogados do meu escritório para mim – Senhor doutor sem que eu os visse sequer, via uma leira por acabar, duas leiras, o meu pai a zangar-se – Madraços e as botas dele enormes, o nariz enorme, as mãos que nunca se tocavam, enrolavam uma mortalha, à noite, quando se sentava sozinho, sem dar pela minha mãe ou por mim, no degrau do quintal, distinguia-o pela luz do cigarro – Quero comprar senhora e não é isto que quero comprar, é o silêncio do escuro, é a paz das sombras, o olho enorme da minha mãe – Menino quando se voltava para mim com um pescoço de frango pendurado na mão e as patas do bicho enormes, se calhar vivas ainda, com aquelas unhas horríveis procurando alcançar-me o pescoço, a minha mãe a troçar – Tens medo? e isto na casa da quinta porque de súbito eu não sessenta anos, apenas um miúdo que buscava equilibrar-se, e não se equilibrava, nas botas velhas do pai, a irmã não já – Quer comprar isto? mais baixo, quase divertida, quase com pena de mim – Garoto dando-me ideia que prestes a tocar-me mas claro que não se toca no filho do feitor, sabe-se lá por onde é que ele andou, mesmo tendo tomado banho como tomava agora, mesmo havendo aprendido a usar os talheres, mesmo de fato completo, mesmo educado, mesmo rico porque nunca saímos do sítio onde nascemos, nunca saímos do campo e olha o vento, olha as nuvens, olha a chuva de outubro acolá no pomar e os tordos a tremerem escondidos nas folhas, o cavalo dela quase tão grande quanto o cavalo do irmão, o suor no pescoço, uma órbita que de repente me fita espantada culpando-me sei lá de quê e continuando a trotar, no verão apenas uma cegonha longíssimo, não um bando de cegonhas, uma única cegonha no vértice de um ulmeiro, sem bater o bico, calada, às vezes o irmão ausente dias a fio, uma ou duas ocasiões um homem com ele sem nos olhar sequer, dava-me ideia que a esconder a cara evitando-me, outras um automóvel com dois ou três sujeitos e ele escondido no pomar, não vou esquecer os seus olhos quando passou por mim não vendo fosse quem fosse, ocos, e a irmã à entrada da casa a apertar um roupão cujo cinto se desfazia logo, despenteada, sem pintura, de súbito mais nova ou mais velha, não consigo explicar, tanto faz, enquanto os pombos do
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