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SANTOS, Milton. A natureza do espaço. 4 ed. São Paulo: Edusp, 2009. Introdução “O desafio está em separar da realidade total um campo particular, susceptível de mostrar-se autônomo e que, ao mesmo tempo, permaneça integrado nessa realidade total. E aqui enfrentamos um outro problema importante, e que é o seguinte: a definição de um objeto para uma disciplina e, por conseguinte, a própria delimitação e pertinência dessa disciplina passam pela metadisciplina e não o revés. Construir o objeto e de uma disciplina e construir sua metadisciplina são operações simultâneas e conjugadas. O mundo é um só. Ele é visto através de um dado prisma, por uma dada disciplina, mas, para o conjunto de disciplinas, os materiais constitutivos são os mesmos. É isso, aliás, o que une as diversas disciplinas e o que para cada qual, deve garantir, como uma forma de controle, o critério da realidade total. Uma disciplina é uma parcela autónoma, mas não independente, do saber geral. É assim que se transcendem as realidades truncadas, as verdades parciais, mesmo sem a ambição de filosofar ou de teorizar” (p. 11). “A partir da noção de espaço como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações podemos reconhecer suas categorias analíticas internas. Entre elas, estão a paisagem, a configuração territorial, a divisão territorial do trabalho, o espaço produzido ou produtivo, as rugosidades e as formas-conteúdo” (p. 12-13). “As técnicas, funcionando como sistemas que marcam as diversas épocas, são examinadas através de sua própria história e vistas não apenas no seu aspecto material, mas também nos seus aspectos imateriais. É assim que a noção de técnica permite empiricizar o tempo e se encontra com a noção de meio geográfico. A ideia de técnica como algo onde o ‘humano’ e o ‘não-humano’ são inseparáveis, é central. Sem isso, seria impossível pretender superar dicotomias tão tenazes na geografia e nas ciências sociais, quanto as que opõem o natural e o cultural, o objetivo e o subjetivo, o global e o local etc. Já no segundo capítulo, consideramos o movimento da produção e da vida derredor de objetos e de ações, e aí também a técnica tem um papel central. Objetos naturais e objetos fabricados pelo homem podem ser analisados conforme o seu respectivo conteúdo, ou, em outras palavras, conforme sua condição técnica, e o mesmo pode ser dito das ações, que se distinguem segundo os diversos graus de intencionalidade e racionalidade” (p. 14). Primeira parte: Uma ontologia do espaço – noções fundadoras 1 - As técnicas, o tempo e o espaço geográfico “É por demais sabido que a principal forma de relação entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio, é dada pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço” (p. 16). “Sem dúvida, o espaço é formado de objetos; mas não são os objetos que determinam os objetos. É o espaço que determina os objetos: o espaço é visto como um conjunto de 1 objetos organizados segundo uma lógica e utilizados (acionados) segundo uma lógica” (p. 24). “No domínio das relações entre técnica e espaço, uma primeira realidade e não esquecer é a da propagação desigual das técnicas. Esse ponto, que foi corretamente discutido por Jean-Louis Lespes (1980, pp. 56-76) sugere um importante debate a respeito do processo de difusão das técnicas e seu sua implantação seletiva sobre o espaço. Num mesmo pedaço de território, convivem subsistemas técnicos diferentemente datados, isto é, elementos técnicos provenientes de épocas diversas” (p. 25). “Devemos partir do fato de que esses diferentes sistemas técnicos formam uma situação e são uma existência num lugar dado, para tratar de entender como, a partir desse substrato, as ações humanas se realizam. A forma como se combinam sistemas técnicos de diferentes idades vai ter uma consequência sobre as formas de vida possíveis naquela área. Do ponto de vista específico da técnica dominante, a questão é outra; é a de verificar como os resíduos do passado são um obstáculo à difusão do novo ou juntos encontram a maneira de permitir ações simultâneas” (p. 25). “A questão que aqui se coloca é a de saber, de um lado, em que medida a noção de espaço pode contribuir à interpretação do fenómeno técnico, e, de outro lado, verificar, sistematicamente, o papel do fenómeno técnico na produção e nas transformações do espaço geográfico” (p. 27). “Sem dúvida, a técnica é um elemento importante de explicação da sociedade e dos lugares mas, sozinha, a técnica não explica nada. Apenas o valor relativo é valor. E o valor relativo só é identificado no interior de um sistema da realidade, e de um sistema de referências elaborados para entendê-la, isto é, para arrancar os fatos isolados da sua solidão e seu mutismo” (p. 27). “Na realidade, toda técnica é história embutida. Através dos objetos, a técnica é história no momento da sua criação e no de sua instalação e revela o encontro, em cada lugar, das condições históricas (econômicas, socioculturais, políticas, geográficas), que permitiram a chegada desses objetos e presidiram à sua operação. A técnica é tempo congelado e revela uma história” (p. 29). “A técnica nos ajuda a historicizar, isto é, a considerar o espaço como fenómeno histórico a geografizar, isto é, a produzir uma geografia como ciência histórica” (p. 29). “Tempo, espaço e mundo são realidades históricas, que devem ser mutuamente conversíveis, se a nossa preocupação epistemológica é totalizadora. Em qualquer momento, o ponto de partida é a sociedade humana em processo, isto é, realizando-se . Essa realização se dá sobre uma base material: o espaço e seu uso; o tempo e seu uso; a materialidade e suas diversas formas; as ações e suas diversas feições” (p. 33). “Assim empiricizamos o tempo, tornando-o material, e desse modo o assimilamos ao espaço, que não existe sem a materialidade. A técnica entra aqui como um traço de união, historicamente e epistemologicamente. As técnicas, de um lado, dão-nos a possibilidade de empiricização do tempo e, de outro lado, a possibilidade de uma qualificação precisa da materialidade sobre a qual as sociedades humanas trabalham. Então, essa empiricização pode ser a base uma sistematização, solidária com as 2 características de cada época. Ao longo da história, as técnicas se dão como sistemas, diferentemente caracterizadas” (p. 33). “É por intermédio das técnicas que o homem, no trabalho, realiza essa união entre espaço e tempo” (p. 33). “As técnicas participam na produção da percepção do espaço, e também da percepção do tempo, tanto por sua existência física, que marca as sensações diante da velocidade, como pelo seu imaginário. Esse imaginário tem uma forte base empírica. O espaço se impõe através das condições que ele oferece para a produção, para a circulação, para a residência, para a comunicação, para o exercício das crenças, para o lazer e como condição de ‘viver bem’. Como meio operacional, presta-se a uma avaliação objetiva e como meio percebido está subordinado a uma avaliação subjetiva. Mas o mesmo espaço pode ser visto como o terreno das operações individuais e coletivas, ou como realidade percebida. Ambos têm a técnica como origem e por essa via nossa avaliação acaba por ser uma síntese entre o objetivo e o subjetivo” (p. 34). “Através do processo da produção, o ‘espaço’ torna o ‘tempo’ concreto. Assim, a noção de trabalho e a de instrumento de trabalho são muito importantes na explicação geográfica, tanto ou mais do que no estudo dos modos de produção. O trabalho realizado em cada época supõe um conjunto historicamente determinado de técnicas. Segundo uma frase muito frequentemente citada por Marx (Capital, I, p. 132, edição de M. Harnecker), “o que distingue as épocas econômicas uma das outras, não é o que se faz, mas como se faz, com que instrumentos de trabalho”. Esta noção tem, pois, um valor histórico e especial. A cada lugar geográfico concreto corresponde, em cada momento, um conjuntode técnicas e de instrumentos de trabalho, resultado de uma combinação específica que também é historicamente determinada” (p. 34-35). “Há uma idade científica das técnicas, a data em que, num laboratório, elas são concebidas. Mas isso pode ter apenas importância para a história da ciência. E, ao lado dessa idade científica, há uma idade propriamente histórica, a data em que, na história concreta essa técnica se incorpora à vida de uma sociedade. Na realidade, é aqui que a técnica deixa de ser ciência para ser propriamente técnica, De um ponto de vista propriamente histórico é esta a data que conta: é aí que se estabelece a certidão de batismo universal da nova técnica. A autonomia de existência do objeto técnico, isto é, a realidade que vem de suas capacidades funcionais absolutas, não ode ser confundida com a relatividade de sua existência histórica” (p. 36). “É o lugar que atribui às técnicas o princípio de realidade histórica, relativizando o seu uso, integrando-as num conjunto de vida, retirando-as de sua abstração empírica e lhes atribuindo efetividade histórica. E, num determinado lugar, não há técnicas isoladas, de tal modo que o efeito de idade de uma delas é sempre condicionado pelo das outras. O que há num determinado lugar é a operação simultânea de várias técnicas, por exemplo, técnicas agrícolas, industriais, de transporte, comércio ou marketing, técnicas que são diferentes segundo as respectivas formas de produção. Essas técnicas particulares, essas “técnicas industriais”, são manejadas por grupos sócias portadores de técnicas socioculturais diversas e se dão sobre um território que, ele próprio, em sua constituição material, é diverso, do ponto de vista técnico. São todas essas técnicas, incluindo as técnicas da vida, que nos dão a estrutura de um lugar” (p. 36). 3 2 – O espaço: sistemas de objetos, sistemas de ação “O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá. No começo era a natureza selvagem, formada por objetos naturais, que ao longo da história vão sendo substituídos por objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, depois, cibernéticos, fazendo com que a natureza artificial tenda a funcionar com uma máquina. Através da presença desses objetos técnicos: hidroelétricas, fábricas, fazendas modernas, portos, estradas de rodagem, estradas de ferro, cidades, o espaço é marcado por esses acréscimos, que lhe dão um conteúdo extremamente técnico” (p. 39). “Sistema de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma” (p. 39). “A ação é o próprio do homem. Só o homem tem ação, porque só ele tem objetivo, finalidade. A natureza não tem ação porque ela é cega, não tem futuro. As ações humanas não se restringem aos indivíduos, incluindo, também, as empresas, as instituições. Mas os propósitos relativos às ações são realizados por meio dos indivíduos, conforme assinala B. Hindess” (p. 53). “As ações resultam de necessidades, naturais ou criadas. Essas necessidades: materiais, imateriais, económicas, sociais, culturais, morais, afetivas, é que conduzem os homens a agir e levam a funções. Essas funções, de uma forma ou de outra, vão desembocar nos objetos. Realizados através de formas sociais, eles próprios conduzem à criação e ao uso de objetos, formas geográficas. Parafraseando Whitehead (1938, pp. 139-140), podemos dizer que ‘fora do espaço, não há realização’, o espaço sendo produzido ‘por um conjunção particular de processos materiais e de processos de significação’” (Lagopoulos, 1993, p. 275) (p. 53). “Objetos não agem, mas, sobretudo no período histórico atual, podem nascer predestinados a um certo tipo de ações, a cuja plena eficácia se tornam indispensáveis. São as ações que, em última análise, definem objetos, dando-lhes um sentido” (p. 55). 3 – O espaço geográfico, um híbrido “Lembremo-nos, porém, de que os resultados da ação humana não dependem unicamente da racionalidade da decisão e da execução. Há, sempre, uma quota de imponderabilidade no resultado, devida, por um lado, à natureza humana e, por outro lado, ao caráter humano do meio” (p. 60). “Já que a realização concreta da história não separa o natural e o artificial, o natural e o político, devemos propor um outro modo de ver a realidade, oposto a esse trabalho secular de purificação, fundado em dois polos distintos. No mundo de hoje, é frequentemente impossível ao homem comum distinguir claramente as obras da 4 natureza e as obras dos homens e indicar onde termina o puramente técnico e onde começa o puramente social” (p. 65). “Paisagem e espaço são sinónimos. A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a vida que as anima” (p. 66). “A paisagem se dá como um conjunto de objetos reais-concretos. Nesse sentido a paisagem é transtemporal, juntando objetos passados e presentes, uma construção transversal. O espaço é sempre um presente, uma construção horizontal, uma situação única. Cada paisagem se caracteriza por uma dada distribuição de formas-objetos, providas de um conteúdo técnico específico. Já o espaço resulta da intrusão da sociedade nessas formas-objetos. Por isso, esses objetos não mudam de lugar, mas mudam de função, isto é, de significação, de valor sistémico. A paisagem é, pois, um sistema material e, nessa condição, relativamente imutável: o espaço é um sistema de valores, que se transforma permanentemente” (p. 67). “A paisagem existe através de suas formas, criadas em momentos históricos diferentes, porém coexistindo no momento atual. No espaço, as formas de que se compõe a paisagem preenchem, no momento atual, uma função atual, como resposta às necessidades atuais da sociedade. Tais formas nasceram sob diferentes necessidades, emanaram de sociedades sucessivas, mas só as formas mais recentes correspondem a determinações da sociedade atual” (p. 67). “Ao nosso ver, a questão a colocar é a da própria natureza do espaço, formado, de um lado, pelo resultado material acumulado das ações humanas através do tempo, e, de outro lado, animado pelas ações atuais que hoje lhe atribuem um dinamismo e uma funcionalidade. Paisagem e sociedade são variáveis complementares cuja síntese, sempre por refazer, é dada pelo espaço humano” (p. 69). “Pode-se pensar numa dialética entre a sociedade e o conjunto de formas espaciais, entre a sociedade e a paisagem? Ou a dialética se daria exclusivamente entre sociedade e espaço?” (p. 70). “É a sociedade, isto é, o homem, que anima as formas espaciais, atribuindo-lhes um conteúdo, uma vida. Só a vida é passível desse processo infinito que vai do passado ao futuro, só ela tem o poder tudo transformar amplamente. Tudo o que não retira sua significação desse comércio com o homem, é incapaz de um movimento próprio, não pode participar de nenhum movimento contraditório, de nenhuma dialética” (p. 70). “Não existe dialética possível entre formas enquanto formas. Nem, a rigor, entre paisagem e sociedade. A sociedade se geografiza através dessas formas, atribuindo-lhes uma função que, ao longo da história, vai mudando. O espaço é a síntese, sempre provisória, entre o conteúdo social e as formas espaciais. Mas a contradição principal é entre sociedade e espaço, entre um presente invasor e ubíquo que nunca se realiza completamente, e um presente localizado, que também é passado objetivado nas formas sociais e nas formas geográficas encontradas” (p. 71). 5 “Em cada momento, em última análise, a sociedade está agindo sobre ela própria, e jamais sobre a materialidade exclusivamente. A dialética, pois, não é entre sociedade e paisagem,mas entre sociedade e espaço. E vice-versa” (p. 71). 6
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