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EVANGELHOS SINÓTICOS CURSOS DE GRADUAÇÃO – EAD Evangelhos Sinóticos – Prof.a Dra. Elisa Rodrigues Meu nome é Elisa Rodrigues e sou natural de Osasco, São Paulo. Tenho Bacharelado em Teologia e Doutora em Ciências da Religião, área de Literatura e Religião do Mundo Bíblico (Universidade Metodista de São Paulo). Também sou Bacharel em Sociologia e Política (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo) e Doutoranda em Ciências Sociais, área de Cultura e Política (Universidade Estadual de Campinas). Pesquiso temas relacionados à religião, especialmente, Hermenêutica de Textos Sagrados (Judaico-cristãos) e a recepção dessa literatura pelos protestantismos, neo-pentecostalismos e catolicismos. Além de artigos publicados em periódicos especializados em Teologia e Religião, participei do livro intitulado Palavra de Deus, Palavra da Gente (Editora Paulus) e escrevi o livro O que é Teologia? (MK Editora). e-mail: e_rodrigues@yahoo.com Fazemos parte do Claretiano - Rede de Educação EVANGELHOS SINÓTICOS Elisa Rodrigues Batatais Claretiano 2014 Fazemos parte do Claretiano - Rede de Educação © Ação Educacional Claretiana, 2014 – Batatais (SP) Versão: ago./2014 226 R611e Rodrigues, Elisa Evangelhos Sinóticos / Elisa Rodrigues – Batatais, SP : Claretiano, 2014. 194 p. ISBN: 978-85-8377-159-3 1. Sinóticos. 2. Evangelhos. 3. Gêneros literários. 4. Perspectivas Teológicas. I. Evangelhos Sinóticos. CDD 226 Corpo Técnico Editorial do Material Didático Mediacional Coordenador de Material Didático Mediacional: J. Alves Preparação Aline de Fátima Guedes Camila Maria Nardi Matos Carolina de Andrade Baviera Cátia Aparecida Ribeiro Dandara Louise Vieira Matavelli Elaine Aparecida de Lima Moraes Josiane Marchiori Martins Lidiane Maria Magalini Luciana A. Mani Adami Luciana dos Santos Sançana de Melo Patrícia Alves Veronez Montera Raquel Baptista Meneses Frata Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Simone Rodrigues de Oliveira Bibliotecária Ana Carolina Guimarães – CRB7: 64/11 Revisão Cecília Beatriz Alves Teixeira Felipe Aleixo Filipi Andrade de Deus Silveira Paulo Roberto F. M. Sposati Ortiz Rafael Antonio Morotti Rodrigo Ferreira Daverni Sônia Galindo Melo Talita Cristina Bartolomeu Vanessa Vergani Machado Projeto gráfico, diagramação e capa Eduardo de Oliveira Azevedo Joice Cristina Micai Lúcia Maria de Sousa Ferrão Luis Antônio Guimarães Toloi Raphael Fantacini de Oliveira Tamires Botta Murakami de Souza Wagner Segato dos Santos Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução, a transmissão total ou parcial por qualquer forma e/ou qualquer meio (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e distribuição na web), ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do autor e da Ação Educacional Claretiana. Claretiano - Centro Universitário Rua Dom Bosco, 466 - Bairro: Castelo – Batatais SP – CEP 14.300-000 cead@claretiano.edu.br Fone: (16) 3660-1777 – Fax: (16) 3660-1780 – 0800 941 0006 www.claretianobt.com.br SUMÁRIO CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 2 ORIENTAÇÕES PARA ESTUDO ......................................................................... 10 3 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 30 4 E-REFERÊNCIAS ................................................................................................ 30 UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DOS SINÓTICOS 1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 31 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 31 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE ............................................... 32 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE .............................................................................. 33 5 O QUE É EVANGELHO? ..................................................................................... 34 6 MUNDO SOCIAL DAS PRIMEIRAS COMUNIDADES CRISTÃS "ESPELHADO" NA LITERATURA ......................................................... 40 7 SABEDORIA E CRÍTICA SOCIAL NAS ORIGENS CRISTÃS ................................. 43 8 CONFLUÊNCIA DE HORIZONTES CULTURAIS ................................................. 52 9 IDENTIDADE SOCIAL DAS PRIMEIRAS COMUNIDADES CRISTÃS ................. 54 10 PRIMEIRAS COMUNIDADES CRISTÃS: ITINERANTES OU LOCAIS? ............... 57 11 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 63 12 CONSIDERAÇÕES ............................................................................................. 63 13 E-REFERÊNCIAS ................................................................................................ 64 14 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 65 UNIDADE 2 – O PROBLEMA SINÓTICO E AS ORIGENS CRISTÃS 1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 67 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 67 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE ............................................... 68 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 69 5 O PROBLEMA SINÓTICO E A CRÍTICA DAS FONTES ....................................... 69 6 O "OLHAR" PARA DENTRO DAS FONTES ......................................................... 73 7 FONTES SINÓTICAS .......................................................................................... 76 8 A COMPOSIÇÃO DOS EVANGELHOS ............................................................... 83 9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 87 10 CONSIDERAÇÕES ............................................................................................. 87 11 E-REFERÊNCIAS ................................................................................................ 89 12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 89 UNIDADE 3 – A HIPÓTESE DE "Q" - A FONTE DOS DITOS DE JESUS 1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 91 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 91 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE ............................................... 92 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 93 5 GÊNESE DA HIPÓTESE FONTE Q – A FONTE DOS DITOS DE JESUS ............... 93 6 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 105 7 CONSIDERAÇÕES ............................................................................................. 106 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 107 UNIDADE 4 – O EVANGELHO DE MARCOS 1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 109 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 109 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE............................................... 110 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 110 5 SOBRE A AUTORIA E DATAÇÃO ........................................................................ 111 6 CHAVES METODOLÓGICAS .............................................................................. 114 7 CONJUNTURA HISTÓRICO-SOCIAL .................................................................. 117 8 ALGUNS CONTEÚDOS DO EVANGELHO DE MARCOS ................................... 122 9 O "CRISTO DA FÉ" NO EVANGELHO DE MARCOS ........................................... 124 10 UMA LEITURA POLÍTICA DE MARCOS ............................................................ 126 11 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 132 12 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 132 13 E-REFERÊNCIA .................................................................................................. 133 14 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 134 UNIDADE 5 – EVANGELHO DE MATEUS 1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 135 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 135 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE ............................................... 136 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 136 5 EVANGELHO DE MATEUS E A TRADIÇÃO........................................................ 137 6 EVANGELHO DE MATEUS E A PESQUISA MODERNA ..................................... 139 7 OS CONTEÚDOS DO EVANGELHO DE MATEUS .............................................. 141 8 LUGAR DE ORIGEM E AUTORIA DO EVANGELHO .......................................... 148 9 HISTÓRIAS EVOCADAS POR MATEUS ............................................................. 151 10 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ....................................................................... 161 11 CONSIDERAÇÕES ............................................................................................. 161 12 E-REFERÊNCIAS ................................................................................................ 162 13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 163 UNIDADE 6 – EVANGELHO DE LUCAS 1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 165 2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 165 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE ............................................... 166 4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 166 5 FRAGMENTOS DE HISTÓRIA. TESTEMUNHOS SOBRE LUCAS ...................... 168 6 ESTÁGIOS DA ESCRITA DO EVANGELHO E AUTORIA ..................................... 170 7 TEMAS LITERÁRIOS E DISCUSSÕES SOBRE LUCAS ........................................ 175 8 MEMÓRIAS DA TRADIÇÃO JUDAICA EM LUCAS ............................................ 183 9 PROPOSTAS DE ESTRUTURA PARA LUCAS ...................................................... 189 10 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ........................................................................ 190 11 CONSIDERAÇÕES ............................................................................................. 191 12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 192 EA D CRC Caderno de Referência de Conteúdo 1. INTRODUÇÃO O estudo de Evangelhos Sinóticos consiste na investigação de parte da chamada "literatura neotestamentária", produzida no século 1º da Era Cristã e que constitui um dos blocos de textos da Bíblia. Os Evangelhos Sinóticos Mateus, Marcos e Lucas são assim denominados porque seriam "espelhos" um do outro, diferente- mente do evangelho de João, cuja estrutura, forma escrita e teo- logia guardariam especificidades. Em outras palavras, esses três evangelhos repetiriam os conteúdos por meio de formas de apre- sentação semelhantes (gêneros literários), além de mensagens e teologias comuns. Tais literaturas despertam interesse entre estudiosos de teo- logia, de história e outras disciplinas da área de ciências humanas, mas também no grande público. Isso ocorre porque a literatura bíblica é passível de novas interpretações a cada período histórico. © Evangelhos Sinóticos10 Ela é polissêmica e reverberante. É característica dessa literatura a linguagem inventiva, narrativa, poética e, de modo geral, simbóli- ca, que lhe proporciona um caráter de constante atualidade. As pessoas lêem os Evangelhos Sinóticos e encantam-se. São atraídas pela aparência histórica, pelas informações biográficas, pela beleza literária e pelo caráter ético-normativo típico da pro- clamação de Jesus, expressa na escrita dos redatores. Os Evangelhos, portanto, trazem algo do Jesus Histórico e muito do Jesus Proclamado. Trazem conteúdos da mensagem do reino de Deus, da salvação para humanidade e da restauração da dignidade humana. Cada qual com especificações típicas de seus interesses relacionados às suas questões, aos problemas das pri- meiras comunidades, de suas audiências. O estudo dos Evangelhos Sinóticos possibilita, mesmo que timidamente, a reconstituição das origens cristãs por meio do conhecimento de suas crenças, de seus dilemas, de seus problemas sociais, de suas expectativas e perguntas mais frequentes. Muitos dilemas, problemas sociais, ex- pectativas e perguntas que as sociedades atuais ainda partilham. Nesse sentido, vale notar que o aprofundamento nos temas relacionados ao estudo dos Sinóticos constitui importante instru- mento para a compreensão do legado cristão à cultura ocidental. Após esta introdução aos conceitos principais, apresenta- mos, a seguir, no Tópico Orientações para Estudo, algumas orien- tações de caráter motivacional, dicas e estratégias de aprendiza- gem que poderão facilitar o seu estudo. 2. ORIENTAÇÕES PARA ESTUDO Abordagem Geral Aqui, você entrará em contato com os assuntos principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportunidade de aprofundar essas questões no estudo de cada unidade. No entan- Claretiano - Centro Universitário 11© Caderno de Referência de Conteúdo to, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe o conhecimento básico necessário a partir do qual você possa construir um referencial te- órico com base sólida – científica e cultural – para que, no futuro exercício de sua profissão, você a exerça com competência cogniti- va, ética e responsabilidade social. Para iniciar o aprendizado e a reflexão sobre os Evangelhos Sinóticos, vamos conhecer um pouco desses documentos tão valo- rizados pela cristandade ao longo dos séculos, em função de suas narrativas de conteúdo histórico, biográfico e simbólico. Sabemos que os evangelhos sinóticos são Mateus, Marcos e Lucas. Nosso objetivo geral é compreender porque essas três fontes são estudadas em conjunto e quais os motivos que as tor- nam documentos tão importantes para a compreensão das ori- gens cristãs. Objetivos específicos • Apresentar a discussão inicial a cerca do que é um gênero literário "evangelho", bem como caracterizar seus princi- pais conteúdos. • Apontar a relação entre os conteúdos, as formas literárias e as teologias que constituem os evangelhos e seus con- textos históricos e sociais específicos. • Caracterizar a importância do estudo dos Evangelhos Si- nóticos para o conhecimento da modalidade religiosa cristianismo. Para começo de conversa, o que é "evangelho"? O termo substantivo "evangelho" (euaggeliou) pode ser en- contradoseis vezes no Antigo Testamento, com dois sentidos: • "boas novas" (Cf. 2 Sm 18:20, 25, 27; 2 Re7:9); • "recompensa por boas notícias" (2 Sm 4:10; 18:22). © Evangelhos Sinóticos12 Vejamos a referência de 2 Sm 18:20: Ioab lhe disse: "Tu não serias hoje portador de uma boa notícia. Levá-la-ás noutro dia, mas hoje não levarias uma boa noticia, porque se trata da morte do filho do rei". Esse duplo sentido para evangelho nos ajuda a perceber o poder efetivo da palavra. A palavra falada é comparável ao seu conteúdo: más notícias trazem tristeza e boas notícias causam ale- gria. Nesses termos, a palavra é portadora de poder e efetua o que proclama. Entre os gregos, evangelho era o termo técnico para "novas vitórias" em batalhas militares ou, em determinados contextos de jogos, como os olímpicos. Mas além desse uso, o mais importante para nosso estudo foi o feito no culto imperial. No período de domínio romano, o imperador reuniu em sua pessoa a noção de homem divino e de salvador. Isso é também o que a palavra evangelho aponta: o governante é divino por natu- reza. Seu poder se estende para homens, animais, terra e mar. O evangelho – materializado no governante – é o salvador do mundo e aquele que redime as pessoas de suas dificuldades. Assim, o imperador assumiu para si as características da an- tiga deusa grega chamada "Túkhe". De acordo com Mircea Eliade (1978. p. 236), a ideia de sal- vação tem a ver com o esforço de desprestigiar a terrível deusa Túkhe, que quer dizer Sorte, Fortuna. Na narrativa mítica grega, ela poderia trazer tanto felicidade como má sorte. Ela manifestava-se, também, como anágkê ou heimarmenê, que pode traduzir-se por necessidade ou destino. O destino era controlado pelos caprichos astrais dessa deu- sa. Esse fatalismo só cessaria com a convicção "de que certos Se- res divinos são independentes do Destino" . Durante o período de império romano em que era obrigatório o culto ao imperador, os atributos da deusa foram assumidos por César: grande homem e deus, ao mesmo tempo. Claretiano - Centro Universitário 13© Caderno de Referência de Conteúdo Assim, em função de ser o imperador mais do que um ho- mem comum, seus decretos eram considerados mensagens de alegria e suas ordens eram consideradas escritos sagrados. O que ele dizia era um ato divino e implicava em boas coisas e salvação para os homens. Disso, podemos concluir que o culto imperial e a Bíblia com- partilham a mesma visão de ascensão ao trono de alguém que intro- duziria uma nova era e traria paz ao mundo. Era, nesse sentido, um evangelho para os homens. No caso dos romanos, esse alguém seria o imperador. Mais tarde, para os cristãos, esse alguém seria Jesus, aquele que na tradição judaica era conhecido como Messias. Como podemos entender essa semelhança na forma de pen- sar de gregos, romanos e cristãos? Por um lado, devemos lembrar que os primeiros cristãos eram judeus, muitos deles já helenizados em função de anos de dominação romana e, por outro lado, vale destacar que muitos dos primeiros convertidos ao cristianismo eram de procedência romana, o que implica no cruzamento das tradições judaica e gre- co-romana. Outro fator que deve ser considerado é que o estudo comparado de fontes do período antigo revela que essas noções eram comuns daquele tempo, portanto, algo tipicamente oriental. O conteúdo do evangelho cristão que pode ser entendido como diferente do evangelho imperial é a proclamação da Basiléia thou theou: a mensagem do Reino de Deus. Devemos notar com atenção que o Novo Testamento fala a linguagem de seus dias. Trata-se de uma proclamação popular e realística. Um saber humano que diz respeito à atitude de um grupo restrito de discípulos de Jesus de "esperar por" algo, de ter "esperança" de novas. Esses primeiros cristãos estavam a espera da realização de um evangelho, do qual alguns até poderiam ser envergonhados, já que esse evangelho era um "escândalo". © Evangelhos Sinóticos14 Os cegos recobram a vista e os coxos andam direito, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres, e feliz de quem não cair por causa de mim! (Mt 11:5). No léxico cristão, portanto, evangelho significa sōtēria, isto é, salvação para o homem, mas sōtēria implica metanoia, que é arrependimento para o julgamento. Os próprios textos bíblicos re- latam que essa noção de salvação e, principalmente, de ressurrei- ção, soava estranha para muitos e alguns reagiam com ironia. Veja At 17:32: "Às palavras "ressurreição dos mortos", uns zombavam, outros declararam: "Nós te ouviremos sobre isso noutra ocasião". Mas, para os primeiros seguidores de Jesus, a ideia de sal- vação e de ressurreição era uma convicção alegre e real: pela pe- nitência chegaria-se ao julgamento e a alegria, o que significava graça e salvação. Nesse sentido, César e Cristo, o imperador sobre o trono e o desprezado rabbi na cruz, confrontavam-se um ao ou- tro. Ambos eram o evangelho para o homem. Eles tinham muito em comum. Todavia, eram originários de mundos diferentes. Um traria um reino de justiça para aqueles que se dobrassem perante ele, aqui na terra. Outro traria um reino de justiça para aqueles que fossem súditos dele por toda a eternidade. Enquanto judeus eram dominados e colonizados por César, diante o imperador Jesus, os judeus entendiam-se como filhos e retomando a tradição da Bíblia Hebraica: eles eram a nação esco- lhida para reinar junto do Messias, que, para os cristãos, era Jesus de Nazaré. O evangelho de Cristo consistia na proclamação (kerigma) do Reino de Deus. O cerne desse evangelho era a vinda do Reino, o que implicava imediatamente no estabelecimento de um novo governo: um governo divino de paz e de justiça, cujo único gover- nante seria o próprio Cristo. Mas o que é evangelho nos sinóticos? Claretiano - Centro Universitário 15© Caderno de Referência de Conteúdo Com frequência, Marcos usou a palavra evangelho nos ditos de Jesus. Além dos usos em Mc 1:1 (Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus) e em 1:14 (Depois que João foi preso, veio Jesus para Galileia proclamando o Evangelho de Deus), pode- mos notar que os textos paralelos de Marcos em Mateus e em Lu- cas não empregam esse termo, mas fazem menção do significado da palavra. Observe o quadro sinótico a seguir: Pois aquele que quiser salvar a sua vida, irá perdê-la; mas, o que perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, irá salvá-la (Mc 8:35) Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la (Mt 16:25 - 10:39) Pois aquele que quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará (Lc 9:24) Nos versos que lemos, Marcos emprega o termo "evange- lho", já Mateus e Lucas dão a entender que o evangelho é o pró- prio Cristo. Como visto, os trechos paralelos de Marcos (Mt 16:25; Lc 9:24) não têm a palavra evangelho. Em paralelos de Marcos, elas apareceriam em Mc 13:10=Mt 24:14 e Mc 14:9=Mt 26:13. Isso pode indicar que Lucas dependeu de estratos mais antigos de Marcos para a redação de seu evange- lho e, também, que as ocorrências de evangelho em Marcos e Ma- teus indicam que esses evangelhos são mais antigos do que Lucas, o que lhes confere maior grau de autenticidade. Esse ponto pode ser melhor entendido à luz da leitura de Marcos. O importante é sabermos que os Evangelhos não são repro- duções estenográficas, isto é, transcrições imediatas, dos ensinos de Jesus. Tampouco se pode afirmar que sejam registros oficiais de sua atividade na condição de mestre. Na forma original, os Evange- lhos eram tradição oral. © Evangelhos Sinóticos16 O evangelho é comparado com Cristo, com seu nome (Mt 19:29) e com o Reino de Deus (Lc 18:29). A atitude do Antigo Tes- tamento e dos judeus para com os gentios – sua exclusão do reino messiânico e, ainda, da participação na salvação–, foi resolvida por Jesus. Ele limitou a si mesmo, entendendo-se como conteúdo cen- tral de sua proclamação, para Israel. Durante seu tempo de vida, não permitiu que seus discípulos levassem essa mensagem para além das fronteiras de sua própria terra (cf. Mc 7:27; Mt 15:24, 26, 10;5). Mas, na era messiânica, muitas nações o conheceriam, conforme Mt 8:11 e Lc 13:29. Agora que sabemos o significado do termo "evangelho" e o que ele implica, vamos compreender porque os evangelhos Mar- cos, Mateus e Lucas foram denominados "sinóticos". A primeira coisa a se saber é que esse termo vem da palavra grega synposis, entendida como "ver em conjunto". Os evangelhos sinóticos, portanto, são narrativas sobre a vida e o ministério público de Jesus, que podem ser lidas em con- junto porque apresentam uma estrutura parecida, com conteúdos que se repetem e gêneros e formas literárias recorrentes. Portan- to, são como "espelhos" uns dos outros. A palavra "sinótico" foi empregada pela primeira vez para designar o estudo comparativo de Mateus, Marcos e Lucas, no fi- nal do século 18, pelo estudioso alemão chamado Johann Jacob Griesbach. Como exposto, a palavra "evangelho" (Boa notícia) foi atri- buída aos quatro primeiros escritos do Novo Testamento, mas des- ses quatro, apenas os três primeiros foram considerados parecidos entre si, a ponto de receberem o nome de sinóticos. O que mais os aproxima é o fato de apresentarem os ensinos de Jesus por meio de histórias a seu respeito, que vão do batismo até sua morte e ressurreição. Todavia, cada um dos evangelhos narra esses eventos de forma peculiar, considerando o que cada comunidade entendeu e assumiu dos ensinos do Nazareno. Claretiano - Centro Universitário 17© Caderno de Referência de Conteúdo O problema sinótico e a crítica das fontes A despeito de serem considerados sinóticos, uma leitura atenta dos evangelhos Marcos, Mateus e Lucas revela que existem algumas diferenças entre esses textos. A percepção de que os si- nóticos não eram tão semelhantes entre si deu origem ao que se convencionou chamar de "O problema sinótico". O problema sinótico consiste na constatação de que existem diferenças e semelhanças na redação dos evangelhos. Essa cons- tatação é explicada pelo entendimento de que os autores de tais textos, no processo de elaboração de cada evangelho, acrescenta- ram à tradição escrita, narrativas acerca da vida e dos ensinos de Jesus, conhecidas pela tradição oral. Isso significa que cada autor, ao descrever a história de Jesus, utilizou livremente memórias e fontes que estavam à disposição. A escola que investiga essas particularidades do texto bíblico é chamada "Crítica das Fontes". Ela se dedica à análise dos está- gios que formaram a produção dos evangelhos. Ela faz e procura responder a seguinte pergunta: que fontes escritas os evangelistas empregaram na formulação de seus evangelhos? Tal questão interessa tanto ao historiador do cristianismo primitivo, quanto ao exegeta ou ao indivíduo que tem relação de fé com os textos bíblicos. Para respondê-la, a academia de estudos bíblicos da Alemanha, representada pela escola da Crítica das For- mas, elaborou o conceito de comunidade "por trás" do evangelho e formulou o entendimento de que se o Sitz im Leben, isto é, a situação vivencial de uma comunidade pudesse ser bem compre- endida, o texto – o evangelho que a comunidade produziu –, seria lido corretamente. Martin Dibelius, um dos mais importantes críticos da forma, em 1934 definiu Sitz im Leben como o estrato histórico e social em que precisamente aquelas formas literárias foram desenvolvidas. Já em 1969, W. Marxsen foi o primeiro a introduzir três Sitze im Leben: © Evangelhos Sinóticos18 • O Jesus Histórico (a situação de atividades de Jesus). • A crítica das formas (a situação da igreja primitiva). • A crítica da redação (a situação do evangelista na criação do Evangelho). A situação do "Jesus Histórico" seria uma espécie de leitura exegética dos evangelhos preocupada em reconstruir a história do homem Jesus de Nazaré, que viveu e expressou-se materialmente na Galileia e nos lugares onde esteve. Essa exegese busca recom- por a pessoa de Jesus, à luz das informações que se repetem sobre ele nos diferentes evangelhos, entendidos como fontes próximas do período em que ele viveu e atuou. A situação da igreja primitiva seria a leitura dos evangelhos preocupada em esclarecer, quais as peculiaridades de cada fonte que indicam as questões que mobilizaram a escrita de cada evan- gelho. Esse estágio pressupõe que conteúdos teológicos que va- riam de um evangelho para o outro, tem a ver com as perguntas que diferentes grupos cristãos faziam entre si. Isso implica que a igreja primitiva, isto é, as comunidades cristãs das origens eram di- ferentes, tinham expectativas diferentes e, provavelmente, enten- diam diferentemente os ensinos do Jesus de Nazaré. O que pode indicar o uso de biografia, profecia, sabedoria, poesia e outras for- mas literárias? Isso está em conexão com a crítica da redação que, como terceiro estágio de crítica literária, investiga a situação do evan- gelista, ou dos redatores do evangelho, por ocasião da criação de seu texto. Nesse estágio, busca-se identificar as fontes usadas pelo redator ou redatores. Também se investiga a relação entre o con- texto histórico-social com a redação do texto. Ao longo dos séculos 19 e 20, todo esse aparato metodológico tem proporcionado muitas conclusões sobre os evangelhos. A tradi- ção da igreja e suas conclusões por tanto tempo veiculadas, como a sequência dos evangelhos formada por Mateus, Marcos, Lucas e João, têm sido, muitas vezes, confirmada e outras tantas negada. Claretiano - Centro Universitário 19© Caderno de Referência de Conteúdo O que inicialmente podemos dizer é que a crítica literária verificou que as semelhanças na estrutura dos evangelhos, no uso das palavras e na sequência das narrativas sugerem que entre os evangelhos existiu alguma dependência e talvez o compartilha- mento de fontes. Podemos verificar isso na comparação de pequenos estratos dos evangelhos e na estrutura geral dos evangelhos sinóticos. Veja o exemplo: MARCOS 13 MATEUS 24 LUCAS 21 1 Jesus se retirava do Templo, quando um de seus discípulos lhe disse: "Mestre, olha que pedras, que construções!" 2 Jesus lhe disse: "Estás vendo essas grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra: tudo será destruído". 3 Estando ele assentado, no monte das Oliveiras, defronte do Templo, Pedro, Tiago, João e André, à parte, perguntavam-lhe: 4 "Dize-nos quando é que isto acontecerá e qual será o sinal de que tudo isso vai acabar". 1 Jesus saíra do Templo e estava indo embora. Seus discípulos adiantaram- se, a fim de chamar- lhe a atenção para as construções do Templo 2 Tomando a palavra, ele lhes disse: "Estais vendo tudo isso, não é? Em verdade vos declaro, aqui não ficará pedra sobre pedra: tudo será destruído". 3 Estando ele assentado, no monte das Oliveiras, os discípulos adiantaram- se para ele, à parte, e lhe disseram: "Dize-nos quando isto acontecerá e qual será o sinal da tua vinda e do fim do mundo!". 5 Como alguns falassem do Templo, da sua ornamentação de belas pedras e dos ex-votos, Jesus disse: 6 "Do que contemplais, dias virão em que não restará pedra sobre pedra: tudo será destruído". 7 Eles lhe perguntaram: "Mestre, quando é que acontecerá isso e qual será o sinal de que isso irá se realizar?" As três narrativas têm, evidentemente, estilos diferentes de apresentar o mesmo conteúdo, que é a destruição do Templo. Aqui não vamos discutir a respeito da referência ao Templo se era a construção de fato ou uma metáfora para a morte e ressurreição de Jesus em três dias. Interessa-nos comparar as narrativas e indicar as diferenças. No que tange ao conteúdo central do pronunciamento de Jesus, o © Evangelhos Sinóticos20 conteúdo não varia, apenas o estilo: "não ficará pedrasobre pedra, tudo será destruído. O que chama a atenção é que a introdução de cada evangelho dá detalhes diferentes: Marcos fala que Jesus se retirava do Templo com os discípulos; Mateus diz que Jesus se retirava e estava indo embora quando os discípulos se adiantaram com o objetivo de chamar a atenção de Jesus para o Templo; por fim, Lucas fala de ornamentação e de belas pedras. Marcos e Mateus falam de uma cena posterior, quando Je- sus e seus discípulos já no monte das Oliveiras voltaram a falar da destruição do Templo. Os discípulos queriam saber quando isso ocorreria. Marcos diz quem eram os discípulos (Pedro, Tiago, João e André), ao passo que Mateus não os nomeia. Lucas não faz refe- rência ao monte das Oliveiras e tampouco diz os nomes de quem acompanhava Jesus. Todos os três, no entanto, dizem que os discí- pulos desejavam saber quando ocorreria a destruição. Tudo isso indica que esse diálogo deve, de fato, ter ocorrido. Mas não podemos precisar se ocorreu no mesmo dia e no mes- mo ambiente. Lucas dá a impressão de continuidade, já Marcos e Mateus dão a entender que o diálogo ocorreu em dois tempos, possivelmente, em ambientes diferentes já que na primeira cena estavam nas redondezas do Templo e na segunda, estavam reuni- dos no monte das Oliveiras. Embora essa breve comparação não comprometa o conte- údo central da narrativa, indica, no mínimo, que havia diferenças entre os redatores dos evangelhos, seja na forma de descrever as narrativas – quanto ao estilo e uso do grego – seja no que julga- vam ser indispensável à narrativa. De todo modo, como destacam alguns estudiosos, essa combinação de correspondência e discor- dância também alcança a estrutura geral dos evangelhos. Portanto, é possível perceber que os três evangelhos seguem praticamente: 1) a mesma ordem de acontecimentos; Claretiano - Centro Universitário 21© Caderno de Referência de Conteúdo 2) omitem informações que podem ser encontradas nos outros dois evangelhos; 3) apresentam incidentes que os demais não relatam; 4) possuem algumas diferenças quanto à ordem de um evento em, pelo menos, um dos dois evangelhos. Na busca por uma hipótese que explicasse correspondências e disparidades entre os evangelhos sinóticos, emergiram algumas possibilidades que apresentaremos, a seguir, brevemente: 1) Dependência comum de um evangelho original (um pro- to-evangelho) – foi proposta por G. E. Lesing (em 1771), escritor e crítico alemão. Sustentou que a relação entre os sinóticos teria ocorrido com base no uso independen- te de uma fonte original, escrita em hebraico ou aramai- co. Essa hipótese foi duramente criticada, principalmen- te, a partir do século 20. 2) Dependência comum de fontes orais – foi proposta por J. G. Herder e, posteriormente, J. K. L. Gieseler (em 1818). Eles sustentaram a dependência dos sinóticos a partir de um sumário oral relativamente conhecido, sobre a vida de Cristo. Essa hipótese foi mais aceita durante o século 19. 3) Dependência comum de um número cada vez maior de fragmentos escritos – foi proposta por F. Schleiermacher (s. d.), também conhecido por ter cunhado a hermenêu- tica bíblica na Alemanha. Ele propôs que circulavam di- versos fragmentos de tradição sobre Jesus no meio das primeiras comunidades cristãs, escritos pelos apóstolos. Tais fragmentos cresceram gradualmente e foram incor- porados aos evangelhos sinóticos. 4) Teoria da Interdependência –sustenta que dois dos au- tores usaram uma ou mais fontes para a elaboração do seu evangelho. Essa teoria é geralmente mais aceita pe- los estudiosos. A proposta da interdependência entre os evangelhos é a ge- ralmente mais aceita. Sugere, a partir da análise de paralelismos sequenciais entre os evangelhos sinóticos, que podemos obser- var Mateus e Marcos juntos em oposição à Lucas, e Lucas e Mar- © Evangelhos Sinóticos22 cos juntos em oposição à Mateus, porém, Mateus e Lucas não se opõem à Marcos. Assim, surge o "argumento da sequência" que apresenta Marcos como o termo médio no relacionamento entre os sinó- ticos. Isso significa que o evangelho de Marcos seria a fonte usa- da tanto por Mateus como por Lucas para a composição de seus evangelhos. Essa hipótese explica as correspondências entre os três pri- meiros evangelhos. As diferenças, portanto, estariam relacionadas ao estilo e às particularidades de Mateus e de Lucas, vinculadas principalmente às expectativas do grupo com o qual se importa- vam e para o qual procuravam promover a fé em Jesus. Todos esses estudos e hipóteses acerca da redação dos evan- gelhos desencadearam, ainda, outras questões relacionadas prin- cipalmente à veracidade das narrativas e dos acontecimentos so- bre a vida, os ensinos e os milagres realizados por Jesus de Nazaré. Embora esse tenha sido um período difícil para a pesquisa sobre Jesus e para a teologia, é importante destacar que dessa época surgiram novas possibilidades de compreensão acerca do signifi- cado do movimento cristão e da sua abrangência. Essas novas possibilidades devem ser valorizadas porque re- fletem a tentativa de estudiosos e religiosos modernos de tornar o conteúdo dos evangelhos cada vez mais próximo do nosso século. Nesse sentido, mesmo que entendamos por "canônicos" os primeiros quatro evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João, de- vemos saber que essa disposição não reflete a ordem cronológica de composição dessas fontes. Tampouco indica que são os únicos escritos judaico-cristãos desse gênero. Isso porque existem outros evangelhos que não foram considerados canônicos pelos concílios da igreja, a partir do século 3º, mas que são testemunhos das dife- rentes tradições sobre Jesus que circulavam entre os grupos cris- tãos das origens. Claretiano - Centro Universitário 23© Caderno de Referência de Conteúdo Apesar das diferentes hipóteses quanto à origem do cânon assim como o conhecemos hoje, é quase consenso entre os biblis- tas que Marcos teria sido o primeiro evangelho redigido e que os outros (Mateus e Lucas) teriam se inspirado em seu material para compor suas versões. Por essa razão, os evangelhos de Marcos, Lucas e Mateus são chamados "sinóticos" e, nesse caso, o termo "sinótico" indica a qualidade de terem informações em comum. Para terminar, é relevante compreender a citação a seguir: Há muito tempo já se percebeu que esses três evangelhos apre- sentam materiais paralelos numa estrutura semelhante e com fre- qüência na mesma seqüência de perícopes individuais (...) a reda- ção das respectivas passagens paralelas em quaisquer dois ou três desses evangelhos é muitas vezes quase a mesma, ou tão próxima, que certamente se deve concluir pela existência de algum tipo de relação literária (KOESTER, 2005. p. 48). Espero que essa síntese tenha evidenciado o quão impor- tante é o estudo comparativo dos evangelhos sinóticos e o quanto esse estudo pode revelar sobre o Jesus histórico e as primeiras comunidades cristãs. Para isso, conhecer os evangelhos em sua estrutura, sua redação e formas literárias pode nos ajudar muito. Isso sem falar do contexto histórico e social, âmbitos dos quais a redação não se descola. Para quem quer fazer bons estudos bíbli- cos, boas exegeses ou simplesmente saber mais a respeito de Je- sus e seu ministério, é absolutamente necessária a leitura conjunta dos sinóticos. Bom estudo! Glossário de Conceitos O Glossário permite a você uma consulta rápida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de conhecimento dos temas tratados em Evangelhos Sinóticos. Veja a seguir a defi- nição dos principais conceitos: © Evangelhos Sinóticos24 1) Kerigma: também escrito na forma querigma. Termo grego que significa "Proclamação", utilizado nos evange- lhos para apontar a proclamação do Reino de Deus. 2) Perícope: termo utilizado para indicar uma unidade lite- rária que pode ser um capítulo ou um conjunto de ver- sos. Trata-se de um bloco de versos comsentido único. 3) Exegese: trata-se da disciplina que se dedica à tradução de textos a partir de suas línguas originais e interpretação. 4) Apocalíptica: além de constituir um sistema de interpre- tação da história, é, também, considerada uma matriz de espiritualidade baseada em dualismo, cujo conteúdo diz respeito à experiência religiosa de caráter extático e visionário e, geralmente, versada em linguagem simbóli- ca-mítica. A literatura apocalíptica pode ser identificada sob compreensões cristológicas sobre Jesus de Nazaré, no Apocalipse de João, na narrativa de conversão de Pau- lo e no cristianismo pós-paulino. Todavia, a apocalíptica já existia sob a forma de apocalipses judaicos como Da- niel 7-12; 1 Enoque 14-15; 4 Esdras 9,26-10,59, cap.11- 12,13 e Baruque 53-74. É notável que esses apocalipses foram elaborados em contextos de perseguição, a par- tir do qual pretendia-se "revelar" aos fiéis uma visão de mudança e glorificação (cf. Dn 12,1) (BOER, 2011). 5) Didaqué: consistia em uma espécie de doutrina, isto é, Catechesis. O termo "catequese" em sentido amplo in- clui instrução pela palavra da boca sobre qualquer as- sunto sagrado ou profano (At 18,25; 21,21,24; Rm 2,18; Gl 6,6. – cf. Clem. Alex. Fragm. § 28: οὐκ ἔστι πιστεῦσαι ἄνευ κατηχήσεως), mas é especialmente aplicado ao ensino cristão, tanto de um tipo elementar apropriado para novo convertido, ou, como na famosa Escola Ca- tequética de Alexandria, estendido para alta interpreta- ção da Escritura Sagrada e a exposição da filosofia cristã. O primeiro saber exemplar do trabalho catequético é a "Doutrina dos doze apóstolos", que Atanásio nomeia entre os "livros não incluídos no Cânon, mas apontado pelos Pais para ser lido por aqueles que recentemente vieram a nós, e desejam ser instruídos na palavra sagra- da" (Festal Epist. 39. 2010). Claretiano - Centro Universitário 25© Caderno de Referência de Conteúdo 6) Qunram: os Escritos de Qunram e seus estratos 4Q In- truction e 4QMysteries constituem o conjunto literário conhecido como Os Rolos do Mar Morto. Khirbert Qun- ram é um conjunto de ruínas que fica na praia ocidental do Mar Morto. Os escritos achados foram redigidos em hebraico e em aramaico e foram conhecidos do grande público a partir de 1948, graças a descoberta acidental de um jovem pastor beduíno chamado Muhamed edh- -Dhib. 4Q Instruction diz respeito à sigla que indica um manuscrito de conteúdo instrutivo na Caverna 4. Da mesma forma, 4Q Mysteries diz respeito ao manuscri- to Mistério encontrado na Caverna 4. Ao todo são 11 as cavernas em que foram descobertos os manuscritos, provavelmente, produzidos por um grupo sectário de ju- deus (VERMES, Geza, 1997). Esquema de Conceitos-chave Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até mesmo o seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir o seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de suas próprias percepções. É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações en- tre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de ensino. Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-se que, por meio da organização das ideias e dos princípios em esque- mas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu conhecimen- to de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pedagógicos significativos no seu processo de ensino e aprendizagem. © Evangelhos Sinóticos26 Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es- colar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda, na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que es- tabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim, novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem pontos de ancoragem. Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape- nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci- so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante con- siderar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos concei- tos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma vez que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes estruturas cog- nitivas, outros serão também relembrados. Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é você o principal agente da construção do próprio conhecimento, por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações in- ternas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por ob- jetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando o seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou seja, estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou de co- nhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo (adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.br/eduto- ols/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>. Acesso em: 11 mar. 2010). Claretiano - Centro Universitário 27© Caderno de Referência de Conteúdo Jesus Histórico Parábolas, ditos e ensinos 30 -33 EC Morte e ressurreição 33 EC Vida Pública 01 - 33 EC Coleção de ditos ou a Fonte Q 40 – 55 EC (Antioquia) Evangelho de Marcos 64 – 70 EC (Roma) Evangelho de Lucas 70 -90 EC (Lugar incerto, geralmente mencionado Cesaréia, Acaia, Decápole, Ásia Menor e Roma) Evangelho de Matheus 80 – 90 EC (Antioquia da Síria) Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo Evangelhos Sinóticos Como você pode observar, o mapa acima lhe apresenta uma visão geral dos conceitos mais importantes desse estudo. Seguin- do este mapa, você poderá transitar entre um e outro conceito e descobrir o caminho para construir o seu processo ensino-apren- dizagem. Observamos que o mapa conceitual é mais um dos recursos de aprendizagem que vem somar-se aqueles disponíveis no am- biente virtual com suas ferramentas interativas, bem como as ati- vidades didático-pedagógicas realizadas presencialmente no polo. Lembre-se de que você, como aluno na modalidade a distância, pode valer-se da sua autonomia na construção de seu próprio co- nhecimento. © Evangelhos Sinóticos28 Questões Autoavaliativas No final de cada unidade, você encontrará algumas questões autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertati- vas. Responder, discutir e comentar essas questões, bem como relacioná-las com a prática do ensino de Teologia pode ser uma forma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a re- solução de questões pertinentes ao assunto tratado, você estará se preparando para a avaliação final, que será dissertativa. Além disso, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhe- cimentos e adquirir uma formação sólida para a sua prática profis- sional. As questões de múltipla escolha são as que têm como respos- ta apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entendem-se por questões abertas objetivas as que se referem aos conteúdos matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determinada, inalterada. Já as questões abertas dissertativas obtêm por res- posta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado; por isso, normalmente, não há nada relacionado a elas no item Gabarito. Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus colegas de turma. Bibliografia Básica É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus estudos, mas não se prendasó a ela. Consulte, também, as biblio- grafias complementares. Figuras (ilustrações, quadros...) Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte- grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustra- tivas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os con- Claretiano - Centro Universitário 29© Caderno de Referência de Conteúdo teúdos estudados, pois relacionar aquilo que está no campo visual com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual. Dicas (motivacionais) Este estudo convida você a olhar, de forma mais apurada, a Educação como processo de emancipação do ser humano. É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas e científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois, ao com- partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto, uma capacidade que nos impele à maturidade. Você, como aluno dos cursos de Graduação na modalidade EaD, necessita de uma formação conceitual sólida e consistente. Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugeri- mos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as atividades nas datas estipuladas. É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas pode- rão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produ- ções científicas. Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discu- ta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoau- las. No final de cada unidade, você encontrará algumas questões autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas, pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure- cimento intelectual. © Evangelhos Sinóticos30 Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores. Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a este Caderno de Referência de Conteúdo, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto para ajudar você. 3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento: história e literatura do cristianismo primitivo. Vol. 2. São Paulo: Paulus, 2005 VERMES, G. Os Manuscritos do Mar Morto. São Paulo: Mercuryo, 1997. 4. E-REFERÊNCIAS BOER, M. A influência da apocalíptica judaica nas origens do cristianismo: gênero, cosmovisão e movimento social. Tradução de Paulo Augusto de Souza Nogueira. (Arquivo er19cap1.pdf). Editora Metodista Digital. Disponível em: <http://editora.metodista.br/ revista_rel_19.htm>. Acesso em: 2 ago. 2011, FESTAL EPIST. 39. Compare com Clem. Alex. Strom. V. c. x. § 67. Γάλα μὲν ἡ κατήχησις οἱονεὶ πρώτη ψυχῆς τροφὴ νοηθήσεται. Christian Classics Ethereal Library. Catechetical Instruction. In: Chapter II. — Catechetical Instruction. Disponível em: <http://www.ccel. org/ccel/schaff/npnf207.ii.iii.ii.html?highlight=didaché#highlight>. Acesso em: 2 ago. 2011. 1 EA D Introdução ao Estudo dos Sinóticos 1. OBJETIVOS • Conhecer e introduzir o debate acadêmico sobre história social do cristianismo das origens. • Estabelecer relação entre os contextos histórico, político e cultural e a escrita dos Evangelhos Sinóticos. • Demonstrar que os motivos que influenciaram a redação dos Evangelhos estavam vinculados à necessidade de re- gistrar as tradições, as memórias e os ensinamentos de Jesus por meio de uma tradição escrita. 2. CONTEÚDOS • Definições: o que é Evangelho e o que é Sinótico. • Literatura bíblica. • Sabedoria e crítica social nas origens cristãs. • Confluência de horizontes culturais. • Identidade social das primeiras comunidades cristãs. © Evangelhos Sinóticos32 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Ao estudar esta primeira unidade, tenha em mãos uma Bíblia ou o Novo Testamento, a fim de identificar na fon- te as citações bíblicas que serão apontadas. Sugerimos as traduções: Bíblia de Jerusalém e ou A Bíblia Sagrada, traduzida por João Ferreira de Almeida (versão atualiza- da). 2) Uma sinopse dos Evangelhos Sinóticos também oferece instrumental adequado para a compreensão dessa e das próximas unidades. Sugerimos a seguinte sinopse: KO- NINGS, J. Sinopse dos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da "Fonte Q". São Paulo: Loyola, 2005. (Coleção Bíblica 45). 3) Outros recursos como dicionários, dicionários de termos em grego e mapas também são úteis para a compreen- são dos conteúdos a seguir. 4) Leia esta unidade e as próximas sem perder de vista que os textos do Novo Testamento constituem uma literatu- ra matizada em um período histórico específico e, como toda produção literária, os evangelhos falam, também, a respeito do seu tempo, da cultura da época, de cos- tumes, de práticas e ideias típicas desse período e de comunidades de pessoas que viveram esse tempo. 5) Para saber mais a respeito do teólogo alemão Karl Bar- th e de sua teologia (que estudaremos nesta unidade), consulte o site Bíblia World Net. Disponível em: <http:// www2.uol.com.br/bibliaworld/igreja/estudos/karl001. htm>. Acesso em: 30 out. 2011. 6) Para ampliar seus conhecimentos a respeito do teólogo Rudolf Bultmann e de sua teologia existencial, consulte: PIRES, Frederico Pieper. Mito e hermenêutica. O desafio de Rudolf Bultmann. São Paulo: Emblema, 2005. 7) Amplie seus conhecimentos e leia: THEISSEN, Gerd. So- ciologia da Cristandade Primitiva. São Leopoldo: Sino- dal, 1987, p. 11. Claretiano - Centro Universitário 33© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos 8) Para saber mais a respeito da Didaqué, consulte: IZIDO- RO, José Luiz. Didaché: doutrinas dos doze apóstolos. In: Oracula 3/6 (2007): 90-113. (ISSN 1807-8222). Dis- ponível em: <http://www.oracula.com.br/site/index. php?option=com_content&task=view&id=56&Item id=49>. Acesso em: 30 out. 2011. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Nesta introdução aos evangelhos, vamos estudar o conjunto formado pelos "Sinóticos". Esse termo vem da palavra grega "syn- posis", entendida como "ver em conjunto". Os Evangelhos Sinó- ticos, portanto, são narrativas sobre a vida e o ministério público de Jesus, que podem ser lidas em conjunto porque apresentam uma estrutura parecida, conteúdos que se repetem e gêneros e formas literárias recorrentes. Portanto, são como "espelhos" uns dos outros. Veremos, também, nesta unidade, que a palavra "sinótico" foi empregada pela primeira vez para designar o estudo compara- tivo de Mateus, Marcos e Lucas no final do século 18, pelo estudio- so alemão J. J. Griesbah. Em relação à palavra "evangelho" (Boa notícia) é importante entendermos que ela nomeia quatro escritos do Novo Testamento (NT), os três primeiros foram considerados parecidos entre si (a pon- to de receberem o nome de Sinóticos). O que mais os aproxima é o fato de apresentarem os ensinamentos de Jesus por meio de histó- rias a seu respeito que vão do batismo até sua morte e ressurreição. No entanto, o evangelho de João não será contemplado neste Caderno de Referência de Conteúdos em razão de não ser classificado como sinótico. Segundo a pesquisa bíblica, o evange- lho de João destaca-se por ter redação complexa e tardia, assim compreendida em função de seus desdobramentos teológicos e da acentuada influência filosófica grega que o torna marcadamen- te diferente dos primeiros três evangelhos. © Evangelhos Sinóticos34 Nesta primeira unidade,vamos estudar o contexto histórico, social e cultural no qual as primeiras comunidades cristãs se for- maram. Em decorrência dessa descoberta, vamos compreender de modo mais acurado como esse "pano de fundo" motivou e influiu na redação dos Evangelhos Sinóticos. Vamos perceber, ainda, que as origens cristãs e os textos que esses grupos produziram foram condicionados por situações de controvérsias, tensões e disputas típicas daquele período, o século 1º da Era Cristã (EC). Vamos, pois, iniciar nossos estudos? 5. O QUE É EVANGELHO? O termo substantivo "evangelho" (euaggeliou) pode ser en- contrado seis vezes no Antigo Testamento (AT), com dois sentidos: primeiro "boas novas" (cf. 2Sm 18,20,25,27; 2Rs 7,9) e segundo "recompensa por boas notícias" (2Sm 4,10; 18,22). Esse duplo sentido para o "evangelho" nos ajuda a perceber o poder efetivo da palavra. A palavra falada é comparável ao seu conteúdo: más notícias trazem tristeza e boas notícias causam ale- gria. Nesses termos, a palavra é portadora de poder e efetua o que proclama. Entre os gregos, "evangelho" era o termo técnico para "no- vas vitórias" em batalhas militares ou, em determinados contextos de jogos, como os olímpicos. Mas, além desse uso, o mais impor- tante para o nosso estudo foi feito no culto imperial. No período de domínio romano, o imperador reuniu para si a noção de homem divino e de salvador. Isso é, também, o que a pa- lavra "evangelho" aponta seu significado e poder: o governante é divino por natureza. Seu poder se estende para homens, animais, terra e mar. O "evangelho" – materializado no governante – é o salvador do mundo e aquele que redime as pessoas de suas dificuldades. Claretiano - Centro Universitário 35© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos Assim, o imperador assumiu para si as características da antiga deusa grega chamada "Túkhe". Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– De acordo com Mircea Eliade, a ideia de salvação teve origem no esforço de des- prestigiar a terrível deusa "Túkhe" (a Sorte, a Fortuna). Na narrativa mítica grega, ela poderia trazer tanto felicidade como má sorte. Ela manifestava-se também como "anágkê" ou "heimarmenê", Necessidade ou Destino respectivamente. O Destino era controlado pelos seus caprichos astrais. Esse fatalismo só cessaria com a convicção "de que certos Seres divinos são independentes do Destino". Nos cultos de mistério de Ísis e Osíris, por exemplo, a deusa proclamaria o poder de prolongar a vida de seus adoradores: "Conquistei o Destino e o Destino me obedece". Mais tarde, a deusa Fortuna tornou-se um dos atributos de Ísis (cf. MIRCEA, Eliade. História das crenças e das idéias religiosas. São Paulo: Zahar, 1978. p. 236). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Em função de ser o imperador mais do que um homem co- mum, seus decretos eram tidos como mensagens de alegria e suas ordens eram consideradas escritos sagrados. O que ele dizia era um ato divino e implicava em boas coisas e salvação para os homens. O culto imperial e a Bíblia compartilham a visão de ascensão ao trono, que introduziria uma nova era e traria paz ao mundo. Era, nesse sentido, um evangelho para os homens. O estudo comparado de fontes do período antigo revela que essas noções eram comuns daquele tempo, portanto, algo tipica- mente oriental. Contudo, algum conteúdo do evangelho do Novo Testamento pode ser entendido como oposto ao evangelho impe- rial, por exemplo, no que diz respeito à proclamação da Basiléia thou theou (do reino de Deus). Assim, o que devemos notar com atenção é que o NT fala a linguagem de seus dias. Trata-se de uma proclamação popular e realística. Um saber humano de esperar por algo, de esperança nova, que indicava a espera pela realização de um evangelho, do qual alguns poderiam ser envergonhados, já que era um "escânda- lo" (cf. Mt 11,5; Rm 1,16; 1Cor 1,17,23; 2Tm 1,8; Mc 8,35). No léxico cristão, portanto, "evangelho" significa sōtēria (sal- vação) para o homem, mas sōtēria implica metanóia (conversão) e © Evangelhos Sinóticos36 julgamento. Os próprios textos bíblicos relatam que essa noção de salvação soava estranha e muitos devem ter reagido com ironia (At 17,32). Entretanto, para os primeiros seguidores de Jesus, tratava- -se de uma convicção alegre e real: pela penitência, chegava-se a alegria e ao julgamento, o que significava graça e salvação. Desse modo, César e Cristo, o imperador sobre o trono e o desprezado rabbi na cruz, confrontavam-se um ao outro. Ambos eram o evangelho para o homem. Eles tinham muito em comum. Todavia, eram originários de mundos diferentes. O evangelho de Cristo consistia, pois, na proclamação (kerigma ou querigma) do reino de Deus. O cerne desse evangelho era a vinda do Reino, o que implicava imediatamente no estabelecimento de um novo governo: um governo divino de paz e de justiça, cujo único governante seria o próprio Cristo. Você deve estar se perguntando, mas o que é evangelho nos Sinóticos? Com frequência, Marcos usa "evangelho" nos ditos de Jesus. Deixando de lado apenas as referências Mc 1,1 (Princípio do Evan- gelho de Jesus Cristo, Filho de Deus) e 1,14 (Depois que João foi preso, veio Jesus para Galiléia proclamando o Evangelho de Deus), podemos notar que os textos paralelos de Marcos em Mateus e em Lucas não empregam esse termo, o que sugere que a palavra "evangelho" pode não ter sido usada em estratos mais antigos de Marcos. Vamos entender melhor o Evangelho Sinótico observando o Quadro 1 a seguir. Os textos bíblicos citados estão de acordo com a versão da Bíblia de Jerusalém, tradução em língua portuguesa diretamente dos ori- ginais, publicada pela Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus. Claretiano - Centro Universitário 37© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos Quadro 1 Sinótico Cumpriu-se o tempo e o reino de Deus está próximo. "Arrependei-vos e crede no Evangelho". Mc 1,15 A partir desse momento, começou Jesus a pregar e a dizer: "Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos Céus". Mt 4,17 Ensinava (edidasken) em suas sinagogas e era glorificado por todos. Lc 4,15 Pois aquele que quiser salvar a sua vida, irá perdê-la; mas, o que perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, irá salvá-la. Mc 8,35 Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim vai encontrá-la. Mt 16,25 (10,39) Pois aquele que quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará. Lc 9,24 Jesus declarou: "Em verdade vos digo que não há quem tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras por minha causa ou por causa do Evangelho, que não receba cem vezes mais desde agora, neste tempo, casas, irmãos e irmãs, mãe e filhos e terras, com perseguições; e, no mundo futuro, a vida eterna. (...)". Mc 10,29-30 E todo aquele que tiver deixado casas ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filho, ou terras, por causa do meu nome, receberá muito mais e herdará a vida eterna. Mt 19,29 Jesus lhes disse: "em verdade vos digo, não há quem tenha deixado casa, mulher, irmãos, pais ou filhos por causa do reino de Deus, sem que receba muito mais nesse tempo e, no mundo futuro, a vida eterna". Lc 18,29-30 Como podemos observar, os trechos paralelos de Marcos não têm a palavra "evangelho". Elas apareceriam em Mc 13,10; Mt 24,14 e Mc 14,9, Mt 26,13. Isso pode indicar que Lucas de- pendeu de estratos mais antigos de Marcos e que as ocorrências de "evangelho" em Marcos e Mateus podem ter sido acréscimos à tradição oral. Esse ponto pode ser melhor entendido à luz da leitura de Marcos: Mc 13,10 (É necessário que primeiro o Evangelho seja pro- clamado para todas as nações) parece incompatível com Mc 7,27 (com paralelos em Mt 15,24,26; 10,5). © Evangelhos Sinóticos38 No primeiro, Jesus apontou que a proclamação do Reino de- veria ser levada a todos. No segundo,Jesus negou a mensagem de salvação para os não judeus, o que levanta a suspeita de que Marcos 13,10 tenha sido uma interpolação dentro do discurso es- catológico, feita em decorrência do sucesso das missões entre gen- tios. Da mesma forma, alguns estudiosos têm dúvidas quanto ao trecho de Marcos 14,3-9, em especial, os versos 8 e 9, visto que a perícope não parece harmonizar com os versos que a antecedem e que vêm subsequentemente. Assim, não sabemos ao certo se os ditos de Jesus que dizem respeito ao evangelho são originais e se foram ditos por Jesus mesmo. Quanto a isso, a crítica das fontes não encontrou consenso. O importante é sabermos que os Evangelhos não são reproduções estenográficas, isto é, transcrições imediatas, dos ensinamentos de Jesus. Tampouco, pode-se afirmar que sejam registros oficiais de sua atividade como mestre. Na forma original, os Evangelhos eram tradição oral. A Crítica das fontes pode ser chamada de crítica literária e surgiu no século 18 EC. Ocupa-se de investigar a obra e sua autoria à luz de seu contexto histórico. Preocupa-se em investigar os documen- tos que serviram como fontes para a composição dos materiais bíblicos. Entendido esse ponto, a pergunta mais pertinente é se o ter- mo "evangelho" foi usado por Jesus ou atribuído a ele pela Tradi- ção? A pergunta se Jesus usou ou não a palavra evangelho resulta na questão sobre a concepção que tinha a seu próprio respeito, se tinha ou não consciência messiânica. O que podemos concluir a esse respeito é que, de fato, a proclamação de Jesus era de "boas novas" e que ele era o único a proclamá-las naquela expressão, apontando para o reino de Deus. Se ele compreendeu que era o Filho de Deus que podia morrer e viver novamente, ele também percebeu que ele mesmo era o con- teúdo da mensagem de seus discípulos. Claretiano - Centro Universitário 39© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos Nesse caso, seu evangelho não era um novo ensino. Ele tra- zia a si mesmo, o que foi dado com sua pessoa constituía o conte- údo do evangelho, consequentemente, "thou euaggeliou" implica para os discípulos o des-velamento do segredo messiânico. Entender essa mensagem demanda fé. Algo que caracteri- za esse evangelho como diferente da expectativa (do evangelho) grega e da judaica. Esse evangelho vem acompanhado da noção de conversão, isto é, pelo arrependimento é que se poderia obter a alegria, a Vida. Em Marcos 8,35 e 10,29, o evangelho não se refere a ativida- de missionária. O "evangelho" é comparado com Cristo, com seu nome (Mt 19,29) e com o reino de Deus (Lc 18,29). A atitude do Antigo Testamento e dos judeus para com os gentios – sua exclu- são do reino messiânico e, ainda, da participação na salvação – foi resolvida por Jesus. Ele limitou a si mesmo, entendendo-se como conteúdo central de sua proclamação, para Israel. Durante seu tempo de vida, não permitiu que seus discípulos levassem essa mensagem para além das fronteiras de sua própria terra (cf. Mc 7,27; Mt 15,24,26). Mas, na era messiânica, muitas nações o conheceriam, (cf. Mt 8,11 e Lc 13,29). Portanto, isso nos leva a compreender que o conteúdo cen- tral da proclamação de Jesus é o reino de Deus, e o reino como evento escatológico (cf. Mc 13,10; Mt 24,14). Trata-se do evange- lho do reino proclamado para Israel que será declarado para todo o mundo: o evangelho da salvação para todos os que crerem. Para saber mais sobre esse assunto leia: KITTEL, Gerhard; FRIE- DRICH, Gerhard (Eds.). Theological dictionary of the New Testa- ment. 10 volumes. Michigan: W. B. Eerdmans, 1972-1989 (1º ed- ição, 1964-1974, reimpresso em 1999). Ref. NT: 2098. © Evangelhos Sinóticos40 6. MUNDO SOCIAL DAS PRIMEIRAS COMUNIDADES CRISTÃS "ESPELHADO" NA LITERATURA Como já podemos perceber, o gênero dos textos tem relação com a cosmovisão e a situação vivencial da época em que foram concebidos. O gênero evangelho significa "boas novas", portanto, não em função de uma definição moderna, mas em decorrência do sentido que essa palavra recebeu do sentido atribuído a ela nos meios em que era usada. Por isso, dizemos que os textos projetam, em nível literário, traços e indícios dos grupos sociais em que esta- beleceram suas relações cotidianas e tradições culturais-religiosas. Doravante, investigaremos um pouco mais desses contextos e tra- dições que subjazem o Novo Testamento. A fim de explicitar o "pano de fundo" dos textos neotesta- mentários, o estudioso Gerd Theissen (1987) desenvolveu sua pes- quisa acerca das primeiras comunidades cristãs com o instrumen- tal da sociologia da literatura. Antes de chegar a esse recurso de análise, porém, reconheceu a importância da crítica da forma e da história da religião como chaves metodológicas de leitura que nos permitem formular reconstruções do que teria sido o ambiente so- cial no período das primeiras comunidades cristãs e da formação dos Evangelhos Sinóticos. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A Crítica da forma ocupa-se, principalmente, em analisar unidades dentro dos documentos e fontes que contenham formas específicas – projeções de tipos de fala – que teriam sido próprias de certas situações existenciais do cotidiano isra- elita. Ocupa-se em relacionar as formas, por exemplo, poéticas, como eventos reais aos quais teria alguma ligação (julgamentos, casamentos, festas religio- sas, celebrações, procissões etc.). Surgiu no século 20 da EC. Busca identificar elementos relacionados ao cotidiano de Israel e incorporados ao texto, como fórmulas, tipos literários fixos, vocabulário próprio ao evento e lugar, que indi- quem evidências da forma literária. Apresentou bons resultados, por exemplo, no estudo dos Salmos (24; 45; 121; 132 e outros). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Theissen (1987) admitiu que houve certo retrocesso na pes- quisa sociológica durante o século 20; entretanto, atribuiu esse retrocesso à teologia dialética de Karl Barth e a hermenêutica exis- Claretiano - Centro Universitário 41© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos tencial de Rudolf Bultmann (uma crítica que pode ser relativiza- da, tendo em vista o comprometimento que ambos os teólogos tinham com suas respectivas comunidades cristãs na Alemanha). Para Theissen (1987), essas duas linhas de estudo dos textos neotestamentários inverteram a pergunta pelo Sitz im Leben (situ- ação vivencial), para a questão religiosa da fé e do indivíduo. Isso significa que esses teólogos interpretaram o Novo Testamento, bem como os Sinóticos, não a partir de seus contextos históricos- -sociais específicos, mas a partir do que tais textos significavam para a cristandade contemporânea. Assim, a leitura voltava-se mais para o significado da mensa- gem, em perspectiva existencial, do que para a reconstrução das origens cristãs. Em contrapartida, tanto a história da forma quanto a história da religião perguntavam pelo fundo social da redação dos Sinóticos. Para Theissen (1987), os textos cristãos primitivos, funda- mentalmente "(...) são textos de uma comunidade, que têm uma dimensão social". Consequentemente, a investigação sociológica da Bíblia deve ser desenvolvida a partir de dois princípios: • da história contemporânea; • do método histórico-formal. O primeiro princípio, da história contemporânea, investiga a estrutura social palestina no mundo antigo e, o segundo, torna acessível o perfil dos grupos sociais que estão por trás dos Sinóti- cos (THEISSEN, 1987). Com base nessas chaves, portanto, podemos entender que, antes de ser redação, o texto denota o relato de certa época. Logo, traz na sua composição elementos que denunciam aspectos da cultura, da religiosidade e da política que constituíram o ethos da comunidade que o concebeu e, concomitantemente, o leu. © Evangelhos Sinóticos42 Isso é o que chamamos relação dialógica entre texto e grupo social que o elabora: à medida que o texto é elaborado e dado à audiência, é dado também à reflexão e à mudança.Assim, o texto não permanece o mesmo porque propõe algo para a comunidade que o experimenta em seu cotidiano, apropriando-se do texto e ressignificando-o fluidamente. Portanto, a dinâmica entre gênero, texto e interlocutor, é circular e ao mesmo tempo material, visto que os textos abordam temas do cotidiano das comunidades, sa- bedoria, profecia e crítica social. Além disso, é necessário considerar que o contexto em que se dão os acontecimentos das origens cristãs é marcado pela con- fluência de dois mundos. Confluência ocasionada pelo encontro de gregos e judeus, pela mútua influência que uma cultura exer- ceu sobre a outra, o que gerou novos e diferentes horizontes de compreensão sobre estrutura social, política, cultura e religião para ambos os povos. Algo que exerceu forte apelo na formação do cristianismo do século 1º. Em seus estudos sobre o Novo Testamento, o autor Joaquim Jeremias (1983) perguntou exatamente pela relação entre os âm- bitos que constituem a vivência cotidiana dos judeus e as suas ideias religiosas. Para ele, os textos neotestamentários deixariam transparecer aspectos sociopolíticos e religiosidade popular carac- terísticas do tempo de Jesus. Para justificar que a literatura bíblica, em especial, os Sinóti- cos "espelham" contextos históricos e sociais das primeiras comu- nidades cristãs, Theissen (1987, p. 15) propôs que "assim como a história contemporânea evoluiu para história social, assim também a história da forma se desenvolveu para sociologia da literatura", diferenciando-se em três aspectos da história da forma clássica. Assim, é preciso saber que a sociologia da literatura objetiva: • Verificar a situação e o lugar vivencial desses grupos, si- tuando-os junto com sua literatura no âmbito de toda a sociedade. Claretiano - Centro Universitário 43© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos • Explorar os interesses sociológicos das comunidades e es- clarecer suas condições não-religiosas. • Investigar as relações concretas e modos de relaciona- mentos que subjazem o texto. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A transmissão das palavras de Jesus no cristianismo primitivo é um problema so- ciológico, sobretudo, pelo fato de Jesus não haver fixado suas palavras literaria- mente. Uma tradição literária pode preservar-se durante um determinado perío- do, mesmo que não tenha significado algum para o comportamento das pessoas ou quando suas intenções se contrapõem a esse comportamento (THEISSEN, 1987). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– De acordo com essa perspectiva metodológica, o estudo dos Sinóticos busca clarificar as "relações concretas" entre os grupos sociais – as audiências – dos evangelhos e os âmbitos sociopolíti- cos, culturais e religiosos indicados nos interstícios desses textos. Portanto, esse "caminho" de estudo dos Sinóticos prioriza a iden- tificação do mundo social subjacente à formação de cada Evan- gelho, como instrumento que nos possibilita verificar a própria dinâmica interna dos grupos sociais projetados pelos evangelhos, entendidos como fontes do período. Podemos entender que essa será a perspectiva que adotare- mos para estudar os Evangelhos Sinóticos, conforme verificaremos adiante. 7. SABEDORIA E CRÍTICA SOCIAL NAS ORIGENS CRIS- TÃS Conhecer o mundo social dos cristãos das origens não é uma tarefa fácil. Principalmente, quando esse "mundo social" está nos olhos de quem vê. É comum que os leitores modernos, sejam lei- gos, líderes eclesiásticos, teólogos, historiadores ou estudantes, ao interpretarem a literatura bíblica, projetem suas próprias ex- pectativas sobre o que teria sido o mundo dos tempos de Jesus. Por causa dessas projeções, ora os evangelhos parecem libertários © Evangelhos Sinóticos44 – em função de leituras mais politizadas –, ora se tornam mais es- pirituais ou até mesmo, mais esotéricos. As diferentes formas de compreender os evangelhos ocorrem em função dos "óculos" de cada intérprete. Nos últimos anos, a academia de estudos bíblicos tem apre- sentado diferentes versões sobre vida, ministério e movimento de Jesus. Ora ele aparece como sábio, conforme um modelo filosófi- co grego, ora se torna uma figura profética/messiânica, de acordo com a tradição judaica. Dessa forma, decorrem desses modelos diversas reconstruções das comunidades cristãs das origens: po- litizadas, dadas à sabedoria, escatológicas etc. Todas as leituras, no entanto, amparam-se na exegese dos mesmos textos neotesta- mentários e, em especial, nos Evangelhos Sinóticos. A esse respeito, o estudioso F. Gerald Downing propôs: We do not know enough about Jesus to allow us to construct a cle- ar account of the primitive church because we do not know enough about the primitive church to allow us to construct a clear account of Jesus (cf. DOWNING, F. G. The Church and Jesus. In: SBT 2.10 (1968): p. 51). (Não conhecemos o suficiente a respeito de Jesus que nos permita construir uma hipótese clara sobre a igreja primitiva porque não conhecemos o suficiente sobre a igreja primitiva que nos permita construir uma hipótese clara sobre Jesus). Com esse trocadilho em mente, vamos conhecer algumas hipóteses a respeito da história de Jesus a partir dos evangelhos sinóticos, aqui entendidos como nossas fontes primárias. Influências gregas na formação e no estilo dos evangelhos Considerando os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas em conjunto, alguns pesquisadores perceberam que esses textos pos- suíam coleções de ditos de sabedoria muito usados no período do século 2º antes da Era Cristã. No contexto grego, essas coleções tinham como objetivo as- segurar a memória e preservar os ensinos de certos filósofos. Os Claretiano - Centro Universitário 45© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos compêndios de ditos de sabedoria eram conhecidos como Vita ou Bios, pois pretendiam transmitir os ensinos das escolas – das li- nhas filosóficas – e, ao mesmo tempo, serviam como propaganda do programa filosófico de certos mestres. Como introdução dessas coleções, alguns textos possuíam as biografias dos mestres que destacavam feitos, virtudes, atitude em relação à matéria, política, projetos e glórias desses filósofos. Tais virtudes colecionadas indicavam a capacidade de cada mestre responder às questões de seu tempo. Nos evangelhos, assim como na Fonte Q (ou Fonte dos Ditos de Jesus, que explicaremos no decorrer da unidade), Jesus é apre- sentado de modo semelhante, isto é, como espécie de sábio que com seu discurso – um programa de vida ético e moral – arregimen- tava seguidores por onde passava. A proclamação (querigma) dis- corria sobre o certo e o errado, sobre o bem e o mal e, assim como outros filósofos, tecia considerações críticas sobre o modo de vida daqueles que se submetiam ao jugo imperial (DOWNING, 1994). As diversas escolas tratavam de ganhar novos seguidores por meio de discursos (...). Este dogma era o único caminho para a felicidade. O kerigma cristão também falava da ignorância dos homens, pro- metia dar-lhes um conhecimento melhor e, como todas as filoso- fias, fazia referência a um mestre que possuía e revelava a verdade (JAEGER, 1965. p. 21). Algumas importantes características aproximam os evange- lhos dessas coleções de ditos: • Apresentação de Jesus como mestre e profeta que ensina com discursos. • Discursos eram compostos por ditos de sabedoria inseri- dos em histórias, isto é, molduras narrativas. • Sabedoria expressa nos ditos era produzida conforme a si- tuação vivencial dos grupos para os quais eram proferidos em decorrência do contexto histórico-social específico. Os ditos de sabedoria estariam presentes não apenas nos evangelhos canônicos, mas também em outros que, posterior- © Evangelhos Sinóticos46 mente, foram considerados apócrifos – como o Evangelho de Tomé –, o que indica que esse estilo literário era utilizado por gregos e por judeus, talvez, por ser típico do período, algo "popularizado" em função de uma culturamediterrânea. Concordando com esse argumento, o pesquisador John Kloppenborg admitiu certa proxi- midade entre a retórica grega e as fontes como Provérbios e Abot (Ditos dos Pais), nesse ponto, foi apoiado, ainda, pelo pesquisador James M. Robinson. Para entender melhor esse assunto, veremos, a seguir, um exemplo: O programa ético de Jesus poderia ser identificado em al- guns estratos neotestamentários como, por exemplo, em Mateus 8,18-22 e Lucas 9,57-62. Quadro 2 Comparativo das perícopes Mateus 8,18-22 Lucas 9,57-62 18 Vendo Jesus que estava cercado de grandes multidões, ordenou que partissem para a outra margem do lago. 19 Então, chegou-se a ele um escriba e disse: "Mestre, eu te seguirei para onde quer vás". 20 Ao que Jesus respondeu: "As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça". 21 Outro dos discípulos lhe disse: "Senhor, permite-me primeiro ir enterrar meu pai". 22 Mas Jesus lhe respondeu: "Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos". 57 Enquanto prosseguiam viagem, alguém lhe disse na estrada: "Eu te seguirei por onde quer que vás". 58 Ao que Jesus respondeu: "As raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça". 59 Disse a outro: "Segue-me". Este respondeu: "Permite-me ir primeiro enterrar o meu pai". 60 Ele replicou: "Deixa que os mortos enterrem seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o reino de Deus. 61 Outro disse-lhe ainda: "Eu te seguirei, Senhor, mas permite-me primeiro despedir-me dos que estão em minha casa". 62 Jesus, porém, lhe respondeu: "Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o reino de Deus". Claretiano - Centro Universitário 47© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos O Quadro 2 apresentado anteriormente indica algumas di- ferenças e similaridades entre os trechos de Mateus e Lucas. Não há diferenças significativas de conteúdo, mas na forma da escrita. Enquanto Mateus acentua que Jesus era seguido por multidões e fala da travessia de um lago, Lucas menciona apenas que Jesus estava em uma viagem, indo por uma estrada. Mateus fala de um escriba que se dirige a Jesus em uma pergunta. Lucas não especifi- ca quem é a pessoa que questiona Jesus. A despeito dessas obser- vações, entretanto, os ditos de sabedoria podem ser identificados em Mateus 8,20,22 e Lucas 9,58, 60,62. As diferenças seguem. Enquanto Mateus cessa a narrativa no verso 22, Lucas dá continuidade à história com a inserção de dois outros versos. Neles, Jesus conversa com outro seguidor des- conhecido, o que não seria muito, caso não houvesse a introdução do tema "reino de Deus", feita nos ditos dos versos 60 e 62 de Lucas. Daí surge o questionamento: Mateus omitiu esses dois ver- sos ou Lucas os acrescentou? Parece-nos provável que Lucas tenha acrescido esses versos, isso porque seria o Evangelho escrito mais tardiamente, portan- to, distante dos eventos relacionados a Jesus. Todavia, a peculia- ridade do acréscimo, que introduziu à perícope o tema "reino de Deus" (matéria típica da apocalíptica judaica e dos tempos de crise ocasionados pelo não retorno imediato de Jesus) levanta dúvida quanto à inserção tardia. Tradicionalmente, a escrita de Lucas tem sido interpretada como "endereçada aos gentios", o que exclui o tratamento do tema "reino de Deus" em perspectiva judaica. Mas, a escrita de Mateus mais elaborada, sucinta e carregada de termos judaicos, sugere que esse Evangelho teria recebido maior tratamento na re- dação. Mateus teria, portanto, mais interesse na audiência judai- ca e, pelo caráter elaborado do texto, supõe-se que o trabalho de compilação dos redatores foi maior nesse Evangelho. © Evangelhos Sinóticos48 Ao ler atentamente as perícopes de Mateus 8,18-22 e Lucas 9,57-62, verificamos nos ditos de Jesus inseridos nas narrativas se- melhanças entre a figura de Jesus dos evangelhos e a figura de um sábio que apresenta seu programa ético aos discípulos, bem ao modo grego: Quadro 3 Ditos de sabedoria DITOS DE SABEDORIA TEMAS "As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça". O profeta/sábio não tem parada, portanto, não tem vínculo com lugar ou quaisquer bens materiais. "Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos". O profeta/sábio não tem vínculos com família ou pátria; antes, é avesso às configurações sociais típicas. "Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o reino de Deus". O profeta/sábio se entrega inteiramente ao seu programa de vida (proclamação/ filosofia), na expectativa de obter algo maior – a felicidade (nos termos filosóficos) ou o reino de Deus (nos termos judaico-cristãos). Nessa perspectiva, para seguir Jesus, tanto quanto para se- guir o programa de um filósofo antigo, era necessário ceder a trí- ade: • não ter apego aos bens materiais; • não ter apego a vínculos sociais (tribos, clãs, famílias); • não ter apego a lugares geográficos. Ser, portanto, desar- raigado e itinerante. Segundo essa abordagem, os itinerantes desligavam-se das instituições – clã, família, comunidade – e assumiam postura autô- noma (Mt 8,14; Lc 12,52-53). Os primeiros cristianismos, de certa forma, ainda vinculados às velhas estruturas por múltiplos laços e obrigações, com os carismáticos itinerantes ganharam novo aspec- to. "O conceito de carismático indica que seu papel não era uma forma de vida institucionalizada, (...) baseava-se num chamado ex- terno incondicional" (THEISSEN, 1997. p. 16). Claretiano - Centro Universitário 49© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos Esse conjunto de princípios assemelhava-se ao programa ético-filosófico propagado pelos cínicos, grupo de filósofos atuan- tes na Decápole por volta do século 1º (SILVA, 1996). Evidências que poderiam confirmar a influência do mundo helênico sobre as comunidades cristãs das origens. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Jesus nasceu, cresceu e atuou na Galiléia. Local formado por aldeias e cultura camponesa. Contudo, ao seu redor estavam cidades helenizadas como Tiro, Sí- dom e Ptolemaida. Assim, o intercâmbio cultural deveria ser acentuado, propor- cionando trocas simbólicas nos sistemas interpretativos de ambas as tradições culturais. Para se aprofundar no assunto leia: MEEKS, H. C. Os primeiros cris- tãos urbanos. O mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. (Coleção Bíblia e Sociologia); e do mesmo autor, o capítulo: Early Christia- nity in the Galilee: Reassessing the evidence from the Gospels. In: Lee I. Levine (Ed.). The Galilee in the Late Antiquity. Cambridge, Massachusetts and London: Harvard University Press, 1992. p. 3-22. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A tríade mencionada anteriormente é confirmada por Theis- sen. Ele entendeu que os primeiros cristãos eram itinerantes e se caracterizavam por três tipos de comportamentos: 1) "As palavras de Jesus apresentam uma ética de pessoa sem pátria, sem querência. O chamado do seguimento significa: renúncia à stabilitas loci (posição estável)" (Mt 8,20 = Lc 9,58; Didaqué 11.8). 2) "Os ditos representavam uma ética a-familiar. A renúncia à sta- bilitas loci inclui o rompimento dos laços familiares" (Lc 14,26; Mt 10,29; Mt 8,22 = Lc 9,60). 3) "(...) a terceira característica da tradição das palavras é a crítica à riqueza e à propriedade" (Mc 10,17ss; Mt 1,19-21; Mt 10,25.) (THEISSEN, 1987, p. 37-40). Essas características que traçavam o perfil do cristão-itine- rante tornariam-no mal visto pelos judeus tradicionais (Mc 6,4), que preservavam a moral familiar. O comportamento desses itine- rantes era difícil de se justificar segundo os costumes judaicos. O comportamento recomendado ao itinerante era que: • Não permanecesse mais que um dia no mesmo lugar (Di- daqué 11,6). © Evangelhos Sinóticos50 • Fizesse voto de pobreza (não deveria levar consigo dinhei- ro, nenhuma sacola, nem sandália,nem bordão, apenas uma túnica (cf. Mt 10,10; Didaqué 11,6). Didaqué: Capítulo 11 - Os Apóstolos e Profetas ––––––––––– 6 - Na sua partida, o apóstolo não leve nada, a não ser o pão necessário até a seguinte estação; se, porém, pedir dinheiro é falso profeta. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Além disso, o desmantelamento da família como condição necessária para o fim dos tempos (Lc 12,52) e o novo paradigma de família destacavam a missão de anunciar o Reino. Os familia- res mais íntimos do cristão-itinerante eram aqueles que com ele anunciavam as palavras de Jesus (Mc 3,35). Aquele que renunciasse à pátria, à família e à riqueza rejeita- va as preocupações cotidianas. Destarte, libertar-se-ia do jugo da materialidade (cf. Mt 6,25-34). O radicalismo ético da tradição das palavras de Jesus é um radica- lismo itinerante. Ele somente pode ser praticado e transmitido sob condições extremas de vida: somente quem está desligado das re- lações do mundo, somente quem abandonou casa, mulher e filhos, quem deixou aos mortos enterrar os seus mortos e toma os pássa- ros e os lírios como exemplo pode renunciar à moradia, à família, à propriedade, ao direito e à defesa. Somente em tais circunstâncias podem ser transmitidas semelhantes orientações sem que caiam do descrédito (THEISSEN, 1987, p. 41). Assim, as palavras de Jesus expressas na forma de ditos de sabedoria conclamavam o interlocutor a desenvolver certa postu- ra ética que assumia posição de inadequação à religião judaica e ao Estado romano. O cristão-itinerante era aquele que rompia com os vínculos ligados à tradição judaica e assumia o perfil marginali- zado, de auto-estigmatizado. Através da auto-estigmatização, a pessoa assume conscientemente as imputações negativas para com isso redefini-las e transformar a culpa em graça. Não se trata de um masoquismo inútil, mas de um tipo de estratégia que testa não apenas a força e poder, mas tam- bém a impotência dos seus destinatários Claretiano - Centro Universitário 51© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos (...) A auto-estigmatização empurra o adversário para o déficit de legitimidade, coloca em dúvida seus valores e procura revertê-los. Com isso, elimina a estigmatização. (...) Ao confirmar o estigma como valor próprio, a pessoa estigmati- zada se torna modelo para muitos e atrai a simpatia e a compaixão. Os tipos principais de auto-estigmatização são exibicionismo, pro- vocação, ascese e êxtase (VOIGT, 1999. p. 49). Mas, como propomos inicialmente, se entendermos que a literatura bíblica espelha e projeta o cotidiano das comunidades no desenvolvimento de sua teologia, modo dialógico, os ensina- mentos do Nazareno, bem como de seus discípulos, norteavam a experiência religiosa de tais grupos sem, contudo, desautorizar a Lei, a tradição judaica e as memórias dos patriarcas. Os próprios ensinamentos de Jesus originaram-se no judaísmo, seja para criti- cá-lo, complementá-lo ou reforçá-lo. A religião judaica constituía a base de Israel. Tratava-se do que conferia sentido ao povo. Portan- to, foi o que também contribuiu para a formação do cristianismo. Decorre disso, assim, que a identidade social das primeiras comunidades cristãs estava marcada por elementos da tradição religiosa judaica. Os evangelhos sinóticos, como espelho da teologia e do mundo social desses primeiros cristãos, trazem características da situação vivencial desses grupos. Assim, sabedoria e crítica social, elementos característicos do judaísmo antigo, constituíram as lin- guagens fundantes da experiência religiosa e da identidade dos primeiros cristãos. Esses elementos em conjunto forjaram a base do cristianismo como horizontes culturais sobre os quais repousou as expectativas dos primeiros cristãos. Mas, como se possibilitou essa confluência? Quais os pro- cessos que contribuíram para o encontro de tradições distintas no bojo do cristianismo? Tentaremos responder essas questões no próximo tópico. © Evangelhos Sinóticos52 8. CONFLUÊNCIA DE HORIZONTES CULTURAIS Duas foram as vias pelas quais o cristianismo se assentou: processos políticos e culturais. De um lado, a política imperial ex- pansionista forneceu a linguagem universalizante, "urbana" e éti- ca. De outro, o judaísmo contribuiu com arcabouço simbólico, com memória e noções de religião. Na primeira instância, o intercâmbio sócio-político desenvol- vido em função das conquistas e intervenções entre as culturas do Mediterrâneo e, posteriormente, com a helenização do Oriente, proporcionou o que a Antropologia cultural denomina apropriação e re-significação de linguagens (GEERTZ, 1997). As culturas dos povos do Mediterrâneo Antigo foram cons- tituídas de elementos comuns. Se analisadas comparativamente – por exemplo, por meio da história comparada das religiões – pode- mos identificar estruturas simbólicas convergentes entre os povos do mundo antigo. É ilustrativo, desse ponto, o compartilhamento de mitos e mitemas, de simbolismos religiosos, cúlticos e rituais, de concepções de sistema de governo, por exemplo. Assim, admitir apenas a influência grega sobre a formação do cristianismo é insuficiente para compreender a história de suas ideias. Além do contexto de dominação romana, da cultura helê- nica e dos contatos com o pensamento ocidental, outro conjunto de saberes e de experiências é fundante para as origens cristãs, a saber: a matriz judaica. Tradições culturais de judeus e de gregos nos Sinóticos A experiência religiosa das primeiras comunidades não se deu de modo unívoco no âmbito em que circularam os ditos de Je- sus, memórias sobre seus ensinamentos e possíveis materiais que serviram como subsídios para os Evangelhos. Alguns grupos cristãos se destacaram pelo caráter apocalíp- tico, outros pela crítica social-profética e outros pela sabedoria. A Claretiano - Centro Universitário 53© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos maneira como a identidade religiosa de cada grupo se estabeleceu, entretanto, não se desenvolveu a partir de regra fixa. Na mesma comunidade o elemento apocalíptico, a crítica social-profética e a sabedoria poderiam estar presentes, como verificamos em Lucas 9,57-62, por exemplo. Portanto, a discussão quanto às influências na redação dos Sinóticos não pode ficar circunscrita à sabedoria dos filósofos cíni- cos. A sabedoria contida nessas fontes também decorre da tradi- ção sapiencial judaica, que foi transmitida oralmente e teve seus primeiros registros em Provérbios e Jó. No período pós-exílico, foi representada pelos livros Sabedoria e Sirácida, chegou à sapiência de Qunram (também conhecidos como Rolos do Mar Morto) em 4Q Instruction e 4Q Mysteries e, no século 1º pode ser identificada no Testamento dos 12 Patriarcas, que deixou instruções sapien- ciais para os filhos de Israel. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O debate quanto à autoria e local de redação dos Testamentos é muito amplo, desde hipóteses que concedem a autoria para judeus-cristãos do século 1º da EC até proposições de que teriam sido escritos já no século 2º da EC, a partir dos escritos neotestamentários. Nesses casos, os pesquisadores tendem a situ- ar os Testamentos na Síria. Mas, há pesquisadores que consideram a redação judia, talvez qumrânica, do século 1º AEC (70-40 AEC, época dos Salmos de Salomão), na Palestina. Em todo caso, quanto ao lugar de composição há maior consenso de que teria sido produzido no Egito helenístico, em função dos poucos conhecimentos sobre a Palestina que o autor demonstra. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Portanto, no contexto histórico e social que subjaz aos Si- nóticos, sabedoria e profecia constituíram elementos fundantes e em diálogo. Isso indica que a sabedoria presente nos Evangelhos não pode ser atribuída tão-somente aos gregos. As fronteiras en- tre cultura helena e cultura judaica, diante do avanço do Estado ro- mano, do estabelecimento da polis e da propagação do helenismo, tornavam-secada vez mais tênues. A troca de informação cultural era inevitável e aconteceu, mas não se pode afirmar que o cristia- nismo das origens tenha rompido com o judaísmo. © Evangelhos Sinóticos54 Entretanto, o intercâmbio não foi aceito "ecumenicamente". Basta lembrar que a "contaminação" da religião e da cultura ju- daica era constantemente evitada, por considerar abominável o contato com a impureza pagã, nem sempre cristãos-judeus con- cordaram com a conversão dos gentios. As próprias lideranças de Jerusalém que mantinham relações com as autoridades romanas eram constantemente criticadas pelos contatos. Roma permitia que os judeus prestassem culto a Iahweh, desde que não esque- cessem as obrigações tributárias, os impostos diziam respeito às obrigações para com o Estado (Mt 22,21; Mc 12,14-17; Lc 20,22- 25), mas isso não evitou a crítica social às lideranças religiosas sub- missas ao Império. Fariseus, escribas e saduceus, apesar de se declararem au- toridades judaicas, constituíam parte da elite local favorecida pela relação de patrocínio que possuíam junto à ordem imperial. Nesse sentido, o "outro", opositor e adversário na redação mateana, era constituído pelo Império Romano e sua extensão servil intitulada hipócrita formada pelos partidos fariseus, escribas e saduceus (Mt 6,2,5,16; 22,18; 23,13-15,23,25,27,29; 24,51) (RODRIGUES, 2007). Mesmo que indesejados, os contatos entre judeus e roma- nos ocorreram muitas vezes; prova disso é repulsa pela contami- nação evidente no material mateano. Embora esse seja um aspec- to da redação mateana, sua aparição indica o intercâmbio e, a esse respeito, nos ocuparemos a seguir. 9. IDENTIDADE SOCIAL DAS PRIMEIRAS COMUNIDA- DES CRISTÃS A antropologia cultural propõe "que não existem de fato homens não-modificados pelos costumes de lugares particulares, nunca existiram [...]" (GEERTZ, 1989, p. 47). Isso podemos perce- ber no exame dos Sinóticos. Notamos que as convergências éticas dos cristãos primitivos e dos filósofos cínicos podem ser comparadas em três aspectos: Claretiano - Centro Universitário 55© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos • a existência apátrida; • o rompimento com a tradição da família; • a renúncia à propriedade. Assim, como os cristãos que circulavam pelos povoados e aldeias propagando os ensinamentos de Jesus, os cínicos compor- tavam-se à moda itinerante. A analogia se estabelece em função de fatores estruturais, mas não exatamente em função de "corres- pondências históricas" e dependência. O movimento dos primeiros cristãos, portanto, não pode ser enquadrado em uma perspectiva unívoca, lembrando que a ima- gem da Igreja, como foi consolidada na visão constantiniana, deve- -se a Eusébio de Cesareia (263-339 EC). Um historiador que serviu aos interesses de Constantino para justificar a construção de uma religião e teologia que servissem aos propósitos do Império. Existem dois erros sobre a origem do cristianismo no perío- do que vai de 30-70 da Era Cristã: o primeiro de origem cronológi- ca, baseado na interpretação dos quatro evangelhos, e o segundo de origem geográfica, com base nos Atos dos Apóstolos. É errôneo interpretar a fundação da Igreja no mesmo período em que se deu a atuação do Jesus Histórico ou logo em seguida a sua morte-res- surreição. Antes da Igreja, houve o movimento de Jesus, "onde co- existiu pluralidade de tendências e seitas, unidas certamente por um mesmo espírito e a tradição primitiva do batismo e eucaristia" (RICHARD, 1995, p. 8-9). Por isso, a interpretação geográfica que se baseia no ma- terial lucano como principal narrativa da origem do cristianismo, esconde aspectos relevantes para reconstrução da história da cris- tandade. Isso porque apresenta as origens no Ocidente, na direção que vai de Jerusalém a Roma, passando por Antioquia, Galácia, Éfeso, Corinto e outras. © Evangelhos Sinóticos56 Informação Complementar ––––––––––––––––––––––––––––– O Mediterrâneo, que foi espaço de expansão do cristianismo, era um espaço fechado: ao oeste, pelo imenso e inexplorado Oceano Atlântico; ao norte, pelas selvas impenetráveis do norte da Europa e ao sul, pelo grande deserto do Saara. O Império Romano ocupava somente o centro deste espaço "(...) A Palestina e a Síria estavam fundamentalmente abertas para o oriente, ligadas a essas regiões pelo caminho da seda. Este é o marco fundamental das origens do cristianismo" (RICHARD, 1995, p. 9). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Se o argumento geográfico não é suficiente para desqualifi- car a chegada do Império Romano e toda a influência que exerceu sobre a cultura judaica, ele serve, no mínimo, para relativizar os ar- gumentos que enfatizam a influência ocidental nas origens cristãs e nos Evangelhos Sinóticos. Os evangelhos sinóticos são tradições que fundem gêneros literários, assim como a experiência dos primeiros cristãos fundiu elementos da cultura helênica e judaica. Essas fontes expressam o "caldeirão cultural" formado no século 1º, composto pelas ques- tões e expectativas cotidianas dos vários cristãos espalhados pela Galileia e arredores. No debate sobre campo e cidade, refletem-se, também, as trocas culturais, visto que as origens cristãs se projetam para o mundo, emergindo de pequenas aldeias – com artesãos, pescado- res e figuras simples –, em direção às cidades helenizadas. Na me- dida em que o processo de helenização do Oriente se ampliava, o mundo social dos primeiros cristãos fundia elementos característi- cos da realidade camponesa, mas também de elementos urbanos (NOGUEIRA, 1999, p. 29-40). A identidade social das primeiras comunidades deve ser entendida à luz de um conjunto de relações mais amplas do que imaginamos comumente. Se por um lado Roma representava um império dominador, por outro, os povos e as culturas dominadas não poderiam ser classificadas apenas como passivas. Nesse espectro relacional, é que a noção de identidade se constrói a partir de processos de relação que envolvem negação e Claretiano - Centro Universitário 57© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos assimilação do "outro". O que implica dizer que nem os gregos-ro- manos permaneceram os mesmos, nem os judeus-cristãos man- tiveram uma cultura pura, como se verifica nos Evangelhos e na literatura neotestametária de modo geral. Tendo em vista esse quadro histórico e político da situação em que viveram os cristãos das origens, como eles teriam se orga- nizado após o movimento de Jesus? 10. PRIMEIRAS COMUNIDADES CRISTÃS: ITINERAN- TES OU LOCAIS? Na hipótese de Theissen, o movimento de Jesus que origi- nou os primeiros cristianismos iniciou com a itinerância de cará- ter missionário. Para esse autor, os itinerantes eram autônomos e baseavam-se num chamado "externo incondicional". Os carismáticos itinerantes não eram um fenômeno marginal no movimento de Jesus. Foram eles que marcaram as tradições mais antigas e constituem o fundo social para a maior parte da tradição sinótica, especialmente a tradição dos ditos de Jesus (logia) (THEIS- SEN, 1997, p. 18). Seguindo nessa perspectiva, as comunidades locais per- maneciam dentro do judaísmo, sem pretensão de formar igreja. Entende-se que havia pequenos núcleos de simpatizantes que recebiam os "carismáticos itinerantes". Seriam famílias que aco- lhiam em suas casas os cristãos de passagem. Na região palestina, somente em Jerusalém (At 1ss) e Judeia (Gl 1), existiram comuni- dades locais. Outras pertenciam a regiões helenizadas como Cesa- reia, Ptolemaida, Tiro, Sidom, Antioquia e Damasco (cf. At 10,1ss; 21,3-7; 11.20; 9.10). Theissen usou o termo "carismático" segundo a definição de M. Weber, que afirma: Denominamos carisma uma qualidade pessoal considerada extra- cotidiana (na origem, magicamente condicionada, no caso tanto dos profetas quanto dos sábios curandeiros ou jurídicos, chefes de caçadores e heróis de guerra) e em virtude da qual se atribuem a © Evangelhos Sinóticos58 uma pessoa poderes ou qualidadessobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extracotidianos específicos ou então se a toma como enviada por Deus, como exemplar e, portanto, como líder (WEBER, 2004. p. 141). Os adeptos são considerados "dominados" por Weber e os carismáticos, portanto, seriam os "dominadores" cuja autoridade é reconhecida pelos "adeptos". Esse reconhecimento é "consoli- dado em virtude de provas – originariamente, em virtude de mila- gres – e oriundo da entrega à revelação, da veneração de heróis ou da confiança no líder" (WEBER, 2004. p. 158-159). Nessas comunidades, havia certa regulamentação de condu- ta – nas comunidades da Ásia, essa regulamentação era fornecida pelas cartas de Paulo –, que concedia parâmetros para o compor- tamento e o convívio social dos primeiros cristãos. A pluralidade de interpretações que caracterizava os cristia- nismos pode-se verificar na maneira como os primeiros cristãos atendiam aos ensinamentos de Jesus. Enquanto itinerantes eram mais contundentes nas suas críticas ao Templo e às lideranças ju- daicas, os cristãos de comunidades locais conformavam-se à tole- rância e aos preceitos da Lei judaica, tendo como base esperança do retorno de Jesus. Dessa forma, "havia (...) um ethos diferencia- do para carismáticos itinerantes e para simpatizantes residentes" (THEISSEN, 1997, p. 22-24). As lideranças e autoridades dessas comunidades funciona- vam conforme o número de integrantes. Os itinerantes constitu- íam as autoridades em pequenos núcleos. Em geral, os assuntos eram decididos de modo comum e em grupos maiores se esta- beleciam bispos e diáconos. Para se regulamentar a pertença em comunidade local, não havia critério rígido determinado. Prova- velmente, o batismo tornou-se um ritual iniciatório (cf. Mt 28,19; Didaqué 7), mas com o tempo adquiriu, também, outras funções. Capítulo 7 - Instrução sobre o batismo. 1. No que diz respeito ao batismo, batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo em água corrente (cf. Mt 28,19). Claretiano - Centro Universitário 59© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos 2. Se não tens água corrente, batiza em outra água; se não pude- res em água fria, faze-o em água quente. 3. Na falta de uma e outra, derrama três vezes água sobre a cabe- ça em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. 4. Mas, antes do batismo, o que batiza e o que é batizado, e se ou- tros puderem, observem um jejum; ao que é batizado, deverás impor um jejum de um ou dois dias (THEISSEN, 1997, p. 24-25). Em função desse quadro, Theissen (1997, p. 26) sugeriu que: A investigação de comunidades locais demonstrou que elas preci- sam ser entendidas a partir de seu relacionamento complementar com os carismáticos itinerantes. O radicalismo dos carismáticos itinerantes tornava-se possível apenas com a base material nas co- munidades locais. Eram elas que, até certo ponto, os aliviavam de preocupações cotidianas (...). Uma ética escalonada unia e diferenciava as duas formas so- ciais do movimento de Jesus. Em oposição a essa hipótese, R. A. Horsley (2000) afirmou que os primeiros cristãos saíam do campo para a cidade, o que jus- tificaria o desmantelamento das famílias e a elaboração de novos modelos de agrupamentos cujo ideal seria comunitário, de par- tilha e de igualdade. Algo que ajudaria esses cristãos a suportar as angústias e as pressões cotidianas. Para Horsley (2000), as co- munidades locais tiveram prioridade na formação dos primeiros cristianismos. Horsley (2000) argumentou que a partir da revisão de evi- dências arqueológicas e literárias houve pouco mais que uma fina camada de cultura cosmopolita nas cidades da Baixa Galileia, no início do século 1º EC. Quanto à proposição de um "Jesus quase- -cínico", Horsley afirmou, ainda, que seria problemático descon- siderar outras evidências na pesquisa sobre a recepção dos cam- poneses galileus às influências exercidas sobre eles por Séforis e Tiberíades. Segundo esse autor, os relatos de Josefo sobre os even- tos em 4 AEC indicam que houve forte reação aos governantes e suas políticas urbanas. © Evangelhos Sinóticos60 É difícil (...) compreender como a influência cínica especificamente se adaptaria às circunstâncias peculiares dos galileus coagidos a se ajustarem, econômica e culturalmente, à presença urbana recen- temente intensificada em seu meio. Temos a sensação geral que os filósofos cínicos eram de fato "não-convencionais" ou "contra- culturais" [...] Isso se adaptaria melhor à situação de uma cultura convencio- nal antiga. Tanto a cultura judaica como a cultura helenístico-roma- na, porém, teriam sido relativamente novas na Galiléia e presentes principalmente nas cidades-capitais (HORSLEY, 2000, p. 159). Segundo esse argumento, os primeiros cristãos não teriam assimilado tão arrebatadoramente influências cínicas ou culturais imperiais do mundo cosmopolita grego. Isso porque tanto cultu- ra judaica como grega estavam presentes na Galileia não havendo uma cultura convencional. Jesus e seu movimento pareciam ter sido 'cínicos' de um modo mais profético de 'consciência de classe', com relação a reis em seus palácios e banquetes refinados ou extravagantes entre a eli- te (cf. Lc 7,24-25; 14,16-24; Mc 6,17-29). Também não há motivo para acreditar que Jesus e outros artesãos e camponeses de baixo nível estivessem assimilando influências culturais imperiais e/ou urbano-cosmopolitas mais do que o estiveram os rabis mais tarde, que estavam mais expostos a essas influências em Diocesaréia e em Tiberíades (HORSLEY, 2000, p. 159). Para conciliar as duas abordagens, a de Theissen (1997) e a de Horsley (2000), propomos algumas observações atentas. Em primeiro lugar, deve-se esclarecer que na hipótese de Theissen (1997, p. 16) a "estrutura interna do movimento de Je- sus era determinada pela interação de três papéis: os carismáticos itinerantes, seus simpatizantes nas comunidades locais e o Reve- lador"; logo, podemos entender que a itinerância não se sobrepu- nha à vontade da comunidade local. Haveria, antes, interdepen- dência entre os movimentos. No primeiro momento, a itinerância teria ocorrido como for- ma de anunciar as palavras de Jesus. Por esse meio, foram forma- das as primeiras comunidades cristãs que se fixaram em aldeias e povoados. Claretiano - Centro Universitário 61© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos Os cristãos itinerantes formaram um grupo que seguia os ensinamentos de Jesus com radicalismo ético e social. Eles assu- miram o estigma de marginalizados e excluídos, por isso, identifi- caram-se com a figura do Filho do Homem. Seguiram a missão de anunciar o reino e perpetuar a tradição das palavras do Nazareno. No segundo momento, a existência desse grupo favorecia a exis- tência das comunidades locais. Assim, vale lembrar que a tradição das palavras de Jesus foi transmitida inicialmente de modo oral por apóstolos, missioná- rios, catequistas, profetas e discípulos de Jesus. A oralidade era característica do povo judeu como recurso de ensino e meio de perpetuar a tradição. Os textos Dt 6,6; 11,18; 12,28; 17,19; 29,9 e 31,12 expressam a importância que os judeus atribuíam à tradição oral. Nos textos que formam a tradição sinótica e em João, as "palavras" (logias) podem ser encontradas em destaque. Sejam as palavras proclamadas pelos profetas (confirmadas no Novo Testa- mento), sejam as palavras proferidas por Jesus, ou as palavras en- sinadas pela Tradição. Na recorrência das "palavras", há forte indicativo de que o ethos judaico considerava a tradição oral de extrema relevância. Essa tradição foi herdada pelas primeiras comunidades cristãs, cuja identidade religiosa tem como aspecto constituinte a tradição oral. Destacamos os seguintes textos que denunciam a importância dada à tradição oral: Mt 7,24; 10,14; 24,35; Lc 3,4; 6,47. O movimento que teve por mola propulsora a itinerância de cristãos perpetuou a tradição oral, implementando o reino de Deus por meio das palavras de Jesus. A propaganda dos ensinamentos© Evangelhos Sinóticos62 de Jesus, desenvolvida por meio desses itinerantes, engrossou as fileiras de seguidores do Nazareno. Alguns, identificados com a condição dele, romperam seus vínculos sociais e religiosos, a fim de exercerem o papel de discípulos-missionários de Jesus. Outros permaneceram nas comunidades e adaptaram sua maneira de vi- ver, conforme as palavras de Jesus. Assim, a hipótese de um mo- vimento de cristãos que circulava entre povoados e aldeias não desqualifica a hipótese de um cristianismo local. Texto Complementar: Evangelho ou Biografia? ––––––––––– Para que foram escritos os evangelhos? Vimos acima que não foi apenas para repetir aquilo que Jesus fez e falou, mas sim para estimular as comunidades com seu exemplo. A necessidade de fortalecer as comunidades levou a dar aos evangelhos esse formato e o jeito que conhecemos. É hora de aprofundar essas afirmações. Se isso é verdade, podemos também dizer que os evangelhos não têm como finalidade dar informações sobre Jesus, mas levar as pessoas a se comprome- terem com ele. Isso fica evidente na conclusão do evangelho segundo João, em 20,30-31. Vamos comentar este texto, que nos esclarece muita coisa a respeito dos evangelhos todos. Primeiramente ali se diz que na escrita do evangelho não se teve a intenção de registrar tudo o que Jesus fez, nem mesmo todos os seus "sinais". Se a finalida- de do evangelho fosse contar a vida de Jesus tim-tim por tim-tim, não poderia ter ocorrido esse processo de escolha daquilo que deveria ser escrito e do que podia ser deixado e que talvez pudesse ser retomado em outro momento. Mas o que definiu esta escolha? Quais os critérios usados? Aí vem o outro ponto importante: "Estes sinais foram escritos para que vocês acreditem" (Jo 20,31a). Quando os evangelhos foram escritos pensou-se primeiramente no "vocês", na comunidade! Foram os problemas e desafios do cotidiano da comunidade que conduziram o processo de escrita do evangelho, e inclusive da escolha do que teria de fazer parte da narração. Para atender às necessidades da comunidade foram inseridos alguns textos e deixados de fora tantos outros. No caso da comunidade de João, por exemplo, o ambiente era de perseguição, ameaças inclusive de morte. Resultado: vamos encontrar em Jo 9 um longo re- lato sobre alguém que enfrentou as autoridades com coragem, mesmo tendo sido expulso da sinagoga: o cego de nascença. Uma postura bem diferente da de seus pais (9,21-22)! E ainda: o evangelho segundo João é tão diferente dos demais porque sua comunidade vive uma situação específica, que o evangelho quer encarar de frente! Assim acontece com os demais evangelhos. Como já foi falado, a finalidade da escrita do evangelho é convencer as pessoas de realmente aderir a Jesus e comprometer-se com seu projeto. Veja novamente Lc 1,1-4: o v.4 mostra claramente que o objetivo do evangelho é confirmar na fé. Daí que o crer esteja diretamente ligado à certeza e à luta pela vida: "para que vocês acreditem que Jesus é o messias, o filho de Deus, e para que, acreditando, vocês tenham a vida em seu nome" (Jo 20,31). O evangelho deve servir para a Claretiano - Centro Universitário 63© U1- Introdução ao Estudo dos Sinóticos comunidade de fé descobrir onde está a verdadeira vida, que apostas e opções deve fazer, que valores e propostas deve assumir. Como dizia um padre, assas- sinado por seu compromisso com a gente sem-terra desse país: "Prefiro morrer defendendo a vida do que viver defendendo a morte". Fonte: Extraído de: RODRIGUES, M. P. (Org.); RODRIGUES, E. (et.al.) Palavra de Deus, palavra da gente. As formas literárias da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2004. p.83-84. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 11. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Ao término desta unidade, sugerimos que você procure co- mentar, discutir e sintetizar os conteúdos aqui apresentados. Para tanto, destaque os principais pontos do debate acadêmico sobre a história social do cristianismo das origens. Essa revisão é rele- vante à medida que lhe permite perceber quais conteúdos você compreendeu e assimilou e, quais devem ser retomados mais de- tidamente. Lembre-se de que o ensino à distância requer do aluno autonomia e disciplina, mas também atitude cooperativa na cons- trução do aprendizado. As perguntas que faremos a seguir visam auxiliá-lo na elaboração de sua síntese: 1) Qual a relação entre os contextos histórico, político e cultural que os primei- ros cristãos e as primeiras comunidades cristãos vivenciaram e a escrita dos Evangelhos Sinóticos? 2) Elenque motivos e razões que teriam conduzido à redação dos Evangelhos. 3) Qual a relevância de registrar as tradições, as memórias e os ensinamentos de Jesus por meio de uma tradição escrita? 12. CONSIDERAÇÕES Finalizando essa primeira etapa de nosso estudo sobre os Sinóticos, pudemos compreender que o termo "evangelho" bem como a palavra "sinótico" estão vinculadas a sentidos bem práti- cos: boas novas e espelho. Portanto, os Evangelhos versam a res- peito das boas novas anunciadas por Jesus de Nazaré, que têm como conteúdo central a proclamação do reino de Deus. © Evangelhos Sinóticos64 Essa proclamação requeria de seus adeptos fé e arrepen- dimento, que implicavam a conversão e a salvação. Era, portan- to, um evangelho totalmente diferente dos que até então foram anunciados entre gentios e judeus. Por essa razão, aqueles que aceitavam a proclamação de Jesus promulgada por meio de ensi- namentos, de ditos de sabedoria, de profecias e outros gêneros, os primeiros cristãos, formaram o movimento de Jesus, seguido das comunidades. Tais grupos, inseridos no contexto político, social e cultural do Império Romano, vivenciaram sua crença dentro de um mun- do social adverso, repleto de tensões, de controvérsias e disputas entre as diversas tradições culturais, as lideranças, os partidos e as pessoas de modo geral. Assim, os Evangelhos Sinóticos, entendidos como fontes do período (século 1º EC), "espelham" tal realidade por meio de seus conteúdos, de suas formas literárias e de suas tendências. São relatos de época que exprimem literariamente a diversidade do mundo social do qual emergiram as primeiras comunidades, carac- terizadas pelos "encontros" e "desencontros" entre os horizontes culturais greco-romanos e judaicos. Portanto, da confluência da matriz judaica e da matriz helê- nica resultou uma nova identidade: a identidade social e religiosa dos cristãos, que se pautavam nas "palavras" de Jesus. 13. E-REFERÊNCIAS CHRISTIAN CLASSICS ETHEREAL LIBRARY. Catechetical Instruction. 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OBJETIVOS • Formular de maneira breve as principais hipóteses de for- mação dos Sinóticos. • Indicar a interdependência dos Sinóticos em relação ao Evangelho de Marcos. • Demonstrar a relevância dos Sinóticos para a compreen- são das origens cristãs. 2. CONTEÚDOS • Problema sinótico e crítica das fontes. • Hipóteses quanto à formação dos Evangelhos. • Inventário da tradição de Jesus a partir das fontes escri- tas. • Aspectos dos quais decorrem as diferenças entre os Evan- gelhos. © Evangelhos Sinóticos68 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Tenha à disposição para consulta uma Bíblia. Se possível tenha mais de uma versão, a fim de conferir as diferen- ças na tradução. 2) Leia atentamente a unidade e conceda atenção às refe- rências bibliográficas indicadas. Algumas dessas referên- cias podem ser obtidas pela Web. A leitura de tais indica- ções tem por finalidade complementar as informações apresentadas nessa unidade e oferecer oportunidade de ampliar seus conhecimentos por meio de instrumental teórico sofisticado. 3) Faça a leitura desta unidade quantas vezes forem possí- veis. Esse conteúdo é pré-requisito para a compreensão das unidades posteriores e lhe oferecerá condições teó- ricas para assimilar as características dos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. 4) Sugerimos a leitura da referência a seguir, como impor- tante subsídio para a compreensão do problema sinóti- co: KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testa- mento. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 33-93. 5) Para saber mais a respeito do Evangelho de João, consul- te: KONINGS, Johan. Evangelho segundo João. Amor e fi- delidade. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 2000, 425p. (Comentário Bíblico); MATEOS, Juan e BARRETO, Juan. O evangelho de São João. Análise lingüística e co- mentário exegético. São Paulo: Edições Paulinas, 1989. 923p. 6) Para saber mais a respeito da literatura apocalíptica e da relação desse conjunto literário com as origens cristãs, recorra à revista eletrônica Oracula, no site disponível em: <www.oracula.com.br>. Acesso em: 13 nov. 2011. Veja ainda: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza; OT- TERMAN, Monika; ADRIANO FILHO, José. Apocalíptica cristã-primitiva. Uma leitura para dentro da experiência religiosa e para além do cânon. In: Revista de Interpreta- Claretiano - Centro Universitário 69© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs ção Bíblica Latino-Amerciana 42/43(2002): 162-190; RO- DRIGUES, Elisa. O Anúncio do Reino de Deus em Q9.57- 62. Expectativas Apocalípticas e Sabedoria Cotidiana no discurso do Filho do Homem (Dissertação de Mestrado do Curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo: Umesp, 2003). 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Vimos na unidade anterior que o tema da redação dos livros que compõem o cânon da Bíblia judaico-cristã é amplo e marcador de uma longa trajetória de pesquisas e estudos sobre as tradições da Bíblia hebraica e do Novo Testamento. Como já vimos, esses estudos focalizam as recorrências e as interseções entre judaís- mo e cristianismo, a partir do Império Romano, do helenismo e da difusão e trocas simbólicas entre culturas do povo de Israel e das civilizações vizinhas. Contudo, apesar do volume de informa- ções que essa história envolve, esta unidade se centrará no deba- te acerca dos Sinóticos, como fontes do período e da Crítica das Fontes como metodologia que visa compreender as motivações e contextos próprios de redação de cada Evangelho. A breve exposição a seguir se concentrará, de um lado, nas hipóteses de formação dos Sinóticos, considerando, em especial, a interdependência dos Sinóticos em relação ao Evangelho de Mar- cos e, de outro, no debate da relevância dos Sinóticos para a com- preensão das origens cristãs. 5. O PROBLEMA SINÓTICO E A CRÍTICA DAS FONTES O problema sinótico consiste na constatação de que existem diferenças e semelhanças na redação dos evangelhos. Essa consta- tação explica-se pelo entendimento de que os autores de tais tex- tos, no processo de elaboração de cada Evangelho, acrescentaram à tradição escrita narrativas acerca da vida e dos ensinamentos de © Evangelhos Sinóticos70 Jesus, conhecidas pela tradição oral. Isso significa que cada autor, ao descrever a história de Jesus, utilizou livremente memórias e fontes que estavam à disposição. A escola que investiga essas particularidades do texto bí- blico é chamada"Crítica das Fontes". Ela se dedica à análise dos estágios que conformaram a produção dos Evangelhos. "Ela faz e procura responder a seguinte pergunta: Que fontes escritas ( ) os evangelistas empregaram na compilação de seus evangelhos?" (CARSON, 1992, p. 31-38). Tal questão interessa tanto ao historiador do cristianismo primitivo, quanto ao exegeta ou ao indivíduo que tem relação de fé com os textos bíblicos. Para respondê-la, a academia de estudos bíblicos da Alemanha, representada pela escola da Crítica das For- mas elaborou o conceito de comunidade "por trás" do Evangelho e formulou o entendimento de que se o Sitz im Leben (situação vivencial) de uma comunidade pudesse ser bem compreendido, o texto (evangelho que a comunidade produziu) seria lido corre- tamente. Martin Dibelius, um dos primeiros dos mais importantes críticos da forma, em 1934 definiu Sitz im Leben "como o estrato histórico e social em que precisamente aquelas formas literárias foram desenvolvidas" (s. d). Já em 1969, W. Marxsen foi o primeiro a introduzir três Sitze im Leben: • O Jesus Histórico (a situação de atividades de Jesus). • A Crítica das Formas (a situação da Igreja primitiva). • A Crítica da Redação (a situação do evangelista na criação do Evangelho). Consequentemente, as décadas de 1960 e 1970 testemu- nharam uma onda de estudos nos Evangelhos que se preocupou com a situação das comunidades subjacentes a cada texto. Eventualmente, eram usados alguns métodos da área das ciências sociais para a reconstrução das comunidades subjacen- Claretiano - Centro Universitário 71© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs tes aos Evangelhos. Uma das obras que utilizou a sociologia para compreender e reconstruir o painel cultural das origens cristãs foi Sociologia do movimento de Jesus, de Gerd Theissen, publicado pela primeira vez no Brasil em 1977, que estudamos na unidade anterior. Obviamente, existem muitos outros trabalhos que em- pregaram essa metodologia. De tais estudos explodiram uma série de conclusões e resultados diferentes. Em 1979, Luke Timothy Johnson criticou um trabalho que reconstruía a comunidade de Lucas. Para Johnson, descrições ge- rais dos leitores fazem injustiça ao texto e destroem o sentido e a intenção literária. Em outras palavras, Timothy considerou simpló- ria essa reconstrução, pois reduzia o texto a apenas uma projeção, reflexo da comunidade, desprezando os aspectos literários da nar- rativa, a construção da redação e os interesses vinculados a essa produção. Em 1988, Dale Allison – um importante comentarista do Evangelho de Mateus – argumentou que o termo "comunidade lucana", por exemplo, não deveria ser usado para o Evangelho de Lucas, visto que o evangelho pode ter tido a interferência de reda- tores especializados. No volume que trata das apropriações para reconstrução da comunidade mateana (BALCH, 1991), Jack Dean Kinsbury conce- deu uma surpreendente advertência sobre a prática metodológica de atribuir os Evangelhos às comunidades. Em 1992, Graham Stanton, no livro A Gospel for a new peo- ple (Um evangelho para um novo povo), discutiu a possibilidade de se descobrir a comunidade mateana, a partir do próprio texto de Mateus. Ele admitiu que a reconstrução sobre essas linhas podem exigir muito da imaginação disciplinada do historiador. Posteriormente, Stanton mostrou que alguns dos mais re- centes trabalhos sobre outros primeiros escritos cristãos podiam ser considerados "lembranças" (pistas) do ambiente de Mateus, traçando possíveis contextos de dentro do judaísmo e dos primei- © Evangelhos Sinóticos72 ros cristianismos. Para Stanton, a chave metodológica "é notar que o Evangelho não é uma carta, visto que uma carta não fornece janelas claras sobre a situação social dos receptores" (s. d.). Ainda em 1992, Frederik Wisse argumentou em um artigo in- titulado Historical method and the Johannine community (Método histórico e a comunidade joanina) que a hipótese usada para de- terminar as circunstâncias históricas da composição do Evangelho de João por meio de dados indiretos é altamente problemática. Wisse denominou impressionante que os estudiosos dos Evangelhos classificassem essa literatura como única e transpa- rente quanto à situação histórica das comunidades. Para ele, esse tipo de abordagem e prática metodológica revela que os estudio- sos têm dificuldade de enfrentar o desapontamento diante das conclusões justificadas por evidências muito limitadas e interesses próprios. Bengt Holmberg (1990) comentou que o postulado de uma correlação completa e positiva entre um texto e o grupo social que transmitiu e recebeu esse texto é implausível. Ler as narrativas do Evangelho como se fossem alegorias da forma de vida de cada igreja é um tanto sem imaginação. Assim, Stephen Barton chama de "explosão de interesse" a essa corrente de estudo do Novo Testamento. Tais abordagens que desenvolvem ênfases teológicas sobre a igreja e as comunida- des subjacentes aos Evangelhos podem ser inapropriadas (KLINK, 2004). Kinsbury concordou com essa crítica e admitiu que "o texto em si mesmo não é observado como o interesse primário, mas como um veículo para recepção de outra coisa; em outras pala- vras, a situação social da comunidade" (KLINK, 2004, p. 64). De acordo com essa análise, a exegese dos Evangelhos, que busca apenas reconstruir as comunidades "por trás" do texto, co- loca à margem cultura, valores próprios do período antigo e outras Claretiano - Centro Universitário 73© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs informações que poderiam ser importantes para entender as ori- gens cristãs, o surgimento do cristianismo e os processos sociocul- turais que motivaram a escrita dos Evangelhos. A crítica, portanto, recai sobre um tipo de exegese que tem "obsessão" pelas reconstruções de comunidades sem considerar que tais reconstruções podem ser idealizadas, conforme a pers- pectiva de cada comentarista e, nesse sentido, materializam as projeções dos próprios exegetas fincadas no seu próprio tempo e ideologias. Tais reflexões críticas sobre a noção de "comunidade por trás do texto" não invalidam essa possibilidade de chave metodo- lógica, mas evidenciam que a exegese deve atentar para outros âmbitos que subjazem à produção do texto. Ou seja, entender o período histórico, os códigos de comportamento da época, como tais códigos determinavam as sociabilidades e, ainda, subsidiavam a produção cultural. Essas "comunidades por trás do texto" não estavam à parte desses processos. 6. O "OLHAR" PARA DENTRO DAS FONTES Sabemos que a Crítica das Fontes, em parte, foi responsável pela criação do conceito comunidade mateana, lucana, marcana e joanina. Embora reconheçamos os limites metodológicos dessa abordagem, devemos entender que a Crítica das Fontes ofereceu- -nos um importante legado teórico para compreensão do conjunto sinótico. Legado esse que contribuiu para o desenvolvimento de outras abordagens como a Crítica Literária. A Crítica Literária verificou que as semelhanças na estrutura dos Evangelhos, no uso das palavras e na sequência das narrativas, sugerem que entre os Evangelhos existiu alguma dependência e, talvez, o compartilhamento de fontes. Obviamente, tais recorrências no uso das palavras necessi- tam ser verificadas, inicialmente na língua original, que é a língua © Evangelhos Sinóticos74 grega koinê (o termo grego que se refere à língua usada pelos au- tores neotestamentários. Diz respeito à língua falada nos tempos de Jesus, espécie de grego popular que reunia expressões do gre- go clássico e do aramaico). Assim, como nas traduções se podem verificar semelhanças, a comparação das narrativas bíblicas também evidencia certas in- terrupções abruptas, construções não comuns e omissões que cor- respondem às diferenças. Vejamos o Quadro 1 a seguir: Quadro 1 Sinótico Mc 2,10-11 Lc 5,24 Mt 9,6 10 Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoarpecados – disse ao paralítico: 11 Eu te mando: Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa. 24 Mas, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados – disse ao paralítico: Eu te ordeno: Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa. 06 Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados – disse, então, ao paralítico: Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa. Conforme verificamos no exemplo anterior, no texto de Ma- teus não aparece a expressão "Eu te mando" ou "Eu te ordeno", conforme Marcos e Lucas. Além disso, o texto de Mateus não dis- corre sobre o buraco no teto que foi aberto pelos amigos do paralí- tico. Tais omissões, embora não comprometam o conteúdo central da narrativa, indicam que havia diferenças entre os evangelistas, seja na forma de descrever as narrativas – quanto ao estilo e uso do grego – seja no que julgavam ser indispensável à narrativa. Des- se modo, como destacam alguns estudiosos: "Essa combinação de correspondência e discordância também alcança a estrutura geral dos evangelhos" (CARSON, 1992, p. 29). Portanto, é possível perceber que os três Evangelhos: 1) seguem praticamente a mesma ordem de acontecimen- tos; Claretiano - Centro Universitário 75© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs 2) omitem informações que podem ser encontradas nos outros dois Evangelhos; 3) apresentam incidentes que os demais não relatam; 4) possuem algumas diferenças quanto à ordem de um evento, em pelo menos um dos dois Evangelhos. Na busca por uma hipótese que explicasse correspondências e disparidades entre os Sinóticos, emergiram diversas possibilida- des; relacionamos brevemente algumas delas a seguir: Dependência comum de um Evangelho original (proto-evangelho) – proposta de G. E. Lesing (1771), escritor e crítico alemão. Susten- tou que a relação entre os Sinóticos poderia ter-se dado a partir do uso (independente) de uma fonte original escrita em hebraico ou aramaico. Esta hipótese foi duramente criticada, principalmente, a partir do século 20. Dependência comum de fontes orais – proposta por J. G. Herder e posteriormente, J. K. L. Gieseler (1818). Eles sustentaram a depen- dência dos Sinóticos em função de certo sumário oral relativamen- te fixo sobre a vida de Cristo. Esta hipótese foi mais aceita durante o século 19. Dependência comum de um número cada vez maior de fragmentos escritos – F. Schleiermacher foi responsável por propor que entre a igreja primitiva circulavam diversos fragmentos de tradição sobre Jesus, escritos pelos apóstolos. Tais fragmentos cresceram gradual- mente e foram incorporados aos Evangelhos Sinóticos. Teoria da interdependência – sustenta que dois dos autores usa- ram uma ou mais fontes para a elaboração do seu evangelho. Esta teoria é geralmente mais aceita pelos estudiosos (CARSON, 1992, p. 31-32). Essa última proposta de interdependência, com a qual con- cordamos, suger,e a partir da análise de paralelismos sequenciais entre os Evangelhos Sinóticos, que podemos observar Mateus e Marcos juntos em oposição a Lucas, e Lucas e Marcos juntos em oposição a Mateus, porém, Mateus e Lucas não se opõem a Mar- cos. Assim, surge o "argumento da sequência" que apresenta Marcos como o termo médio no relacionamento entre os Sinóticos. Isso significa que o Evangelho de Marcos seria a fonte usada por © Evangelhos Sinóticos76 Mateus e Lucas na composição de seus evangelhos. Essa hipótese explica as correspondências entre os três primeiros evangelhos. As diferenças, portanto, estariam relacionadas ao estilo e às particularidades de Mateus e de Lucas, vinculadas principalmente às expectativas do grupo com o qual se importavam e procuravam promover a fé em Jesus. Todos esses estudos e hipóteses acerca da redação dos Evan- gelhos desencadearam, ainda, outras questões relacionadas prin- cipalmente à veracidade das narrativas e dos acontecimentos so- bre a vida, os ensinamentos e os milagres realizados por Jesus de Nazaré. Embora esse tenha sido um período difícil para a pesqui- sa sobre Jesus e para a teologia, é importante destacar que desta época surgiram novas possibilidades de compreensão acerca do significado do movimento cristão e da sua abrangência. A despeito dos séculos e das tendências de interpretação, os Sinóticos continuam a representar importantes fontes de estudo e de investigação para aqueles que desejam conhecer o período antigo e como as sociedades viveram, produziram cultura, religião, cultura e política. 7. FONTES SINÓTICAS Podemos entender por "canônicos" os primeiros quatro evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João. Dos quatro elencados, apenas os primeiros três são considerados Sinóticos. Essa disposi- ção, no entanto, não reflete a ordem cronológica de composição dessas fontes e tampouco indica que são os únicos escritos judai- co-cristãos desse gênero. Apesar das diferentes hipóteses quanto à origem do cânon assim como o conhecemos hoje, é quase consenso entre os biblis- tas que Marcos teria sido o primeiro evangelho redigido – o termo médio – e que os outros (Mateus e Lucas) teriam se inspirado em seu material para compor suas versões. Ainda, outro material cha- Claretiano - Centro Universitário 77© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs mado Fonte dos Ditos ou Fonte Q, sobre a qual discorreremos mais atentamente na sequência, teria sido usada livremente por cada um dos redatores dos Evangelhos. O esquema a seguir ilustra essa hipótese (THEISSEN, 2002, p. 45). Algo importante a se acrescentar é que, seguindo nessa perspectiva, Mateus e Lucas poderiam ter materiais próprios que empregaram para a redação de seus evangelhos, eles foram cha- mados "M" de Mateus e "L" de Lucas. Por essa razão, os Evangelhos de Marcos, Lucas e Mateus são chamados "Sinóticos", que significa "espelhos" e, nesse caso, o termo "sinótico" indica a qualidade de terem informações em comum. "Há muito tempo já se percebeu que esses três evangelhos apre- sentam materiais paralelos numa estrutura semelhante e com fre- qüência na mesma seqüência de perícopes individuais (...) a reda- ção das respectivas passagens paralelas em quaisquer dois ou três desses evangelhos é muitas vezes quase a mesma, ou tão próxima, que certamente se deve concluir pela existência de algum tipo de relação literária" (KÖESTER, 2005, p. 48). O Evangelho de João, embora tenha sido reconhecido como canônico, distingue-se dos outros três por causa do uso do grego, da linguagem e da teologia, especialmente, em função dos longos discursos atribuídos a Jesus. Por essa razão, não foi considerado sinótico. Outro aspecto interessante é que o Evangelho de João apresenta alta complexidade no uso do grego, em muitos casos, muito próxima da forma filosófica da retórica grega. A palavra "cânon" é o empréstimo semítico de certo termo que, etimologicamente, significa (1) "junco", passou a designar (2) "vara de medir" e, posteriormente, (3) "regra", "padrão" ou "nor- ma". Mas, somente em um momento posterior passou a indicar "lista" ou "tabela". Durante os séculos 1º e 3º EC, o vocábulo refe- riu-se especificamente ao conteúdo normativo doutrinário e ético da fé cristã. Já por volta do século 4º, passou a designar a lista de livros que constituem o Antigo e o Novo Testamento. Atualmente © Evangelhos Sinóticos78 esse sentido é o mais comum: "coleção encerrada de documentos que constituem Escritura autorizada" (BITTENCOURT, 1993, p. 24). Os cristãos do século 1º não dispunham de um cânon para o Novo Testamento. Inicialmente dependiam da (1) pregação dos apóstolos e (2) dos livros (rolos, pergaminhos), que hoje conhe- cemos como o cânon do Antigo Testamento ou Bíblia hebraica, a Tanak, cujo Quadro 2, a seguir, mostra como ela se dividia. Quadro 2 Divisão da Tanak Torá (A Lei) Gn, Ex, Lv, Nm e Dt Nebiim (Os Profetas) Os Anteriores: Js, Jz, Sm (1 e 2 considerados em conjunto), Rs (1 e2 em conjunto); Os Posteriores: Is, Jr, Ez e o Rolo dos Doze: Os, Jl, Am, Ab, Jn, Mq, Na, Hab, Sf, Ag, Zc e Ml. Ketubim (Os Escritos) Poesia e Sabedoria: Sl, Pr, Jó. Com a atuação dos discípulos de Jesus e o crescimento das comunidades cristãs, foi necessário que, de algum modo, a tra- dição fosse normatizada a fim de que as informações sobre vida, ensinamentos e feitos de Jesus não se perdessem. Como se sabe, após os eventos morte, ressurreição e ascen- são de Jesus aos céus, o grupo de seguidores e de discípulos do Na- zareno, durante muito tempo, transmitiu as histórias, as memórias e os ensinamentos de Jesus por meio da oralidade. Isso implica, como dizem os mais velhos, que "quem conta um conto, aumenta um ponto". Um ditado popular levado a sério pelos estudiosos da Bíblia que entenderam que, em parte, as diferenças no material de cada Evangelho pode ser explicada pelo acesso a diferentes fon- tes orais que cada um dos redatores pode ter tido no processo de compilação das tradições sobre vida e ministério de Jesus. Desse modo, deu-se a passagem da tradição oral para a tra- dição escrita que não eram excludentes, mas dialógicas. Isso quer dizer que a tradição oral alimentava os escritos e o contrário tam- bém ocorria. Tal relação entre oralidade e escrita implica que a Claretiano - Centro Universitário 79© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs compilação dos Evangelhos, ao modo de cada redator, foi seletiva. A seleção, entretanto, deve ser entendida à luz do conjunto de ex- pectativas e das questões que cada grupo de seguidores e preten- dentes à conversão faziam às lideranças cristãs do período. Sabemos que os anos que se seguiram após a morte de Je- sus, o líder que tantos judeus aguardavam e que não correspon- deu às esperanças de muitos deles, foram difíceis. As expectativas de muitos não se concretizaram: os judeus permaneceram sob do- mínio romano, a cultura e a religião judaica não retomaram seu lugar de centralidade na vida do povo judeu e o helenismo avan- çava, "descaracterizando" a tradição dos patriarcas de Israel. Para muitos judeus, as promessas messiânicas não se concretizaram em Jesus e isso significava o fracasso de mais um profeta. Em contrapartida, amparado pelas visões e relatos a respei- to da ressurreição e ascensão de Jesus aos céus, alguns dos discí- pulos de Jesus começaram a profetizar o seu retorno sob a forma de rei. Era a tradição profética e apocalíptica conhecida desde a Bíblia Hebraica, que se apresentava sob nova forma, apropriada e re-significada pelos discípulos de Jesus. Para justificar a promessa de seu retorno futuro, recorreram à autoridade da profecia judai- ca. Assim, Jesus foi aclamado o Filho do Homem: Naqueles dias, porém, depois daquela tribulação, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas estarão caindo do céu, e os poderes que estão nos céus serão abalados. E verão o Filho do Homem vindo entre as nuvens com grande poder e glória. Então ele enviará os anjos e reunirá seus eleitos, dos quatro ventos, da extremidade da terra à extremidade do céu (Mc 13,24-27). O Filho do Homem, um título conhecido da tradição judaica e que já havia sido usado para descrever aquele que viria para livrar os filhos de Iahweh do jugo da Babilônia, em (Dn 7,13-14), foi re- tomado pelos redatores dos Evangelhos e atribuído ao Nazareno. O mesmo epíteto pode ser encontrado em Daniel 8,17 como referência ao próprio profeta Daniel. Filho do Homem (bem ‘Adam), que pode ser traduzido, também, por Filho da Humanidade, ou © Evangelhos Sinóticos80 simplesmente ser humano, foi o nome pelo qual o anjo Gabriel chamou Daniel para ajudar-lhe a desvendar as visões que teve. Em geral, esse título é bastante usado pela literatura apocalíptica e foi atribuído, também, a outros profetas como Elias, Ezequiel, Melqui- sedec e João Batista. A imagem do Filho do Homem correspondia a de um ser celestial com feições humanas, seria uma representação do próprio Iahweh e não somente um anjo. (...) o que significa a expressão "huis tou anthrōpou" do ponto de vista puramente filológico? Teremos de remontar ao aramaico: "huis tou anthrōpou" corresponde ao aramaico "barnascha". "Bar", como se sabe, é o equivalente aramaico do hebraico "ben", filho. Encontramos esse termo em diversos nomes próprios tais como Barnabé, Barjonas, Bartolomeu etc. "Nascha", derivado da mesma raiz que o hebraico "isch", plural, "anaschin", significa "homem". (...) "Barnascha" é, portanto, em aramaico, aquele que pertence à espécie humana e significa "homem" (cf. CULMANN, 2001, p. 183). Informação –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– "Do meio de seus irmãos lhes suscitarei um profeta semelhante a ti; e porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar" (Dt 18,18). Palavras como essas compõem a tradição judaica desde os tempos de Moisés. Elas marcaram o modelo do líder, profeta e salvador que libertaria Is- rael da opressão e castigaria os inimigos com a destruição. Figuras marcantes representadas pelos profetas, porta-vozes de Deus, situaram-se na trajetória de Israel ganhando destaque pelo anúncio da mensagem de Iahweh. Em seus dis- cursos ficavam evidenciadas as palavras fortes de arrependimento e retomada dos princípios estabelecidos pelo único Deus por meio das leis mosaicas. A cons- ciência criada pelo arrependimento e retomada da vida piedosa são temas que permeiam o Antigo Testamento principalmente nos escritos proféticos. Assim, profecia e apocalíptica estavam enraizadas no seio das primeiras comunidades cristãs de herança judaica como elementos fundantes do ethos desses grupos. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Para alguns judeus, o Filho do Homem era comparável a João Batista ou Elias: Enquanto ele estava orando à parte achavam-se com ele somente seus discípulos; e perguntou-lhes: Quem dizem as multidões que eu sou? Responderam eles: Uns dizem: João, o Batista; outros: Elias; e ainda outros, que um dos antigos profetas se levantou. Então lhes perguntou: Mas vós, quem dizeis que eu sou? Respondendo Pedro, disse: O Cristo de Deus (Lc 9,18-20; cf. também At 3,17-22). Claretiano - Centro Universitário 81© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs As palavras de Jesus elencadas nos Evangelhos apontam para a caracterização do Nazareno como Filho do Homem, profeta e fi- lho de Deus (Lc 13,34; 20,9-18; Mt 23,27). Todavia, esse ponto da pesquisa não encontra consenso, pois, segundo alguns estudiosos, Jesus não tinha autoconsciência messiânica e nunca se intitulara o Messias (BULTMANN, 1951, p. 30). Algo que estaria explicitado no uso de terceira pessoa para se referir ao Filho do Homem. A identificação dessa expressão tipicamente judaica na re- dação dos Evangelhos, que chamamos "campo semântico", ajuda- -nos a perceber a dependência que essa literatura, bem como o movimento de Jesus e os primeiros discípulos tinham da história de Israel e de toda a cultura desse povo, que de certo modo condi- cionava as origens cristãs. Além de encontrarmos a expressão Filho do Homem em tex- tos do Antigo e do Novo Testamento, a mesma expressão pode ser identificada em trechos da literatura pseudoepígrafa, como 1Eno- que e 4Esdras, importantes documentos do período. Assim, história, tradição, profecias, a vida de Jesus e os seus ensinamentos precisavam ser conciliados. Todas essas informações necessitavam ser condensadas, harmonizadas e coerentemente organizadas num relato que correspondesse às expectativas dos judeus convertidos ao movimento de Jesus, que respondesse às questões dos gentios e dos judeus helenizados que se convertiam ao Nazareno e, finalmente, que atendesse às reivindicações dos judeus zelosos da Lei. Isso justifica, de certo modo, as diferenças entre os Evange- lhos, já que cada sinótico teria dedicado sua escrita a audiências específicas, umas com mais presença judaica, outras com mais presença gentílica e outras audiênciasmistas. De acordo com o inventário que John Dominic Crossan (1994, p. 465-472) elaborou sobre a tradição de Jesus em diferentes fon- tes escritas, com exceção da Fonte Q, os primeiros escritos cristãos são do apóstolo Paulo e não dos redatores dos Evangelhos. © Evangelhos Sinóticos82 Para desenvolver esse inventário, Crossan (1994) utilizou em parte a pesquisa de Helmut Köester (2005) em sua obra Introdu- ção ao Novo Testamento. Desse modo, num primeiro estrato situ- ado entre os decênios 30 e 60 EC, poderíamos relacionar: 1) A Primeira Epístola de Paulo aos Tessalonicenses – escri- ta em Corinto, no final da década de 50 EC. 2) A Epístola de Paulo aos Gálatas – escrita em Éfeso, entre 52-53 EC. 3) A Primeira Epístola de Paulo aos Corintos – escrita em Éfeso, entre 54-55 EC. 4) A Fonte Q ou Fonte dos Ditos – composta por volta de 50 EC, provavelmente, em Tiberíades, Galileia. O segundo estrato entre os anos de 60 e 80 EC, seria consti- tuído por: 1) O evangelho "secreto" de Marcos – composto talvez no início da década de 70 EC, espécie de material próprio do evangelista. 2) O Evangelho de Marcos – segunda versão em que te- ria deixado narrativas anteriores de lado em função da interpretação indevida de gnósticos. Escrita ao final da década de 70 EC. 3) O Evangelho de Mateus – escrita em torno de 90 EC, em Antioquia da Síria. Baseado em Marcos e em Q. 4) O Evangelho de Lucas – talvez tenha sido escrito antes da década de 90 EC, mas certamente antes de João 1-20. Também baseou-se em Marcos e em Q, principalmente para compor sua narrativa anterior à paixão. 5) O Evangelho de João – primeira versão escrita no início do século 2o, sob a pressão causada pela ascendência sinótica. O terceiro estágio de composição da tradição de Jesus, so- mente a partir dos livros canônicos e dos Evangelhos, portanto, teria sido entre 120 e 150 EC, ou seja, já no século 2º. Ocasião em que o Evangelho de João é acrescido pelo capítulo 21. Claretiano - Centro Universitário 83© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs Esse quadro cronológico nos oferece uma imagem de como se formou a tradição cristã e, de certo modo, explicita a importân- cia dos escritos paulinos para a sistematização da fé dos primeiros cristãos. No entanto, há de se reconhecer que não tendo sido Paulo, uma testemunha ocular da vida, do ministério e dos ensinamentos de Jesus, a legitimidade de seus escritos e de seus depoimentos sobre Jesus tenha sido contestada inicialmente. É preciso reconhecer, ainda, que Paulo falava não do Jesus Histórico, mas do Cristo da fé, aquele que conhecera no caminho para Damasco. Tratava-se, portanto, do Cristo com o qual tinha tido experiência por intermédio de uma visão. O Jesus da história, esse ele conheceu por meio dos relatos de terceiros. Eram esses relatos, era essa oralidade que, a cada dia, se movimentava sendo acrescida, diminuída, transformada e reinventada, em função de tantas perguntas que se faziam sobre a concretização das promessas de Jesus. 8. A COMPOSIÇÃO DOS EVANGELHOS Ao perceber que os Sinóticos têm versões diferentes para a vida e ministério público de Jesus de Nazaré, surge a pergunta: o que motivou cada autor a compor seu próprio evangelho? Embora essa questão seja relevante, objeto de longa discus- são entre biblistas, as razões que motivaram cada evangelista na escrita de seu texto não são completamente conhecidas, visto que existe uma imensa lacuna temporal, espacial e geográfica entre os redatores e os intérpretes modernos. Esse hiato abre a possibili- dade de se tecer conjecturas, mas essas hipóteses não são com- pletamente amparadas, de modo que vários pesquisadores têm sugerido algumas probabilidades para explicar as diferenças entre os textos. Entre elas, destacamos: © Evangelhos Sinóticos84 1) O crescimento de grupos que se denominavam cristãos nos domínios do Império, na segunda metade do século 1º EC. 2) O aumento da circulação de escritos contendo histórias, ensinamentos e tradições de Jesus. 3) A diversificação das tradições a respeito da mensagem de Jesus em função da experiência e da interpretação de cada grupo de seguidores de Jesus. 4) A necessidade de responder questões específicas que esses grupos propunham aos discípulos próximos de Je- sus. 5) A expectativa quanto ao movimento cristão, se judaico, intrajudaico ou de negação do judaísmo. 6) A necessidade de se explicar a relação dos ensinamentos de Jesus de Nazaré com o judaísmo e as recomendações quanto à religião de Israel, quanto a leis e rituais de pu- reza, quanto aos tributos e quanto à obediência às auto- ridades romanas e judaicas. Evidentemente, essas possibilidades não encerram todo o quadro de expectativas das primeiras comunidades cristãs em re- lação ao que Jesus de Nazaré havia pregado. Por isso, com o estu- do das fontes, das formas e dos gêneros literários que compõem os livros sagrados da Bíblia judaico-cristã, a academia de exegese abriu-se para perceber que as literaturas canônicas e não-canô- nicas eram expressões da cultura oral que se tornaram fonte es- crita e origem da Tradição. Nas palavras de Jean Batany: "O oral escreve-se, o escrito quer-se imagem do oral, de qualquer modo é feita referência à autoridade de uma voz" (LE GOFF, 2002, p. 383). De acordo com o historiador marxista britânico Eric Hobsbawm, a ideia de Tradição como entendida hoje deve sua origem ao surgi- mento da escrita que em certa medida materializou a cultura oral ( HOBSBAWM, E.; RANGER, T., 1983). Assim, os Evangelhos constituem testemunhos – posterior- mente autorizados pelos concílios da Igreja – acerca da experiên- Claretiano - Centro Universitário 85© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs cia religiosa e de fé dos primeiros cristãos que são documentos históricos disponíveis para a pesquisa sobre (1a) as origens cristãs e o (2b) Jesus Histórico. A possível descontinuidade do estilo de alguns desses mate- riais indica, provavelmente, maior proximidade entre o texto e a realidade de quem o produziu. Consequentemente, maior inser- ção no processo sociocultural com o qual estava em relação. Re- conhecendo a amplitude desse debate, entendemos que mesmo em fontes não-canônicas existem vozes do passado judaico-cristão que necessitam ser ouvidas a fim de que a história desses movi- mentos religiosos não seja contada apenas "de cima para baixo". O estudo das fontes valoriza essas vozes e experiências re- ligiosas que se materializaram por meio da narrativa, da história, da profecia, da poesia, dos hinos, das cartas e outros gêneros lite- rários. Paul Thompson, precursor da escola da história oral, que escreveu The voice of the past. Oral history, de 1983, (A voz do passado. História oral) defendeu o valor das fontes orais como predecessores à escrita. No caso da tradição judaico-cristã, jamais teremos acesso a esse tipo de fontes. Mas, eventualmente, os textos não-canônicos como os pseudoepígrafos e chamados "apócrifos" podem sinali- zar para esses "ecos" do passado, por meio da linguagem que em- pregam, dos símbolos e imagens que emprestam do judaísmo e do cristianismo e que frequentemente recriam e atribuem novos significados às histórias que estão disponíveis na Bíblia hebraica. Esses usos podem lançar luz sobre a compreensão do movimento de Jesus, das primeiras comunidades cristãs e da redação da Bíblia judaico-cristã. Por causa da pluralidade de tradições em torno de Jesus, mui- tos estudiosos entendem que não havia apenas "um" cristianismo, mas certamente o século 1º conheceu vários "cristianismos" pro- piciados pelo espalhamento da tradição dos ensinamentos de Je- sus na Palestina e regiões próximas. Nessa ocasião, houve grande © Evangelhos Sinóticos86 efervescência religiosa que originou comunidades com tendências ortodoxas, místicas, sapienciais e proféticas. Como foi dito, nos primeiros anos que se seguiram à morte-ressurreição-ascenção de Jesus não havia cânon bíblico fechado quenorteasse a experiência dos primeiros cristãos. Para Pablo Richard (1995, n. p. ) existe: (...) uma falsa imagem da origem do cristianismo como movimento único, com uma só estrutura institucional e corpo doutrinal, onde a diversidade teria vindo depois. Existiria uma unidade e ortodoxia primitiva e uma dispersão posterior com múltiplas heresias. Identi- fica-se unidade com ortodoxia e diversidade com heresia. Tudo isso é contrário à realidade histórica. Desde seus inícios, o cristianismo apresenta as mais variadas tendências e surgem os mais diversos modelos de Igreja (...). Essa possibilidade de compreensão dos Evangelhos, assim como de outros escritos do período, tem despertado os biblistas para certo fenômeno que se acreditava ser típico da modernida- de: a diversidade de interpretações. Isso implica que a despeito da noção de tradição unívoca que a Igreja tem buscado sustentar ao longo dos últimos dois mil anos, a experiência e a fé cristã dos que crêem em Jesus têm se revelado mais fluidas e criativas do que objetivam alguns de seus líderes. Isso nos leva a concluir que a diversidade de grupos cristãos em torno das tradições de Jesus é algo que sempre caracterizou a projeção do cristianismo na história da humanidade. Destarte, identificar diversidade na composição dos Evangelhos não com- promete a importância desses registros como fontes do período para os estudiosos, tampouco como registros de fé para os fiéis. Texto complementar: Mitologia e estudo da Bíblia: o século 19 e os começos ––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O estudo crítico dos mitos e a aplicação dos frutos deste estudo aos materiais da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento (NT) começou muito antes do período moderno. Nos primeiros séculos, os Pais da Igreja começaram a deformar mitos religiosos como resultado da deificação de heróis de antigas culturas e alegorizar o que poderia ser visto como mito na Bíblia. Entretanto, a pesquisa se interessou pela mitologia que re-surgiu dramaticamente durante o curso do século XIX na Claretiano - Centro Universitário 87© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs Alemanha, na Inglaterra e em outros lugares. Assim, quanto ao estudo científico dos mitos, incluindo a possível presença de materiais míticos na Bíblia, é normal- mente aceito que começou no século XIX. Há diversas razões para o notável aumento na atenção dispensada à mitolo- gia no século XIX, entre pesquisadores genericamente e entre pesquisadores bíblicos em particular. Primeiramente, os movimentos românticos deram ênfa- se sobre um tipo de imaginação primeva com interesse ressurgido em função de antigas fontes de expressões poéticas da humanidade, incluindo, como dito acima, todos os antigos mitos. Segundo, alguns resultados iniciais tornaram-se avaliáveis a partir de uma intensa investigação histórica da Bíblia, que teve início no século anterior e que então dominaria o século seguinte atribuindo aos últimos cem anos o título de "século histórico". Estes resultados sugerem que muitas das histórias que encontramos na Bíblia Hebraica e no NT resultam não de um testemunho visual ou qualquer coisa pare- cida, antes são resultado de um longo processo de tradições comunitárias. Este mesmo processo que é o responsável pela criação e preservação dos mitos, uma conclusão óbvia foi que mitos e tradições bíblicas poderiam ser estudadas frutife- ramente juntas. Finalmente, este século presenciou a descoberta de um grande número de mitos extrabíblicos os quais eram muito similares a muitos incidentes bíblicos. Por exemplo, no final da terceira parte do século XIX, os pesquisadores puderam ler um escrito mesopotâmico sobre o dilúvio (agora se sabe que se trata de uma composição épica do Gilgamesh) que foi identificado em grande parte com o relato do Gênesis 6-9. Essas descobertas eventualmente forçaram os pesquisadores a reconsiderar o relacionamento entre mitologia e tradição bíblica. Extraído de: Anchor Bible Dictionary, p. 945-947. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) De que maneira os evangelhos de Mateus e Lucas apresentam interdepen- dência em relação ao evangelho de Marcos, considerado como termo inter- mediário? 2) De que modo podemos o estudo e a compreensão da formação dos sinóti- cos pode contribuir para o clareamento das origens cristãs? 10. CONSIDERAÇÕES Compreendemos nesta unidade que o problema sinótico identificado pela crítica literária consiste na verificação de que os Sinóticos espelham um período histórico importante para a cris- © Evangelhos Sinóticos88 tandade, o tempo das origens. Todavia, essa projeção não foi feita segundo os mesmos padrões de escrita e as mesmas prioridades. A formação dos Evangelhos deu-se no decorrer de um longo período e envolveu a reunião de memórias, de tradições orais so- bre Jesus e seus ensinamentos e, fragmentos escritos. Um ponto comum entre pesquisadores é que alguns desses materiais foram compartilhados e que Marcos teria sido usado tanto por Mateus quanto por Lucas. Decorre dessa afirmação que Marcos foi ponto de concordância entre os demais evangelistas e que isso ocorreu em função de sua proximidade dos anos 30 EC. Lucas e Mateus, portanto, tiveram mais tempo para seleção, compilação e redação de seus materiais. Por essa razão, a escrita de seus textos é, às vezes, mais detalhada, com descrições porme- norizadas e possíveis acréscimos típicos do trabalho editorial, cuja intencionalidade primeira é enriquecer o material. Conhecemos o inventário de fontes escritas apresentado por Crossan que evidencia não apenas a cronologia dos escritos. In- formação importante para quem estuda o Novo Testamento. Ten- do como ponto de partida tal relação, intuímos que a produção paulina, a circulação de suas cartas, a recepção desses relatos e a impressão que tais escritos causaram nas comunidades cristãs, no mínimo, despertaram as recentes lideranças cristãs em Jerusalém para a necessidade de fixar espécie de tradição, de memória, de biografia de Jesus, de modo que ele fosse caracterizado como o Filho de Deus, Salvador e Mestre. Portanto, os Sinóticos são fontes do período que se pres- taram a essa função: materializar por meio do registro escrito a história de Jesus e de seus feitos. Tratava-se de uma atitude de documentação das origens da cristandade, que, mais de dois mil anos depois, serviria, também, como testemunho da experiência religiosa e da fé desses cristãos. Claretiano - Centro Universitário 89© U2- O Problema Sinótico e as Origens Cristãs 11. E-REFERÊNCIAS ORACULA. - Revista Eletrônica de Pesquisas em Apocalíptica Judaica e Cristã. Disponível em: <http://www.oracula.com.br>. Acesso em: 13 nov. 2011. PEJ. Projeto de Estudos Judaico-Helenísticos. Disponível em: <http://www.pej-unb.org/>. Acesso em: 13 nov. 2011. 12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BITTENCOURT, B. P. O Novo Testamento. Metodologia da pesquisa textual. Rio de Janeiro: JUERP, 1993. BRAKEMEIER, G. Reino de Deus e esperança apocalíptica. São Leopoldo: Sinodal, 1984. BULTMANN, R. Theology of the New Testament. 2 vols. New york: Charles Scribner’s Sons, 1951. CARSON, D. A. et. al. Introdução ao Novo Testamento. Tradução de Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1992. CROSSAN, J. D. O Jesus Histórico. A vida de um camponês judeu do mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1994. CULMANN, O. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Líber, 2001. HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (Orgs.). The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. KLINK, E. W. The Gospel Community Debate: State of the Question. In: Currents in Biblical Research 3.1, 2004, p. 65. KÖESTER, H. Introdução ao Novo Testamento. História e literatura do cristianismo primitivo. v. 2. São Paulo: Paulus, 2005. KONINGS, J. Evangelho segundo João. Amor e fidelidade. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal,2000. 425p. (Comentário Bíblico). LE GOFF, J. et al. Dicionário temático do Ocidente medieval. São Paulo: Edusc/Imprensa Oficial do Estado, 2002. v. 1. MATEOS, J.; BARRETO, J. O evangelho de São João. Análise lingüística e comentário exegético. São Paulo: Edições Paulinas, 1989. NOGUEIRA, P. A. S.; OTTERMAN, M.; ADRIANO FILHO, J. Apocalíptica cristã-primitiva. Uma leitura para dentro da experiência religiosa e para além do cânon. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Amerciana 42/43, 2002, p. 162-190. RICHARD, P. As diversas origens do cristianismo. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana 22, (1995): 8. RODRIGUES, E. O Anúncio do reino de Deus em Q9.57-62. Expectativas Apocalípticas e Sabedoria Cotidiana no discurso do Filho do Homem. Dissertação de Mestrado do Curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo: Umesp, 2003. THEISSEN, G.; MERZ, A. O Jesus Histórico. Um manual. São Paulo: Loyola, 2002. (Bíblica 33). Claretiano - Centro Universitário EA D 3 A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus 1. OBJETIVOS • Entender o que é a hipótese da Fonte Q. • Compreender a reconstrução da Fonte Q . • Identificar a relevância do estudo da Fonte dos Ditos para a aproximação do contexto imediato posterior à morte de Jesus, no qual estavam inseridas as primeiras comunida- des cristãs. • Indicar a relevância da Fonte dos Ditos para a reconstru- ção do Jesus Histórico e das primeiras comunidades cris- tãs. • Mostrar a relação entre Fonte dos Ditos e os Sinóticos. 2. CONTEÚDOS • Gênese da hipótese Fonte Q: datação, lugar de origem, gêneros e formas literárias. © Evangelhos Sinóticos92 • Estudos recentes sobre Q. • Conclusões do pesquisador John Kloppenborg sobre a Fonte dos Ditos e as reações de seus debatedores. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Para que esse aprendizado seja construído de modo sa- tisfatório, tenha em mãos uma bíblia e confira as refe- rências que serão utilizadas. 2) Leia atentamente a unidade e, a seguir, formule uma sín- tese com seus principais pontos. 3) Após ter lido os conteúdos que dizem respeito à Fonte Q, estabeleça a relação entre ditos de sabedoria e mol- duras narrativas, as "creias". Mas atenção à diferencia- ção entre um e outro! 4) Busque perceber a relação entre as tradições teológicas da hipótese de Q e os possíveis grupos que a constituí- ram, considerando-as como "espelhos" dessas comuni- dades. 5) Como exercício exegético, leia trechos dos Evangelhos, especialmente, Mateus e Lucas e identifique ditos de sa- bedoria atribuídos a Jesus e versos que correspondem a narrativas formuladas pela autoria dos evangelhos. 6) Como importante leitura de referência a respeito dos conteúdos apresentados nesta unidade, sugerimos o ar- tigo de periódico: Woodruff, Archibald Mulford. A fonte Q nas margens do mundo literário. In: Estudos da Reli- gião 22 (2002): p. 37-71. 7) Saiba mais a respeito do Evangelho de Tomé no tópico Leitura complementar. Além disso, você pode consultar: MEYER, Marvin. O Evangelho de Tomé. As sentenças de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 8) Para enriquecer seu conhecimento a respeito da Fonte Q, confira WOODRUFF, Archibald Mulford. A Fonte Q Claretiano - Centro Universitário 93© U3- A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus nas margens do mundo literário. p. 51. Alguns estudio- sos defendem que Q, assim como outras fontes antigas do judaísmo, misturam gêneros. Confira ALLISON, Dale C. Jr. The Jesus Tradition in Q. Pennsylvania: Trinity Press International, 2000. p. 42. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, procuramos formular as principais hipó- teses de formação dos Sinóticos, mostrando sua interdependência em relação ao Evangelho de Marcos. Tivemos a oportunidade de ver como os Sinóticos são relevantes para a compreensão das ori- gens cristãs. Nesta unidade, vamos estudar a Hipótese da fonte Q, mais conhecida como "Fonte dos Ditos" ou "Fonte Q". Também, nesta unidade, usaremos as designações Fonte dos Ditos e Hipóte- se de Q por nos parecerem mais adequadas ao contexto brasileiro. É importante entender que a Fonte dos Ditos é, ainda, uma hipótese, mas as publicações que versam sobre ela têm, cada vez mais, alcançando notoriedade em função dos argumentos sólidos que os estudiosos dessa fonte têm apresentado. Assim, tomar conhecimento desta discussão pode fornecer relevante conheci- mento que subsidiará a aproximação dos Evangelhos Sinóticos e, consequentemente, das origens da cristandade. 5. GÊNESE DA HIPÓTESE FONTE Q – A FONTE DOS DI- TOS DE JESUS De acordo com o estudioso alemão Johann Jacob Griesbach (século 18), os materiais de Mateus, Marcos e Lucas estruturam-se de maneira semelhante em conteúdo, enfoque e sequência geo- gráfica (THEISSEN, 2002). Por isso, Griesbach denominou os três evangelhos "Evangelhos Sinóticos", porém negou a hipótese de uma fonte de declarações de Jesus extracanônica. © Evangelhos Sinóticos94 Griesbach aceitava a hipótese mais antiga segundo a qual o livro de Mateus tem prioridade. Assim, Marcos e Lucas seriam de- pendentes de Mateus e o teriam sintetizado. Essa hipótese foi re- centemente defendida por Willian R. Farmer, mas não encontrou muito apoio entre os estudiosos da Bíblia (KÖester, 2005, p. 49). O primeiro a propor a existência de certa coleção de decla- rações de Jesus que teria sido incorporada aos Evangelhos foi Frie- drich Schleiermacher (1768-1834). Sua proposta ficou conhecida como "hipótese do fragmento" e afirmava que a forma mais an- tiga dos Evangelhos era constituída por diversos fragmentos que colecionavam tradições sobre Jesus. Tal proposta assemelhava-se a hipótese das Duas Fontes, explicitada na Unidade 1, já que pro- punha a existência de uma coleção específica de Ditos de Jesus e outra de histórias e milagres (KÖester, 2005, p. 49). Segundo a hipótese das Duas Fontes, proposta de modo completo em 1838 por Christian Gottlob Wilke e Christian Her- mann Weisse (1998, p. 1-96), Mateus e Lucas utilizaram material marcano para escrever seus evangelhos. Assim, considerou-se Marcos o evangelho mais antigo e que foi usado tanto por Mateus como por Lucas. Quanto aos paralelismos entre Mateus e Lucas, independentes da fonte Marcos, foram explicados com base na hi- pótese da existência de certa fonte autônoma, constituída quase que exclusivamente por ditos de Jesus; daí o surgimento da Fonte dos Ditos de Jesus (WEISSE apud SCHWEITZER, 1998). Por volta do século 19, essa fonte passou a ser conhecida como "Q" – abreviatura de Quelle, que em alemão significa "fon- te", por isso Fonte Q. A tradução de epíteto para o português, por- tanto, seria "Fonte fonte". Em razão dessa designação, no Brasil e na América Latina, os nomes mais conhecidos são: "Fonte Q"; "Fonte dos Ditos" ou "Fonte das sentenças de Jesus". Datação A Fonte dos Ditos possui aproximadamente 250 versos co- muns em Mateus e Lucas que são declarações (logias) de Jesus. É Claretiano - Centro Universitário 95© U3- A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus datada entre os anos 40 e 55 EC. Contudo, essa datação não en- contra consenso entre os pesquisadores. Parte desse material, mas não todo, é constituído por ensinos que demonstram alto grau de paralelismo verbal. Essa característica é importante, pois possibi- lita a hipótese de ser uma fonte alternativa escrita em aramaico/ hebraico que se diferencia dos outros ensinamentos de Jesus con- tidos nos Sinóticos, principalmente quanto à forma. A discussão em torno da redação de Q, identificação de estilos, do redator ou dos evangelistas, é contemplada pelo grupo de pesquisas The In- ternational Q Project. A divisão da Fonte dos Ditos Para John S. Kloppenborg (1987, p. 88-101) e Leif Vaage, a Fonte dos Ditos divide-se em três estratos com comunidades de tradições religiosas e teologias diferenciadas, que assim foramclassificadas: • Q1: estrato sapiencial. • Q2: estrato de tradição profético-apocalíptica. • Q3: estrato formado pela narrativa da tentação, própria de Lucas 4. De acordo com esses pesquisadores que compõem a Escola de Claremont, o estrato Q1 constituiu-se a base de creias. E o que são "creias"? A creia era utilizada como aforismo no sentido de máxima de sabedoria, isto é, era uma frase simples que trazia um princípio para algum ensino. A creia geralmente era atribuída a uma autori- dade e era acompanhada por elementos característicos. As creias eram pequenas anedotas, centradas em uma personagem, em que a ênfase recaía sobre as palavras faladas pela personagem em uma determinada situação, ou, eventualmente, de uma ação da personagem. Elas serviam muito bem ao estudo da filosofia cínica e outras manifestações mais populares de filosofia, mas também © Evangelhos Sinóticos96 para generais e políticos. Uma forma rudimentar da creia pode ser encontrada na Fonte Q (Woodruff, 2003). Também é possível encontrar a definição de "creia" no texto de BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998. p. 76-88. (Bíblica 23). Vejamos: 1) Era introduzida por "ele disse". 2) Poderia iniciar como resposta a certa questão, por exem- plo: "e respondendo disse". 3) Poderia vir como resposta à exclamação originada de al- gum fato ou circunstância. 4) Poderia ser constituída de único período gramatical ou vários. 5) Envolvia ações ou ditos, às vezes, ambos. 6) Continha duas séries de pronunciamentos, um em res- posta ao outro. Para melhor exemplificar o que estudamos anteriormente, vamos retomar a leitura do trecho Mateus 8, que estudamos an- teriormente. 18 Vendo Jesus que estava cercado de grandes multidões, ordenou que partissem para a outra margem do lago. 19 Então, chegou-se a ele um escriba e disse: "Mestre, eu te seguirei para onde quer vás". 20 ao que Jesus respondeu: "As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabe- ça". 21 Outro dos discípulos lhe disse: "Senhor, permite-me primeiro ir enterrar meu pai". 22 Mas Jesus lhe respondeu: "Segue-me e deixa que os mortos en- terrem seus mortos". Podemos observar que o verso 18 corresponde à introdução, uma espécie de moldura narrativa para a história que será apre- sentada. Esse verso fornece o ambiente e as circunstâncias em que Claretiano - Centro Universitário 97© U3- A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus Jesus teria proclamado os ditos que seguirão. Para que isso ocorra, ele foi confrontado por um "escriba" (v. 19), a quem respondeu com um dito de sabedoria (v. 20). Em seguida, outro discípulo dis- se algo (v. 21) que também mereceu resposta na forma de dito (v. 22). Reparem que os ditos, aparentemente, não possuem ligação direta com as perguntas que foram feitas a Jesus. Alguns especia- listas da Bíblia sugerem que tais ditos teriam sido pronunciados em ocasiões diferentes e inseridos artificialmente na narrativa construída por Mateus e Lucas, que não se encontra em Marcos e, portanto, seria originária da Fonte dos Ditos. Outra conclusão possível é que esse estrato teria paralelo formal e histórico com a escola filosófica cínica (cf. SILVA ,1996). Isso porque o estrato de Mateus 8,18-22/Lucas 9,57-62 tem para- lelo com o estilo despojado dos filósofos cínicos que perambula- vam pela Decápole. Os paralelos apontados estão: 1) na forma de se vestir; 2) na forma de viver conforme a natureza; 3) no desprezo pela família e pela pátria; 4) no respeito à figura do mestre e seus ensinos como pro- grama de vida. Burton Mack apud Mack; Vernon Robbins (1989, p. 31-67) apontam "creias" no estrato Q2, tais como a Cura do servo do Centurião (Mt 8,5-13; Lucas 7,1-10) e as histórias acerca de João Batista. Para esses pesquisadores, as "creias" centravam-se na fi- gura de certo herói e tanto Jesus como João Batista poderiam ser compreendidos como heróis em torno dos quais essas histórias ocorreram. Assim, os ditos teriam sido colecionados em histórias cuja sequência de temas teológicos era interessante à comunidade. Nessa perspectiva, nos evangelhos, Jesus foi apresentado como sábio, uma forma semelhante à apresentação feita no Evangelho de Tomé (EvT). © Evangelhos Sinóticos98 Confira alguns "logias" do EvT: 14 Jesus disse-lhes: "Se jejuardes, gerareis pecado para vós; se orar- des, sereis condenados; se derdes esmolas, fareis mal a vossos espíritos. Quando entrardes em qualquer país e caminhardes por qualquer lugar, se fordes recebidos, comei o que vos for oferecido e curai os enfermos entre eles. Pois o que entrar em vossa boca não vos maculará, mas o que sair de vossa boca – é isso que vos maculará." 15 Jesus disse: "Quando virdes aquele que não foi nascido de uma mulher, prostrai-vos com a face no chão e adorai-o: é ele o vosso Pai." 16 Jesus disse: "Talvez os homens pensem que vim lançar a paz so- bre o mundo. Não sabem que é a discórdia que vim espalhar sobre a Terra: fogo, espada e disputa. Com efeito, havendo cinco numa casa, três estarão contra dois e dois contra três: o pai contra o filho e o filho contra o pai. E eles permanecerão solitários" (cf. Mt 10,34- 36; Lc 12,51-53). Os "logias" da Fonte dos Ditos e os do EvT correspondem a ensinos cujo conteúdo nos remete às tradições sobre Jesus; porém, esses estratos possuem poucas narrativas. Estudiosos supõem que Q era literatura direcionada ao público jovem e basicamente, cons- tituída a partir de duas formas de ditos: gnomes e creias. Os Gnomes eram uma coleção de sentenças usada na educação básica e avançada, com objetivo de fundamentar valores éticos e morais. As créias eram semelhantes a ditos de caráter persuasivo (KLO- PPENBORG, 1987, p. 290). Para o estudioso Kloppenborg (1987, p. 290 e 309) existe certa relação entre o gênero sapiencial e a forma "creia", também típica da retórica grega, que consta em Q1. Contudo, a classificação da Fonte dos Ditos em estratos (Q1, Q2 e Q3) tem sido questionada em pesquisas realizadas pela ar- queologia literária e pela retomada de estudos da apocalíptica em tradições antigas sobre Jesus. Kloppenborg, Crossan, Vaage, entre outros, defendem a es- tratificação da Fonte dos Ditos com evidente relevância de Q1, tendo como argumento o gênero literário dos ditos predominante Claretiano - Centro Universitário 99© U3- A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus que seria a "creia". Assim, a Fonte dos Ditos teria grande influência da cultura e filosofia grega. Nessa pesquisa, entretanto, não é dada importância à iden- tidade religiosa de seus leitores e às suas tradições marcadamente de origem judaica. Em outras palavras, trata-se de uma possibilida- de de abordagem tanto da Fonte Q, como do EvT e dos Sinóticos que os toma como literatura marcada pela influência da cultura helênica e, nesse sentido, desconsidera a matriz judaica dessas produções. Gêneros e formas literárias O debate em torno da hipótese de Q, especificamente rela- cionado à redação, tem avançado nos últimos anos. Atualmente, os estudiosos não se concentram tão somente na busca de um gênero literário determinado ou da forma que seja predominante em todo documento. Desse modo, reconhecem que é possível en- contrar, na mesma obra, gêneros e formas literárias de tradições distintas. Se em certo evangelho é possível identificar sinais da for- ma "creia", isso não significa que seja assim por única influência da retórica grega, antes, indica traços dessa tradição. Na forma "creia", a figura de algum mestre, líder ou milagrei- ro se destaca. É com base nesse personagem que se dão os acon- tecimentos, como se fossem atos de uma peça: cena, provocação e resposta. Os ensinos são extraídos dessas cenas e caracterizados como princípios para o cotidiano dos grupos que lêem esses programas. Inicialmente, narrativas de milagres, curas e exorcismos, eventos comumente destacados na "bios" ou na "creia"grega não teriam tanta importância quanto a sabedoria contida nos ditos, conside- rados "regra para a comunidade". Assim como os Sinóticos não são estáticos, a Fonte dos Ditos foi constituída por certa dinâmica literária que permitiu o encon- © Evangelhos Sinóticos100 tro de vários gêneros e formas literárias no seu texto. Entre os di- ferentes gêneros estava a "creia". Essa dinâmica é que possibilitou a pluriformidade do texto da audiência da Fonte dos Ditos. Em face do debate promovido pela Crítica da Forma e da História da Religião, o texto da Fonte dos Ditos estaria diretamente relacionado ao Sitz im Leben de um grupo, uma situação vivencial composta por diversidade: A correta compreensão da crítica da forma repousa sobre o enten- dimento de que a literatura que surgiu da vida de determinada co- munidade, até mesmo a comunidade cristã primitiva, emerge de condições e necessidades existenciais bem definidas, a partir das quais se desenvolvem um estilo bem definido e formas e categorias bem específicas. Assim, toda categoria literária tem sua 'situação vivencial' (BULTMANN, 1963, p. 4). Dessas afirmações, segue que os estratos da Fonte dos Ditos: Q1, Q2 e Q3 refletiriam a situação de comunidades cristãs do perí- odo. O estrato sapiencial, composto de declarações e ensinamen- tos de Jesus, seria o mais antigo em função da proximidade dos acontecimentos relacionados à vida e morte de Jesus. O estilo mais direto, sem longas narrativas, ilustra essa pro- ximidade. O estrato Q2, composto de declarações e narrativas em tom apocalíptico (com a presença de temas como a vinda do Filho do Homem, o julgamento e o reino de Deus) teria relação com a expectativa frustrada dos primeiros cristãos, em relação ao retor- no imediato de Jesus. Por fim, o estrato Q3, teria como conteúdo principal a narrativa da Paixão, uma tradição já distante de Jesus, formulada e promulgada pelos discípulos do Nazareno como res- posta à ansiedade que se instalara entre os primeiros cristãos. Por essa razão, ao se proceder a leitura da Fonte dos Ditos não se pode falar apenas em sabedoria. Em Q também é possível o encontro de elementos proféticos. No debate acerca dos gêneros e das formas literárias, vale ressaltar a relação dialógica e circular entre textos e comunidades, autores-redatores e audiência. Dessa relação é que emergem os Claretiano - Centro Universitário 101© U3- A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus estilos literários que hoje designamos (classificações modernas) e que nos auxiliam a reconstruir a identidade social e religiosa dos cristãos por trás da Fonte dos Ditos. A presença dessas formas literárias é fundamental para a natureza da literatura sinótica, do mesmo modo como ocorre na Fonte dos Ditos. A Crítica das Formas demonstrou que os evangelhos foram constituídos de perícopes com formas diferentes, dentre as quais se destacam o relato de milagre, a "creia", o aforismo e outras mui- tas delas identificadas na tradição judaica. Além de verificarmos a presença dessas formas, talvez, mais rudimentares na Fonte dos Ditos, igualmente, elas fazem parte dos Sinóticos, o que corrobora ao argumento da interdependência entre os Evangelhos. Contudo, em razão de que as memórias, os ensinamentos e as tradições de Jesus teriam sido documentadas de formas tão diferentes? Como dissemos anteriormente, as classificações que usamos hoje em dia constituem designações modernas, desenvolvidas por teólogos, exegetas e estudiosos de nosso tempo. Para formulá- -las, eles usaram o referencial teórico e metodológico de nosso tempo, de modo que outras ciências (como a literatura, semiótica, história, sociologia etc.) contribuíram para as análises dos textos bíblicos. Elas servem como instrumentos de análise, de mediação, entre nós e o texto antigo: entre o nosso horizonte de conheci- mentos e o mundo antigo. Provavelmente, as razões que moveram os autores e redato- res do período bíblico a escreverem dessa ou de outra forma de- terminada, nunca nos serão absolutamente claras. Podemos intuir, juntamente com os críticos da forma, que essas formas têm a ver com situações de lamento, de esperança, de alegria ou de profun- da crise na experiência religiosa daqueles primeiros cristãos. © Evangelhos Sinóticos102 Hipóteses quanto à função da Fonte dos Ditos Acredita-se que a Fonte dos Ditos tenha algumas funções que atendiam às necessidades dos primeiros cristãos. Existem pelo menos duas hipóteses quanto à função de Q: 1) Função catequética, por se assemelhar a um programa de ensino formado por ditos colecionados. 2) Função de manual, para missionários itinerantes (KLO- PPENBORG, 1987, p. 16). A primeira hipótese, aceita por estudiosos como Leif Vaage, mostra que a comunidade em torno do documento Q considerava essa tradição espécie de regra para seu modo de vida, pois abor- daria temas políticos, econômicos e sociais (KLOPPENBORG, 1987, p. 37). Assim, uma conclusão possível sobre a Fonte dos Ditos é que com base nas "creias" que compunham essa tradição, juntamente com aforismos, relatos de milagres, de curas e outras narrativas (essas mais tardias), a fonte reunia ditos de sabedoria que serviam ao ordenamento dos primeiros cristãos e ao norteamento do com- portamento deles em grupo. Os ditos teriam funcionado como parâmetros que em conjunto formulavam um código ético-moral. Esse código estabelecia uma nova postura que se diferenciava do costume judaico e da interpretação da Lei que faziam suas lideran- ças, entre elas, os sacerdotes, fariseus, saduceus e escribas. De certo modo, os ditos atribuídos a Jesus e reunidos nessa fonte contestavam a autoridade e a legitimidade das normas es- tabelecidas pela tradição judaica. Todavia, não se descolavam de uma lógica de pensamento e de exegese que era peculiar à religião dos judeus. Os ditos propiciavam as audiências, oportunidade de reflexão e de crítica social. Consequentemente, a mudança de comportamento – talvez pudéssemos dizer: a conversão ao cristianismo –, ou a opção pelo modelo de religiosidade judaica estabelecido, ocorreria mediante escolha. Claretiano - Centro Universitário 103© U3- A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus Lembrando que a escolha não era, naquele período da his- tória, algo individual e dado em função da vontade do sujeito, mas algo decidido predominantemente pela figura masculina de cada unidade familiar ou do clã. Atitudes individuais que colocassem em destaque a figura do sujeito não eram comuns naquela época. A noção de indivíduo como ator e sujeito da história é uma con- cepção moderna (estabelecida a partir do século 16) e, portanto, recente. Apesar de a Fonte dos Ditos ser considerada hipótese, per- manece sempre na pauta de discussão dos estudiosos da literatura bíblica, ora com maior, ora com menor aceitação. A seguir, duas leituras complementares para auxiliar na aprendizagem sobre o assunto tratado nessa unidade Gestos e Palavras que Educam ––––––––––––––––––––––––– No estudo do gênero biografia, pudemos conhecer características típicas dele: uma personagem central, sua história com enredo (seqüência de fatos), outras personagens, espaço e tempo definidos. A forma créia, assim como a biografia, se relaciona com o gênero maior narrativa. Contudo, ela é considerada ficção e tem como elemento marcante a ênfase educativa. Essa forma também pode ser encontrada em coleções de sabedoria que eram típicas dos mestres gregos e tinham a função de ilustrar os princípios e os valores que deveriam ser vividos no cotidiano e refletidos no comportamento diário dos jovens discípulos, público principal dos filósofos. As créias podem ser encontradas dentro de narrativas e se destacam pela fun- ção pedagógica que exercem. Geralmente, a créia apresenta: (1) breve introdução; (2) anúncio de alguém que vai falar ou responder; (3) um dito de sabedoria central. A partir desse dito, que muitos de nós conhecemos como "provérbio", o mestre ilustracerto ensino. É importante notar que esse ensinamento pertence a um programa educativo, portanto, tem o objetivo de contribuir para a formação de sua audiência. Neste sentido, os ditos pretendem orientar o público no desenvol- vimento da ética, da moral e da postura que devem ter frente a sociedade. As créias do Novo Testamento, que provavelmente foram elaboradas sob a in- fluência dos gregos, são coleções de ditos de sabedoria que têm o objetivo de persuadir seus ouvintes e leitores a seguirem o modelo de conduta de Jesus. Neste sentido, a créia era usada como máxima, isto é, um princípio básico para a compreensão de alguma coisa Você já deve ter ouvido algo parecido com isso: "Quem fala demais dá bom dia a cavalo", "Em boca fechada não entra mosca" ou "Em certas horas falar é prata © Evangelhos Sinóticos104 e calar é ouro" etc. Todas essas frases são máximas de comportamento que ilustram o mesmo ensinamento: antes de dizer qualquer coisa, é melhor refletir. Assim também funciona a créia; vejamos um exemplo em Lc 9.57-62. Neste texto temos: (1) uma breve introdução (v.57); (2) resposta de Jesus, caracterizada pela fórmula "Jesus respondeu" (v.58); (3) resposta de Jesus, dada na forma de um dito de sabedoria (v.58b). Esse esquema se repete nos vv. 59-60 e 61-62. Logo, temos três créias nessa seqüência narrativa. A partir do dito, a comunidade atualizava certo ensino de acordo com seu contexto e o aplicava na sua vida. Por isso, podemos classificar o uso desse gênero em dois momentos. No primeiro momento, no caso dos gregos, era um exercício retórico praticado pelos discípulos de algum mestre com o objetivo de persuadir a audiência. No segundo, no caso de Jesus e seus discípulos, a créia era dada para que as comunidades aprendessem o modelo ideal de vida, de acordo com a vontade de Deus. Em Mc 12,17, Jesus arremata brilhantemente a polêmica que alguns queriam levantar contra ele, usando um simples dito irônico que desconcerta os espertos fariseus. Extraído de: RODRIGUES, M. P. (Org.); RODRIGUES, E. (et.al.) Palavra de Deus, palavra da gente. As formas literárias da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2004. p.145-146. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O Evangelho de Tomé ––––––––––––––––––––––––––––––––– O Evangelho de Tomé (EvT) é a segunda obra do Códice II de Nag Hammadi (NHC II 2). Descoberto em 1945, localizado em 1948 e apresentado para re- produção fotográfica em 1957. Foi dado a conhecer em traduções francesas e alemãs em 1958 e editado em 1959. Somente na década de 60 atingiu os meios de comunicação social que propiciaram estudos desse documento. A partir de então multiplicaram-se as traduções. O documento O EvT escrito em língua copta é muito distinto do Evangelio de Tomé o filósofo israelita (EvTom), que é um Evangelho da Infância cuja leitura se manteve em círculos eclesiásticos durante muitos séculos e só nos chegou na forma completa durante anos por meio de tradução eslava. O EvT permitiu a identificação dos ditos desconhecidos de Jesus, descobertos fragmentariamente em grego entre os papiros de Oxirrinco (Poxyr) em 1897 e 1903. Existem oito ditos fragmentados nesses papiros e graças a descoberta do EvT sabemos que correspondem a uma versão grega da mesma obra. As dife- renças entre os textos podem se dever à tradução livre ou omissões acidentais (além de alterações deliberadas). Data e lugar de composição O manuscrito escrito em copta é do século 4o. A composição dos fragmentos gregos fica em torno de 150. Há hipóteses quanto à composição do documento variando entre século 1º e 3º. A opinião mais corrente entre os primeiros estu- diosos é que o documento foi redigido em meados do século 3o, a partir de 140. Claretiano - Centro Universitário 105© U3- A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus Nos últimos anos desenvolve-se com força a tese de que o EvT é um texto inde- pendente dos Sinóticos e que foi compilado da metade ao fim do século 1o. Testemunhos Antigos Há testemunhos externos desde o século 3o a respeito do EvT. Dentre os antigos autores eclesiásticos que o mencionam, encontram-se: Hipólito (Elen V 7,20; 8,32), Orígenes (HomLc I 2), Eusébio de Cesaréa (E. III 25,6), Cirilo de Jeru- salém (Cathechesis IV 36; VI 31) e Jerônimo e Ambrósio, que dependem de Orígenes. Judas Tomé, o Gêmeo É Tomé "o chamado gêmeo" (Jo 11,16; 20,24). Judas Tomé, segundo o texto siríaco de Cureton em João 14,22 e mencionado de Taciano, São Efrén, Corres- pondência de Abgar, Doctrina Apostolorum é Tomé gêmeo para HchTom. Tudo isso está no âmbito das tradições orientais centradas na Síria. Temos aqui uma identificação de Judas, o irmão de Jesus e Tomé, que trará alguma confusão pos- terior (em que Tiago e Judas Dídimo, ambos irmãos de Jesus, foram entendidos como gêmeos). Está claro que Tomé exerceu uma fascinação pela especulação gnóstica. A glori- ficação de Tomé aparece também nos HchTm, o único dos cinco textos apócrifos utilizados pelos manuscritos que nos chegou por inteiro. A obra, composta em siríaco na primeira metade do século 3o, narra o embarque de Tomé para Índia e sua missão na corte do rei Gundafor, dado que nos remete à Pérsia. Também Eusébio de Cesárea, no começo do século 4º, atribui a Tomé a pregação do evangelho na Pérsia. Gênero Literário A designação dos ditos de Jesus como logias procede dos fragmentos de Papías (cf. Eusébio, H.E. III 39,1.16). O EvT 38 se refere a esses ditos como "estas palavras", o que poderia ser a tra- dução de logos, uma designação corrente na tradição dos Sinóticos para referir- -se às palavras de Jesus (cf. Mt 7,24; Lc 6,47; Jo 8,52). Os Sinóticos nos oferecem vários paralelos formulados diferentemente em di- versos contextos. Também há diferenças nos ditos de Jesus em 1Clem 13,1-2 e 46,7, que oferece uma composição de ditos formulados segundo um molde mais uniforme. O EvT é uma mostra do gênero literário Coleção de ditos, assim como seria a Fonte dos Ditos. Seu descobrimento foi entendido como confirmação indireta do documento Q, a fonte comum de Mateus e Lucas quando não seguem Marcos, segundo a hipótese das "duas fontes", que é, na pesquisa atual, a hipótese pre- dominante para explicar as relações entre os textos Sinóticos. Apresentação baseada em: PIÑERO, Antonio (Ed.). Textos gnósticos - Biblioteca de Nag Hammadi II. Evangelios, hechos, cartas. Madri: Editorial Trotta, 1999. p. 55-78. (Colección Paradigmas: Biblioteca de las Ciencias de las Religiones). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 6. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: © Evangelhos Sinóticos106 1) Qual a relação entre a hipótese de Q e o contexto histórico, político e cultu- ral dos primeiros cristãos e as primeiras comunidades cristãs? 2) Em que medida a hipótese de Q permite a reconstrução do Jesus Histórico? 3) Qual a relevância de registrar as tradições, as memórias e os ensinamentos de Jesus por meio de ditos de sabedoria? 4) Você concorda com a tese de que Jesus de Nazeré teria semelhanças com os filósofos cínicos que andavam pela Decápole? 7. CONSIDERAÇÕES É fascinante a hipótese da existência de uma Fonte de Ditos, uma coleção de ditos de sabedoria de Jesus proferidos em aramai- co/hebraico, em ocasiões e lugares diferentes e compilados em um documento que se perdeu. Certamente, se fosse confirmada pela descoberta arqueológica da coleção, tantas vezes sugerida por his- toriadores antigos e estudiosos modernos, seria uma descoberta memorável para a história da pesquisa da literatura bíblica. Ela nos permitiria reconstruir com mais tranquilidade o que talvez tenha sido o cotidiano das primeiras comunidades cristãs. Embora não a tenhamos "em mãos", as reconstruções que têm sido feitas, cuidadosamente, nas últimas décadas, nos dão conta de que essa hipótese tem – no dizer de Archibald Woodruff, citado nessa apostila –, cada vez mais, "rosto, personalidade e endereço". Para nós,estudantes e pesquisadores da literatura neotes- tamentária, o estudo da Fonte dos Ditos é necessário, diria indis- pensável. Prova disso são as publicações acerca desse tema, cada vez mais freqüentes. Estudar a Fonte dos Ditos de Jesus nos apro- xima não apenas do Jesus Histórico e das tradições que sobre ele foram reunidas nos Sinóticos, mas também ajuda-nos a compre- ender quais dessas tradições foram consideradas relevantes para as primeiras comunidades, a ponto de terem sido selecionadas e compiladas nos Evangelhos. Entender a Fonte dos Ditos nos auxilia a entender o movimento interno da literatura sinótica. Claretiano - Centro Universitário 107© U3- A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998. (Bíblica 23). BULTMANN, Rudolf. Histoty of synoptic tradition. Oxford: Blackwell, 1963. CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. A vida de um camponês judeu do mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1994. HEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus Histórico. Um manual. São Paulo: Loyola, 2002. (Bíblica 33). KÄHLER, Martin. The so-called Historical Jesus and the Historical Biblical Christ. Minneapolis: Fortress Press, 1970. KLOPPENBORG, John S. Q Parallels. Synopsis, critical notes and concordance. Sonoma: Polebridge, 1987. KLOPPENBORG, John S. The formation of Q. Philadelphia: Fortress Press, 1987. KLOPPENBORG, John S. The Sayings Gospel Q and Quest of the Historical Jesus. In: Harvard Theological Review 89 (1996): 315-344. KÖESTER, Helmut. The Sayings Gospel Q and the quest of the historical Jesus. A response to John S. Kloppenborg. In: Harvard Theological Review 89/4 (1996): p. 2. Köester, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. História e literatura do cristianismo primitivo. v. 2. São Paulo: Paulus, 2005. KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. MACK, Burton L. A myth of innocence. Mark and Christian Origins. Philadelphia: Fortess, 1988. MACK, Burton L. Elaboration of the Chreia in the Hellenistic School. 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EA D 4 O Evangelho de Marcos 1. OBJETIVOS • Conhecer o panorama em que se situa o Evangelho de Marcos. • Compreender a conjuntura histórico-social, datação e da- dos sobre a autoria do Evangelho de Marcos. • Enumerar influências sobre a redação. • Identificar os temas teológicos do Evangelho de Marcos. 2. CONTEÚDOS • Autoria e datação. • Chaves metodológicas. • Conjuntura histórico-social. • Conteúdos do Evangelho de Marcos. • O "Cristo da fé" no Evangelho de Marcos. • Leitura política do Evangelho de Marcos. © Evangelhos Sinóticos110 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Para que esse aprendizado seja construído de modo sa- tisfatório, tenha em mãos uma Bíblia e confira as refe- rências que serão utilizadas. 2) Leia atentamente a unidade e, a seguir, formule uma sín- tese com seus principais pontos. 3) Leia o Evangelho de Marcos integralmente, estude essa unidade e se possível, leia algum comentário a respei- to desse evangelho. Atenção: Procure ler comentaristas apenas após você ter construído um panorama sobre esse evangelho, mesmo que seja inicial. Os comenta- ristas constituem ótimo instrumental de estudo e de aprofundamento teórico sobre textos primários como é o caso do Evangelho de Marcos, mas podem apresentar pontos de vista deterministas e pouco afeitos a críticas e revisões. Por essa razão, é importante construir uma leitura inicial e um arcabouço teórico, a fim de que tam- bém os comentaristas sejam lidos cautelosamente. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, procuramos entender o que é a hipó- tese da Fonte Q e sua relevância para aproximação do contexto imediato posterior à morte de Jesus. Isso nos ajuda não apenas a reconstruir o Jesus Histórico, mas também entender melhor as primeiras comunidades cristãs. Nesta unidade, conheceremos um pouco mais do Evangelho de Marcos. Como pudemos perceber, esse tem sido o evangelho apontado como o mais antigo a partir do qual, tanto Mateus quan- to Lucas tomaram material para a formulação de seus respectivos evangelhos. Claretiano - Centro Universitário 111© U4- O Evangelho de Marcos Estudar, pois, esse Evangelho e perceber com atenção a pe- culiaridade de sua escrita de seus temas e preocupações nos aju- dará a entender por que Mateus e Lucas consideraram necessário redigir material complementar, isto é, material próprio que evi- denciasse questões que Marcos não privilegiou em sua versão dos acontecimentos relacionados a vida e ministério de Jesus. Você notará que a escrita marcana é intensa e objetiva. Ape- sar de não ter caráter biográfico, em muitas ocasiões Marcos tam- bém usou creias e molduras narrativas para inserir os ensinamen- tos de Jesus. Para o estudo desta unidade, como das outras que se seguirão continuaremos a usar a Bíblia de Jerusalém. Então, vamos lá! 5. SOBRE A AUTORIA E DATAÇÃO A tradição tem atribuído a autoria do Evangelho de Marcos a João Marcos, seguidor próximo de Pedro (1Pd 5,13), nome que certamente credibiliza o conteúdo do Evangelho, mas sobre o qual a pesquisa nem sempre concorda. João Marcos foi companheiro de Paulo e Barnabé em sua primeira viagem missionária. O mais antigo testemunho da autoria de Marcos tem origem em Papias, bispo da Igreja em Hierápolis (cerca de 135-140 EC), testemunho que é preservado na História eclesiástica de Eusébio de Cesareia III, 39, 1-17. Segue o §15: Marcos, intérprete de Pedro, fielmente escreveu - embora de for- ma desordenada – tudo o que recordava sobre as palavras e atos do Senhor. De fato, ele não tinha escutado o Senhor, nem o seguido. Mas, como já dissemos, mais tarde seguiu a Pedro, que o instruía conforme o necessário, mas não compondo um relato ordenado das sentenças do Senhor. Portanto, Marcos em momento algum errou ao escrever as coisas conforme recordava. Sua preocupação era apenas uma: não omitir nada do que haviaouvido, nem falsifi- car o que transmitia. Segundo Eusébio, Papias descreve Marcos como "intérprete de Pedro" e acrescenta que o relato não foi construído de modo © Evangelhos Sinóticos112 "ordenado", mas o fez conforme recordava. Embora a Igreja antiga tenha tomado cuidado em manter a autoria apostólica direta dos Evangelhos, os Pais da Igreja atribuíram esse Evangelho a Marcos, que não era um apóstolo. Assim, declaram que o Evangelho de Marcos foi escrito após a morte de Pedro, acontecimento ocorrido durante as perseguições aos cristãos feitas pelo Imperador Nero, aproximadamente no ano 67 EC. Todavia, a esse respeito, diz Kümmel (1982, p. 111): Uma vez que Papias sustentou que Marcos está baseado na prega- ção de Pedro, não faltaram tentativas para provar que, em Marcos, Pedro sobressai de maneira toda especial ou pelo menos de fazer remontar a Pedro parte do material utilizado por Marcos. Mas nem a menção de traços censuráveis do caráter de Pedro (8:33; 9:5; 14:30s.66ss) nem as referências do papel de Pedro como porta-voz dos discípulos (1:36; 5:37; 8:29; 9:2; 11:21; 13:3; 14:33; 16:7) são suficientes para provar a afirmação de que tais dados remontam necessariamente a Pedro, uma vez que nada absolutamente há contra o fato de que tudo isso tenha sido simplesmente extraído da tradição. E o que há de firmemente estabelecido a respeito do material subjacente a Marcos e em que se teria ele baseado, como também a respeito da sua composição, não leva de forma alguma a nenhuma testemunha ocular como principal transmissor da tradi- ção "Se Papias nada tivesse insinuado, dificilmente ter-se-ia reivin- dicado para Pedro a autoria do material utilizado por Marcos em sua narração [...]. Em conseqüência, dificilmente ver-se-ia qualquer ligação especial entre Marcos e Pedro". O texto do Evangelho revela ter sido escrito antes da destrui- ção do Templo (70 EC). Em especial, o capítulo 13, o que permite situar a redação desse evangelho entre os anos 64/65 e 70 EC. Essa posição é coerente com a crítica que Marcos tece em relação ao Templo e ao comportamento das lideranças religiosas. Kümmel (1982, p. 116-117) entendeu que uma origem muito antiga para Marcos é pouco provável, pois "a evolução da tradição evangélica já se encontrava então muito desenvolvida e, em Mar- cos 13 pode-se provavelmente perceber pelo menos a suspeita da aproximação da guerra judaica". Entretanto, não há referência clara à destruição do Templo de Jerusalém (70 EC); daí a datação ser sugerida entre os anos 64 e 70. Há, ainda, pesquisadores que Claretiano - Centro Universitário 113© U4- O Evangelho de Marcos propõem uma data após 70, em função de uma leitura que per- cebe no capítulo 13 o "reflexo da situação dos cristãos de Roma", mas os argumentos levantados para a defesa dessa opinião não são convincentes. Sobre o lugar onde esse Evangelho foi escrito, também sem certeza, Roma tem sido apontada como lugar mais provável, com os testemunhos de Eusébio (História eclesiástica II, 15, 2) e Cle- mente de Alexandria (História eclesiástica VI, 14, 6). Essa opinião é sustentada, ainda, pelos diversos termos latinos de uso corren- te então, como: "módios" (4,21), "légion" (5,9,15), "spekoulá- tor" (6,27), "denárion" (6,37), "cséstes" = "sextarius", "kênos" = "census" (12,14) e outros dos quais o redator de Marcos fez uso (KÜMMEL, 1982, p. 116). Além dos "latinismos" de Marcos, outras evidências são apontadas como, por exemplo, o fato de ter men- cionado em 10,12 o direito que as mulheres têm de dissolver o matrimônio, que falta em Mt 5,32 e 19,9 (que seguiu a Lei judaica) e indicaria a atenção dada à audiência gentílica por um redator judeu. Mas, nesse tocante, esse é apenas um dos argumentos fa- voráveis à escrita em Roma. Outros autores preferem pensar que Marcos escreveu da pe- riferia da Palestina, tendo em vista que o Mediterrâneo antigo era dominado pelo Império Romano e a audiência desse Evangelho teria sido constituída. Por aqueles cujas vidas diárias suportavam o peso explorador do colonialismo. Um ponto de vista bastante difundido pelos teólogos da libertação que interpretam Marcos como texto que propõe o "discipulado radical (MYERS, 1992, p. 30-31). A escola que aponta a Palestina setentrional como lugar de origem desse Evangelho interpreta os latinismos de modo diverso: eles indicariam a penetração e o espalhamento da língua e cultura imperial pelas colônias conquistadas. Essa leitura de Marcos deve ser executada com atenção e critério, por isso, no próximo tópico, discutiremos as bases gerais sobre as quais essa interpretação se assenta. © Evangelhos Sinóticos114 6. CHAVES METODOLÓGICAS A hermenêutica da libertação é um modelo interpretativo muito comum e usado principalmente na América Latina. Seu le- gado de estudos bíblicos é ainda hoje muito profícuo. Consiste em um tipo de interpretação que enfoca os aspectos sociais e políti- cos elencados pelo texto de uma perspectiva crítica, apontando as "lutas" entre grupos (classes), a ideologia do período, a relação de poder existente, a opressão/espoliação de um grupo sobre outro (dominantes sobre dominados) e o controle que certos grupos mi- noritários exercem sobre outros majoritários, mas, às vezes, sem consciência política. A hermenêutica de libertação visa dar "voz" a essas mino- rias por meio de interpretações que extraiam do texto quais foram as estratégias de resistência e oposição dos grupos "oprimidos". Trata-se, portanto, de uma leitura invertida da história em que se privilegia não a "história oficial", mas a história contada nos inters- tícios da redação: a história dos dominados. O Evangelho de Marcos é um texto frequentemente inter- pretado por essa chave. Todavia, faz-se necessário algumas obser- vações de cunho metodológicas: • O referencial teórico da hermenêutica da libertação foi desenvolvido na modernidade e tem como principal arca- bouço conceitual o materialismo histórico. • O materialismo histórico foi cunhado como modelo de análise para compreensão de uma situação histórica es- pecífica, a saber: na modernidade a "luta de classes" en- tre patrões e proletários, dominantes e dominados. Os primeiros eram aqueles que detinham os meios de pro- dução, enquanto os segundos detinham a "mão-de-obra" assalariada e, segundo Karl Marx, desenvolviam trabalho explorado. O excesso de trabalho não remunerado gera o "excedente" que é o lucro da classe patronal. Dessa rela- ção desigual, nasce a injustiça social. Claretiano - Centro Universitário 115© U4- O Evangelho de Marcos • Ainda, segundo esse modelo teórico, países capitalistas, isto é, conhecidos pela estratégia de mercado empreen- dedor (concorrencial) são "imperialistas" que ocupam o centro, enquanto outros países em fase de desenvolvi- mento ocupam a "periferia". Embora essa explicação seja breve e por demais concisa, fica claro que essa construção teórica produziu conceitos como "clas- ses sociais", "luta de classes", "burguesia", "proletariado/opera- riado", "centro", "periferia", "imperialismo" e outras que operam em oposição e que são descritivas. Contudo, foram cunhadas na modernidade. O uso descuidado desse arcabouço teórico pode conduzir a uma exegese anacrônica, que não considera a conjuntura histórica específica da antiguidade e aplica indevidamente essas categorias a situações geopolíticas, sociais e culturais diferentes. Nesse tocante, Ched Myers (1992, p. 29) reconheceu a afini- dade entre o contexto histórico de Marcos e o de sociedades opri- midas atualmente. Reconheceu, também, a importância de uma leitura da Bíblia que gere crítica social para animar as comunida- des cristãs contemporâneas. Todavia, ele alertou: "[...] o imperia- lismo da antiguidade romana era bem diferente do imperialismo dos tempos modernos americanos [...]". Por isso, o uso que fez da categoria "imperialista" para desig- nar Roma foi rodeado de cuidado metodológico, visto que a con- cepção política de impériono Mediterrâneo antigo, seja ele egíp- cio, babilônico, persa ou romano, não se ajusta à noção atual que envolve capitalismo, mercado e mão-de-obra assalariada. Naquele tempo, o império era centralizado na figura de um monarca, não havia industrialização e o sistema econômico se processava por outras vias que envolviam agricultura, pecuária, artesanato. Decorre disso que também a noção de "colônia" ou © Evangelhos Sinóticos116 "povos colonizados" se diferencia, pois correspondia a povos "con- quistados" efetivamente. Diferentemente de hoje, quando se fala em "colonização cultural", por exemplo. Myers (1992) foi claro ao dizer que se empenhou em estudar Marcos no sentido de torná-lo um "manifesto para o discipulado radical". Ele explicitou as suas intenções assim como as justificou assumindo que a exegese e a hermenêutica são ciências que "tra- duzem" o texto, portanto, o traem. De certo modo, ele convidou os intérpretes a assumirem "o peso e a responsabilidade" de se reconhecerem como tradutores: "nossa situação de vida necessariamente determinará as pergun- tas que faremos sobre o texto e, portanto, influenciará fortemente o que ele diz e significa para nós" (MYERS, 1992, p. 27). A exegese comprometida com a crítica social não é inade- quada, tampouco incorreta, mas necessita ser amparada por pesquisa histórica e, principalmente, estudos que considerem o "tecido social" específico de cada grupo, sua cultura (costumes, práticas, crenças, valores e códigos), suas concepções políticas e modelos de organização. De modo geral, a conjuntura histórico-social da segunda me- tade do século 1o apresenta problemas que se agravam e situações de tensão entre Roma, elites locais e populações "colonizadas" que exigem atenção. O "pano de fundo" de Marcos corresponde a um período delicado, diferente do que Jesus de Nazaré tinha conhecido. Os personagens centrais dessa trama ainda são os mesmos: políticos romanos, elites locais, sacerdotes, fariseus, saduceus, escribas, seitas judaicas, colonos estrangeiros, escravos, pequenos agricul- tores, artesãos, pescadores e tantos outros. Compreender essa trama é fundamental para o entendi- mento não apenas da fonte Marcos, mas também para os outros Sinóticos, Mateus e Lucas, conforme veremos adiante. Claretiano - Centro Universitário 117© U4- O Evangelho de Marcos 7. CONJUNTURA HISTÓRICO-SOCIAL A partir de 64 EC, as comunidades cristãs foram perseguidas. Por essa época, Pedro e Paulo morreram. Esses fatos aconteceram em decorrência da acusação que o imperador Nero (Figura 1) fez de que os cristãos teriam incendiado Roma, uma versão que nos chegou por meio dos apologistas. Fonte: Capitoline Museum, Rome. Figura 1 Imperador Nero, 54-68 EC. O contexto de perseguição e de mortes consideradas injus- tas foi o "pano de fundo" histórico do qual emergiu a redação de Marcos (8,31). Mediante a constante ameaça de morte, esse Evan- gelho trazia uma "boa notícia": a salvação era consequência da fé em Jesus, modelo de resistência e força. Assim, a ressurreição de Jesus seria realidade para todos que lhe seguissem: "O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos che- fes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar" (8,31). As declarações de sofrimento de Jesus repetiriam-se, ainda, talvez, como estímulo àqueles que se identificassem com a dor do Nazareno (9,31; 10,32-34). A redação de Marcos providenciou a © Evangelhos Sinóticos118 cruz de Jesus como lugar de alívio: "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me", (8,34). Embora exista um hiato entre o tempo dos eventos de Jesus e o tempo de Marcos, ambos situaram-se na Palestina judaica do segundo Templo, sob ocupação romana. Destarte, havia corres- pondência histórica entre eles. Essa era começou com a morte de Herodes, o Grande, (4 a.C.). A divisão desse domínio em três tetrarquias e a subsequente transferência da Judeia para administração romana direta com a deposição de Arquelau (6 d.C.) foram acompanhadas por grandes manifestações de intranquilidade sociopolítica promovidas por ju- deus nacionalistas, as quais continuaram esporadicamente até a irrupção da revolta judaica (66 d.C.). A era terminou com a derrota dos rebeldes e a destruição do Templo pelo general romano Tito em 70 d.C. Do tempo de Jesus para o tempo de Marcos, parte do quadro político mudou. Houve uma resistência rural à dominação romana na Palestina, um recrudescimento que se transformou em insur- reição centralizada em Jerusalém. Em contrapartida, as relações tributárias permaneceram as mesmas, assim como o crescimento das seitas e do banditismo. Os partidos religiosos criticados por Jesus (fariseus, escribas e saduceus) permaneceram influentes. Com efeito, as similaridades de contexto histórico-político permitiram que o redator de Marcos inserisse em sua narrativa, temas "que exerciam pressão no tempo de Marcos". 1) O Estado romano apropriava-se indiretamente dos lu- cros dos agricultores por meio de tributos e do controle das mercadorias. 2) A lógica de organização da Palestina operava segundo dois sistemas: reciprocidade e redistribuição. O primeiro era baseado no clã, o qual foi herdado pelos judeus des- de as origens tribais e consistia em um sistema de tro- cas de presentes, produtos e doações, as quais em um determinado período de tempo deveriam ser retribuí- Claretiano - Centro Universitário 119© U4- O Evangelho de Marcos das. A circulação desses presentes gerava uma dinâmica econômica, visto que esse "sistema de dádiva" envolvia reciprocidade, lealdade entre clãs, famílias e linhagens. Esse sistema que caracteriza uma "confederação tribal" remonta à Lei de Moisés e teria permanecido até os dias da redação de Marcos. 3) O segundo sistema, o de redistribuição, consistia na or- ganização de trabalhadores em torno do Templo ou san- tuário que trabalhavam nas terras do Templo e o faziam de armazém. O produto dessas terras cultivadas era redistribuído para grupos ao redor. Esse sistema contri- buiu para a formação de pequenas aldeias, aos poucos, cidades que eram controladas pela classe sacerdotal ou pelo rei. 4) Esse tipo de economia regulada na Palestina romana era centralizada por Jerusalém que contava principalmente com a produção agrícola. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Essa produção provinha de solo seco (não-irrigado), constando predominante- mente de cultura de cereal, mas incluindo também frutas secas, azeitonas, vi- nho, linho, peixe, animais domésticos e alguns selvagens. A Galiléia era a região agrícola de natureza mais fértil na Palestina. Havia obviamente certo grau de latifundialização (grandes propriedades de terra nas mãos de estrangeiros), em- bora não tenhamos certeza do ponto a que isso chegava. Roma muitas vezes concedia terras conquistadas a dinastias nativas e a propriedade das terras cada vez se concentrava mais nas mãos de famílias reais durante o reinado de Hero- des, o Grande, e depois dele (37 a.C. – 4 d.C.). Na Galiléia havia fortes provas da persistência de pequenos grupos baseados na família, mas a alienação de terras e a manutenção decorrente era fato comum entre os pobres. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– © Evangelhos Sinóticos120 Fonte: Sociedades Bíblicas Unidas. Figura 2 Palestina nos tempos de Jesus. Devemos lembrar que a organização social e econômica dos judeus na Palestina estava relacionada à recepção da Lei. Como se sabe, a religião judaica era determinante para a formação do ethos que norteava os judeus em suas práticas sociais e políticas cotidianas, afinal, naquele tempo o mundo funcionava a partir da lógica do pensamento religioso (basta lembrar as orientações do Levítico). A religião ordenava o mundo e o classificava. Claretiano - Centro Universitário 121© U4- O Evangelho de Marcos De fato, o helenismo pode ser entendido como força queconduziu judeus à transformação de alguns de seus padrões de comportamento no mundo. Das aldeias às cidades, do modo de vida campesino para modo de vida "urbano". O movimento de interpenetração das culturas ocasionou impacto, tensões e disputas. Nesse processo, é de se supor que não houve apenas assimilação passiva da cultura helênica pelos judeus. Da mesma forma, a colonização praticada com os judeus deve ter sido diferente em relação à dominação exercida sobre outros povos. Os contatos entre povos são sempre diferentes e exigem adaptação de ambos os lados. De modo algum essa perspectiva ameniza a situação de dominação a que Israel foi submetida; porém, a romanização da Palestina implicou o desalojamento de muitos agricultores e suas famílias e a imputação de taxas que favoreciam apenas as autori- dades locais, submissas a Roma. Myers (1992, p. 23) destaca que a situação política na Pales- tina poderia ser assim resumida: As fortunas decadentes das realezas nativas; A administração romana direta e indireta da colônia; O poder do sumo sacerdócio e da aristocracia clerical, inclusive o partido dos saduceus; Os alinhamentos políticos mutáveis dos grupos de renovação judai- ca, principalmente dos fariseus e dos essênios; As várias frentes de resistência popular e de dissidência entre as massas. Cada uma dessas correntes contribui para a revolta de 66 d.C. Com efeito, a redação do Evangelho de Marcos emerge de um complexo quadro político e social. Um quadro de crise que in- cidiu sobre o redator e consequentemente em sua obra. Isso é o que verificaremos adiante. © Evangelhos Sinóticos122 8. ALGUNS CONTEÚDOS DO EVANGELHO DE MAR- COS O Evangelho de Marcos foi estruturado segundo a movimen- tação de Jesus pela Palestina. As idas e vindas de Jesus têm espé- cie de clímax na narrativa de morte e ressurreição. Após a introdução (1,1-13), Marcos descreveu o ministério público de Jesus na Galileia (1,14-9,50) e na Judeia (capítulos 10- 13), que resulta na paixão e ressurreição (capítulos 14-16). Alguns biblistas propõem que esse Evangelho pode ser lido como se fossem dois estratos, unidos: • Pela confissão de Pedro de que Jesus era o Messias (8,17- 30). • Pelo primeiro anúncio de Jesus e sua crucificação (8,31). Em relação aos outros Sinóticos, Marcos é o menor dos evan- gelhos. Diferentemente de Mateus, não contém genealogia e tam- pouco se importa em explicar o nascimento de Jesus, bem como seus feitos na Judeia. Alguns estudiosos o chamam de "evangelho da ação" em função da sensação que a narrativa transmite de mo- vimentação rápida. Enquanto Mateus e Lucas apresentam narrativas detalhadas acerca da vida e ministério público de Jesus com fios que se unem tecendo uma trama, Marcos é menos literário. Nesse Evangelho, são reconhecíveis unidades da tradição que foram transmitidas isoladamente ou grupos de unidades da tradição oral que foram juntas, como: os discursos polêmicos (2,1–3,35), as parábolas (4,1- 32), os milagres à beira do lago (4,35–5,43) e a narração da paixão. Kümmel (1982, p. 98) sugeriu que "o evangelista teria combi- nado entre si pequenas coleções de diversas tradições e unidades dispersas da tradição, resultando disso tudo uma apresentação mais ou menos coerente". Claretiano - Centro Universitário 123© U4- O Evangelho de Marcos Esse Evangelho não teve preocupação de caráter biográfico ou cronológico. A impressão de rapidez talvez se deva a ligação livre que o redator fez entre os textos mediante o uso de partículas como: kaí, pálin, ekeîthen, en ekeínas taîs hermérais, ecselthón e outras. Porém, isso não significa que o trabalho do redator tenha sido despretensioso, de mero compilador ou apenas transmissor de tradições. Embora seu estilo seja simples e não omita dados da tradição, o redator não elenca histórias uma atrás da outra sem intencionalidade. Ele fez uso de estratégias literárias a fim de preencher lacu- nas de tempo (3,22-30 em 3,21,31-35; 5,25-34 em 5,21-24,35-43; 6,14-29 em 6,6-13.30s; 11,15-19 em 11,12-14,20-25; 14,3-9 em 14,1s,10s; 14,55-64 em 14,53s,66-72), implementou no Evangelho "visão de conjunto" inserindo resumos entre as narrativas distin- tas (1,32-34; 3,7-12; 6,53-56) e apresentou coerente organização geográfica (Galileia; Galileia e adjacências; caminhada para Jeru- salém). Na maior parte desse Evangelho, Jesus esteve presente na Galileia, as curtas estadas estão registradas em Tiro (7,24), Tiro e Sidônia (7,1) e Ceareia de Filipe (8,27). No mais, a presença de Jesus nessa região foi constantemen- te registrada por Marcos; talvez por causa de algum motivo teoló- gico, como o lugar da atividade escatológica de Jesus e do ponto de partida da evangelização dos gentios. Assim, Jerusalém seria o lugar da morte de Jesus e do ódio dos judeus contra Jesus. Essas descrições de cenas, trajetos e lugares com frequência permitem que a audiência reproduza os ambientes. Mas também constituem um recurso retórico grego muito usado por Marcos, as creias. E, em especial, as creias de Marcos são novelísticas e dramáticas. Portanto, não se trata de um texto produzido de modo tão desordenado como fez crer o testemunho de Papias. Outra característica desse sinótico seria a pouca importância atribuída à Lei e aos costumes judaicos, traço pouco provável já que Marcos mencionou a cura de endemoninhados (1,21-28), le- © Evangelhos Sinóticos124 prosos (1,40-45), discutiu o jejum (2,18:22), descreveu controvér- sias com escribas (3,22-30) e fariseus (7,1-13), discutiu a estrutura familiar (3,31-35), detalhou o exorcismo de um geraseno (5,1-20), ensinou sobre o puro e o impuro (7,14-23) etc. Todos esses estratos dão conta de que o Jesus de Marcos era absolutamente judeu, inteirado dos assuntos, das práticas e das crenças judaicas e se propunha a discuti-las publicamente com as autoridades eclesiásticas da época. Ora, mesmo que o redator tenha sido dado a "latinismos" não se eximiu de discutir a Lei e a tradição judaica, mesmo que a subvertendo em muitos pontos. O Jesus de Marcos era crítico social e arguidor das lideran- ças religiosas. Marcos narra a respeito de um Jesus em confronto com a estrutura social legitimada por uma religião que fazia uso inadequado da Lei. Assim, quando discorreu sobre a família, por exemplo: A crítica de Jesus nada tem a ver com a fé, mas com o poder. O ata- que se dá contra o eixo de poder da família mediterrânea, que põe pai e mãe sobre filho, filha e nora. "(...) A família é a sociedade em miniatura, o lugar onde primeiro e mais fundamentalmente aprendemos como amar e ser amados, odiar e ser odiados, ajudar e ser ajudados, abusar e ser abusados". Assim, "na medida em que envolve poder, convida ao abuso do po- der e é nesse ponto preciso que Jesus a ataca (CROSSAN, 1995. p. 74-75). A partir do capítulo 14, o Evangelho narra a Paixão e a Res- surreição de Jesus. Episódio que coroa a vida e o ministério de Jesus, visto que o coloca como aquele que se doa pelo bem da humanidade e dramaticamente, em capítulo anterior, Marcos pon- tuou a razão da vinda de Jesus: "Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (10,45). 9. O "CRISTO DA FÉ" NO EVANGELHO DE MARCOS Como já foi dito, o Evangelho de Marcos não corresponde ao gênero biografia. Trata-se de uma interpretação acerca da vida e Claretiano - Centro Universitário 125© U4- O Evangelho de Marcos do ministério de Jesus; não tem caráter historiográfico, mas pode ser entendido como uma história, ou uma novela como alguns es- tudiosos têm proposto. Como os outros Sinóticos, Marcos caracteriza Jesus. Sua ver- são reivindica caráter crítico para o Nazareno, mas também aspec- to de Mestre (1,22), traço messiânico e autoridade sobre: 1) satanás e espíritos malignos (1,27; 3,19-30); 2) o pecado (2,1-12); 3) o sábado (2,27-28; 3,1-6); 4) a natureza (4,35-41; 6,45-52); 5) a doença (5,21-34); 6) a morte (5,35-43); 7) as tradições legalistas(7,1-13, 14-20); 8) o Templo (11,15-18). A julgar pelo seu prólogo "Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus" (1,1) e a evocação da tradição de Isaías, Mar- cos de fato pretendia convencer sua audiência da identidade divina e messiânica de Jesus, o Filho de Deus. Isso foi amparado, ainda, pelas narrativas do batismo (1,9-11) e da transfiguração (9,2-7), em que a identidade de Filho de Deus foi confirmada. Até mesmo os espíritos malignos reconheceram a autorida- de, o poder e a procedência divina de Jesus (3,11 e 5,7), ocasiões em que os espíritos foram chamados de "impuros", uma classifica- ção importante da cultura judaica que ordenava simbolicamente o mundo em "puro", "impuro", "do céu", "da terra", "da luz" e "das trevas"; categorias de oposição presentes na literatura judaica e que Marcos usou com frequência. Além disso, Jesus é reconhecido como Filho de Deus, na Pa- rábola dos vinhateiros homicidas (12,1-12) e na ocasião de sua morte, quando estrategicamente um centurião romano reconhece a origem divina de Jesus (15,39). Esse foi o "Cristo da fé" promulga- do pelo Evangelho de Marcos e que subjaz aos "Cristos" apresen- © Evangelhos Sinóticos126 tados pelos dois Sinóticos seguintes: com traços profundamente dependentes da tradição judaica. Proposta de Estrutura Introdução 1,1-13 Declaração sumária 1,1 Cumprimento da profecia do AT 1,2-3 O ministério de João Batista 1,4-8 O batismo de Jesus 1,9-11 A tentação de Jesus no deserto 1,12-13 I. O Ministério de Jesus na Galiléia 1,14–9,50 Os feitos de Jesus 1,14–6,13 Ministério fora da Galiléia 6,14–8,26 Ministério no caminho para a Judéia 8,26–9,50 II. O Ministério de Jesus na Judéia 10:1-16:20 Ministério na Transjordânia 10,1-52 Ministério em Jerusalém 11,1–13,37 A Paixão de Jesus 14,1–15,47 A Ressurreição 16,1-20 10. UMA LEITURA POLÍTICA DE MARCOS Após termos compreendido as peculiaridades do Evangelho de Marcos e nos familiarizado com as produções relacionadas a esse texto, vamos retomar o debate sobre a perspectiva política de leitura de Marcos. Em 1988, Ched Myers publicou um estudo sobre o Evange- lho de Marcos que no Brasil foi editado com o título O Evangelho de São Marcos, cujo título original era: Amarrando o homem forte: Claretiano - Centro Universitário 127© U4- O Evangelho de Marcos Uma leitura política da história de Jesus de Marcos (Binding the Strong Man. A Political Reading of Mark’s Story of Jesus). Um título bastante sugestivo, mas que expressa exatamente o tipo de análi- se cunhada pelo autor. A obra foi composta em quatro blocos: 1) Discussão teórico-metodológica sobre exegese e inter- pretação de textos bíblicos. 2) Contexto histórico-social do Evangelho de Marcos. 3) Leitura específica do texto, espécie de comentário. 4) Conclusões do autor. Além disso, o autor redigiu um posfácio e um apêndice con- siderando o conjunto de literaturas do mundo bíblico que podem ser utilizadas como fonte a fim de se estudar o "Jesus da história". Conceitos e modelos Desde o início de sua obra, Ched Myers redige com clareza a respeito dos pressupostos teóricos e metodológicos que emprega para construir sua análise do Evangelho de Marcos. Ele recorre a P. Ricoeur para dizer da "vulnerabilidade" das fontes escritas e como nós, intérpretes, podemos nos apropriar delas para tecer leituras parciais ou imparciais. De pronto, provocativo como sempre, Myers sugere que to- das as interpretações de algum modo são parciais; portanto, se- gundo seu ponto de vista, seria melhor ser parcial de modo crítico e comprometido com uma leitura política. Em busca dessa leitura política, desenvolvida com base em vasta bibliografia da área da ciência política, da sociologia e outras áreas das ciências sociais (cita Adam Smith, Carney, Marx, Weber entre outros), Myers emprega categorias como "centro-periferia" para descrever a relação do redator/autor do texto de Marcos (na periferia) em relação aos poderes estabelecidos em Roma (no cen- tro). © Evangelhos Sinóticos128 Segundo o comentarista, esse modelo é ideal para analisar tanto a conjuntura histórica do período antigo, quanto estabelecer uma relação com a atualidade. Nesse ponto, ele recorre ao seu próprio posicionamento no quadro geopolítico contemporâneo: ele, norte-americano, radicado no "centro" e os teólogos da liber- tação, sul-americanos, radicados na "periferia" do mundo. A leitura de Myers coloca Roma como a ordem imperial do- minadora do Mediterrâneo antigo. Representava o centro em rela- ção às sociedades que conquistava e colonizava política e cultural- mente. Como paralelo, na atualidade, esse centro é representado pelos Estados Unidos da América (EUA) que exerce dominação econômica e cultural sobre os países em desenvolvimento, por- tanto, periféricos. Myers situa Marcos na periferia do mundo antigo, escreven- do da Palestina setentrional (Galileia, entre os anos 66 e 70 EC) que àquela época era "barbarizada" por Roma. Refletindo acerca das diferenças existentes entre a exegese bíblica feita por teólogos do centro e teólogos da periferia, reconheceu que a interpretação desenvolvida em países da América Latina tem aproximado as co- munidades cristãs da Bíblia e da centralidade que essa literatura pode ter na vida cotidiana dos cristãos. Nesse ponto, parece lamentar: "nós que nos achamos no centro (...) não temos outra opção senão a de 'fazer teologia na casa do faraó', ou seja, ficar do lado dos hebreus mesmo sendo cidadãos do Egito" (MYERS, 1988 n. p. ). De certo modo, Myers deu a entender que a situação daque- les que se identificam com as mazelas da injustiça social freqüente em regiões marginalizadas têm maior afinidade com essa teologia de cunho crítico social, chamada Teologia da Libertação. Ao propor um comentário sobre o Evangelho de Marcos, Myers optou conscientemente por uma leitura libertadora que tornasse esse Evangelho um "manifesto" e que evidenciasse o "dis- cipulado radical". Para tanto, Myers estabeleceu importante cone- Claretiano - Centro Universitário 129© U4- O Evangelho de Marcos xão entre esse Evangelho e o movimento da apocalíptica judaica, o qual foi considerado muito influente sobre as origens cristãs. Nessa perspectiva, Daniel e o Apocalipse foram considerados "manifestos políticos de movimentos não-violentos de resistência à tirania" e Myers salientou que seu comentário "demonstra que o mesmo pode ser dito a propósito de Marcos". A apocalíptica judaica é não apenas um movimento social como também uma cosmovisão que deflagra um gênero literário, denominado apocalipse. A literatura produzida por esse movimen- to tem caracterização profética e escatológica, destacada na crítica que denuncia a injustiça social presente nas relações entre opres- sor e oprimido. Deve-se pontuar que a profecia tal como é conhecida pela consciência popular tem a ver com o "fim do mundo", mas, se- gundo John J. Collins, não pode ser resumida a isso, ela está re- lacionada também a confronto político. Geralmente, no universo da literatura bíblica, a figura do opressor é relacionada aos líderes políticos e religiosos que exercem o poder e as multidões repre- sentam a figura do oprimido. Informação –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A raiz última do conceito situa-se nos mitos de combate que podem ser encon- trados em várias culturas do Antigo Oriente próximo. Em Israel, essa mitologia foi adaptada para celebrar o triunfo de Deus sobre as forças do caos, nos Salmos (Sl 96, 98). Os profetas, entretanto, projetaram o conflito para o futuro usando a mitologia para evocar o julgamento de Deus, ambos na nação gentílica e na nação de Israel (COLLINS, John J. From Prophecy to Apocalypticism. The Ex- pectation of the End. In: The Encyclopedia of Apocalypticism. v. 1. New York: The Continuum Publishing Company, 1988. p. 129). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A renúncia do clã, das tradições religiosas e políticas, da casa e das propriedades,como premissa para seguir Jesus e anunciar o reino indicam que essa quebra de paradigmas era importante para a realização do anúncio. Mas, principalmente, opunha-se ao modelo judaico ameaçando as lideranças religiosas de Jerusalém (GOODMAN, 1994). © Evangelhos Sinóticos130 Ched Myers 1988, n. p.) extraiu três subtramas do Evangelho de Marcos. A primeira subtrama envolve tentativas de Jesus para criar e con- solidar uma comunidade messiânica, tendo como sujeito evidente- mente seus discípulos. Seu mandamento a eles dirigido deve levar avante a obra do reino (...). A segunda subtrama é o ministério de Jesus de cura, de exorcismo e de proclamação da libertação, tendo como sujeito os pobres e opri- midos, encarnados pela 'multidão' no Evangelho. O mandamento aparece no primeiro exorcismo da sinagoga, em que a multidão reconhece que a autoridade de Jesus supera a dos supersenhores, os escribas (...). A terceira subtrama é o confronto de Jesus com a ordem sócio-sim- bólica dominante, tendo como sujeito os defensores desta ordem: os escribas, os fariseus, os herodianos e o clero dirigente de Jeru- salém. Jesus confia seu mandamento a eles diversas vezes na pri- meira campanha de ação direta, afirmando sua autoridade sobre o sistema de pureza e de débito (2,10.28) e desafiando as autorida- des a optarem pela justiça e pela compaixão em vez da dominação. Essas três subtramas conduziram Jesus à prisão e à execu- ção. Subsequentemente, ele foi hostilizado pelas multidões e por seus seguidores mais próximos, contudo, o caminho do sofrimento e da cruz o conduziu à ressurreição. O estudo de Ched Myers colocou o Evangelho de Marcos no centro de sua exegese apesar da pluralidade de outras fontes que usou. Ele fez uma leitura ousada desse Evangelho e convidou os leito- res modernos a se comprometerem com esse conteúdo crítico e nada passivo em relação à situação de injustiça e desigualdade social. Com efeito, Myers empreendeu um movimento duplo de leitura: • Por intermédio da narrativa de Marcos, recuperou o Jesus da história, profeta judeu e crítico social. • Reconstruiu um tipo de recepção das tradições de Jesus no tempo de Marcos que se baseavam no modelo radical de Jesus para resistir à opressão romana. Portanto, esse estudo torna atual o Evangelho de Marcos: torna-o evangelho social que estimula uma fé cristã comprometi- Claretiano - Centro Universitário 131© U4- O Evangelho de Marcos da com a realidade; comprometida com a crítica e com a luta pela mudança, pelo bem e pela dignidade humana. A relação do Evangelho de Marcos com os outros Sinóticos – Estamos pressupondo que Marcos é nosso evangelho mais antigo, tendo servido como uma das bases de Mateus e Lucas. Esta afirmação de que Marcos é pre- cedente é que queremos justificar rapidamente. Levantar todos os argumentos a favor e contra seria um trabalho para toda a vida. Em primeiro lugar, a seqüência das histórias nos paralelos Sinóticos favorece esta opção. No relato da infância de Jesus não há paralelos entre Mateus e Lu- cas, mas assim que eles começam com João Batista, eles passam a ter textos em comum, sempre em paralelo com Marcos. É verdade que às vezes um e às vezes o outro sai da seqüência de Marcos para recorrer a fontes suplementares próprias. Todavia, assim que eles de novo se encontram relatam em paralelo, eles voltam à seqüência de Marcos e à dependência do seu texto. Assim que Marcos "não lhes serve mais", isto é, depois de 16.8, seu último versículo (vv 9-20 são um acréscimo), acabam também as passagens que eles têm em co- mum. Do fato de que eles concordam entre si quando concordam com Marcos, e divergem quando se afastam de Mar cos, conclui se que Marcos serviu a ambos como linha-mestra. O outro argumento forte a favor da precedência de Marcos vem da comparação textual dos trechos paralelos. Em muitos exemplos, Mateus e Lucas têm uma expressão mais elegante e uma linha de pensamento mais clara. Vejamos três destes exemplos. Primeiro temos o popular "e" ( "e" paratático), que inicia frases ou expressões e as coloca lado a lado de modo uniforme, quando uma linguagem mais elevada usaria "Ou seja", "enquanto", "todavia" etc. Pode-se verificar este tipo de frases p ex em 7.31-37. Este estilo sem arte, de usar simplesmente o "e" para acrescentar outro elemento, típico de Mar cos, é elevado pelos outros evangelistas em muitos casos a um patamar literário mais alto. Acontece que o "e" no começo da frase é característico da língua aramaica, mais rudimen tar, na qual a tradição de Jesus começou, e as crianças até hoje falam assim. O mesmo acontece com o presente com sentido de passado, tão popular (pre- sens historicum). Em Marcos ele é encontrado umas 150 vezes, em Mateus só em metade das vezes, enquanto Lucas o eliminou, exceto em um caso. Por último, Marcos tem expressões da linguagem popular, que Mateus e Lucas substitu íram por termos literários. O "leito" (krabbaton, esteira) em Mc 2.4,11,12 torna-se um obje to mais nobre em Lucas (Mine, klinidion, cama, 5.18,19,25). Nos evangelistas posteriores faltam p ex os diminutivos de Marcos, como os "peixinhos" em 8.7, "sandalinhas" em 6.9 ou "orelhinha" em 14.47. - Sobre o pen- samento mais claro, veja as construções de frases, complementos e omissões em Mateus e Lucas. E possível imaginar que alguém que tenha diante de si um texto fluente e de qua- lidade, o trabalhe de modo a torná-lo complicado e tosco? Dificilmente. Como isto não é provável, a maioria dos pesquisadores considera o evangelho de Marcos o mais antigo. Contudo, sem algumas luxações esta posição não escapa. A tese não consegue ser man tida incólume em todos os casos. Por isso, a questão sinótica, apesar do © Evangelhos Sinóticos132 esforço sem igual dos estudiosos, não chega a um fim. Em especial expositores ingleses, católicos, mais recen temente também protestantes, encontram motivos para considerar Mateus o mais antigo, aliás em sintonia com o testemunho unâ- nime dos Pais da Igreja e com o apoio de observa ções textuais. Provavelmente a relação entre os Sinóticos jamais poderá ser plenamente es clarecida. Muita coisa está oculta na escuridão do nosso desconhecimento. Por isso qual quer solução só pode ser apresentada com ressalvas. A propósito, o aproveitamento de Marcos por Mateus e Lucas é tão completo que ele está repetido com a exceção de talvez 30 versículos nos evangelhos poste- riores. Mesmo assim, ele não desapareceu como as outras fontes escritas. Isto confirma seu grande prestí gio, que é exatamente o de Pedro, que está por trás dele. Marcos estabeleceu padrões que se espalharam rapidamente por Roma e pela Itália, a ponto de alcançar o Oriente, onde traba lharam Mateus e Lucas. A partir do século II, no entanto, ele ficou para trás dos dois evangelhos mais completos e, de certo modo, melhores. Até hoje existem poucos comentários de Mar cos. Mateus e Lucas foram copiados e expostos com muito mais freqüência. Extraído de: POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos. Comentário Esperança. Curi- tiba: Evangélica Esperança, 1998. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 11. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Elenque os motivos pelos quais a tradição da Igreja atribuiu a autoria desse evangelho a João Marcos. 2) Que razões são apresentadas pela crítica literária para propor o Evangelho de Marcos como de escrita mais antiga? 3) Qual a relação entre o Evangelho de Marcos e o contexto histórico, político e cultural das primeiras comunidades cristãs? 4) Em que medida o Evangelho de Marcos nos auxilia a reconstruir a imagem do Jesus Histórico? 12. CONSIDERAÇÕES O Evangelho de Marcos entendido como termo médio, a par- tir do qual os outros Sinóticos, Mateus e Lucas, obtiveram infor- mações que usaram em seus próprios evangelhos, é um material de escrita "rude", mas não menos elaborada que Mateus e Lucas. Claretiano - Centro Universitário133© U4- O Evangelho de Marcos Trata-se de um texto rico em expressões latinas que denunciam a penetração do redator no mundo gentílico. Ao longo de sua redação podem ser identificadas creias ao modo grego, ditos de sabedoria e resumos que objetivam dar uni- dade à redação. Não se trata, portanto, de uma narrativa biográfi- ca ou cronológica. Antes de tudo, é um "retrato" de Jesus na pers- pectiva de Marcos. Isso implica dizer que esse Evangelho não pode ser conside- rado alienado da situação do povo hebreu, da história, da tradição e da Lei judaica. Marcos traz em seu escopo diversas narrativas que reproduzem as cenas de controvérsias entre Jesus e seus ad- versários. Assim como Mateus, ele não poupou adjetivos para quali- ficar os escribas e os fariseus, além de outros partidos religiosos, que formavam a "classe" local favorecida pelo Império Romano, portanto, submissa ao poder do "opressor". O Jesus de Marcos chamou-os de hipócritas e impuros. Acu- sação séria para aqueles que rezavam segundo a Lei judaica e que procuravam a todo custo evitar contatos com pessoas, animais, ali- mentos e objetos contaminados. A redação de Marcos é ácida. Elaborada não se sabe ao certo onde, mas provavelmente dirigida a gentios convertidos e judeus helenizados no período entre 64/65 – 70 EC. Esse é o Evangelho que pautará as redações de Mateus e Lucas. 13. E-REFERÊNCIA Figura Figura 2 Palestina nos tempos de Jesus. Copyright 2002 Sociedades Bíblicas Unidas. Disponível em: <http://universotrade.blogspot.com/2010/01/sociedade-biblica- mapa-10.html>. Acesso em: 13 nov. 2011. © Evangelhos Sinóticos134 14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALANCIN, Euclides Martins. Como ler o Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulus, 1991. BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998. (Coleção Bíblica Loyola 23). BITTENCOURT, Benedito P. O Novo Testamento. Metodologia da pesquisa textual. 3. ed. Rio de Janeiro: Juerp, 1993. CAZELLES, Henri. História política de Israel. Desde as origens até Alexandre Magno. São Paulo: Paulus, 1986. CHARLESWORTH, James H. Jesus dentro do judaísmo. Novas revelações a partir de estimulantes descobertas arqueológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1992. COHEN, Shaye J. D. The political and social history of Jews in greco-roman antiquity: The state of the question. In: KRAFT, Robert A.; NICKELSBURG, George W. E. (Eds.). Early Judaism and its Modern Interpreters. Atlanta: Scholars Press, 1986. COLLINS, John J. From Prophecy to Apocalypticism. The Expectation of the End. In: The Encyclopedia of Apocalypticism. v. 1. New York: The Continuum Publishing Company, 1988. CROSSAN, John Dominic. Jesus. Uma biografia revolucionária. Rio de Janeiro: Imago, 1995. DELORME, J. Leitura do Evangelho Segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982. (Cadernos Bíblicos 11). GNILKA, J. El Evangelio Segundo San Marcos (Mc 1-8,26). Salamanca: Sigueme, 1986. GOODMAN, Martin. A classe dirigente da Judéia. As origens da revolta judaica contra Roma, 66-70 d.C. Rio de Janeiro: Imago, 1994. KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. 2. ed. São Paulo, 1982. MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. VILLAMÁN, Marcos. Mesianismo y poder en el evangelho de Marcos. Mexico: Contraste, 1988. EA D 5 Evangelho de Mateus 1. OBJETIVOS • Conhecer o panorama em que se situa o Evangelho de Mateus. • Compreender a conjuntura histórica e alguns dados so- bre a redação do Evangelho, autoria, lugar de origem e datação. • Identificar os principais temas focados pelo redator. • Enumerar as influências sobre a redação. 2. CONTEÚDOS • Fragmentos da história. • Estágios da escrita do Evangelho. • Temas literários e discussões sobre Lucas. • Memórias da tradição judaica em Lucas. • Propostas de estrutura para Lucas. © Evangelhos Sinóticos136 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Tenha à disposição para consulta uma Bíblia. Se possível tenha mais de uma versão, a fim de conferir as diferen- ças na tradução. 2) Leia atentamente a unidade e conceda atenção às refe- rências bibliográficas indicadas. A leitura de tais indica- ções tem por finalidade complementar as informações apresentadas nesta unidade e oferecer oportunidade de ampliar seus conhecimentos por meio de instrumental teórico sofisticado. 3) Faça a leitura desta unidade quantas vezes forem possí- veis e procure identificar a proximidade deste material com o Evangelho de Marcos. 4) Saiba mais sobre a crítica da hipótese das Duas Fon- tes em: BUTLER, B. C. The Originality of St. Matthew. A critique of the Two-Document Hypothesis. Cambrid- ge: Cambridge University Press, 1951; Outro clássi- co: JAMESON’S, H. G. Origin of the Synoptic Gospels. Oxford: Basil Blackwell, 1922. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na Unidade 4, além de um breve panorama a respeito do Evangelho de Marcos, estudamos a conjuntura histórico-social, da- tação e dados sobre sua autoria. Discutimos as influências sobre a redação e identificamos os temas teológicos desse Evangelho. Apresentamos, também, o "Cristo da fé" e uma leitura política à luz de Marcos. Agora, na Unidade 5, iniciaremos o estudo do Evangelho de Mateus. O estudo dessa fonte sinótica é de extrema relevância, visto que ela retrata um trabalho de redação bastante elaborado, preocupado em fornecer respostas à situação específica de comu- nidades cristãs emergentes e mistas. Claretiano - Centro Universitário 137© U5- Evangelho de Mateus Como temos salientado, o estudo da literatura bíblica exige investigação dos âmbitos que "rodeavam" a autoria na ocasião de sua produção. Em nossa abordagem, temos evidenciado que os Sinóticos constituem produções culturais de um tempo e de uma cultura, tanto quanto outra literatura. Soma-se a esse dado o fato de os Sinóticos tornarem-se literatura sagrada para os cristãos es- palhados pelo mundo. Por essa razão, ao serem estudados, pedem cautela e rigor. Desse modo, essa análise não considera o elemento externo, o social, como única matéria que expressa a época, a sociedade e a cultura que produziu o texto. Não se trata apenas de um enqua- dramento histórico do período, mas também de uma construção artística. Isso nos conduz a entender a dimensão histórico-social como fator de arte, que juntamente com fatores psicológicos, reli- giosos e linguísticos, interfere na economia do texto. 5. EVANGELHO DE MATEUS E A TRADIÇÃO Testemunhos históricos sobre Mateus ––––––––––––––––––– O Evangelho de Mateus incorporou ao texto expectativas, tensões, memórias e lembranças da tradição judaica. A redação refletiu no nível literário um rico "caldo cultural" que se constituiu a partir de longas interações entre tradições mediterrâ- neas, Império Romano, culturas, etnias diversas e a religião judaica. Isto implica dizer que Mateus resulta desta fusão entre texto e contexto, como uma das in- terpretações sobre este período, sobre os ensinamentos de Jesus e sobre o que deveria ser o cristianismo na perspectiva da autoria mateana. Durante longo período a história e a crítica literária dos Sinóticos, orientada pelos antigos comentaristas da Igreja, consideraram que a redação de Mateus teria dado origem ao primeiro Evangelho, cujo gênero literário seria relato histórico elaborado por Mateus, um dos doze discípulos de Jesus. Segundo este pres- suposto, o cânon do Novo Testamento dispôs em primeiro lugar Mateus, que foi considerado evangelho histórico, biográfico e prioritário para compreensão das origens cristãs. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– As citações de Irineu, que geralmente são interpretadas como atestado da autoria de Mateus, aparecem na obra Adversus haereses, escrita por volta de 180-190 EC, tempo de muita contro- vérsia e diversidade no pensamento cristão. © Evangelhos Sinóticos138 Irineu esforçava-se em fortalecer a Igreja predominante con- tra aqueles queconsiderava ser marginais. Parte de sua estratégia foi dizer que os "hereges" não interpretavam corretamente as Es- crituras. Sua discussão a respeito das origens canônicas dos Evan- gelhos derivou dessa situação e sua intenção principal era asse- gurar que os quatro Evangelhos correspondiam às origens cristãs. Irineu sustentou a autoridade dos Evangelhos e buscou ga- rantir sua verdade pela ênfase nas origens apostólicas (Adversus haereses 3.1.1. – Irenaeus, 1989). De acordo com seu principal argumento, os Evangelhos foram escritos pelos apóstolos, teste- munhas oculares de Jesus e de seu trabalho. Para ele, ligar o Evan- gelho de Mateus à autoridade de Pedro e Paulo era sumamente importante. Há breve referência à ocasião em que Pedro e Paulo ensi- naram em Roma e lançaram a fundação da Igreja. Essa ligação de Irineu entre o evangelho, Pedro e Paulo teria como objetivo apon- tar que Mateus estava próximo às tradições dos apóstolos e de suas pregações por volta do ano 60 EC, o que implica dizer que o Evangelho de Mateus tinha alguma relação com as autoridades e lideranças da igreja em Jerusalém ( CARTER, 2004. p. 14-15). Outras referências históricas sobre Mateus estão em História eclesiástica: o bispo Eusébio de Cesareia na Palestina (260-340) citou possível testemunho sobre o autor do Evangelho. Além disso, o uso de palavras ambíguas pelo bispo Papias de Hierápolis na Ásia Menor, entre 125 e 150, tem causado ostensivo debate. Eusébio referiu-se às citações de Papias algumas vezes e in- dicou que esse trabalho possuía material que o bispo lera dos "sa- grados apóstolos", incluindo Mateus – último nome de sua lista de apóstolos. Eusébio propôs que Papias teria aprendido tais conteúdos de um presbítero de Marcos, o intérprete de Pedro. Teria escrito apenas o que se lembrava acerca das coisas que teriam sido ditas e feitas por Jesus, porém, não em ordem cronológica. Eusébio adi- Claretiano - Centro Universitário 139© U5- Evangelho de Mateus cionou que Papias haveria dito que Mateus colecionou oráculos em língua hebraica e interpretou cada um deles como melhor po- deria. Desse modo, Eusébio/Papias sugeriu, a partir da compara- ção entre Marcos e Mateus, que Marcos teria sido o primeiro e que Mateus teria utilizado esse material para compor o seu pró- prio (EUSEBIUS, 1980). Posteriormente, a proposta de que Mateus teria sido o pri- meiro Evangelho redigido, por um dos 12 apóstolos e com natureza histórico-biográfica foi autenticada pelo teólogo e filósofo do nor- te da África, Agostinho de Hipona (354-430 EC). Sua compreensão derivava da concepção de que Marcos dependia de Mateus, assim como Lucas teria dependido de Mateus e Marcos para a redação de seus respectivos evangelhos. AUGUSTIN, The Harmony of Gospels. In: Schaff, Philip (Ed.). The Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. v. 6. Edinburgh: T & T Clark. Disponível em: Christian Classics Ethereal Library. < http://www.ccel.org/ccel/schaff/npnf106.titlepage.html>. Acesso em: 15 nov. 2011. Uma discussão mais recente se verifica em: Kloppenborg, John S. Excavating Q. The History and Setting of the Sayings Gospel. Minneapolis: Fortress, 2000. p. 38-43. Até o século 19, essa hipótese foi aceita com certo consenso, mas com a propagação do liberalismo teológico na pesquisa sobre a Bíblia, novos horizontes sobre o cânon despontaram e, frequente- mente, Marcos tem sido apontado como o Evangelho mais antigo. 6. EVANGELHO DE MATEUS E A PESQUISA MODERNA Heinrich Julius Holtzmann (1832-1910), junto de F. Baur, pro- pôs que o conjunto formado pelos Evangelhos denominados sinóti- cos – Mateus, Marcos e Lucas – apresentava informações mais con- fiáveis que o Evangelho de João, portanto, eram fontes mais antigas. © Evangelhos Sinóticos140 Para apoiar esse argumento, Holtzmann compreendeu o material do NT de acordo com a teoria das Duas Fontes. Assim, Mateus e Lucas teriam utilizado o material de Marcos para a es- crita de seus evangelhos e os paralelismos entre Mateus e Lucas, independentes de Marcos foram atribuídos a Fonte dos Ditos. Dessa forma, o desenvolvimento dessa pesquisa resultou na hipótese do inglês B. H. Streeter, cujo título mais famoso é Os qua- tro evangelhos: um estudo das origens, de 1924 (The four gospels. A study of origins). Para Streeter, os quatro evangelhos teriam sido originados com base em um centro maior do cristianismo que en- volvia os ensinamentos de Jesus. Por isso, tratava-se de uma cole- ção reconhecida por toda a Igreja do período. A hipótese das quatro fontes de Streeter propunha que a Fonte Q (50 EC, Antioquia) e Marcos (65 EC, Roma) teriam sido os materiais empregados por Lucas (80-85 EC, Cesareia) e por Mateus (80-90 EC, Antioquia da Síria) na redação de seus Evangelhos. Além dessas fontes, Lucas teria se valido de material próprio, a fonte "L" (de 60 EC, escrita em Cesareia) e Mateus teria usado outra fonte peculiar, a fonte "M" (de 65 EC, escrita em Jerusalém). Figura 1 Hipótese das Quatro Fontes. Mais tarde, porém, sem ter ganhado atenção, B. C. Butler, em A originalidade de São Mateus fez uma crítica da hipótese das Claretiano - Centro Universitário 141© U5- Evangelho de Mateus Duas Fontes (The originality of St. Matthew. A critique of the Two- -Document Hypothesis). Voltou a defender a hipótese das Duas Fontes com algumas mudanças, visto que a sequência Mateus- -Marcos-Lucas propunha Marcos como dependente "de uma eta- pa preliminar de Mateus". Assim, como em Agostinho, na propos- ta elaborada por J. J. Griesbach, ainda no século 18, Marcos seria "resumidor" de Mateus (KÜMMEL, 1995; THEISSEN; MERZ, 2002). Sobre a datação O problema sinótico brevemente esboçado aqui indica que a redação do Evangelho mateano não foi a primeira a ser elabora- da. Portanto, a redação deste material deu-se na segunda meta- de século 1º EC, entre os decênios 80 e 90. Uma redação tardia e distante temporalmente dos primeiros acontecimentos ligados à figura de Jesus. Consequentemente, a redação mateana repousa sobre uma situação histórica e social diferenciada em relação aos primeiros escritos. Um período de aumento das adesões aos ensinos de Jesus, do crescimento das tradições ao seu respeito e da diversidade de interpretações sobre seu ministério, seus feitos e ensinamentos. Ademais, o alargamento da distância temporal facilitava os lapsos na memória, a suavização de algumas recomendações e os acrés- cimos na redação. 7. OS CONTEÚDOS DO EVANGELHO DE MATEUS O debate sobre os motivos que ocasionaram a escrita desse Evangelho tem sido formulado desde o início do século 19, mas desde meados dos anos 60 do século 20 tem recebido valiosas contribuições. Para fins didáticos, classificamos esse vasto trata- mento em dois grupos que veremos a seguir: • O primeiro grupo de pesquisadores que tem tentado res- ponder a pergunta pelos motivos da redação mateana e que, indiretamente, se relacionam à questão da autoria e © Evangelhos Sinóticos142 da audiência de Mateus é constituído pelos pesquisado- res que admitem a influência e a predominância da tra- dição judaica sobre esse Evangelho. Dentro desse grupo, uma parte entende que a comunidade de Mateus não pretendia a ruptura com o judaísmo. Outra parte admi- te que o rompimento não era objetivo principal, mas foi inevitável. Por conseguinte, houve admissão de gentios mediante completa aculturação dos ingressantes. • O segundo grupo segue reafirmando a presença e a im- portância judaica na redação mateana, mas dedica-se à investigação sobre a presença gentílica dentro da comu- nidade. Portanto, considera-a mista. Entretanto, nessa hipótese, a admissão de gentios não se vincularia à ren- dição aos costumes e princípios judaicos, tratava-se de uma missão que os judeus deveriam cumprir baseada na tradição de Abraão (Gn 12,1): arregimentar os não-judeus para o Reino dos céus. Tensões e disputas entre judeus no Evangelho de Mateus No primeiro grupo, Anthony Saldarinie David C. Sim pro- põem que a narrativa de Mateus não demonstra distinção entre judaísmo e movimento de Jesus. Ambos argumentam, baseados principalmente em Mateus 5,17 ("Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumpri- mento"), que a comunidade mateana não era cristã, mas judaica. David Sim sustenta que a comunidade de Mateus não teria se preocupado com missão entre os gentios, pois sofria persegui- ção em Antioquia e por essa razão teria se preocupado em manter a identidade judaica. De acordo com Sim, Brendam Byrne e outros estudiosos falharam ao considerar que membros gentios da comu- nidade de Mateus observavam a Lei (BYRNE, 2002). David Sim entendeu que a comunidade mateana evitava o contato com a sociedade gentílica. Mesmo as citações "positivas" Claretiano - Centro Universitário 143© U5- Evangelho de Mateus de gentios que tiveram fé em Jesus não deixam claro se eles torna- ram-se efetivamente discípulos. David Sim notou que ao longo da narrativa mateana há exemplos negativos sobre a conduta e costumes gentílicos (8,28- 34). Outros exemplos podem ser elencados para enfatizar que as narrativas mateanas não são favoráveis e tampouco simpáticas à presença dos gentios (5,46-47; 6,7-8; 6,31-32; 18,15-17). Com isso, o autor procura demonstrar não somente a pers- pectiva anti-gentílica do material mateano, mas mais especifica- mente que o grupo poderia ser incompreendido pelos gentios (10,17-22). Em 10,18, a expressão "perante as nações" indicaria que autoridades judaicas e gentílicas seriam a fonte da persegui- ção; por isso, a predição de 24,9 em que os discípulos seriam per- seguidos por todas as nações por causa do nome Jesus, incluindo tanto judeus quanto gentios como reflexo da experiência da comu- nidade mateana como parte do drama do fim dos tempos. Para Saldarini, não há vestígio no Evangelho de Mateus que assegure o afastamento da comunidade judaica em favor do grupo cristão. Embora seja, às vezes, descrito como antijudaico, na ver- dade, Mateus reserva seu veneno para líderes judaicos hostis e, ocasionalmente, para quem segue esses líderes em uma firme re- jeição de Jesus. E ainda: Mateus e seu grupo estão em luta pelos corações e mentes dos companheiros judeus (SALDARINI, 2000). Assim, os gentios poderiam ter feito parte do grupo judaico de Mateus. Essa possibilidade é indicada pela presença dos magos, da mulher cananeia e do centurião ao pé da cruz na narrativa ma- teana. Todavia, tais imagens teriam sido utilizadas como estratégia retórica para que o grupo tivesse a fé fortalecida na história de Jesus, visto que seu poder alcançava até não-judeus. Com efeito, esse Evangelho era receptivo à presença gentíli- ca desde que estivessem dispostos a se vincular profundamente a Israel e a Jesus e, especialmente, sujeitos à Lei. © Evangelhos Sinóticos144 Para finalizar, Saldarini assegura: (...) o evangelho de Mateus dirige-se a um grupo dissidente da co- munidade judaica da grande Síria, uma seita reformista que procu- ra influência e poder (...) na comunidade judaica como um todo. (...) Mateus não substitui Israel pelos gentios, ao contrário do que pensam muitos comentaristas. A teoria de substituição ou super- cessionária foi desenvolvida por autores cristãos do século II, por exemplo, Barnabé e Justino, e foi depois projetada de volta para Mateus, em geral pela construção de uma teologia da história da salvação alheia a Mateus. Mateus abre as portas para não-judeus, mas espera que eles observem a lei revelada na Bíblia (SALDARINI, 2000. p. 320-321). Portanto, para Saldarini o autor de Mateus seria um judeu expulso da assembleia de sua cidade, mas ainda fiel à tradição ju- daica e obediente à Lei segundo a interpretação de Jesus. Junto com Saldarini, Donald Hagner afirmou que as frontei- ras culturais entre judeus e gentios eram muito espessas e que existiam diferenças na tradição de Mateus que não podiam ser ignoradas ou tomadas como desvios de grupos judaicos apenas. Hagner disse que seria mais adequado pensar o grupo de Mateus como "uma forma judaica do cristianismo" (HAGNER, 2003, p. 193-209). De acordo com Overman (1990), na época em que o Evange- lho de Mateus foi concebido havia dois grupos: o judaísmo forma- tivo e o judaísmo de Mateus. Esses grupos estavam em competi- ção e o judaísmo formativo ganhava espaço no embate religioso: Na época da escritura do Evangelho de Mateus, os dois grupos, o judaísmo formativo e o judaísmo de Mateus, estavam evidente- mente em competição e, ao que parece, o judaísmo formativo es- tava ganhando terreno. Isso tem um impacto significativo na forma e no conteúdo do Evangelho de Mateus. Muitos dos desenvolvi- mentos na vida da comunidade de Mateus ocorriam em resposta ao impacto que um judaísmo formativo em organização e consoli- dação estava tendo sobre as pessoas da comunidade e sobre seu mundo (DAVIES, 1997, p. 14). Claretiano - Centro Universitário 145© U5- Evangelho de Mateus Segundo Overman, o judaísmo formativo recuperava a Tradi- ção e os rituais da Lei e opunha-se veementemente ao movimento e interpretação cristã da Tora. Por essa razão, a redação mateana precisava autenticar sua exegese assegurando seu status judaico. Tratava-se, portanto, de uma disputa entre judeus. No segundo grupo, juntamente com Senior e Brendam Byr- ne, Warren Carter reforçou o argumento de que Mateus dirigiu-se a uma comunidade mista formada por judeus e gentios e que pro- moveu missão entre ambos. No comentário de Davies e Allison (1997), ambos apresenta- ram pontos de vista favoráveis à presença de influências judaicas na constituição de Mateus. Recentemente, Davies reafirmou a hipótese de que o Evan- gelho mateano foi escrito em resposta à situação da revolta judai- ca de 66-70 EC e à emergência do judaísmo farisaico como força dominante dentro do judaísmo palestino desse período. A revolta judaica e a subsequente supressão brutal dos romanos culmina- ram com a destruição do Templo e de Jerusalém (Mt 23,38; 24,2; 26,61). Ainda neste período, desenrolava-se o conflito entre ju- deus apocalípticos e judeus cristãos, o que configurava como ca- ótico o quadro religioso e social do pós-guerra e contribuía para a consolidação dos líderes fariseus. O movimento dos fariseus aspirava por unidade e para tanto for- jaram uma coleção de leis orais, deram força normativa a certas práticas religiosas e atacaram a legitimidade de grupos desviados dentro da comunidade judaica. Davies reforçou que a reforma fa- risaica teve grande importância como resposta direta ao contexto do Evangelho de Mateus. Segundo Davies e Allison (1997), a comunidade de Mateus era formada por um grupo que se reunia em casas e que se localiza- va em Antioquia da Síria. Talvez fosse um grupo urbano associado aos mestres e com relações próximas de grupos cristãos gentios. © Evangelhos Sinóticos146 Essa comunidade, entretanto, não teria abandonado o judaísmo, mas seria considerada um grupo desviado de judeus-cristãos. Para Davies e Allison (1997), embora o grupo mateano se considerasse judaico, há evidências de que eles se diferenciavam dos judeus em alguns aspectos e aproximavam-se mais dos gen- tios. Mesmo que aquela comunidade identificasse a si mesma como judaica, a diferenciação era inevitável. Tais diferenças pode- riam ser notadas, por exemplo: 1) No uso mateano da expressão "suas sinagogas" (4,23; 9,35; 10,17; 13,54; 23,43). "Suas" indicaria uma visão negativa do termo "rabi" (23,8; 26,25,49). 2) Na crítica aos líderes judaicos (cap. 23). 3) Nas sanções às divergências internas (18,15-17). 4) Na ênfase atribuída à legitimidade da crença em Jesus e em sua autoridade messiânica. Assim, a proposta de Mateus era defender a legitimidade das raízes judaicas de sua comunidade, em oposição aos grupos contrários (DAVIES; ALLISON, 1997). De fato, o comentário de Davies e Allison (1997) indicaram importantes ênfases nos textos mateanos, identificadas:• Na tentativa de ligar Jesus e sua missão a Israel e às Escri- turas por meio da narrativa de sua infância e das citações que faz da Bíblia hebraica • Na ênfase em que Jesus não veio para destruir a Lei, mas cumpri-la, que está claramente em 5,17, e também em todo o Evangelho mateano. • Na perspectiva judaizante que transparece em certos as- suntos, se comparada à versão marcana (sobre o divórcio, sobre a pureza, sobre o Sabbath, sobre a relutância em relação aos ensinos de escribas e fariseus, sobre a resis- tência de se fazer missões entre gentios – 19,3-9; 15,1-20; 24,20; 23,1-6; 10,5 e 15,24, respectivamente). Claretiano - Centro Universitário 147© U5- Evangelho de Mateus Com base em tais evidências, alguns pesquisadores presu- mem que antes da destruição do Templo em 70 EC, as lideranças judaicas toleravam grande diversidade de judaísmos. Após a des- truição, a sobrevivência dessa tolerância começou a ruir em favor de certo ideal de uniformidade e emergência da liderança farisaica que pretendia a reformulação do judaísmo com nova compreen- são teológica e modelos de adoração centradas nas sinagogas, o que explicaria as frequentes referências negativas aos fariseus na redação mateana (CARTER, 2004). O breve exame desse debate entre os pesquisadores, por conseguinte, levanta algumas convergências entre os pesquisado- res. São elas: 1) Todos os pesquisadores apontam que o Jesus do mate- rial mateano tem caráter judaico e que há polêmicas en- tre o grupo mateano e os líderes judaicos. 2) Em geral, as pesquisas mostram que mesmo que a co- munidade mateana não mantivesse contato com o ju- daísmo farisaico, ela partilhava da natureza judaica e tomava para si assuntos concernentes ao judaísmo e à interpretação da Lei. 3) Desse modo, mesmo que a comunidade mateana não ti- vesse rompido com o judaísmo, o rompimento seria ine- vitável. Isso ocorreu em função da elaboração de certa cristologia específica, da qual decorreram perspectivas e práticas diversas do judaísmo comprometido com as leis e crenças ancestrais. Essa cristologia e tais práticas ocasionaram tensão com outros grupos judaicos. 4) A redação mateana revela a angústia do grupo em busca de marcadores de identidade que expressem sua tradi- ção judaica e, ao mesmo tempo, sua concessão limitada à conversão de gentios. Portanto, a redação mateana expressa a tentativa de ligar a história de Jesus à histó- ria de Israel e, dessa forma, obter a autoridade de uma comunidade cristã de matriz judaica. Nessa perspectiva, o discurso mateano é um relato que re- clama autoridade e que visa ao esclarecimento de sua condição diante das polêmicas com seus adversários. © Evangelhos Sinóticos148 Embora existam, ainda, outras abordagens sobre esse assun- to, doravante vamos relacionar o debate anterior com a pergunta pelos ouvintes/leitores do Evangelho de Mateus. Por hora, já pu- demos perceber que a redação desse material emergiu de uma conjuntura sociocultural bastante específica, de disputas e tensões entre judeus que advogavam por essa ou por aquela interpretação da Tora idealmente mais "pura". Ora, se as disputas estavam relacionadas à interpretação da Tora mais correta, a quem Mateus endereçava a sua redação? Ju- deus ou gentios? É o que veremos mais adiante. 8. LUGAR DE ORIGEM E AUTORIA DO EVANGELHO Os estudiosos têm sugerido diversos lugares de origem para o Evangelho de Mateus: Jerusalém, Alexandria no Egito, Cesárea na costa da Palestina, Transjordânia, Tiro ou Sidom, Séforis ou Ti- beríades na Galileia. A teoria mais aceita é a de que Mateus teria sido escrito na província romana da Síria, provavelmente na cidade de Antioquia ou nalguma região ao redor (KÖESTER, 2005, p. 101-110; KÜM- MEL, p. 45). Muitos são os fatores que apontam para a Síria e, em espe- cial, para a cidade de Antioquia como seu lugar de origem. Cita- ções mais antigas do Evangelho de Mateus que corroboram para esse argumento podem ser encontradas nas cartas de Inácio, bis- po de Antioquia, escritas provavelmente no primeiro decênio do século 2º. Inácio iniciou sua carta à igreja de Esmirna, na Ásia Menor, listando as crenças dos religiosos locais. Ele mencionou que Jesus foi batizado por João e que toda retidão se cumpriu nele (1,1). Essa citação sobre o batismo de Jesus pode ser encontrada em Mateus 3,15. Inácio usou Mateus ainda em três outros lugares: para Policarpo (2,2 e Mt 10,16b), aos filipenses (3,1 e Mt 15,13-14) Claretiano - Centro Universitário 149© U5- Evangelho de Mateus e aos efésios (19,1-3 e Mt 1–2) Tais referências sugerem que esse Evangelho teria sido empregado na Síria romana, em Antioquia, por volta do ano 80-90 do século 1º. O nome "Mateus" pode ter sido atribuído ao Evangelho em respeito à alguma ilustre figura de autoridade do período e da re- gião, ligada às tradições das comunidades. É pouco provável que seja referência ao discípulo de mesmo nome que integrou o grupo dos doze (9,9). "O nome ‘Mateus’ significa ‘presente de Deus’, uma designação para as boas notícias que esta narrativa oferece. O nome Ma- teus também soa algo parecido à palavra ‘discípulo’ em grego (mathētēs), uma palavra que literalmente significa ‘aprendiz’. Isso é apropriado para o evangelho que procura treinar discípulos". Cf. CARTER, 2000, p.33; Em Matthew: Storyteller, Interpreter, Evan- gelist, p. 23-24, Carter se reporta à pesquisa de outro autor que faz a aproximação entre Maththaios (Mateus), mathētai (discípulos) e o verbo mathein que significa "aprender" e aparece em 9,13. Da associação entre "discípulos" e "aprender" teria surgido o nome Maththaion que ilustraria um discípulo representativo (talvez ideal) destas realidades. Nenhuma das fontes externas, nem mesmo o próprio Evan- gelho concedem base final para a ligação desse nome com o con- junto literário de toda a narrativa. Por fim, a Didaqué, escrita no mesmo período, cita a "oração do Senhor" de acordo com a versão mateana (Didaqué 8,1-3 conforme Mt 6,9-13 e Lc 11,1-4): Estes usos visíveis do evangelho de Mateus em material originado em Antioquia e amplamente usado na Síria sugerem um local de origem similar para o evangelho. Ademais, Mateus 4:24 se refere à fama de Jesus "que espalhou-se por toda Síria". Esta referência não pode ser identificada no provável paralelo em Marcos 1:28, 39 (CARTER, 2002, p. 34). O helenismo estava espalhado por todo o mundo antigo. Em nenhum lugar, mesmo entre os judeus de comunidades da Palesti- na e na Diáspora, haveria possibilidade de se isolar dessa influên- cia. Por essa razão, é tão difícil definir apenas por meio da análise linguística a origem da autoria mateana. Carter propôs que o autor © Evangelhos Sinóticos150 de Mateus seria um cristão judeu educado em três línguas. Ele te- ria escrito com competente grego, mas teria de modo igualmente competente, o domínio do aramaico e do hebraico. O autor estava familiarizado com as tradições, as práticas ju- daicas e as instituições: Davi, Moisés, o Templo, Jerusalém [4,5; 5,34-35; 27,53], o Sabbath [24,20], o contraste com a sinagoga em 6,1-18 e outros. As evidências mostram que o Evangelho teria sido escrito em gre- go e não hebraico, conforme alguns comentaristas propuseram. A declaração quanto à redação de Mateus em hebraico, provavel- mente, foi baseada nas declarações do período antigo (cf. TOR- REY, C.C.. Our Translated Gospels. New York and London: Harper, 1936; BUTLER, B.C. The Originality of St. Matthew. Cambridge: Cambridge University Press, 1951; ALBRIGHT, W. F. & MANN, C.S. Matthew. New York: Doubleday, 1971). Sabemos que a pergunta pela etnicidade da autoria é bas- tante complexa. Essa questão, em especial, não tem obtido muita atenção porque "as linhas culturais entre judeus e gentios no mun- do antigo não eram rígidas" (CARTER, 2004, p. 17). Certas diferenças entre os vários grupos étnicos reunidos sob o Império só poderiam ser reconhecidas mediante a observa- ção de certas práticas, costumes,crenças e marcadores culturais. Mesmo as línguas semitas teriam caído em desuso em muitas regi- ões. Jaeger (1991) informa que na Palestina a língua grega era usa- da e entendida nas atividades de comércio e negócios em geral, principalmente entre as elites judaicas. Os judeus falavam em grego, mas talvez só pudessem ser efetivamente reconhecidos por nuances nos trajes, pela submis- são aos rituais judaicos, pela observância do sábado, pela circunci- são, pelos hábitos alimentares, pelos costumes e expressões típi- cas. A dificuldade de se definir a etnicidade do autor mateano e se o que o constituía era judaico ou gentílico reflete a complexidade cultural do Mediterrâneo no século 1º. Claretiano - Centro Universitário 151© U5- Evangelho de Mateus A interessante intuição de Carter, no entanto, sugere que as interações entre grupos diferentes, isto é, judeus e não-judeus, fo- ram aceitos pelo redator e pelo grupo com disposição em função do contexto de missão. Isso seria admissível se pudéssemos afir- mar que essa comunidade era predominantemente formada por judeus helenizados, proselitistas e conscientes da promessa feita a Abraão. Mas, isso de pronto seria improvável, tendo em vista o afastamento da tradição ancestral judaica ocasionado pelo proces- so de helenização e o consequente enfraquecimento da religião e cultura judaica antiga entre esses judeus. Sendo o lugar de origem do Evangelho alguma região nas cercanias da Antioquia da Síria é, ainda, mais provável que a des- peito da vontade inicial do redator ser a preservação da Lei, a co- munidade deveria se abrir à realidade das conversões que se alas- travam. O Evangelho não poderia ser enclausurado, portanto, a reda- ção de seu texto deveria "incluir" os gentios, assegurar a continui- dade da tradição e reforçar a interpretação da Tora feita por Jesus. 9. HISTÓRIAS EVOCADAS POR MATEUS As evidências na redação mateana e as características judai- cas da história (a genealogia, a forma do anúncio, a simbologia de pureza no batismo e no deserto, as alusões e citações da Lei, os simbolismos judaicos e a lembrança implícita de Moisés) apontam para um redator judeu, ciente do avanço da exegese de Jesus rumo aos não-judeus e preocupado com a matriz judaica do movimento. Mas, de forma também notória, a redação mateana não prescinde dos ouvintes helenizados, tanto judeus quanto gentios. Lembranças e memórias como "pano de fundo" do Evangelho O Evangelho de Mateus fez relação entre Jesus e histórias de antepassados judeus, ao evocar a genealogia e a antiga história do © Evangelhos Sinóticos152 patriarca Abraão, pai de todas as nações. No trecho de Gn 12,1, Yahweh declarou seu propósito a Abraão: ele seria pai de muitas nações e por meio dele todas as nações seriam abençoadas (KUS- CHEL, 1995). Se de fato houver relação entre essa tradição e o evangelho de Mateus, o raciocínio de Carter estaria correto (3,7-10; 8,5-13). Isso faria de Jesus o agente por meio do qual se realizaria não a conversão individual dos gentios, mas a benção para todas as na- ções do mundo (CARTER, 2004, p. 263). Mas, ao contrário do que Carter propôs, a lembrança de Ma- teus quanto à cura do servo do centurião (8,5-13) não indica pro- fundo louvor à presença gentílica entre judeus. A redação parece apenas constatar a admiração de Jesus diante a fé de um gentio, comportamento raro entre os zelosos da Lei e filhos de Israel: –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Mas o centurião respondeu-lhe: ‘Senhor, não sou digno de receber-te sob o meu teto; basta que digas uma palavra e o meu criado ficará são. Com efeito, também eu estou debaixo de ordens e tenho soldados sob o meu comando, e quando digo a um ‘Vai!’, ele vai, e a outro: ‘Vem!’, ele vem; e quando digo ao meu servo: ‘Faze isto!’, ele o faz". Ouvindo isto, Jesus ficou admirado e disse aos que o se- guiam: ‘Em verdade vos digo que, em Israel não achei ninguém que tivesse tal fé. Mas eu vos digo que virão muitos do oriente e do ocidente e se sentarão à mesa no Reino dos céus, com Abraão, Isaque e Jacó, enquanto os filhos do reino serão postos para fora, nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes" (vv. 8-12). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A este respeito, Saldarini sugere que textos como o do cen- turião (8,5-13) e o da mulher cananeia (15,21-28) são insuficientes para argumentar que tais narrativas periféricas poderiam demons- trar que o Evangelho mateano se direcionava à missão entre gen- tios ou ao grupo gentílico. O autor argumenta que o caso da fé do centurião em contraste com a falta de fé de Israel é semelhante ao julgamento das cidades da Galileia (11,20-24) e aos ditos sobre Nínive e a rainha do sul (12,38-42). Claretiano - Centro Universitário 153© U5- Evangelho de Mateus Tratava-se de um tópos da literatura judaica que funcionava como artifício retórico e que, igualmente, se identifica aos julga- mentos proféticos contra Israel, típicos da Bíblia hebraica. Portan- to, não podem ser considerados como condenação de Israel em favor da missão entre gentios. A perspectiva do Jesus mateano era de restauração escatoló- gica para Israel, incluindo judeus e gentios íntegros. De acordo com 13,24-30, os herdeiros e filhos do reino seriam judeus e gentios, ambos, se fossem considerados corretos. Tanto um grupo como o outro se quisessem entrar no reino deveriam se tornar puros. A perspectiva mateana nestes textos é especificamente moral e não ética. Quanto à narrativa da mulher Cananeia (15,21-28), parece- -nos que o foco do Evangelho estava posto sobre Israel. Se compa- rada à versão marcana, o texto de Mateus apresenta característi- cas que enfatizavam a missão para Israel e a relutância em relação aos gentios: "Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel" (v. 24). Isto se verifica também na designação "mulher cananeia" empregada na redação mateana (v. 21) que usualmente os israelitas utilizavam para imprimir sentido pejorativo aos que provinham da região de Tiro e Sidom. Na redação de Marcos 7,26, ao contrário, a expressão usa- da foi "grega, uma sírio-fenícia". Mateus também teria sutilmente omitido a referência marcana em que Jesus teria dito "Deixa que primeiro os filhos se saciem porque não é bom tirar o pão dos fi- lhos e atirá-lo aos cachorrinhos" (Mc 7,27). O verbo "Deixa" designa convicção. Mas, nas palavras de Mateus, somente mediante a insistência da mulher, Jesus teria dito: "Não fica bem tirar o pão da boca dos filhos e atirá-lo aos ca- chorrinhos" (Mt 15,26). Portanto, não haveria a sequência missão primeiramente para israelitas e depois para gentios. O foco mate- ano seria a missão exclusiva para Israel. © Evangelhos Sinóticos154 A palavra kynariois de kynarion que significa "cachorrinho" ocorre apenas nos ditos de Jesus (Mc 7,27; Mt 16,26) e em sentido figurado. É discutível se Jesus adotou o hábito judaico de denomi- nar pessoas de diferente fé de kyōn, isto é, cachorro (Mt 7,6), mas os ditos de Marcos 7,27 e de Mateus 16,26 compararam a descen- dência aos cachorros da casa. A escolha do termo kynarion pode indicar que Jesus tinha em mente cachorrinhos que seriam tolera- dos na casa (Israel). Esta metáfora reconheceria a exigência divina entre judeus e gentios e aceitaria o privilégio histórico de Israel. Marcos 7,27 interpretou tal dito segundo o entendimento de que a descendência da casa seria primeiramente satisfeita. A resposta da mulher gentia (Mt 15,27, Mc 7,28) mostrou que em obediência à vontade de Deus, ela reconhecia a prerrogativa de Israel, mas apelou à prontidão de Jesus em ajudá-la, a despeito das fronteiras étnicas e culturais. A mulher gentia colocou incondicionalmente sua fé sobre o senhorio messiânico de Cristo e, por causa dessa qualidade "in- condicional", recebeu o reconhecimento de Cristo, bem como o que desejava (KITTEL, 1972-1989). Outra presença gentílica na redação desse Evangelho seria o emprego da palavra phylakteria(fulakth,ria) em 23,5: "Praticam todas as suas ações com o fim de serem vistos pelos homens. Com efeito, usam largos filactérios e longas franjas". Os "filactérios" eram estojos pequenos que encerravam sen- tenças importantes da Lei e que os judeus traziam presos no braço ou na testa, na tentativa de cumprir materialmente o prescrito em Êxodo 13,9,16; Dt 11,18 e 6,8: "Tu as atarás também à tua mão como um sinal, e serão como um frontal entre os teus olhos; (...)". É possível que os tradutores gregos tenham se enganado quan- to ao costume judaico de usar filactérios e interpretado-os como amuletos que serviriam como proteção contra espíritos ou desas- tres. Claretiano - Centro Universitário 155© U5- Evangelho de Mateus Assim, os exemplos anteriores dão a entender que as refe- rências à "gentilidade" na redação mateana não são muito posi- tivas, embora esse Evangelho evidencie certa relativização dos sentidos atribuídos aos usos, costumes, preceitos e expressões judaicas como: sobre ablução das mãos (15,2, cf. paralelo em Mc 7,2s); sobre "coar um mosquito" (23,24); sobre sepulcros caiados (23,27) e outras expressões hebraicas (5,22; 27,6). Ainda no nível da redação, o uso da forma semítica "Sata- nás" em 4,10, 12,26 e 16,23 justificaria a influência judaica. Por outro lado, o uso dos complementos "tentador" (4,3) e "demônio" (7,22; 8,31; 9,33-34; 10,8; 11,18; 12,24, 27-28; 17,18.21) sinaliza- riam empréstimos gregos. Interessante, ainda, é que Mateus omitiu algumas formas semitas que apareceram em Marcos (Talitha koum, de Mc 5,41 cf. Mt 9,25; Rabbouni, de Mc 10,51 cf. 20,33; Abba, de Mc 14,36 cf. Mt 26,39) e explicou o significado de "Jesus" e de "Emannuel" (1,21 e 23). Embora essas observações não sustentem ou excluam de- finitivamente a hipótese quanto à autoria gentílica ou judaica, principalmente se considerarmos como objetivo mateano a ade- quação do Evangelho às expectativas de seus ouvintes, certos usos específicos que remontam às crenças e conhecimentos judaicos antigos constituem fortes indícios da profunda ligação entre a autoria e a tradição judaica. Algo que dificilmente ocorreria se a autoria fosse de origem gentílica, mesmo que fosse versada nas tradições judaicas. Com efeito, como entre judeus e gentios as fronteiras e os limites não parecem bem sinalizados, em Marcos e em Mateus, o gênero literário apresenta sérias dificuldades de definição se con- sideradas as similaridades entre Evangelhos, biografias, creias e coleções de ditos (WOODRUFF, 2002). Mateus, portanto, transforma o relato de Marcos com refor- mulações, omissões e adições sob ímpeto catequético (5:21-48; © Evangelhos Sinóticos156 6:1-18; 24:37-25:46) que tem por objetivo a sistematização da his- tória de Jesus segundo esquemas classificatórios e numéricos bem típicos do judaísmo: sete parábolas (cap. 13), dez narrativas sobre milagres (caps. 8-9), sete "ais" contra os líderes fariseus (cap. 23) e outros. Conforme tais classificações, também o costume tipica- mente judaico de memorizar poderia ser estimulado. Mateus o novo mito de origem e sua estrutura Dentre as funções que se atribuem aos mitos está a de tra- dução. Trata-se da tentativa de traduzir por meio da linguagem certas compreensões acerca da existência humana e do universo. Os mitos são exercícios pelos quais o conhecimento adquiri- do se torna comunicável e exprimível, e na medida em que expres- samos os mitos formulando-os, contando-os e recontando-os, eles se transformam e dão origem a novas tentativas de tradução de experiências, de conhecimentos, de crenças e de valores. A lingua- gem do mito é imagética e performática e esta peculiaridade é que lhe confere dinamismo e potencial de transformação. O título do Evangelho de Mateus (1,1) é uma referência à Bí- blia hebraica que remonta ao mito judaico sobre as origens. Davies e Allison já haviam tecido comentários convincentes a respeito do título Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão, que alude à totalidade da fonte Mateus e não apenas aos primei- ros capítulos. A palavra "Bíblos" demonstra essa intenção e gênesis é, pro- vavelmente, referência ao nome grego do primeiro livro da Bíblia, já bem conhecido no século 1º EC. Por conseguinte, a invocação do título mateano à tradição do Gênesis judaico legitima o "Gênesis de Jesus Cristo" proposto pela redação mateana. Isso nos leva a crer que a intenção mateana era contar uma história de fundação do povo de Deus assim como a Bíblia hebraica tinha feito. A nova história era a história de Jesus Cristo. A frase de aber- tura do Evangelho que aparece nos primeiros cinco capítulos do Claretiano - Centro Universitário 157© U5- Evangelho de Mateus Gênesis (cf. Gn 2,4 – quando finaliza a criação do mundo e origina a humanidade e, 5,1 – quando traça a genealogia desde Adão) faz a ligação entre a autoria e as histórias de sua origem. Isso ocorria particularmente em domínios culturalmente orais. A frase Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão em Mateus 1,1 teria a precisa função de trazer à lembrança da audiência os trechos de Gênesis 2,4 e 5,1, cercados, ainda, por um conjunto de imagens que vinculavam mitologia judaica: 1) à criação do mundo e da humanidade; 2) às memórias sobre os resultados da fé dos patriarcas; 3) ao julgamento de Deus; 4) à disposição divina em restabelecer ordem na sua cria- ção. Uma antiga hipótese sobre a macroestrutura de Mateus su- gere que a autoria dividiu seu Evangelho em cinco blocos inde- pendentes, talvez em analogia aos cinco livros de Moisés (BACON, 1997). Segundo essa ideia, a divisão entre os cinco discursos de Jesus teria sido marcada pela fórmula "E aconteceu [que] quan- do completou" presente em 7,28, 11,1, 13,53, 19,1 e 26,1. Essa fórmula teria a função de instaurar pausa no texto e anteceder a introdução que chamaria a atenção para um novo e importante discurso. De acordo com a proposição de B. W. Bacon (1918), os dis- cursos estariam dispostos conforme ilustra o Quadro 1: Quadro 1 Disposição dos discursos. Preâmbulo 1,1–2,23 Livro 1: 3,1–4, 25 e 5,1–7,27; fórmula: 7,28-29 Livro 2: 8,1–9,35 e 9,36–10,42; fórmula: 11,1 Livro 3: 11,2–12,50 e 13,1-52; fórmula: 13,53 Livro 4: 13,54–17,20 e 17,22–18,35; fórmula: 19,1a Livro 5: 19,1b–22,46 e 23,1–25,46; fórmula: 26,1 Epílogo 26,3–28,20 © Evangelhos Sinóticos158 Smith (1997) propôs que o Evangelho de Mateus alternava entre discurso e narrativa e cada narrativa introduzia o tema sobre o qual o discurso seguinte explanaria. Mesmo que o texto estivesse dividido em blocos, a narrativa formaria um todo, tal qual uma grande narrativa com paralelismos recorrentes (cf. 4,17 e 16,21). A refinada narrativa mateana sobre a história de Jesus enfa- tizava sua soberania e poder desencadeada em três períodos (KIN- GSBURY, 1988): • Apresentação de Jesus (1,1—4,16). • O ministério de Jesus em Israel e o repúdio de Israel a Jesus (4,17—16,20). • I O ministério de Jesus em Israel (4,17—11,1). • II Israel repudia Jesus (11,2—16,20). • A viagem de Jesus a Jerusalém e seu sofrimento, morte e ressurreição (16:21-28:20). • I A viagem de Jesus a Jerusalém e sua atividade no Tem- plo (16:21-25:46). • II A traição, condenação, crucificação e ressurreição de Jesus (26,1—28,20). Na narrativa, Jesus foi apresentado como ilustre persona- gem que nasceu e cresceu a despeito da perseguição de Herodes. Ao término da história, apesar de morto injustamente, ele reviveu e atestou seu poder sobre vida e morte. Isso estabelecia certa situação de confronto e tensão, pois o poder soberano do período era atribuído ao imperador romano, espécie de autoridade divina. A literatura greco-romana associava a imagem do impera- dor (na época Domiciano) à figura de senhor do mundo, gover- nador das nações, mestre do mar e da terra, mesmo que essa so- berania fosse sustentada pela ameaça militar, pelo poder político, Claretiano - Centro Universitário159© U5- Evangelho de Mateus pelas alianças com elites judaicas e pelas cobranças de impostos (LENSKI, 1984). O imperador justificava seus atos e projetos teologicamente pela graça dos deuses romanos, especialmente Júpiter. Com efeito, a redação mateana evocava a soberania de Deus sobre a criação, em evidente contraste com as crenças de soberania nas divinda- des romanas: "Naquele tempo falou Jesus, dizendo: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos" (11,25). Segundo essa perspectiva, a narrativa forjada e apresentada pelo Evangelho de Mateus teve a pretensiosa intenção de oferecer às comunidades cristãs em torno da Antioquia, em conflito com as autoridades romanas e partidos fariseus, saduceus e escribas, uma nova tradição que os conduzisse na experiência religiosa e social. O Jesus apresentado por Mateus, nesses termos, era o Mes- sias esperado pelo judaísmo desde tempos imemoriais que, agora, apresentava-se como o Filho de Deus para a salvação de Israel e, na sequência, daqueles que nele cressem. O Evangelho de Mateus, portanto, almejou alcançar o posto de "nova" tradição para o povo de Israel, sem desprezar a gran- deza do querigma que, independente da vontade de prerrogativa judaica, espalhava-se pelo Império tornando-se mais do que um movimento ou uma seita intra-judaica. Sermão do Monte e a promessa escatológica ––––––––––––– A narrativa mateana não é cronológica, a não ser no início e no fim do texto (cap 1-4 e 26-28) e tampouco biográfica. Mateus 5-7 insere-se dentro desse conjunto literário e costuma ser bastante lido e interpretado pela pesquisa de literatura judaico-cristã. Os capítulos 5-7 constituem um dos mais conhecidos discursos de Jesus: O Sermão do Monte (ou da Montanha). No trecho que vai do verso 3 ao 11 encontram-se "as bem-aventuranças", segui- das de um "chamamento à verdadeira justiça" (vv. 13-20) e por fim as "antíteses" (vv. 21-48). Os capítulos 6-7 fornecem instruções diretas aos discípulos de Je- sus, quanto ao modo como devem se comportar no mundo. E a seguir encon- tramos uma série de curas que são protagonizadas, inicialmente, pelo leproso e, depois, pelo gentio (o centurião). Posteriormente, o quadro narrativo de Mateus é encerrado com evocações proféticas e referência ao Juízo. © Evangelhos Sinóticos160 Klaus Berger, professor de Exegese do Novo Testamento em Heidelberg, afirma que no processo de interpretação do sermão deve-se considerar que tanto intro- dução quanto conclusão são de natureza protréptica (Como protréptikós logos designa-se um escrito propagandístico que pretende em primeiro lugar, conquis- tar adeptos para determinada disciplina (...). Isso se faz mostrando as vantagens de tal caminho e comparando-o com outros. De acordo com isso, chamamos de admonição protréptica todo texto que adota como tema a escolha fundamental do caminho cristão. (BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamen- to. Tradução Fredericus Antonius Stein. São Paulo: Loyola, 1998. p.199), o que condiciona o gênero de toda a composição. Mais adiante, ele esclarece que a estrutura da narrativa mateana propõe que as palavras dirigidas aos "justos" de- vem ser aplicadas "aos de fora", isto é, àqueles que não são de origem judaica. Assim, o que se exigia internamente para o relacionamento mútuo e de fraterni- dade deve se estender aos outros e, nisto se justifica o dom salvífico: "a idéia de que Israel era a causa de salvação para os demais povos" (Idem, Ibdem. p.121). No caso específico do bloco 5-7, o objetivo seria "conquistar fundamental e defi- nitivamente o ouvinte para o caminho que deve enveredar" (Idem, Ibdem. p.67), pois com essa decisão o indivíduo estaria sujeito a conquista de um ganho me- lhor. Com isso, estabelece-se uma relação de promessa e expectativa para o futuro que retoma o tema escatológico e remonta à tradição apocalíptica judaica. Para a visualização dessa perspectiva, propomos a seguir uma estrutura geral para o material mateano. Proposta de Estrutura para Mateus Genealogia e infância de Jesus – cap 1-3 Embate entre Jesus e Satanás no deserto – cap 4 III. Sermão do Monte – cap 5-7 IV. Ensinos e curas de Jesus – cap 8-9 Orientações aos discípulos – cap 10-12 Parábolas – cap 13 Milagres e novas curas – cap 14-15 Jesus ensina os discípulos, desenvolve seu ministério, polemiza com lideranças religiosas – cap 16-23:12 Os "ais" e o lamento – 23:13-39 Discurso escatológico – cap 24:1-31 Parábolas sobre o fim – cap 24:32-51—25:30 O Juízo – cap 25:31-46 Acontecimentos finais da vida de Jesus – cap 26-28 Conforme a estrutura esboçada acima, destacam-se cinco eixos que denomina- mos: (1) Inícios, (2) Preparação, (3) Ministério público, (4) Profecia e (5) Esca- tologia. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Claretiano - Centro Universitário 161© U5- Evangelho de Mateus 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 1) O que dizem os comentaristas em relação à autoria do Evangelho de Mateus e em que medida esse debate coopera para a compreensão da relação da escrita do evangelho com as primeiras comunidades cristãs? 2) Qual a relação do Evangelho de Mateus com o contexto histórico, político e cultural próximo? 3) Quais evidências na escrita do Evangelho de Mateus contribuem para sua classificação anti-semítica e quais evidências dizem o contrário, isto é, que a autoria de Mateus era judaica e voltada para a transmissão do evangelho de Jesus de Nazaré? 11. CONSIDERAÇÕES Compreendemos, nesta unidade, que o Evangelho de Ma- teus teve lugar na Antioquia da Síria ou região próxima, espaço geográfico que favoreceu efetivas trocas políticas e culturais entre judeus e outras etnias dominadas pelo Império Romano. Disso, decorreu a multiplicidade do grupo de Mateus consti- tuído de judeus, judeus helenizados e gentios que traziam consigo diferentes expectativas acerca da salvação e do reino dos Céus. A autoria, portanto, procurou nos interstícios da redação responder positivamente às questões dos judeus que se aproximavam dos ensinos de Jesus, mas também dos judeus helenizados que ade- riam ao movimento do nazareno e dos estrangeiros que demons- travam simpatia pela fé e princípios cristãos. Isso implica que no âmbito literário, Mateus empregou recursos retóricos amplamen- te difundidos pela cultura helênica como forma de causar identi- ficação com esse grupo que se aproximava dos ensinos de Jesus. Paralelamente ao crescimento da comunidade, também as críticas feitas pelos adversários do grupo de Mateus se eviden- ciavam justamente em função da adesão de estrangeiros a essa comunidade. Dentre as controvérsias promulgadas, acusavam a © Evangelhos Sinóticos162 comunidade cristã de Antioquia de desrespeitar importantes pre- ceitos da Lei relacionados aos rituais de pureza, ao Sabbath, à ali- mentação e a outros costumes. Por conseguinte, ela não poderia ser de tradição judaica. Por outro lado, a audiência mateana de- clarava fé numa única divindade, portanto, não poderia ser de tra- dição grega ou romana. Embora respeitasse os ditames de Roma, não se submetia completamente ao padrão helênico, pois guarda- va a Tora interpretada por Jesus. Essa inadequação explicitada principalmente no conflito de interpretações da autoria mateana com as lideranças religiosas judaicas, que se autodenominavam guardiões da Lei, favoreceu a redação autônoma e criativa deste Evangelho. Trata-se, portanto, de uma rica construção literária que as- simila elementos externos (dimensões históricas e sociais) e in- ternos (psicológicos, religiosos e linguísticos) à estrutura do texto, algumas vezes de forma consciente e, outras vezes, de maneira inconsciente. Entretanto, laboriosamente arquitetadas. A incorporação de expectativas do grupo, do meio social, da cultura, das técnicas retóricas e de outros intertextos que perpas-sam a redação mateana, revelam que o perfil psicológico da auto- ria não poderia ser constituído predominantemente de influências judaicas ou inserções helênicas apenas. Também vimos que o Evangelho de Mateus é uma narrati- va que reclama para si caráter fundante e normativo. Assim, pre- tende ser história de fundação das origens cristãs e documento ordenador com orientações para a conduta religiosa e social dos cristãos reunidos em torno desse Evangelho. 12. E-REFERÊNCIAS AUGUSTIN, The Harmony of Gospels. In: Schaff, Philip (Ed.). The Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. v. 6. Edinburgh: T & T Clark. Christian Classics Ethereal Library. Disponível em: <http://www.ccel.org/ccel/schaff/npnf106.titlepage.html>. Acesso em: 15 nov. 2011. Claretiano - Centro Universitário 163© U5- Evangelho de Mateus RODRIGUES, E. Mateus, o Contador de Histórias. Resenha de CARTER, Warren. Matthew. Storyteller, Interpreter, Evangelist. Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2004. 287p, In: Oracula 3/ 5 (2007): 141-155. Disponível em: <http://www.oracula.com.br>. Acesso em: 15 nov. 2011. 13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBRIGHT, W. F. & MANN, C.S. Matthew. New York: Doubleday, 1971. BACON, B.W. Studies in Matthew. New York, 1930, seguido por BROWN, R. E. An Introduction to the New Testament. New York: Doubleday, 1997. (The Anchor Bible Reference Library). BUTLER, B. C. The Originality of St. Matthew. A Critique of the Two-Document Hypothesis. Cambridge: Cambridge University Press, 1951. BYRNE, B. 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CONTEÚDOS • Fragmentos da história. • Estágios da escrita do Evangelho. • Temas literários e discussões sobre Lucas. • Memórias da tradição judaica em Lucas. • Propostas de estrutura para Lucas. © Evangelhos Sinóticos166 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Tenha à disposição para consulta uma Bíblia. Se possível tenha mais de uma versão, a fim de conferir as diferen- ças na tradução. 2) Leia atentamente a unidade e conceda atenção às refe- rências bibliográficas indicadas. A leitura de tais indica- ções tem por finalidade complementar as informações apresentadas nesta unidade e oferecer oportunidade de ampliar seus conhecimentos por meio de instrumental teórico sofisticado. 3) Faça a leitura desta unidade quantas vezes forem possí- veis e procure identificar a proximidade deste material com o Evangelho de Mateus e a dependência em relação ao Evangelho de Marcos. 4) Busque o auxílio de comentaristas e de dicionários, mas não antes sem efetuar sua leitura do Evangelho de Lucas e elaborar suas impressões iniciais. 5) MARCION (85-160 d.C.) foi uma figura principal entre os hereges gnósticos. Dele diz-se que é uma das figuras mais influentes na História da Igreja e um dos hereges mais combatidos de todos os tempos. Para saber mais, acesse o site disponível em: <http://www.presbiteros. com.br/historiadaigreja/osapocrifos.htm>. Acesso em: 15 nov. 2011. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na Unidade 5, procuramos entender a conjuntura histórica e alguns dados sobre a redação, autoria, lugar de origem e datação do Evangelho de Mateus. Identificamos os principais temas foca- dos pelo redator e enumeramos na sua redação. Nesta última unidade, estudaremos o Evangelho de Lucas. Trata-se de um evangelho peculiar, tendo em vista a elegância do Claretiano - Centro Universitário 167© U6- Evangelho de Lucas grego e a cuidadosa redação do texto. Essa redação denuncia que o autor teve mais tempo que os outros para dedicar-se à escrita, em função da clareza na apresentação dos assuntos. Costumeiramente, esse Evangelho tem sido atribuído a um médico que teria acompanhado Paulo em algumas viagens. Esse argumento é sustentado pela tradição e amparado pela interpre- tação de textos que indicariam a capacidade do redator em "diag- nosticar" mais precisamente algumas situações (Lc 4,38/Mc 1,30; Lc 5,12/Mc 1,40; Lc 6,6/Mc 3,1; Lc 22,50/Mc 14,47). Essa e outras questões não estão completamente resolvidas pelos pesquisadores. Nesta unidade, vamos discuti-las e apresen- tar brevemente alguns temas tratados pelo redatorde Lucas, os quais nos fornecerão "pistas" para construirmos nossa perspecti- va acerca desse importante Evangelho. Começaremos por alguns fragmentos de documentos referentes a esse Evangelho e, em se- guida, faremos uma abordagem a partir da perspectiva da Crítica Literária. Geralmente, os estudos de evangelhos apresentam uma es- trutura geral para o texto, a fim de subsidiar a leitura do texto. Aqui, optamos por apresentar algumas estruturas para leitura do Evangelho de Lucas apenas ao final da unidade como sugestão, a fim de que todos possamos elaborar nossas próprias estruturas de compreensão. Sabemos que esta apresentação não contempla toda a diver- sidade de abordagens sobre o Evangelho de Lucas, tampouco che- ga a tratar de todos os temas que o redator elenca em seu texto. Por isso, elaboramos uma bibliografia que pode subsidiar o apro- fundamento de seus estudos. Vamos começar? © Evangelhos Sinóticos168 5. FRAGMENTOS DE HISTÓRIA. TESTEMUNHOS SO- BRE LUCAS A existência do Evangelho de Lucas e de sua formulação já no fim do século 1º EC é atestada em alguns documentos que nos servem à investigação desse Evangelho. Vejamos alguns deles: Fragmento Muratoriano ––––––––––––––––––––––––––––––– "Terceiro livro do Evangelho segundo Lucas. Este Lucas, um médico, tendo sido tomado, depois da Ascensão de Cristo, por Paulo como seu companheiro quase como um advogado (um perito) escreveu-o em seu nome (por sua ordem). Con- tudo ele não viu o Senhor na carne e, quando pôde, começou a sua narração pelo nascimento de João". Ireneu, Bispo de Lião (morreu por volta do ano 200) "Tambem Lucas, seguidor de Paulo, compôs um livro, o evangelho pregado por aquele" (Adv. Haer. III, 1,1; veja-se III, 14, 1; III, 15, 1). No prólogo anitimarcionista ao Evangelho de Lucas, composto no século 2o EC: "Lucas, sírio de Antioquia, médico de profissão, discípulo dos Apóstolos, mais tarde seguidor de Paulo até à confissão (martírio) dele, servindo Deus sem delito. Não teve mulher, nem filhos, aos 74 (84?) morreu na Bitínia (Beócia?) cheio do Espírito Santo. Este, tendo já sido escritos os evangelhos de Mateus na Judéia e de Marcos na Itália, por impulso do Espírito Santo na Aceia (Grécia) escreveu este evangelho, dizendo ao princípio que já tinham sido escritos os outros (Evan- gelhos)". Eusébio (em História eclesiástica III, 4, 6): "Lucas, que era por descendência de Antioquia e por arte médico, ficou unido durante mais tempo a Paulo, também tratou não incidentalmente com os outros apóstolos. Da ciência de curar as almas que tinha aprendido destes, deixou-nos a prova em dois livros divinamente inspirados: o Evangelho, que ele afirma ter composto segundo as coisas que lhe transmitiram aqueles que desde o princípio foram testemunhas oculares e ministros da palavra, e às quais diz ter seguido quase desde o princípio; e (em segundo lugar) escreveu os Atos dos Apóstolos que ele coordenou por informação não já ouvida, mas vista". –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Essas quatro ocorrências evidenciam que o Evangelho de Lu- cas foi escrito por ele próprio. Era médico, natural de Antioquia e seguidor de Paulo, portanto, não fora testemunha ocular dos acontecimentos relacionados à vida e ministério de Jesus. Ele não Claretiano - Centro Universitário 169© U6- Evangelho de Lucas era hebreu e recebeu influência de Paulo, na teologia e na versão, mas teria recorrido a outros que tiveram oportunidade de acom- panhar a Jesus. Em razão desse recurso, da seleção de relatos orais de outras testemunhas, explica-se a inserção de três trechos próprios de Lu- cas que diferem do esquema de Marcos, seguido na maior parte desse Evangelho. Dos 1149 versos, 541 são atribuídos ao redator de Lucas e isso também se deve ao hiato entre a morte de Jesus e a redação de seu Evangelho. (...) passaram-se cerca de 50 anos entre a morte de Jesus e o relato lucano. Nesses cinquenta anos mudaram as circunstâncias históri- cas (ocorreu a primeira parte das "guerras judaicas", o Templo e a cidade de Jerusalém, foram destruídos, o cristianismo se dispersou e "gentilizou"), que fazem com que o relato dos fatos sofra dife- rente mediações. O autor do evangelho provavelmente provém da gentilidade, ao passo que a maior parte dos atores do drama evan- gélico são israelitas e se movem dentro do mundo israelita, sem desconhecer o espaço decisivo "gentio" que significa a presença de Pilatos e o pano de fundo imperial romano. Isto também influi no relato. As expressões orais das testemunhas diretas serão também distintas do ordenamento seletivo que nos propõe o terceiro evan- gelho (MÍGUEZ, 2003, n. p.). O redator de Lucas "ordena" sua narrativa a partir dos tes- temunhos, mas não prescinde dos materiais de Marcos e Q, dos quais depende, mas utiliza com certa autonomia. Dada a conjun- tura histórica, a ordem do redator. É uma ordem que responde a uma concepção teológica elaborada, já na terceira geração cristã, por uma igreja que se diferencia, até polemicamente, de sua origem judaica e que necessita elaborar pontos de contato com o entorno do mundo político no qual vive (MÍGUEZ, 2003, p. 142). Por isso, ao tocar em assuntos referentes à cidade de Jeru- salém, ao Templo e à classe sacerdotal, por exemplo, detalham as cenas e as práticas, denunciando que essa classe agia em con- junto com os governantes de Roma, detentores do poder político e econômico. Descrições pormenorizadas que deve ter servido, também, à parte da audiência que não tinha familiaridade com as memórias judaicas. © Evangelhos Sinóticos170 De fato, dos Sinóticos, Lucas parece ser o evangelho cons- truído com maior zelo, envolvendo tradições orais, testemunhos e pesquisa do autor. Isso indica que de um lado, a distância dos tempos de atuação de Jesus em relação ao contexto de redação favoreceu a criatividade do redator possibilitando a aproximação da sua conjuntura histórica e de uma audiência "gentilizada". De outro, o Evangelho em si reúne não apenas traços de uma cultura "urbanizada", mas também indícios da tradição judaica, cuidado- samente elencados pelo autor, visto que os registros tratavam da história, da tradição e de conteúdos relacionados a Jesus de Naza- ré, que era um judeu. Isso é o que verificaremos no decorrer desta unidade. 6. ESTÁGIOS DA ESCRITA DO EVANGELHO E AUTORIA No prólogo do Evangelho de Lucas (1,1-4), encontramos o método que o autor utilizou para escrever sua obra. Como expos- to, sua pesquisa valeu-se de três fontes: • várias narrativas compostas antes dele, v. 1: "Visto que muitos já tentaram compor uma narrativa dos fatos que se cumpriram entre nós"; • informações recolhidas junto às testemunhas oculares, v. 2: "conforme no-los transmitiram os que, desde o princí- pio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra"; • tradição oral das pregações apostólicas, v. 3: "a mim tam- bém pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, 4 para que verifiques a solidez dos ensina- mentos que recebeste". Podemos relacionar os três estágios desenvolvidos pelo re- dator para compor seu texto, com as três críticas modernas usadas para a investigação das origens dos Evangelhos: Claretiano - Centro Universitário 171© U6- Evangelho de Lucas • Crítica da Fonte – investiga quais materiais podem ter sido usados para a composição de um texto. • Crítica da Forma – examina os gêneros e as formas literá- rias presentes na composição. • Crítica da Redação – busca identificar o estilo de composi- ção do texto, a escrita, as relações e os processos envolvi- dos na composição que denotam os contatos do redator, sua teologia e preocupações. O prólogo de Lucas informa-nos que o redator teve, à dis- posição, mais materiais que os demais evangelistas. Quase meta- de de seu evangelho consiste de material peculiar a Lucas (BOR- NKAMM, 1981). O que indiretamente indica que a produção desse Evangelhofoi tardia em relação a Marcos e Mateus. É bem possível que Lucas tenha escrito uma só obra que de- pois se separaria em Evangelho e Atos dos Apóstolos. Ler a obra como um conjunto é uma chave interpretativa fundamental. O pró- logo histórico e teológico em Lc 1,1–4,13 seria um prólogo a toda a obra lucana (Lc e At). Lucas 24,50-53 e At 1,1-5 seriam acréscimos posteriores, quando os dois livros foram separados. Não sabemos quando as duas obras se separaram, mas muito possivelmente quando os 4 evangelhos formaram uma unidade na formação do cânon do NT (final do século 2º). Os dois acréscimos dão testemu- nho de como a obra de Lucas era reinterpretada posteriormente (RICHARD, 2003). O início do Evangelho identifica seu propósito: colocar Te- ófilo a par das informações possíveis sobre a vida de Jesus Cris- to, "de modo ordenado". Teófilo, "amigo de Deus" é personagem desconhecido. O Evangelho de Lucas foi escrito para o "ilustre Te- ófilo" – aquele que ama a Deus –, que seria o mecenas de Lucas, financiador dos custos do livro. Contudo, o escrito não se destina apenas a ele. A julgar pelo pronome de tratamento empregado pelo evangelista, talvez se tratasse de alguém com cargo político no governo romano. Entretanto, a narrativa foi destinada a um © Evangelhos Sinóticos172 grupo amplo de pessoas, talvez de maioria gentílica, recém con- vertidos ao cristianismo. Esses seriam motivos significativos para na narrativa de Lucas constar explicações históricas sobre Jesus e explicações sobre a salvação. Todavia, o destinatário do terceiro Evangelho também é cita- do no prólogo do livro de Atos dos Apóstolos, que como dissemos pode ter sido produzido pelo mesmo redator. Entretanto, esse não seria o único sujeito do prólogo. Have- ria pelo menos cinco, segundo Pablo Richard (2003): 1) O Jesus Histórico (de antes do ano 30 EC). 2) As testemunhas oculares e ministros da palavra. 3) Muitos que tentaram compor suas narrativas a esse res- peito. 4) O próprio Lucas (provavelmente entre os anos 70 e 90 EC) após "acurada investigação". 5) Por fim, Teófilo – o receptor desse Evangelho. Apesar do grego koinê, reconhecido como grego popular que reunia à língua grega expressões semíticas e era falado prin- cipalmente pelos judeus helenizados, o estilo literário do redator é considerado muito elaborado. Trata-se da obra literária de um "cronista" (CULLMANN, s. d p. 34).. Lucas usou "com domínio magistral e suave delicadeza" o estilo clássico (demonstrado pelo prólogo), passando por tons hebraicos no relato da infância de Jesus (1,5–2,52) e claramente inspirando-se na forma literária da Septuaginta no restante do seu Evangelho. Em sua escrita percebe-se que o redator evitou o uso de semitismos, os quais encontramos em outros evangelhos (STUHMUELLER apud BROWN; FITZMYER; MURPHY, 1972. p. 297). O grego de Lucas é elegante. Apresenta frases construídas artificialmente, mas tem clareza na escrita, além de rico vocabulá- rio composto por 373 palavras que somente são encontradas em seu Evangelho. De Marcos herdou o conteúdo de algumas passa- gens, mas eliminou sua escrita rude e descuidada. Claretiano - Centro Universitário 173© U6- Evangelho de Lucas Alguns estudiosos afirmam que os temas campesinos típi- cos dos outros evangelhos foram "urbanizados" pelo redator, pois teria descrito acontecimentos da Palestina, a partir de uma locali- dade ocidental. O prólogo teológico é totalmente redacional e histórico ao mesmo tempo. Reconhecemos que o texto é criação teológica própria de Lucas, mas, simultaneamente, é um texto que recolhe a tradição histórica e a teologia própria dos ambientes e personagens que aqui aparecem. Sobre o lugar de origem e a datação Embora o lugar da redação seja uma questão não definida, Cesareia, Acaia, a Decápole, a Ásia Menor e (com mais frequência) Roma têm sido apontados como lugares prováveis para a redação desse Evangelho. O que gera algum consenso é que o texto foi pro- duzido fora da Palestina entre os anos 70 e 90 EC (KÜMMEL, 1982). O redator de Lucas quer informar. Ele dirigiu seu texto às co- munidades e aos grupos que se formaram em torno das tradições sobre Jesus e João Batista, que necessitavam ter conhecimento a respeito do que ocorreu "desde a origem". A acurada investigação pontua o período histórico: "... nos dias de Herodes..." (1,5), o Grande rei da Judeia que governou de 37 a 4 aEC e do imperador César Augusto (2,1), que governou en- tre 31 aEC a 14 EC. Essas comunidades estavam espalhadas pelo Império Roma- no, mas possuíam origem religiosa na Judeia, por isso, ele destaca a João Batista e a Jesus, pois suas tradições repercutiam de modo fértil nessa região. Eles se situaram nas redondezas da Judeia e, pos- teriormente, o movimento de Jesus espalhou-se pela "oikumenê". Segundo a Tradição, o Lucas médico de Cl 4,14 pode ter sido o mesmo redator do Evangelho. Quanto a essa ligação, não há consenso entre os pesquisadores, mas, dessa ligação, muitos © Evangelhos Sinóticos174 concluem que seria essa a razão da importância que o Evangelho atribui ao ser humano. Outra conclusão decorrente dessa afirma- ção é que a ênfase em uma linguagem lógica, ordenada, típica de Lucas, levantada pelo crítico inglês Hobart em 1880, é sinal de uma sofisticação que os outros autores bíblicos não tiveram. Sobre os temas abordados no evangelho O fato é que o redator desse Evangelho discorreu atenciosa- mente a respeito do problema dos marginalizados, dos pobres e dos sofredores. Por essa razão, é considerado por muitos o "Evan- gelho dos pobres" (STUHMUELLER, 1972, p. 300). Por isso, mais do que em Marcos e Mateus, em Lucas encon- tra-se a perspectiva de uma "história da salvação". Uma "história da salvação" proclamada por pregadores também mendicantes (Lc 10,1-12). Além de referências à pobreza em tom crítico, o Evangelho de Lucas também cuida de discorrer sobre as mulheres, todavia, de uma perspectiva que algumas pesquisadoras têm questionado quanto às intenções. Diz-se a esse respeito que a redação lucana prima pelo "controle" e pela "invisibilização" das mulheres, apesar da abundância de citações. A ocorrência de 8,1-3 coloca "algumas mulheres" ao lado dos Doze. Elas são lembradas por terem sido curadas de espíritos maus, de enfermidades e terem se dedicado a Jesus com suas vi- das e bens. Entre as tais, cujo número exato não se sabe, constam Maria Madalena, Joana e Susana. Em geral, as mulheres aparecem em sincronia com a figura de homens, como pares (RAMOS, 2003). Assim, como outros temas, a escrita de Lucas denuncia algo típico do mundo antigo, que era a estrutura de pensamento an- drocêntrica, isto é, cujo centro se constituía da prevalência do ho- mem sobre a mulher. Claretiano - Centro Universitário 175© U6- Evangelho de Lucas O que é natural, visto que esse Evangelho, entendido como fonte do período antigo, somente poderia projetar a estrutura so- cial da época, que era patriarcal. O que não justifica uma leitura patriarcal na modernidade, mas nos mobiliza a estudar com aten- ção a conjuntura história a partir da qual emergiu esse Evangelho, marcado pela sua época. Em seguida, faremos breve panorama sobre alguns temas de Lucas, a partir das discussões que têm sido desenvolvidas sobre esse Evangelho. 7. TEMAS LITERÁRIOS E DISCUSSÕES SOBRE LUCAS No Documento de Jerusalém (9,51–19,48) Lucas construiu sua cristologia: o pleno significado de Jesus como Salvador do mun- do (STUHMUELLER, 1972, p. 364). Lucas distanciou-se de Marcos como fonte (na maior parte desse documento, ou seja, 9,51–18,14) e registrou materiais de Q e de suas próprias fontes. Para ilustrar esse ponto, tomaremos a perícope Lc 10,17-20 como paradigma para análise e apresentação. Lucas 10,17-20 consta nos Papiros mais antigos: o P75 (cerca de 3 EC) – Papyrus Bodmer XIV (Geneva) e o P45 (3 EC) – Chester Beatty Papyrus (Dublin) (FITZMYER, 1979, p. 129) O trecho de Lucas 10,17-20 e as passagens de Marcos 3,22-27 e Lc 13,10-17 registram a atividade exorcista de Jesus. Tema sobre o qual Mateus, por exemplo, não se debruça. Segundo Cruz (1999) "estes textos refletem o conceito proto-cristão dos exorcis- mos". Com efeito, a continuidade entre Lucas e Atos poderia se justificar já que o tema exorcismo também aparece no livro de Atos dos Apóstolos, onde encontramos algumas passagens inte- ressantes sobre os exorcismos praticados pelos discípulos, que conferem com aqueles registrados nos Evangelhos Sinóticos, em especial Atos 16,16ss e 19,13ss que apresentam paralelos formais, tais como: © Evangelhos Sinóticos176 • Atos 16,16ss registra o episódio do exorcismo praticado por Paulo em Filipos. Nessa ocasião, o apóstolo expulsa um demônio de uma jovem possuída por um espírito de adivinhação. Paulo manda o espírito sair da moça "em nome de Jesus" e o demônio o obedece imediatamente. • Atos 19,13ss relata a tentativa frustrada de exorcistas pro- fissionais judeus em usar o nome de Jesus na expulsão de um demônio. Os "filhos de Ceva" falharam porque usa- ram o nome de Jesus como um encantamento mágico. A ação desses exorcistas profissionais judeus lembra que o judaísmo rabínico dos tempos de Jesus havia abandonado a de- monologia do Antigo Testamento. Entretanto, a literatura rabínica revela instruções sobre exorcismos que tratavam desde o contato ou comunicação com os demônios até fórmulas ou rituais de exor- cismo. Portanto, essa prática não deveria ser incomum. A admira- ção dos discípulos: "... até os demônios se submetem a nós, em teu nome..." (Lc 10,17) indica o espanto causado pela descoberta do poder de expulsar demônios com base na autoridade do nome de Jesus, o que pode ser considerado uma nova fórmula secreta, diferente das ensinadas pela literatura rabínica. Embora a expulsão em nome de Jesus aparente ser uma des- coberta, pelo menos para os discípulos, o exorcismo não era prá- tica desconhecida como se observa nos Papiros Mágicos Gregos (PMG). Os papiros correspondem a manuscritos que descrevem, entre outras coisas, exorcismos, simpatias, oráculos, orações e en- cantamentos mágicos para proteção contra demônios. Eles cons- tituíam fontes do período antigo que nos dão conta de práticas mágicas de gregos que em alguns pontos se assemelham com prá- ticas judaicas. Gregos de língua, mas egípcios de origem, os PMG constituem-se como uma das fontes mais interessantes para a compreensão do antigo mundo cultural mediterrâneo, não somente no seu lado re- ligioso. Claretiano - Centro Universitário 177© U6- Evangelho de Lucas (...) Mais concretamente os textos, datados entre o II século AC e o V século dC, são uma série de fórmulas, rituais e mágicas, e cons- tituem um testemunho extremamente precioso do cotidiano da religião mágica helenística. (...) A antigüidade conhece a existência de um grande número de livros mágicos. Testemunha disso são as freqüentes queimas de li- vros: é o caso, por exemplo, da fogueira de livros mágicos em Éfeso, relatada pelos Atos dos Apóstolos (19,19) (...) ( CORNELLI, 2000, n. p. ). Existem algumas características dos PMG, no que diz respei- to aos exorcismos: 1) Invocação: pedido de assistência a um poder/autoridade (um deus ou herói mitológico). 2) Identificação: do poder/autoridade que tem poder so- bre o demônio. 3) Ordem: a expressão mais comum é do tipo: "eu te es- conjuro por..." Então, o exorcista expulsa o demônio em nome de um deus, ou chama um deus para fazê-lo. 4) Proteção: o demônio é mandado para longe, de tal ma- neira que não volte mais a causar problemas. O interessante nos PMG é que projetam certa conjuntura histórica em que práticas mágicas eram compartilhadas, com algu- mas diferenças, por tradições egípcias, gregas, semíticas e cristãs. Os paralelos podem ser notados na invocação de nomes de divin- dades e anjos, dentre os quais os nomes judaicos. Em PMG X:36- 50, na Simpatia de Apolo, por exemplo, desenhos e palavras má- gicas incluem nomes de anjos judaicos: Michael, Rafael e Gabriel. Além deles, em outros estratos, Moisés e Salomão foram invoca- dos denunciando as influências marcantes das tradições judaico- -cristãs (CORNELLI, 2000). Decorre desse conjunto imagético e cultural, que a redação de Lucas e o fato de ter registrado exorcismos em seu relato de- nota contato e conhecimento da cultura grega, de sua religião e de como era o ambiente histórico-social no qual as comunidades cristãs estavam inseridas e para as quais o redator se dirigia. Essa © Evangelhos Sinóticos178 não seria uma peculiaridade do redator de Lucas, visto que em outras literaturas de matriz judaica, essas práticas também foram relatadas. Na literatura chamada "pseudoepigráfica" (séculos 3 aEC a 2 EC), encontram-se alguns ensinos sobre demonologia e prática de exorcismos (cf. 1 Enoque 6-16), conhecidos inclusive por autores do Novo Testamento (Jd 6; 2 Pd 2,4). Também nessa literatura a característica de nomear demônios está presente: Semiaz, Azazel, Mastema e Belzebu (Lc 11,18) são nomes de líderes dos demônios que se conhece a partir desses textos, como também em Lucas. Em Lucas 10,17-20, encontramos como líder dos demônios Satanás, nome usado por Marcos (1,13; 3,23,26; 4,15; 8,36), Lucas (10,18; 11,18; 13,16; 22,3; 22,31) e Mateus (4,10; 12,26; 16,23). Entende-se que os meios usados para a expulsão de demônios eram semelhantes às fórmulas usadas pelos judeus profissionais, pelos PMG e em outras fontes do período, mas somente em Ma- teus e Lucas fala-se de Jesus efetuando exorcismos, em especial, em Lucas, já que Mateus primeiramente usa o termo "cura" (Qua- dro 1). Quadro 1 Referências sinóticas (Mt 12 e Lc 11). MATEUS 12 LUCAS 11 22 Então trouxeram-lhe um endemoninhado cego e mudo, e ele o curou, de modo que o mudo podia falar e ver. 23 Toda a multidão ficou espantada e pôs-se a dizer: "Não será este o Filho de Davi?" Mas os fariseus, ouvindo isso, disseram: "Ele expulsa demônios, senão por Beelzebu, príncipe dos demônios". 14 Ele expulsava um demônio que era mudo. Ora, quando o demônio saiu, o mudo falou e as multidões ficaram admiradas. 15 Alguns dentre eles, porém, disseram: "É por Beelzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios". 16 [Outros, para pô-lo a prova, pediam-lhe um sinal vindo do céu.] (Cf. Mc 8:11) Claretiano - Centro Universitário 179© U6- Evangelho de Lucas MATEUS 12 LUCAS 11 25 Conhecendo seus pensamentos, Jesus lhes disse: "Todo reino dividido contra si mesmo acaba em ruína e nenhuma cidade ou casa dividida contra si mesma poderá subsistir. 26 Ora, se Satanás expulsa a Satanás, está dividido contra si mesmo. Como, então, poderá subsistir seu reinado? 27 Seu eu expulso os demônios por Beelzebu, por quem os expulsam os vossos adeptos? Por isso, eles mesmos serão os vossos juízes. 28 Mas se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus já chegou a vós. 17 Ele, porém, conhecendo-lhes os pensamentos, disse: "Todo reino dividido contra si mesmo acaba em ruínas e uma casa cai sobre a outra. 18 Ora, até mesmo Satanás, se estiver dividido contra si mesmo, como subsistirá seu reinado?... Vós dizeis que é por Beelzebu que eu expulso demônios; 19 ora, se é por Beelzebu que eu expulso os demônios, por quem os expulsam vossos filhos? Assim, eles mesmos serão os vossos juízes. 20 Contudo, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus já chegou a vós. Entre as duas narrativas ocorrem pequenas variações que sinalizam principalmente a diferença nos estilos de escrita dos re- datores. Vejamos no Quadro 2: © Evangelhos Sinóticos180 Quadro 2 Variações de narrativas em Mateus e Lucas. MATEUS LUCAS • Fala de um endemoninhado que era cego e surdo. • Fala que o endemoninhado foi curado. • A multidão se espanta. Perguntam se Jesus era o Filho de Deus. E os fariseus respondem: • "Ele expulsa demônios, senão por Beelzebu, príncipe dos demônios". • Jesus conheceos pensamentos dos presentes e os responde (vv. 25, 26, 27) falando sobre o reino dividido. • Jesus pergunta: "Seu eu expulso os demônios por Beelzebu, por quem os expulsam os vossos adeptos? Por isso, eles mesmos serão os vossos juízes". • Jesus afirma expulsar pelo "Espírito de Deus" e insere a realização do "Reino de Deus" já. • Fala de um demônio que era apenas mudo. • Fala que o demônio foi expulso. • As multidões se admiram. Alguns dentre eles (não se refere a fariseus), dizem: • "É por Beelzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios". • Jesus conhece os pensamentos dos presentes e os responde (vv. 18-19) falando sobre o reino dividido. • Jesus pergunta: "se é por Beelzebu que eu expulso os demônios, por quem os expulsam vossos filhos? Assim, eles mesmos serão os vossos juízes". • Jesus afirma expulsar pelo "dedo de Deus" (poder) e insere a realização do "Reino de Deus" já. Enquanto Mateus se preocupa em salientar a "cura" e indi- car a controvérsia com fariseus, a quem critica ao longo de todo seu Evangelho, inclusive usando o termo "adeptos" para referir-se à adesão ao partido farisaico, Lucas, diferentemente, fala de "ex- pulsão" desde o princípio, não se refere aos fariseus e usa o termo "filhos". Além disso, o primeiro fala do "Espírito Santo", enquanto o segundo fala do "dedo de Deus". Além disso, Lucas destaca-se ao longo de sua narrativa pelo uso das palavras "povo" e "multidão" (laos e ochlos) que usa 31 vezes, contra duas vezes de Marcos e onze de Mateus. Esse uso, no entanto, é impreciso; às vezes, refere-se a um conjunto de habitantes humilde de algum lugar (nos primeiros 13 ca- pítulos), outras, em oposição aos governantes (por exemplo: 20,21; 22,2). Assim, nem sempre está se referindo aos mesmos atores. Claretiano - Centro Universitário 181© U6- Evangelho de Lucas A partir dessa relação, podemos reconhecer na escrita de Lu- cas uma linguagem mais universalista? Isto é, menos preocupada com matérias de interesse exclusivo judaico? Em primeiro lugar, um caminho para responder essa questão é primeiro observar que o termo "universalista" deve ser enten- dido à luz do período antigo e não conforme nossa concepção de "universal", cunhada na modernidade. Afirmar que o redator de Lucas preocupava-se com os grupos cristãos emergentes a partir de uma perspectiva universalista é re- conhecer que o Evangelho estava em franca expansão no Mediter- râneo antigo. Com isso, chegamos às estruturas de pensamento da época que eram partilhadas por diferentes povos e suas culturas (egípcios, gregos, romanos e judeus e judeus-cristãos). Nessa con- juntura, o dualismo era uma estrutura recorrente de pensamento. Lucas herdara esse dualismo, como observamos em 16,8: "(...) pois os filhos deste século são mais prudentes com sua ge- ração do que os filhos da luz". "Filhos da luz" era a designação atribuída aos filhos de Israel (AT), também empregada em Jo 8,12, Rm 13,12-13 e 1Ts 5,5, por exemplo. Tal expressão opunha-se à expressão "Filhos das trevas", referência àqueles que não eram herdeiros ou escolhidos de Israel, os pagãos. Nos Rolos do Mar Morto (200 aEC – 70 EC), encontramos uma cosmologia dualista: "espírito da verdade" e "espírito da mal- dade" (1 QS 3,17-21), que remontam ao dualismo persa e que che- garam aos escritos de Qumran. É interessante notar que Lucas faz referências a "filhos do mundo", "filhos deste século", "filhos da luz", "os da terra" e outras que nos remetem a uma espécie de geografia mítica, que divide a Criação entre Céu e Terra. Um es- quema de classificação que associa o bem ao Céu e o mal à Terra. Como se sabe, o esforço em classificar a realidade tem a ver com o esforço de ordenar, de colocar no lugar coisas que se crêem fora do espaço certo. Um ato de exorcismo pode ser entendido nessa chave: como prática mágica que visa colocar para fora de © Evangelhos Sinóticos182 certo lugar (um corpo), algo (um demônio) que está ocupando um espaço que não lhe é próprio. Ora, aquele que é de "filho da luz" deve ser tomado apenas pelo Espírito Santo, isto é, pelo poder de Deus. Aquele que é habi- tado por outro espírito é filho de outro, que não Deus. Isso verifi- camos em Lucas 11,24-26 e Mateus 12,43-45 (provável material de Q): o espírito impuro habita a casa vazia, a geração má (Mt 12,45). Embora Lucas não seja uma literatura detalhada quanto aos pormenores de um exorcismo, como em Marcos 5,1-20 e 9,20- 29, o redator, discretamente, faz menção de outro tema típico do mundo cultural antigo: a batalha entre "os filhos da luz" e os "filhos das trevas". O encontro do exorcista e do demônio converte-se em luta, cujo campo de batalha é o possesso. A vitória confirma-se na expulsão do demônio, o que caracteriza um exorcismo bem suce- dido (GNILKA, 1986). Em segundo lugar, o fundo universalista de Lucas pode ser atribuído ao fato de escrever para destinatários que estavam para além das fronteiras do judaísmo (cf. 2,14; 2,32; 3,6,23-38; 4,25-27; 9,54; 10,33; 17,16; 24,47), diferente de Mateus (MARTÍNEZ, 1987). Lucas 10,17-20, por exemplo, é a narrativa do relatório dos setenta (e dois) discípulos, depois de cumprirem sua missão de proclamar as boas novas do Reino "a todas as cidades e lugares para onde ele estava prestes a ir" (Lc 10,1). Segundo Lucas, a missão dos setenta (e dois) possivelmente representava a missão cristã entre gentios. O sucesso dos discí- pulos sobre os demônios revela o avanço do Reino de Deus pelo mundo, o que justifica a visão de Jesus da queda de Satanás: uma explícita referência ao texto do Antigo Testamento que discorre sobre a queda de um anjo (Is 14,12-15). Claretiano - Centro Universitário 183© U6- Evangelho de Lucas 8. MEMÓRIAS DA TRADIÇÃO JUDAICA EM LUCAS Em Lc 10,18 (Ele lhes disse: "Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago!"), Satanás (adversário) é referido nos termos de al- gumas ocorrências no Antigo Testamento, diante do Trono de Deus e agindo como acusador do Israel (Jó 1,6ss; 2,1ss; Zc 3,1ss). A queda de Satanás lembrada por Jesus (Is 14,12-15) é uma referência ao resultado das pregações que estavam sendo feitas desde Corazim e Betsaida. Jesus fala que em Tiro e Sidônia have- ria julgamento menos fervoroso que em Corazim e Betsaida e que Cafarnaum estava fadada a descer até o inferno (10,13-14). Mais uma vez, céu e inferno opõem-se. Uma estrutura mítica imemo- rial. Céu como o lugar de Deus, do bem, e inferno como o lugar daqueles que não seguirem a Lei, portanto, do mal, tal como em Isaías 14: 12 Como caíste do céu, ó estrela d'alva, filho da aurora! Como foste atirado à terra, vencedor das nações! 13 E, no entanto, dizia no seu coração: "Hei de subir até o céu, acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono, estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia, nos confins do norte. 14 Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo." 15 E, contudo, foste precipitado ao Xeol, Nas profundezas do abismo. Jesus anuncia que a derrota de Satanás será rápida como foi sua queda. Trata-se de uma evocação da Tradição que novamente explicita uma concepção imagética de mundo, típica do período antigo e do judaísmo. © Evangelhos Sinóticos184 Essa estrutura se repetirá, ainda, em outras ocorrências ne- otestamentárias, visto que a linguagem simbólica era empregada com certa frequência para se referir à conjunta história de domi- nação de Roma. Para esse verso (Lc 10,18), existem três versões (FITZMYER, 1979). São elas: • etheõroun ton satanan hõs astrapen ek tou ouranoun pe- sonta; • etheõroun ton satanan ek tou ouranoun hõs astrapen pe- sonta; • etheõroun ton satanan hõs astrapen pesonta ek tou ou- ranoun. Como os manuscritos antigos carecem de pontuação, a leitura co- mumente aceita, a apresentada em primeiro lugar, pode entender- -se de duas maneiras e, por conseguinte, dar origem a diversas interpretações [...] ‘Eu via Satanás cair como um relâmpago [que vem] do céu!´, entendendo a frasepreposicional como ek tou ou- ranoun como dependente do relâmpago e ouranos (céu) como o ponto de procedência desse fenômeno atmosférico. [...] A outra interpretação [...] faz uma alusão à interpretação ve- terotestamentária de Satanás como o 'adversário', uma espécie de fiscal da corte celeste que cai em desgraça e é deposto de sua atividade acusatória, e assim não há quem acuse a humanidade diante de Deus. Satanás cai 'do céu', é destronado, se precipita (no abismo?). O que não se diz é quando se dá essa queda. [...] na narração de Lucas, encontramos 'o diabo' – acusador, ca- luniador – em Lc 4:2-13; 8:12 – agora aparece pela primeira vez, a denominação Satanás, que não é mais do que a transliteração grega do hebraico sātān, do aramaico sātānā, nome específico do príncipe dos demônios: Satanás [...[ (FITZMYER, 1979, p. 238-239). Ainda há outros detalhes dessa narrativa que chamam a atenção pela recorrência de símbolos da tradição judaica. Por exemplo, o verbo theórein traduzido por "via" no texto de Lucas indica uma ação inacabada, imperfeita. "Eu via" lembra o tema apocalíptico das "visões" que eram contempladas por vi- sionários. Daí se conjectura que de figura angelomórfica (ser ce- lestial), o Filho do Homem, o Filho de Deus passa a ser associado a Claretiano - Centro Universitário 185© U6- Evangelho de Lucas visionário, aquele que tem experiência estática, a visão na qual se descortina a batalha escatológica. A batalha da consumação dos tempos, em que Satanás é derrotado. No judaísmo, os nomes Miguel, Melquisedec, Anjo da Luz e Filho do Homem correspondem à tradição angelomórfica, segun- do a qual, exercem função de Messias. Daí se conclui que são três nomes para a mesma figura (COLLINS, 1995). Gieschen (1998) afirma que a literatura pseudoepígrafa e ex- tracanônica judaica apresenta vários anjos com funções divinas de mediação, proteção, libertação, intercessão e até veneração. Jesus, se associado à figura do Filho do Homem, pode ser considerado ser angelomórfico, pois possuía funções de ser ange- lical na forma humana. Essa imagem que é fundamental para os primeiros cristãos tem suas origens nos textos de Daniel, Enoque, 4 Esdras e Melquisedec, textos que compõem a tradição judaica, dos quais o redator de Lucas parece ter conhecimento. Em Lucas, Jesus parece ser, simultaneamente, ser celestial e visionário. Decorre dessa observação que a redação de Lucas, embora apresente elementos que sugiram sua abertura à cultura helênica, ao estilo clássico do grego e temas universalistas, não se descola de uma estrutura de pensamento tipicamente oriental. Prova disso seriam os campos semânticos que remontam à apoca- líptica judaica, uma importante influência no movimento cristão nascente e na formação das primeiras comunidades. Da apocalíptica como movimento deriva o termo "apocalip- se", definido por John Collins como: [...] gênero de literatura de revelação com uma estrutura narrativa, na qual uma revelação é mediada por um instrumento humano, que revela uma realidade transcendente, a qual é, ao mesmo tem- po, temporal, enquanto visa salvação escatológica, e espacial, ao envolver um outro mundo, um mundo sobrenatural (BOER apud COLLINS, 2000, p. 3). © Evangelhos Sinóticos186 Como se sabe, o apocalipse além de ser gênero literário constitui, também, um universo simbólico – cosmovisão – e um movimento social. Sob esse espectro, alguns pesquisadores têm proposto que as comunidades cristãs do final do século 1º vive- ram certa experiência e produziram um discurso de tom apocalíp- tico, tendo em vista a conjuntura história de opressão pelo Impé- rio Romano. Além dos imperadores César Augusto (Lc 21,1) e Tibério (Lc 3,1-2), também o governador da Síria, Quirino, é mencionado (Lc 2,1), além de vários procuradores romanos (Pilatos: Lc 3,1) e go- vernantes vassalos de Roma (Herodes o Grande: Lc 1,5; Herodes, tetrarca da Galileia: Lc 3,1; Filipe, tetrarca da Itureia e da Traconíti- de; Lisânias, tetrarca de Abilene) e os centuriões (Lc 7,1-10). Todas essas indicações dão conta da realidade que o redator conhecia. Um mundo helenizado de poderes políticos romanos. Movimentos apocalípticos caracterizam-se por serem cons- tituídos por um grupo marginalizado dentro de uma sociedade ou por constituírem uma nação inteira sob jugo estrangeiro. Sob es- sas condições tal grupo é alienado da sua liberdade e a resposta a essa situação é a adoção da perspectiva escatológica apocalíptica de crítica social que conduz à divisão do mundo entre o bem e o mal, o que anteriormente denominamos "cosmologia dualista" (BOER, 2000). Assim, tanto a linguagem quanto o conteúdo desse estrato de Lucas podem ser considerados apocalípticos, pois lembram o gênero que nomeia a revelação dada em Apocalipse 12 e recorrem a expressões típicas de seu simbolismo. Para comparar, vejamos: 9 Foi expulso o grande Dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada – foi expulso para a terra, e seus Anjos foram expulsos com ele. 10 Ouvi então uma voz forte do céu, proclamando: "Agora realizou-se a salvação, o poder e a realeza do nosso Deus, e a autoridade do seu Cristo: Claretiano - Centro Universitário 187© U6- Evangelho de Lucas porque foi expulso o acusador dos nossos irmãos, aquele que os acusava dia e noite diante do nosso Deus. 11 Eles, porém, o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho, pois desprezaram a própria vida até à morte. 12 Por isso, alegrai-vos, ó céu, e vós que o habitais! Ai da terra e do mar, Porque o Diabo desceu para junto de vós cheio de grande furor, Sabendo que lhe resta pouco tempo". Lembrando a tradição do Gênesis 3,15, Lucas 10,19 chama Satanás de serpente assim como no Apocalipse. Uma interessante recorrência do conjunto imagético judaico apocalíptico: "Eis que vos dei o poder de pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do Inimigo, e nada poderá vos causar dano." Nesse verso, retoma-se a discussão quanto à autoridade ou- torgada por Jesus aos discípulos. A voz ativa do verbo revela uma ação completa: "Eu vos dei". Por fim, o v. 20: "Contudo, não vos alegreis porque os espíritos se vos submetem; alegrai-vos, antes, porque vossos nomes estão inscritos nos céus." Com efeito, nesse verso, introduzido por uma conjunção ad- versativa, a impressão que se tem é que se trata de um isolado, in- serido criativamente nessa narrativa pelo redator. Depois de Jesus ter discorrido acerca da "queda de Satanás", da "autoridade em seu nome" e da "vitória" na batalha, fala que o motivo da alegria dos discípulos deve ser a alegria em ter seus "nomes inscritos nos céus", uma menção à salvação. Nessa perícope, pode-se verificar três comentários que Je- sus tece a respeito das palavras dos discípulos. Esses quatro versos não possuem paralelos específicos nos Sinóticos, portanto, cons- tituem material exclusivo de Lucas. Se observarmos os versos a © Evangelhos Sinóticos188 seguir (10,21-24), podemos encontrar paralelos em Mateus 11,25- 27. Dessa forma, a volta dos discípulos é colocada entre a intro- dução (Lc 10,1-16) e o hino de louvor, entoado por Jesus ao Pai (10,21-24). Assim, como hipótese, essa perícope foi obra do redator: Se as palavras de Jesus nesta passagem têm formado originaria- mente uma unidade interna, há de se pensar em atribuí-las a L. Mas, como muito bem observa Bultman, o v.17 tem que estar com- posto por Lucas, dada a sua relação com o v.20. Bultman pensa que o v.18 – a queda de Satanás – procede da 'tradição', mas não está muito seguro dos versículos 18 e 19 – e o mesmo pode se dizer do 19 e 20 – constituem uma única declaração de Jesus. Verdadeira- mente não há uma conexão intrínseca entre estas três afirmações. Talvez seja o mais sensato considerar toda a passagem como uma unidade criada pelo próprio Lucas. Pode ser que o evangelista te- nha tomado de sua fonte particular (L), os três ditos isolados, po- rém é igualmente possívelque, pelo menos o v.20, seja composição pessoal do próprio autor (...) Se admitirmos que o significado origi- nal do v.18 é absolutamente irrecuperável, talvez seja precisamen- te o caráter insólito dessa afirmação o motivo mais conclusivo, para atribuí-lo ao próprio Jesus histórico (cf. JEREMIAS apud FITZMYER, 1987, p. 234). Ainda, podemos considerar um possível paralelo entre as ex- pressões "do céu" (v.18), e "nos céus" (v. 20), e "em teu nome" (v. 17), e "vossos nomes" (v. 20). v. 17: em teu nome v. 18: do céu v. 20: vossos nomes (...) v. 20: nos céus Para Fitzmyer (1987, p. 235): [...] chama poderosamente a atenção, o contraste entre a queda de Satanás 'do céu' e a temática de que os nomes dos discípulos estão escritos 'no céu'. Uma nova correlação se joga em torno do 'nome': o resultado da missão dos discípulos se deve a uma invocação do nome de Jesus [...] e a satisfação pela missão comprida deve se originar especialmente em que 'vossos nomes' estão escritos 'no céu' [...]. Claretiano - Centro Universitário 189© U6- Evangelho de Lucas Com efeito, o conteúdo central dessa perícope estaria des- crito no v. 20, na salvação. Considerando aforismos as falas de Je- sus – sentenças de sentido próprio –, pronunciadas em situações diferentes e reunidas pelo redator nessa narrativa, ainda, assim, a perícope faz sentido se considerado que o estilo da redação, os temas e os símbolos correspondem a um quadro imagético com- partilhado por uma audiência repleta de gentios. 9. PROPOSTAS DE ESTRUTURA PARA LUCAS Quanto à estrutura geral do Evangelho de Lucas, existem vá- rias propostas. A maioria divide Lucas em três ou quatro blocos. Em geral, os estudiosos não discordam muito a respeito dessa ma- téria. Para A. George, o livro pode ser dividido em três partes (1982. p. 93-94): Introdução (1,1–4,13) 1. A missão inicial (4,13–9,50) 2. A subida para Jerusalém (9,51–19,28) 3. Em Jerusalém (19,29–24,53) Do mesmo modo, Alois Stoger propôs três partes (1984. p. 17): Apresentação do Evangelista (1,1-4) 1. O começo da salvação (1,5–4,13) 2. A atuação de Jesus na Galiléia (4,14–9,50) 3. Jesus a caminho de Jerusalém (9,51–19,27) Frederick W. Danker, entretanto, propôs quatro blocos (1976. p. 104-112): Prólogo (1,1-4) 1. Nascimento e credencial de Jesus (1,5–3,38) 2. O Servo benfeitor (4,1–9,50) 3. Jornada a Jerusalém (9,51–21,38) 4. Sofrimento, morte e ressurreição (22,1–24,53 © Evangelhos Sinóticos190 Juntamente com Danker, L’Epalttenier entende como mais adequada a divisão do livros em quatro partes (1993. p.281-282): Prólogo (1,1-4) 1. Narrações introdutórias (1,5–4,13) 2. Prática libertadora de Jesus (4,14–9,50) 3. Subida para Jerusalém (9,51–19,28) 4. Cumprimento (19,29–24,53) Já Tannehill divide o livro em sete partes (1996. p. 7-11): Prólogo (1,1-4) 1. A narrativa da infância (1,5–2,52) 2. O início da missão (3,1–4,44) 3. Desenvolvimento da missão centrada na Galiléia (5,1–9,50) 4. A missão de Jesus em viajem a Jerusalém (9,51–19,44) 5. Jesus no templo (19,45–21,38) 6. Rejeição e morte do messias (22,1–23,56) 7. Ressurreição e Revelação (24,1-53) Todas essas estruturas são apenas sugestões de divisão para o Evangelho de Lucas. Existem, ainda, outras que poderiam ser apresentadas. Todavia, cada leitor/leitora desses Evangelhos deve ter em mente que o texto original de Lucas não se apresentava com a divisão em capítulos e versos que as traduções modernas trazem nas Bíblias. Assim, após a leitura atenta dessa importante fonte sinótica, você mesmo pode elaborar a sua estrutura. 10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Em que a redação do Evangelho de Lucas se destaca em relação à escrita dos outros dois sinóticos? 2) Qual a relação do Evangelho de Lucas com o contexto histórico, político e cultural próximo? Claretiano - Centro Universitário 191© U6- Evangelho de Lucas 3) Quais argumentos apontam a continuidade entre o Evangelho de Lucas e o livro Atos dos Apóstolos? 4) Quais argumentos podem ser apresentados para destacar as tradições e as memórias judaicas presentes no Evangelho de Lucas? 11. CONSIDERAÇÕES Vimos, nesta última unidade de estudo, que o Evangelho de Lucas, um dos Sinóticos, é um texto neotestamentário com conte- údo comum a Marcos e Mateus, além de material de Q e material do próprio autor, recolhido por ocasião da seleção de tradições orais com as quais teve contato. O texto foi escrito em região helenizada fora da Palestina. Não se sabe ao certo lugar, mas já foi apontado Cesareia, Acaia, a Decápole, a Ásia Menor e, com mais frequência, Roma. Podemos considerar a escrita entre os anos 70 e 90 EC, visto que o redator menciona a queda de Jerusalém (70 EC), a profecia de Jesus quan- to ao juízo de Jesus sobre Jerusalém como histórica (Mc 13,2; Lc 13,34). O texto apresenta elementos que apontam para influências do processo de helenização, principalmente, quanto ao estilo da escrita e do grego empregado, mas não prescinde de elementos da tradição judaica, visto que se propõe a discorrer sobre a his- tória de Jesus, de seu movimento e das origens cristãs de modo "ordenado". Com efeito, supõe-se que em função da conjuntura históri- ca, a narrativa de Lucas tenha se destinado em primeira instância àqueles cristãos não tão familiarizados com a memória e a tradi- ção judaica. Por essa razão, sua escrita teria sido tão cuidadosa no relato e detalhamento dos costumes e da cultura hebraica, mesmo não sendo o redator de origem hebraica. Daí a razão pela qual não se encontram os chamados "semitismos" tão comuns em Marcos e em Mateus, por exemplo. © Evangelhos Sinóticos192 Compreendemos, também, que esse tem sido um Evangelho bastante estudado, motivo pelo qual a bibliografia de estudo é am- pla bem como as opiniões e conclusões a seu respeito. Neste Caderno de Referência de Conteúdo, tratamos de Lu- cas como fonte sinótica importante para a reconstrução das ori- gens cristãs. Enfoque que procuramos dar a todas as unidades, na intenção de reforçar o postulado de que o conhecimento dos âmbitos históricos, geopolíticos, sociais e culturais do Mediter- râneo antigo é de extrema relevância para a compreensão mais adequada da literatura bíblica, aqui entendida como produção de um povo, em uma época específica e, portanto, matizada e com- prometida com expectativas do período. 12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEND, K. Synopsis Quattuor Evangeliorum. Stuttgart: Deutsche Biblestiftung Sttutgart, 1976. BOER, M. A influência da apocalíptica judaica sobre as origens cristãs: gênero, cosmovisão e movimento social. In: Estudos de Religião 14/19, 2000, p. 12-14. BORNKAMM, G. Bíblia. Novo Testamento. Introdução aos seus escritos no quadro da história do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 1981. BROADUS, J. A. 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