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Acta Psicossomática Acta Psicossomática Reitor Prof. Anderson José Campos de Andrade Volume 2 - Janeiro/Julho 2019 Pró-Reitor Administrativo Prof. José Campos de Andrade Filho Diretor Acadêmico Prof. Alan Almario Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Profa. Dra. Maria Geralda Viana Heleno Editor-Chefe Prof. Dr. Pedro Eduardo Silva Ambra COMISSÃO EDITORIAL Prof. Dr. Beethoven Hortencio Rodrigues da Costa Profa. Dra. Cibele Mariano Vaz de Macedo Profa. Dra. Cristina Keiko I. Merletti Prof. Dr. Edgar Toschi Dias Profa. Dra. Juliana Carlota Soares Profa. Dra. Maria Fernanda Costa Waeny Profa. Dra. Maria Geralda Viana Heleno Profa. Dra. Miria Benincasa Profa. Dra. Mônica Carolina de Miranda Prof. Dr. Ricardo Borges Machado CONSELHO EDITORIAL Profa. Dra. Ana Cristina Limongi-França – Universidade de São Paulo Profa. Dra. Ana Maria Peçanha — Université Paris Descartes - Sorbonne Prof. Dr. Avelino Luiz Rodrigues – Universidade de São Paulo Profa. Dra. Eliana Marcelo De Felice - Universidade de São Paulo Prof. Dr. Elias Barbosa de Oliveira - Universidade do Estado do Rio de Janeiro Profa. Dra. Eulália Maria Chaves Maia - Universidade Federal do Rio Grande do Norte Profa. Dra. Fátima Aparecida Caromano – Universidade de São Paulo Prof. Dr. Francisco Jiménez Bautista – Universidad de Granada Prof. Dr. José Carlos Zanelli – Faculdade Meridional Profa. Dra.Patrícia Câmara - Sociedade Portuguesa de Psicossomática Prof. Dr. Rodrigo Sanches Peres — Universidade Federal de Uberlândia ASSISTENTE EDITORIAL Victor Hugo Peretta Leite Silva EQUIPE TÉCNICA Prof. Ricardo Feliciano, Diagramação e Administração do SEER ÁREAS DE INTERESSE DA REVISTA Psicologia, Medicina, Psicanálise, Ciências Biológicas, Ciências da Saúde, Ciências Humanas e Ciências Sociais Sumário ESTRESSE: UM FATOR (DES)ENCADEANTE DA PSORÍASE Maria Aparecida do Nascimento Silva, Izabela Paiva Monteiro de Barros, Cristina Keiko Inafuru de Merletti ADOÇÃO INTER-RACIAL: ASPECTOS PSICODINÂMICOS A PARTIR DE UM CASO CLÍNICO Mariana Rodrigues Festucci Grecco ÉDIPO NEGRO: ESTRUTURA E ARGUMENTO Rafael Alves Lima PSICOSE E INVENÇÃO: APORTES TEÓRICOS E CONCEITUAIS Ivy França Carvalho; Lucas Guilherme; Marina Alonso de Rezende Gripp; Bruna Pinto Martins Brito CORPO E DESTINO: O SUJEITO NAS MALHAS DO SENTIDO Clarice Pimentel Paulon NOTAS SOBRE O SILÊNCIO NO FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO Mariana Anconi EDITORIAL Ao seguir o espírito de interdisciplinaridade que marca a aposta metodológica das pesquisas do programa de Mestrado em Psicossomática da Universidade Ibirapuera, o presente volume congrega resultados de diversas pesquisas realizadas no Brasil que expandem os limites do conhecimento na área da psicologia e da psicossomática. Contamos com um artigo que discute a relação entre stress e afecções psicossomáticas a partir de uma revisão de literatura que demonstrou a função de desencadeamento que o stress teria face à psoríase. Ainda na esteira de uma discussão clínica mais próxima aos chamados fenômenos psicossomáticos, há também reflexões sobre o lugar do silêncio na cena analítica nesse tipo de sofrimento. O leitor encontrará, também, um texto marcado pela discussão empreendida na fronteira da psicanálise e da linguística sobre o lugar da noção de narrativa junto às relações entre sensação, sentido e corpo. A proposição de um horizonte de tratamento da psicose por meio de uma invenção singular é o tema de outro artigo que realiza um apanhado das principais propostas teóricas e clínicas da psicose em Freud e Lacan. Temos ainda dois artigos abordam a temática racial a partir de diferentes perspectivas. A partir de um relato de experiência de um atendimento clínico, avalia-se as contradições, impasses e sofrimentos no interior de uma adoção inter-racial. A questão da maternidade e da raça é também a preocupação de um outro artigo que discute as bases teóricas e históricas da noção de “Édipo Negro” na psicanálise. Uma ótima leitura! Prof. Dr. Pedro Eduardo Silva Ambra Editor-Chefe Artigos científicos / Scientific articles Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 Estresse: Um fator (des)encadeante da psoríase ¹Maria Aparecida do Nascimento Silva, 2Izabella Paiva Monteiro de Barros, ¹Cristina Keiko Inafuku de Merletti ¹Universidade Ibirapuera 2Universidade Federal do Pará barrosizabella23@gmail.com Resumo Pesquisas atuais vêm aprofundando estudos a respeito da relação existente entre corpo e mente e seus modos de interligação e de execução de complexas funções tanto no que se refere à saúde quanto ao adoecimento do ser humano. Com relação à psoríase, embora haja elementos desta patologia ainda não elucidados, estudos apontam para interações de aspectos imunológicos associados à dinâmica dos aspectos psicológicos, especialmente as desencadeadas pelo estresse. O objetivo geral deste artigo é apresentar um breve recorte de fundamentos teórico-clínicos que destacam os aspectos estressores envolvidos no surgimento e na manutenção das manifestações da psoríase. Para tanto, foi realizada uma revisão da literatura a partir de autores clássicos na área da Psicossomática, assim como de artigos científicos disponíveis nas bases de dados da “Scielo”, “PePsic” e “Google Acadêmico”, com o intuito de obter material atualizado acerca do assunto. Foram utilizados os descritores estresse, psicossomática, pele, mecanismos imunológicos, aromaterapia e psoríase. A análise decorrente deste estudo teórico circunscrito aponta que os fatores estressores funcionam como gatilho para a manifestação e para a cronificação da psoríase e esta, por sua vez, retroalimenta um contexto estressor para o sujeito, fundamentalmente ligado à sua imagem narcisicamente afetada pela doença e aos estigmas sociais. Destaca-se por fim a importância de práticas psicoterápicas, assim como do tratamento medicamentoso e das terapias integrativas, como a aromaterapia, no controle da psoríase e, consequentemente, na melhoria da qualidade de vida das pessoas acometidas por essa doença psicossomática. Palavras-chaves: Psicossomática, Psoríase, Pele, Estresse, Aromaterapia. Stress: A Triggering Factor of Psoriasis Abstract Current research has been deepening studies about the relationship between body and mind and their modes of interconnection and the execution of complex functions, both with regard to health and the sickness of the human being. Regarding psoriasis, although there are elements of this pathology not yet elucidated, studies point to interactions of immunological aspects associated with the dynamics of psychological aspects, especially those triggered by stress. The general objective of this article is to present a brief description of Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 the theoretical-clinical foundations that highlight the stressful aspects involved in the emergence and maintenance of psoriasis manifestations as a psychosomatic illness. For this purpose, a review of the literature was carried out from books by classical authors in the subject areas of this work classical psychosomatic authors, as well as from scientific articles available in the databases of “SciELO”, “PePsic” and “Google Scholar”, in order to obtain updated material about the subject. We used the descriptors stress, psychosomatic, skin, immunological mechanisms, aromatherapy and psoriasis. The analysis from this theoretical study shows that stressors act as a trigger for the manifestation and chronification of psoriasis, and this, in turn, feeds back a stressful context for the subject [stress – psoriasis – stress], fundamentally linked to his narcissisticallyaffected by the disease and social stigmas. Finally, the importance of psychotherapeutic practices, as well as drug treatment and alternative therapies in psoriasis control and, consequently, improvement in the quality of life of people affected by this psychosomatic illness is highlighted. Keywords: Psychosomatic, Psoriasis, Skin, Stress, Aromatherapy Estrés: un factor (des)encadenante de la psoriasis Resumen Las investigaciones actuales vienen profundizando estudios acerca de la relación existente entre el cuerpo y la mente y sus modos de interconexión y de ejecución de complejas funciones tanto en lo que se refiere a la salud en cuanto a la enfermedad del ser humano. En cuanto a la psoriasis, aunque hay elementos de esta patología aún no elucidados, estudios apuntan a interacciones de aspectos inmunológicos asociados a la dinámica de los aspectos psicológicos, especialmente las desencadenadas por el estrés. El objetivo general de este artículo es presentar un breve recorte de fundamentos teórico-clínicos que destacan los aspectos estresores involucrados en el surgimiento y en el mantenimiento de las manifestaciones de la psoriasis como enfermedad psicosomática. Para ello, se realizó una revisión de la literatura a partir de libros de autores clásicos en las áreas tema de este trabajo, así como de artículos científicos disponibles en las bases de datos de “Scielo”, “PePsic” y “Google Académico”, con el fin de obtener material actualizado sobre el asunto. Se utilizaron los descriptores de estrés, psicosomática, piel, mecanismos inmunológicos, aromaterapia y psoriasis. El análisis resultante de este estudio teórico circunscrito apunta que los factores estresores funcionan como gatillo para la manifestación y para la cronificación de la psoriasis y ésta, a su vez, retroalimenta un contexto estresante para el sujeto [estrés – psoriasis – estrés], fundamentalmente ligado a su imagen narcisicamente afectada por la enfermedad y los estigmas sociales. Se destaca por fin la importancia de prácticas psicoterápicas, así como del tratamiento medicamentoso y de las terapias alternativas en el control de la psoriasis y, consecuentemente, mejora en la calidad de vida de las personas acometidas por esa enfermedad psicosomática. Palabras clave: Psicosomática, Psoriasis, Piel, Estrés, Aromaterapia Introdução Desde Breuer e Sigmund Freud em seus “Estudos sobre a histeria” (Freud, 1974), pesquisas tais como as de Mello Filho (2002), Oppermann, Alchieri e Castro (2002), Silva e Muller (2007), Mingorance, Loureiro, Okino e Foss (2001) e Silva e Silva (2007), por exemplo, dentre outros privilegiados no decorrer deste artigo, vêm aprofundando estudos a respeito da relação intrínseca, existente entre o corpo humano e a mente, e como ambos estão ligados exercendo as mais complexas funções. O ser humano busca respostas para os dilemas acerca das causas de doenças, o que reforça a importância de investigações sobre os possíveis sinais e sintomas de uma (psico) patologia. 9 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 Atualmente já se pode mesmo dizer, conforme sustenta Mello Filho (2002), que uma somatória de fatores impactam diretamente na saúde do ser humano e, assim, “toda doença é psicossomática” (Zorzanelli, 2011). De acordo com Silva e Muller (2007) o corpo físico está constituído por várias dimensões tais como a psíquica, a social, a econômica e a cultural as quais estão interligadas e podem igualmente afetar o equilíbrio do estado de saúde e doença. Dentre os mecanismos da doença ainda não elucidados, como no caso da psoríase, estudos apontam para interação de aspectos imunológicos associados à dinâmica dos aspectos psicológicos, e o estresse (Lima, Cunha, & Oliveira, 2013). Neste ponto vale destacar a importância do hormônio cortisol como mediador das repostas imunológicas (Margis, Picon, Cosner, Formel, & Silveira, 2003). Segundo Oppermann, Alchieri e Castro (2002), os efeitos do estresse sobre o sistema imune ocorrem na interface mente e corpo, privilegiadamente pela ação do Sistema Nervoso Simpático (SNS) e o eixo Hipotálamo-Hipófise- Adrenal (HHA): o estresse é responsável pela ativação do SNS e do eixo HHA, com liberação do hormônio glicocorticóide (cortisol) que está associado à diminuição das funções imunes. A partir da necessidade de entendimento sobre a inter- relação destes fatores, a medicina psicossomática considerada como uma ciência está fundamentada no estudo e compreensão do ser humano de maneira holística, considerando a interação entre mente, corpo biológico e o ambiente, ou seja, em seus aspectos biopsicossociais (Mello Filho, 2002). Muitos dos sintomas psicológicos podem de alguma forma se mostrar evidentes no corpo, como exemplo os sinais que aparecem na pele, maior órgão que envolve o organismo humano. Estes sinais podem muitas vezes ser reflexo do que se passa nessa relação entre o psíquico e o somático (Mingorance et al., 2001). Para Moreira, Fernandes e Magalhães (2016) a interação entre a mente e a pele faz com que haja comunicação de sentimentos desconhecidos da consciência, o que aponta para o fato de que aspectos psicológicos inconscientes estejam na origem de algumas lesões de pele, sobredeterminando-as. Para Silva e Silva (2007) a psoríase é definida como uma dermatite que acomete a pele, definida como uma doença psicossomática desencadeada pelo estresse físico e/ou emocional. Embora sua causa mais específica ainda seja desconhecida, acredita-se na perspectiva da causalidade multifatorial: aspectos ambientais, genéticos, imunológicos e psicológicos sobredeterminam-se. Corroborando o mesmo pensamento, Moreira et al. (2016) apontam o estresse como forte indicador no desencadeamento ou recidivas da psoríase. O aparecimento das lesões na pele acaba causando impacto emocional, afetando a autoestima e a qualidade de vida associando-se ao estresse, tanto no que concerne ao seu surgimento como também à piora das lesões (Moreira et al., 2001). Para que se possa beneficiar o indivíduo com a diminuição do surgimento de alguma doença dessa ordem, ou ainda, contribuir para que a mesma não evolua, é necessária a aplicação de programas de atendimento visando obter cuidados adequados no que se refere aos aspectos emocionais e melhor qualidade de vida possível, buscando-se a diminuição dos níveis de estresse (Lyra, Nakai, & Marques, 2010). De acordo com Paganini, Flores e Silva (2014) as chamadas terapias complementares ou alternativas vêm ganhando campo na área da saúde, com intuito de oferecer cuidado integral ao ser humano, com propostas de recuperação da saúde e do bem-estar geral dos indivíduos, visando a diminuição do uso de fármacos ou de intervenções tradicionais à medicina. Em 2006 foi criada no Brasil a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Após 10 anos, em 2017, foram incorporadas 14 ativi- 10 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 dades, chegando a 19 práticas disponíveis atualmente à população no Sistema Único de Saúde (SUS): ayurveda, homeopatia, medicina tradicional chinesa, medicina antroposófica, plantas medicinais/fitoterapia, arteterapia, biodança, dança circular, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia comunitária integrativa, termalismo social/crenoterapia e yoga (Ministério da Saúde, 2006). Inserida neste contexto, a aromaterapia é uma das práticas terapêuticas que, por meio do uso de óleos essenciais extraídos de plantas aromáticas, visa agir de forma ampla sobre os sintomas corporais ligados aos estados emocionais, contribuindo para a diminuição de agravos à saúde. Esta atuação é possível graças ao que se define comoneurofisiologia ou bases neurais da emoção (Barreto & Silva, 2010), ou seja, o sistema olfatório, por exemplo, está ligado às estruturas do sistema límbico e, assim, pode haver modulação dos circuitos efetuadores do estresse. Vale ressaltar que os estímulos aferentes olfatórios chegam a diferentes partes do sistema nervoso central (SNC) por vias neuronais, envolvendo receptores e nervos periféricos (Barreto & Silva, 2010; Girardi, Llobet, Suchecki, & Tiba, 2018). O objetivo geral da pesquisa que resultou neste artigo girou em torno da apresentação de um breve recorte de fundamentos teórico-clínicos que destacam a psoríase como impacto de aspectos estressores sobre a unidade mente e corpo. Paralelamente, como objetivos específicos, pretendeu-se listar alguns aspectos estressores, mecanismos imunológicos associados e processos psicossomáticos, além de apresentar brevemente alguns apontamentos sobre os benefícios das intervenções terapêuticas de psicoterapia, medicamentosa e da prática integrativa de aromaterapia, como auxiliares na diminuição dos níveis de estresse. Metodologia Foi realizado um estudo teórico circunscrito a partir de autores clássicos no campo da psicossomática, da imunologia, da aromaterapia e da psicologia. Artigos científicos disponíveis nas bases de dados da “Scielo”, “PePsic” e “Google Acadêmico” também foram consultados, com o intuito de obter registros específicos sobre o tema de pesquisa. Para tanto, foram selecionados os artigos decorrentes da busca com os descritores estresse, psicossomática, pele, mecanismos imunológicos, sistema límbico, emoções, aromaterapia e psoríase, destacando-se apontamentos relativos à relação mente e corpo, saúde e doença, estresse, psoríase e emoções que estiveram presentes nas publicações estudadas. Foram selecionados 20 artigos e 9 livros a partir dos quais buscou-se uma análise das informações, norteando-se pelos objetivos gerais e específicos, ou seja, dando-se destaque às informações referentes ao estresse no desencadeamento da psoríase, bem como às relações entre estresse, psicossomática, fatores imunológicos, e os benefícios das intervenções terapêuticas de psicoterapia, medicamentosa e da prática integrativa de aromaterapia, como auxiliares na diminuição dos níveis de estresse. Os recortes dos dados evidenciados nos textos pesquisados serão apresentados e discutidos a seguir. Vale ressaltar que foram considerados na categoria artigo, teses, dissertações, documentos e monografias pelo fato de estarem disponíveis on line na íntegra. Bases neurais da emoção: (des)integração corpo e mente e estresse A psicossomática é uma ciência que estuda a interação entre a mente e o organismo do ser humano em um contexto biopsicossocial. Ou seja, aspectos psicológicos, biológicos e sociais juntos ou separadamente, podem influenciar a saúde de um sujeito (Riechelmann, 2002). Torna-se relevante observar o conceito estabelecido, de acordo com Organização mundial da Saúde (OMS), que define o estado de saúde, considerando-o não apenas como ausência de doenças, mas a integração de um bem-estar físico, mental e social. Ou seja, “as condições gerais com o corpo, qualidade de vida emocional e convivência em sociedade são condições fundamentais para promoção a saúde” (Mello Filho, 2002, p. 20). De acordo com Moreira et al., (2016) as células que originam a pele têm uma ligação muito próxima com as células nervosas, por esse motivo observa-se nos estudos destes autores que muitas doenças da pele têm relação com o estado emocional da pessoa e a maneira como se afetam pelos acontecimentos diários. Vale destacar que, não raras vezes, é gerado 11 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 um ciclo “retroalimentado” no qual ocorre um evento estressor, uma ação de enfrentamento e uma resposta ao evento ocorrido, o que pode funcionar por sua vez como pressão psicológica contribuindo para um quadro de desiquilíbrio físico e emocional (Riechelmann, 2002). Para Moreira et al., (2016) a interação que se dá entre a mente e a pele faz com que ela comunique sentimentos desconhecidos pela consciência, o que torna os aspectos psicológicos desencadeantes dos distúrbios das lesões de pele (Moreira et al., 2016). Por outro lado, pode-se considerar que há um interjogo que busca regulação entre corpo e mente e muitas vezes, aparentemente de forma contraditória, essa busca por regulação aparece na forma de crise, doença e sintomas que fazem com que o sujeito precise rever sua maneira de ser estar no mundo, suas escolhas e relações. Rosa (2016) afirma que o aumento dos níveis plasmáticos de cortisol, hormônio responsável pela regulação de diversos processos metabólicos do corpo está diretamente relacionado com a exposição do organismo a agentes estressores: Momentos de estresse psicológico ou físico são capazes de desencadear no organismo reação fisiológicas que visam à proteção do corpo contra o agente estressor, porém essa exposição contínua tem a capacidade de desenvolver enfermidades no organismo por estar diretamente ligada a regulação de processos metabólicos” (Rosa, 2016, p. 40) Assim, o estresse é apontado como fator sig- nificativo e responsável por desestabilizar o equilíbrio da homeostase do organismo, e ele ocorre como resposta automática frente a situações que exijam uma resposta que às vezes compromete o organismo causando abalos na qualidade de vida, tornando vulnerável a saúde física e psicológica do ser humano (Paganini, Flores, & Silva, 2014). De acordo com Lyra, Nakai e Marques (2010) o estresse pode se entender como reação fisiológica normal do organismo iniciado pelo sistema nervoso central, alterando toda homeostase do organismo. Moreira, Fernandes e Magalhães (2016) acreditam ser importante a maneira como se lida com as situações de estresse e sua interação consigo mesmo e com o meio em que vive (Lyra, Nakai, & Marques, 2010; Spielberger, 1981). Segundo Valle (2011), os agentes estressores podem ser classificados em externos e internos. Dificuldade econômica, problemas de relacionamento, pressões no ambiente de trabalho, são alguns exemplos de estressores externos e sentimentos, crenças e valores, vulnerabilidades, qualidade dos relacionamentos e a forma como cada pessoa percebe o mundo, são ilustrações de agentes que agem internamente. O estresse pode ser caracterizado, ainda, como estado de alerta permanente. Quando essa alteração não cessa, no organismo há um acúmulo de tensão, trazendo sinais de patologias, além do fato de que o estresse excessivo é apontado como o principal responsável pela suscetibilidade às doenças, contribuindo para seu aparecimento ou agravamento (Silva & Silva, 2007). Para Spielberger (1981) e Paganini et al. (2014) a maneira como o indivíduo enfrenta as situações do cotidiano é de grande relevância pois a não adaptação a essas adversidades pode torná-lo vulnerável ao estresse, afetando seu bem-estar global. As reações ao estresse dependem da circunstância de uma situação ser ou não considerada ameaçadora ou potencialmente perigosa, o que é em última instância uma avaliação subjetiva. Psoríase: doença psicossomática Na área da saúde a Psoríase é considerada uma dermatite crônica da pele, e acomete cerca de 1 a 2 % da população (Lima, Cunha, & Oliveira, 2013). Sua causa específica é ainda desconhecida, sendo então atribuída a múltiplos fatores. Caracteriza-se pelo aparecimento de placas avermelhadas que se formam sobre a superfície da pele em função de um defeito na produção celular, o que faz com que as células da pele se repliquem num curto intervalo de tempo (aproximadamente 4 a 5 dias), resultando num processo inflamatório (Lima,Cunha, & Oliveira, 2013). As lesões se disseminam por regiões como tronco, joelhos, cotovelo, e, preferencialmente o couro cabeludo, podendo acometer também as articulações. São classificadas de acordo com o local em que surgem: psoríase gutata, numulares, em placas, eritrodérmica, pustulosa e artropática sendo esta última a mais severa (Hassun, 2003). 12 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 A lesão causada pela doença decorre em importante impacto emocional tendo em vista que afeta a autoestima e a qualidade de vida do sujeito. A psoríase está frequentemente associada ao estresse tanto como fator desencadeante, como também variável envolvida na piora das lesões (Mingorance et al., 2001). Verificou-se ainda que a condição emocional do indivíduo com psoríase é de grande relevância para estabilização da doença (Mingorance et al., 2001; Loureiro et al., 2001). De acordo com pesquisas na área da saúde, a psoríase afeta mais adultos entre o sexo feminino. Segundo os autores pesquisados não há cura para este acometimento, o que caracteriza sua cronicidade. No entanto, a partir de tratamentos devidamente prescritos é possível que se mantenha estável a doença, incluindo tradicionalmente a ação de medicamentos imunomoduladores e de terapias biológicas indicados conforme a dimensão das lesões (Martins & Arruda, 2004; Silva & Silva, 2007). Há muitas doenças crônicas que são desencadeadas por uma soma de fatores, dentre estes estão os emocionais, ou seja, os referentes à vida psíquica de um sujeito, os quais, em geral, mostram seus efeitos no corpo. A psoríase é assim considerada um tipo de adoecimento que evidencia a interação entre processos psicológicos e sistema nervoso central, fazendo com que surjam, por exemplo, lesões tópicas na pele (Calmon, Gerami, & Sebastiani, 2000). Pensando numa forma mais abrangente e interdisciplinar de se estudar a dinâmica das patologias e como chegar a um diagnóstico mais confiável, e, acima de tudo, desenvolver tratamentos mais efetivos no que se refere à melhoria na qualidade de vida do paciente, a medicina psicossomática tem se ocupado da investigação de sintomas orgânicos articulados aos aspectos emocionais (Mello Filho, 2002). Considera-se que a somatização manifesta um desgaste emocional com frequência associado ao estresse, como uma manifestação do ser humano ao encontrar grande dificuldade em expressar ou suportar suas insatisfações e desconfortos, fazendo- o sob a forma de produção de doenças psicodérmicas, por exemplo, decorrentes da sintomatologia ligada ao próprio estresse (Moreira, Fernandes, & Magalhães, 2016). Corroborando com esta ideia, Silva e Silva (2007) apontam que a somatização pode aparecer para alguns sujeitos como decorrência da não elaboração de eventos/acontecimentos indesejáveis ao longo de sua vida ou que coloquem em jogo seu bemestar físico em determinada ocasião, alterando de modo significativo a homeostase de seu organismo. Esta última ideia será apresentada um pouco mais detalhadamente mais adiante no subitem Psoríase e estresse. A pele é considerada o maior órgão do ser humano, aquele que envolve todo o corpo e exerce a função básica de separação e proteção com relação ao meio externo. Além disso, é responsável por diversas funções específicas no organismo, como as de proteção contra danos mecânicos, regulação da temperatura corporal, percepção sensorial, dentre outras. A pele se encontra disposta em três camadas: epiderme, derme e hipoderme (Lima, Cunha, & Oliveira, 2013). Autores destacam ainda que a pele está intimamente associada a estruturas próximas pelas quais recebe nutrição necessária. Em virtude de sua localização, exerce uma íntima relação com o meio externo e, por essa razão, “é facilmente afetada por doenças gerais ou locais do organismo” (Robbins, 1975, p. 1241). De acordo com Steiner (1997), embora a pele cumpra uma função de separação e de proteção entre o ser humano e o mundo exterior, há também uma forte ligação da função da pele com as emoções, ou seja, com um mundo interior do sujeito. Corroborando essas ideias, Stanley (1975) já destacava a importante influência psicogênica na origem das patologias de pele. Há considerável evidência mostrando que a interpretação individual do prurido pode ser consideravelmente influenciada por fatores psicogênicos. O limiar para o prurido experimentalmente produzido é mais baixo quando o paciente está emocionalmente perturbado do que quando está relaxado (Stanley, 1975, p. 1.245). Para Mingorance et al. (2001), o funcionamento mental de pacientes com psoríase tem sido associado a diversos estados psicológicos, ou seja, há importante impacto emocional envolvido no surgimento e na evolução da doença: aumento de preocupações, ansiedade e depressão estão associados à velocidade da disseminação e piora das lesões. Psoríase e estresse 13 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 O estresse é apontado como um dos principais responsáveis por desestabilizar o equilíbrio, a homeostase do organismo, e ele ocorre como resposta do organismo frente às situações que exijam uma resposta mais intensa ou frequente por parte do sujeito, podendo as referidas situações serem tanto internas como externas. Configura-se assim um contexto que acaba por comprometer a qualidade de vida, tornando vulnerável a saúde física e psicológica das pessoas (Paganini, Flores, & Silva, 2014). A psoríase é considerada uma dermatite crônica (Mingorance et al., 2001) e seu desenvolvimento pode variar de acordo com uma multiplicidade de fatores. Ainda que, segundo os autores, não possua cura definitiva, verifica-se atualmente que com tratamentos é possível mantê-la estável, com o auxílio, inclusive, de tratamento psicológico e de outras terapêuticas para abordar e auxiliar na elaboração dos aspectos emocionais, do estresse, dentre outros fatores envolvidos no surgimento e na dimensão das lesões (Silva & Silva, 2007). O aparecimento das lesões na pele, por sua vez, acaba causando um impacto de ordem emocional, afetando a autoestima e a qualidade de vida, deixando o indivíduo em condição tipicamente estressante, decorrendo na piora da doença (Moreira et al., 2001). Nota-se que a relação [estresse – psoríase – estresse] configura um círculo vicioso na vida do sujeito. O trabalho com as variáveis emocionais torna-se, portanto, fundamental para pacientes com psoríase que, como apontaram os estudos, sofrem com frequência um forte impacto psicológico por lidar com as lesões da pele que lhe causam, desde um certo incômodo, até o isolamento social, tendo comprometido assim sua qualidade de vida e suas relações sociais de modo global (Moreira et al., 2016). Alguns autores apontam essencialmente os aspectos sociais e culturais agravantes da doença. Pela exigência que a sociedade ocidental contemporânea impõe aos aspectos da imagem, como padrão ideal de beleza, evidencia-se a insatisfação de pacientes com a aparência das lesões na pele, levando-os a sofrer preconceitos e gerando ainda mais situações estressoras (Silva & Muller, 2007). Mesmo quando ainda não havia o diagnóstico preciso da psoríase na medicina, já eram notáveis os aspectos estigmatizantes no paciente adoecido, dificultando sua inserção psicossocial. Os efeitos dos estigmas da doença de pele, como citado anteriormente, parecem agravar-se em contextos sociais, como os atuais, nos quais a imagem e os atributos físicos de um sujeito adquirem importante valor, sofrendo os efeitos de ideais normatizantes de beleza e de aceitação (Lima, Cunha, & Oliveira, 2013). A psoríase é também considerada uma doença autoimune, pelo fato de haver a ativação de processosinflamatórios gerado pelo defeito na proliferação das células da pele, fator pelo qual as células internas chegam num curto intervalo de dias à camada superficial, favorecendo o surgimento das lesões (Lima, Cunha, & Oliveira, 2013). Dentre os mecanismos da doença ainda não elucidados, consideráveis estudos apontam para interação de aspectos imunológicos associados à dinâmica dos aspectos psicológicos, e o estresse (Lima, Cunha, & Oliveira, 2013). De acordo com Moreira et al., (2016) os aspectos genéticos são fortes indicadores do desenvolvimento da psoríase em ambiente familiar, devido às falhas do gene antígeno leucocitário humano (HLA) participante na resposta imune. Assim, essa falha representa maiores chances do desencadeamento da doença (Moreira et al., 2016). Segundo Lima, Cunha e Oliveira (2013) as células que compõem a pele possuem um tempo útil de vida, logo passam por processo de renovação celular que normalmente ocorre em cerca de 28 dias. Na psoríase processo de renovação celular ocorre em um intervalo de 4 a 5 dias, por um defeito na proliferação celular. Na resposta imunológica as células do linfócito T são responsáveis por iniciarem um processo inflamatório na pele (Martins & Arruda, 2004), tornando visível a insatisfação com as marcas causadas por essa patologia (Moreira et al., 2016). O cuidado com a condição emocional do indivíduo com psoríase torna-se, por isso, de grande relevância para a melhora de seu bem-estar geral, visto que os aspectos psicológicos podem funcionar não apenas como gatilhos, mas também como mantenedores de um quadro crônico da doença (Mingorance et al., 2001). O estudo realizado por Lyra, Nakai e Marques (2010) apontou que os agravos emocionais são a grande causa no desenvolvimento do estresse e da ansiedade, causando desiquilíbrio no organismo e 14 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 manifestando-se sob diversas formas de doenças. Para Silva e Muller (2007), com relação à qualidade de vida, é desejável que o ser humano esteja em condições e com disposição para as interações diversas com o seu meio e com a sociedade, considerando tanto os aspectos de sua moral cultural, bem como os espirituais e emocionais. Porém, alertam os autores que, quando ocorrem influências significativamente negativas por parte do ambiente, há grandes chances de isso resultar em importante sofrimento psíquico para o sujeito e, desta forma, desencadearem-se doenças e sintomas que acometem diretamente o corpo e seu funcionamento. Diante do exposto, os autores afirmam que é extremamente importante considerar as formas particulares que cada sujeito encontrará para enfrentar tais conflitos, sejam eles de cunho orgânico, psicológico ou cultural. Sobretudo neste contexto, deve ser considerada relevância de equipe multiprofissional no atendimento do paciente com psoríase em todos os setores da área da saúde. Aromaterapia como prática integrativa na área da saúde Para que o indivíduo possa se beneficiar de distintas formas para evitar o surgimento de alguma doença, ou de intervenções diversas que contribuam para a não evolução de uma patologia, é necessária a criação de programas de atendimento que visem ações preventivas e de promoção da saúde, buscando a diminuição de níveis de estresse na vida de um sujeito (Lyra, Nakai, & Marques, 2010). A aromaterapia é conhecida como um método terapêutico que se utiliza de óleos essenciais extraídos de plantas aromáticas com intuito de promover, por meio das funções específicas de cada aroma, uma terapia que beneficie a saúde e o bem- estar do ser humano, buscando prevenir ou tratar consideráveis problemas físicos, psicológicos e emocionais (Gnatta, Kurebayashi, Turrini, & Silva, 2016). Deve ser realizada por meio de um uso controlado e consciente dos óleos essenciais das plantas, os quais desempenham importantes funções nas emoções, por conta da inter-relação do aparelho olfativo e o centro emocional do cérebro, o sistema límbico (Price, 2006; Neves, 2011). Segundo Paganini et al. (2014), os óleos essenciais estimulam as células nervosas olfativas, ativando o sistema límbico. O sistema olfatório tem vários substratos neurais em comum com o sistema límbico. Segundo Silva (2001), o processo tem início a partir de uma reação química que origina impulsos elétricos enviados para o cérebro por meio dos neurônios olfativos e com a estrutura do bulbo olfativo são transmitidos, por vias sinápticas, os efeitos dos óleos essenciais. René Maurice Gattefossé, um químico francês, foi o pioneiro a descobrir a ação benéfica do óleo de lavanda: após queimar acidentalmente a mão, a emergiu em uma vasilha com óleo de lavanda, observando em seguida uma melhora significativa na cicatrização pela ação anti-inflamatória do óleo (Domingos & Braga, 2013). Para Gnatta et al., (2016) a ação da aromaterapia no organismo ocorre por meio de interação de moléculas químicas do óleo essencial, as quais podem ser absorvidas por meio da aplicação tópica, sistema respiratório e sistema límbico, este último, responsável pelas emoções. Assim, a aromaterapia como prática integrativa pode atuar na diminuição dos sintomas do estresse a partir de sua atuação no sistema límbico. De acordo com o estudo realizado por Lyra, Nakai e Marques (2010) os agravos emocionais são a grande causa no desenvolvimento do estresse e da ansiedade, causando desiquilíbrio ao organismo. A aromaterapia tem configurado uma proposta relevante para alguns destes casos, promovendo efeitos positivos na diminuição do estresse e considerada eficaz, fundamentalmente como medida preventiva e paliativa, possibilitando além da melhora emocional, melhoras físicas por sua ação de fundo farmacológico, conforme explicita anteriormente quando foram apresentados os mecanismos neurofisiológicos do processo olfativo. Para Paganini et al. (2014) a aromaterapia é considerada uma prática inovadora na área da saúde, por sua ação terapêutica ampla e seus benefícios terapêuticos na promoção da saúde, tornando-se um forte aliado nos cuidados holísticos do ser humano. Considerações Finais Por meio de um primeiro estudo teórico circunscrito na literatura sobre o tema, foi possível obter informações de alguns autores e pesquisadores na 15 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 área consultada. Foi apresentado um panorama e alguns eixos norteadores para a investigação das principais variáveis biopsicossociais relacionadas ao estresse e sua relação com o surgimento e a manutenção da psoríase como manifestação psicossomática. A psoríase ilustra um fundamento da psicossomática, a indissociável relação entre corpo e mente, tendo como uma das manifestações dessa interação a comunicação de um mal-estar sob a forma de adoecimento evidenciado na pele, como resposta ao estresse e seus componentes emocionais. Por esta razão, o título deste artigo aponta o estresse como um fator (DES)encadeante da psoríase, ou seja, dialeticamente ao desencadear resposta patológica evidencia a unidade corporal como integração dos aspectos psíquicos e orgânicos, denunciando uma resposta única frente ao mal estar causado pelo estresse: o sofrimento denunciado, dado a ver, na pele. A somatização, por sua vez, implica em considerável desgaste emocional retroalimentado [estresse – psoríase – estresse], visto que muitos sujeitos expressam sua dificuldade em suportar a insatisfação e o desconforto emocional, decorrentes da sintomatologia do próprio estresse, sob a forma, por exemplo, de doenças de pele, como a psoríase. Assim, para além dos tratamentos medicamentosos tradicionais na área médica, nos casos de psoríase, faz-se relevante escutar os modosde representação de sofrimento do sujeito, considerando a sua condição psíquica e emocional, e, paralelamente abrindo espaço para algumas terapias como alternativas à farmacológica industrial vigente. Ações integrativas na área da saúde tornamse urgentes para a promoção da saúde integral e melhoras no bem-estar do sujeito, pois, verificou-se que aspectos psicológicos podem funcionar não somente como gatilhos, mas também como elementos cronificadores da doença, causando ou mantendo danos físicos, sociais (relacionais) e abalos psicológicos em função do desconforto e do impacto na autoestima, tendo em vista afetação narcísica de sua imagem diante do outro. A aromaterapia, aceita e considerada uma das práticas integrativas e complementares do SUS no Brasil, mostra-se como um coadjuvante terapêutico relevante para os quadros psicossomáticos, demonstrando efeitos positivos na diminuição do estresse, e como prática considerada eficaz, preventiva e paliativamente, possibilitando, além da melhora emocional, melhoras físicas por sua ação de fundo farmacológico. O presente estudo teórico sugere, no entanto, aprofundamento nas pesquisas de campo e de cunho experimentais destinadas à verificação dos efeitos específicos da aromaterapia em casos de psoríase. Espera-se que o breve recorte teórico aqui apresentado incentive o prosseguimento de pesquisas neste campo e auxilie especialmente os pacientes com psoríase, aprofundando o conhecimento acerca dos mecanismos estressores envolvidos, dos aspectos psicossomáticos da doença e da possibilidade do uso terapêutico da aromaterapia, visando a diminuição dos níveis de estresse pela via da equilibração das respostas neuro químicas e melhora na qualidade de vida integral do sujeito, considerando a sua saúde física e mental. Faz-se urgente um aprofundamento da discussão dos modelos etiológicos vigentes acerca dos fenômenos patológicos uma vez que há, por um lado, uma menos valia do sofrimento, e, por outro, uma polarização entre biológico (físico), emocional (psíquico) e volicional (moral), o que aponta para a necessidade de novos modelos clínico-conceituais para a abordagem, entendimento e tratamento de fenômenos que se desenrolam na interface corpo e mente. Referências Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. (2006). Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS - PNPIC-SUS/ Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. - Brasília: Ministério da Saúde. Barreto, J. E. F. & Ponte e Silva, L. (2010). Sistema límbico e as emoções – uma revisão anatômica. Rev. Neurocienc., v. 18, n. 3, p. 386-394. Domingos T.S & Braga E.M. (2013). Aromaterapia e ansiedade: revisão integrativa de literatura. 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Posto que a criança não aceitasse o alimento apenas quando este lhe eraoferecido por esta mulher, alimentando-se regularmente em situações em que esta não era a agente da oferta ou não estava presente, sustentamos a hipótese de que a não aceitação do alimento constituía uma resposta da criança à mulher que negara a sua diferença de cor a fim de não revelar o ato de adoção. Palavras-chaves: Adoção inter-racial; constituição do sujeito; caso clínico; Lacan; racismo. Interracial adoption: psychodynamic aspects from a clinical case. Abstract This paper is an account of experience of clinical care for a black child in the process of adoption by a white woman. Since the child did not accept the food only when it was offered by this woman, feeding regularly in situations where it was not the agent of the offer or was not present, we support the hypothesis that the non- acceptance of the food constituted a response to the woman who had denied her color difference in order not to reveal the act of adoption. Keywords: Interracial adoption; constitution of the subject; clinical case; Lacan; racism. Adopción interracial: aspectos psicodinámicos a partir de un caso clínico. Resumen Este trabajo constituye un relato de experiencia de atención clínica a un niño negro en proceso de adopción por una mujer blanca. Puesto que el niño no aceptó el alimento sólo cuando éste le era ofrecido por esta mujer, alimentándose regularmente en situaciones en que ésta no era la agente de la oferta o no estaba presente, sostenemos la hipótesis de que la no aceptación del alimento constituía una respuesta del niño a la mujer que negara su diferencia de color a fin de no revelar el acto de adopción. Palabras clave: Adopción interracial; constitución del sujeto; caso clínico; Lacan; racismo. Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 7-17 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 18-25 20 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 18-25 Introdução Pesquisas recentes, tais como a do Cadastro Nacional de Adoção produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (2016) e a de Andrade, Hueb e Alves (2017), sugerem o aumento do índice de adoção de crianças negras no Brasil na última década. Em artigo de revisão da literatura sobre o tema, Rufino (2002) constatou que o preconceito racial, herdeiro do passado escravagista no país, constituía o principal entrave “quanto à escolha do adotado” (Rufino, 2002, p. 79), relegando a criança negra à institucionalização. Passos (2011) supôs, a partir da consideração freudiana de que os pais atualizam seus desejos narcísicos através dos filhos, que “quando as diferenças físicas são gritantes, a descontinuidade biológica é evocada com frequência, e pode haver dificuldades em sentir a criança como filho legítimo” (Passos, 2011, s.p.). A autora investigou se a evitação de uma frustração estabeleceria um impedimento para a adoção inter-racial e concluiu que tal hipótese constituía um mito, arrematando, ainda, que os problemas enfrentados por famílias brancas na adoção de crianças negras não são “maiores ou mais significativos” (Passos, 2011, s.p.) do que aqueles enfrentados por uma família composta por filhos biológicos, independentemente da raça. Passos (2011) ratificou sua conclusão afirmando que a quantidade de crianças brancas e de crianças negras adotadas era semelhante em Campo Grande (MS), mas sem mencionar os dados nos quais se baseou. O Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) (2012) destacou que, no ano de 2011, as crianças negras constituíam “mais da metade das que estavam aptas para serem adotadas e aguardavam por uma família” (CEERT, 2012, s.p.) no Brasil. Em contrapartida, dentre as 26 mil famílias que compunham a fila de adoção, mais de um terço desejava somente crianças brancas, sendo que o principal argumento utilizado por elas em desfavor da adoção inter-racial era a suposição de que “viessem a sofrer preconceito pela diferença da cor de pele” (CEERT, 2012, s.p.). O CEERT (2012) considera que este argumento era de natureza projetiva, ou seja, que o preconceito estava na base da família que manifestava interesse em adotar, constituindo um entrave à concretização do processo no país, dado que, enquanto o tempo de espera por uma criança com padrão clássico (branca, menor de um ano) era de até oito anos, este período poderia ser reduzido para três meses no caso de aceitação de uma criança negra. Dados do Cadastro Nacional de Adoção produzido pelo CNJ (2016) informam que das 252 adoções concretizadas de janeiro a abril de 2016, 47% (119 adoções) foram de crianças negras. Andrade et al. (2017) destacam que a partir da promulgação da nova lei de adoção (12.010/2009) houve mudanças na composição da filiação adotiva, pois a lei instituiu que o processo de adoção deve ser finalizado em no máximo dois anos, o que diminuiu o tempo de institucionalização das crianças e transformou a cultura de adoção: “Se antes era vista de maneira preconceituosa, encoberta por medos, silêncios e mitos do senso comum (Vargas, 1998), atualmente a mídia aponta que a população está superando os preconceitos. Os brasileiros estão aceitando adotar crianças maiores de dois anos ou de diferentes raças. (Andrade et al., 2017, p. 174)” Situações de preconceito sofrido por famílias inter-raciais de grande repercussão midiática – tais como: a do casal composto pelo ator Bruno Gagliasso e pela atriz Giovanna Ewbank, que adotaram uma criança negra proveniente do Malaui e prestaram queixa na Delegacia de Repressão a Crimes de Informática, no Rio de Janeiro, após postarem uma foto com a filha nas redes sociais e receberem ofensas racistas (Pragmatismo Político, 2016); da atriz Monica Duarte, que, adentrando com a filha negra a cafeteria Ofner do Shopping Eldorado, em São Paulo, presenciou a criança sendo advertida por uma funcionária de que ali ela não poderia mendigar (Correio Brasiliense, 2015); ou, ainda, do casal composto por Tatiane e Jorge Timi, paranaenses que estavam a passeio na capital paulista e que, estando com a filha negra em uma das filiais da cafeteria Starbucks, chamaram a polícia, pois a filha, ao sair do banheiro, foi abordada pelo segurança do estabelecimento que, supondo que se tratasse de uma pedinte, solicitava que a criança se retirasse (O Dia, 2017) – levaram-nos a constatar que se, por um lado, houve um aumento na quantidade de adoção de crianças negras graças a uma suposta receptividade de famílias brancas ao processo interracial, a democracia racial ainda constitui um mito que sustenta o racismo à brasileira, conforme defende Munanga (2017). 21 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 18-25 Ou seja, ainda que não haja preconceito por parte da família que adota, este é patente por parte da sociedade brasileira, que não reconhece como legítima a família inter-racial. Tal situação fez-nos questionar acerca da psicodinâmica da adoção interracial e se ela é atravessada pelo preconceito racial presente nos laços sociais. Objetivo Este estudo visa compreender aspectos psicodinâmicos da adoção inter-racial a partir de um caso clínico. Método Trata-se de um relato de caso clínico de uma criança atendida durante quatro meses em psicoterapia de orientação psicanalítica. O relato é constituído por vinhetas dos atendimentos onde constam somente os elementos necessários para ilustrar os aspectos psicodinâmicos envolvidos na adoção inter-racial, ou seja, além da adoção de nomes fictícios não foi citado qualquer outro elemento que permitisse a identificação, localização e/ou exposição da criança envolvida. Esclarecemos que o atendimento psicoterápico não foi iniciado visando o desenvolvimento de um estudo de caso, todavia, as observações suscitadas no transcorrer no atendimento motivaram as reflexões que oraapresentamos aqui. Enfatizamos ainda que se trata de um caso clínico encerrado. Entendemos que tal caso, em sua singularidade, é expressivo dos aspectos psicodinâmicos que podem estar implicados na adoção inter-racial. Jacques Lacan, pelas contribuições teóricas que apresenta no que tange à constituição psíquica do sujeito, Françoise Dolto, pela teorização desenvolvida a partir da práxis no atendimento às crianças oriundas de processos de adoção, e Neusa Santos Souza, psicanalista brasileira que se dedicou a estudar as implicações psíquicas do preconceito racial, foram as referências escolhidas para analisar tal caso. Relato do caso ¹Blanca foi encaminhada para atendimento psicoterápico aos quatro anos de idade, tendo sido trazida por aquela que se apresentava como sua mãe, ²Joana , a qual relatava que a filha apresentava um “quadro de anorexia”. Joana dizia estar preocupada com a possibilidade de que o comportamento de Blanca envolvesse risco de morte, o que contrastava com a aparência saudável da criança, que estava corada, bem-disposta para brincadeiras e não apresentava qualquer alteração na saúde física além de um ligeiro decréscimo de ferro, que o pediatra explicara à mãe como sendo previsto para a idade e passível de ser corrigido facilmente através de suplementação alimentar. Em anamnese, Joana revelou que o seu esposo tivera um casamento anterior durante o qual fora pai de duas filhas que já eram adolescentes, e que durante esta união se submetera à vasectomia. O esposo revelou sobre o procedimento à Joana quando ainda a namorava e mostrou-se disposto a uma reversão – que Joana afirmou não ser necessária, aventando a hipótese de adoção. Vale ressaltar que Joana não era mãe de filho biológico ou adotivo e que este casamento foi a sua primeira união estável. Blanca foi adotada sem passar pelos trâmites legais, uma vez que foi gerada por uma empregada da família de Joana que não poderia criá-la por impedimentos financeiros. Ao dar à luz, a genitora solicitou que o nome da criança fosse Samantha e advertiu Joana para o fato de que o genitor era negro, mas Joana, também a despeito da advertência da pediatra, que lhe avisara que a bebê, apesar da aparência branca, poderia sofrer um processo de escurecimento da pele por conta da ascendência paterna, decidiu acolhê-la (mesmo tendo o desejo de que a filha fosse parecida com ela), pois temia que o processo de adoção pelas vias legais fosse demorado. Joana não respeitou o desejo da genitora e solicitou que o marido registrasse a criança com o nome de Blanca. Blanca foi retirada da genitora dois dias após o nascimento, não voltando a ter contato com ela. Após este período, passou a ser alimentada com leite artificial, sendo que Joana, antes de levar a bebê para casa, solicitou ao esposo que o fato da adoção jamais fosse mencionado. Esclarecemos aqui, embora não possamos entrar em detalhes por conta da brevidade do relato, que o esposo jamais ofereceu barreira ao que quer que fosse que Joana fizesse de Blanca. O desenvolvimento de Blanca se deu sem intercorrências até esta completar três anos e meio e ser levada para um período de férias em uma cidade do litoral paulista, onde Joana a acompanhava à praia todos os dias, não sem a 22 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 18-25 precaução de protegê-la do sol, pois temia “que a sua pele ficasse mais escurinha”. Ocorre que Joana sofreu um mal da coluna, que não especificou, mas que a impediu de sair da sua casa de veraneio por mais de uma semana, sendo que foi o seu esposo quem passou a levar Blanca para a praia nestes dias, expondo-a ao sol por mais tempo do que o desejado por Joana. Ao fim de quatro ou cinco dias, Joana percebeu que a cor da pele de Blanca estava escurecendo, e comunicou ao esposo que este havia “sujado” a criança. Chegou a levá-la ao pediatra, que afirmou que se tratava de um processo de bronzeamento natural, mas que a cor da criança estava se alterando em função da sua raça. Vale ressaltar que Joana também colava as orelhas de Blanca junto à cabeça com fita adesiva e apertava o nariz da criança em vários momentos do dia, em uma espécie de massagem com a finalidade de que este “não se esparramasse”. Após a volta destas férias, Blanca notou que a sua cor de pele era diferente daqueles que tinha por pais e, questionando sobre esta diferença, teve a resposta da mãe de que “não era nada, não havia diferença alguma”. Joana se refere a estes acontecimentos com naturalidade. A fase de anamnese foi encerrada após duas sessões. Em seguida começaram as sessões de atendimento psicoterápico com Blanca. Desde o início, Blanca mostrou-se interessada em brincar e conversar, contando sobre a admiração que sentia pelo pai e pela professora da escola que frequentara, onde referia ter vários amigos com quem compartilhava refeições e jogos. Blanca interessava-se especialmente por brinquedos da caixa lúdica que remetiam à comida (tais como panelas, fogão, feirinha, supermercado, etc.), desenvolvendo cenas em que fazia compras, preparava o alimento para oferecer ou solicitava o preparo do alimento para dar a ela. Após cerca de um mês nesta dinâmica, Blanca chegou para a sessão referindo fome e solicitando “comer comida de verdade”. Alguns biscoitos foram oferecidos a ela, que comeu com avidez. Nas sessões seguintes, Blanca sempre questionava se havia algo para comer. Tendo sido convocada para nova conversa com a terapeuta, Joana descreveu em detalhes o que nomeava como sendo a “anorexia” de Blanca. No entanto, tratava-se de um comportamento de recusa seletiva da criança em se alimentar, apresentado somente em relação à Joana, sendo que Blanca alimentava-se regularmente na escola ou em outras situações em que Joana não estivesse presente ou não oferecesse o alimento. Para fazer com que Blanca aceitasse alimentar-se em casa, Joana tinha que passar o prato ao marido, a sua mãe ou à sogra, que o repassavam à criança. Joana foi questionada sobre quando tal comportamento de Blanca começara a se apresentar, respondendo que há cerca de seis meses, começando com situações esporádicas que se intensificaram até que Blanca recusasse todos os alimentos ofertados por ela. No decorrer das sessões seguintes, Blanca questionou sobre a sua diferença de cor em relação à da terapeuta (branca), que lhe respondera que os ancestrais das duas provinham de raças diferentes. Joana foi convocada novamente para conversa, na qual se aventou a possibilidade de que Blanca viesse a saber a verdade sobre a sua origem, o que a levaria a compreender sobre a diferença de cor daquela que nomeava como mãe e poderia constituir uma possibilidade de reaproximação de Joana, de quem a criança estava cada vez mais afastada. Joana nega tal possibilidade à Blanca, afirmando que jamais falará sobre a adoção. Após tal conversa com a terapeuta, Joana acompanhou a criança em mais duas sessões, ao fim das quais afirmou que, devido à falta de melhora de Blanca, encerraria o tratamento, sendo irredutível às tentativas de sensibilização para a demanda de Blanca empreendidas pela terapeuta. O acompanhamento psicoterápico se encerrou, portanto, após quatro meses, sendo que neste relato sintetizamos os elementos que julgamos serem essenciais para atender ao objetivo proposto neste trabalho. Discussão Visamos, para atender ao objetivo proposto, levantar os seguintes elementos: que o eu (moi) é constituído corporal e imaginariamente a partir da coleta de traços identificatórios do Outro (a partir do conceito de estágio do espelho desenvolvido por Lacan); que a partir de então se apresenta uma demanda de reconhecimento do outro na sustentação do sujeito (Je); que o atravessamento que o idealdo sujeito branco pode realizar no processo de identificação do sujeito negro (partindo dos desenvolvimentos teóricos de Neusa Santos Souza (1983) em Tornar- se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro) pode levar a um processo de 23 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 18-25 estranhamento; que há uma recusa da criança em se alimentar enquanto resposta perante uma tensão no reconhecimento do outro, e que é de suma importância não faltar com a verdade à criança supondo que esta não terá capacidade de compreendê-la ou aceitá-la, pois, de acordo com Françoise Dolto (1999), as lacunas na história da criança podem ser fonte de angústia ou sofrer enquadres fantasmáticos que limitem as suas possibilidades de existência. Outrossim, a negação do saber sobre a origem pode comprometer a saúde psíquica da criança. Lacan (1949/1999), partindo da conceituação de narcisismo desenvolvida por Freud, introduz o estádio do espelho enquanto formador da função do eu (moi), acentuando que a constituição do eu é corporal. O corpo, entretanto, não constitui de saída uma unidade enquanto realidade psíquica – não correspondendo, portanto, à unidade anatômica em seu estado fragmentado (corps morcelé ), necessitando compor uma gestalt a partir de traços identificatórios que colhe do Outro e com os quais vai se recobrindo sucessivamente para compor um eu (moi). Sem esses traços, ele se decompõe tal como uma cebola. Assim é que o eu se constitui a partir do outro, ou, como bem sintetizou o estádio do espelho sem o saber o poeta Rimbaud, “Eu é um outro”. Se um ato de alienação é fundador do eu, como podemos pensar a estrutura psíquica de atravessada por uma negação, racismo e/ou preconceito? Souza (1983) nos responde que a constituição do eu de uma pessoa negra a partir de um ideal branco pode levar a um estranhamento quanto ao próprio corpo. Em outras palavras, a violência da introjeção de um ideal branco que leve ao desejo de um futuro antagônico à realidade do próprio corpo. Sendo o eu uma representação corporal, o vir-a-ser de um sujeito que tem no corpo traços que visa apagar será marcado pelo sofrimento psíquico. Ao pensar a adoção inter-racial, portanto, sustentamos a importância de um ato de reconhecimento do outro em sua diferença. Não foi o que ocorreu no caso clínico apresentado, o que supomos que esteja na origem da tensão entre a mulher branca e a criança negra adotada. Lemos a recusa em se alimentar dirigida àquela que tomava como mãe como uma resposta de Blanca ao não reconhecimento da sua diferença, e, por conseguinte, da negação de sua origem. Lacan (1956-1957/1995) nos traz a recusa em se alimentar como um modo de o sujeito obter satisfação em substituição às tensões na dimensão simbólica da realidade psíquica: Já lhes disse que a anorexia mental não é um não comer, mas um comer nada. Insisto: isso quer dizer comer nada. Nada, isso é justamente algo que existe no plano simbólico. [...] Esta ausência saboreada como tal, ela a emprega diante daquilo que tem à sua frente, a saber, a mãe de quem depende. Graças a este nada, ela faz a mãe depender dela. Se não compreenderem isso, não poderão compreender nada, não só sobre a anorexia mental, mas também sobre outros sintomas, e irão comer os maiores erros. (Lacan, 1956- 1957/1995, p. 188). Lacan (1956-1957/1995) ressalta, ainda, que, no estádio do espelho, como um modo de reagir à impotência imposta pelo outro que protagoniza a relação especular (em geral, quem exerce a função materna), a criança diz não: Todavia, chamo a atenção para o fato que a experiência nos demonstra, e não sem razão, que não é no nível da ação e sob a forma de negativismo que se elabora a resistência [...], no nível do objeto anulado como simbólico que a criança põe em xeque a sua dependência, e precisamente alimentando-se de nada. É aí que ela inverte sua relação de dependência, fazendo-se, por esse meio, o mestre da onipotência ávida de fazê-la viver, ela que depende da onipotência. A partir daí, é ela [a mãe] quem depende por seu desejo, é ela quem está sua mercê, à mercê das manifestações de seu capricho, à mercê da onipotência de si mesma. (Lacan, 1956- 1957/1995, p. 190). Blanca reagiu, portanto, ao “não” recebido daquela que tomava como mãe com um “não como o que me ofereces”, girando a roda do desejo, como podia, a seu favor, para se haver com a impotência sentida diante da sua realidade corpórea. Tal impotência é acentuada por aquele que Blanca toma como pai, e que não faz barreira às atitudes de Joana. Lacan (1969/2003) esclarece que: A distância entre a identificação com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem mediação (aquela que é normalmente assegurada pela função do pai), deixa a criança exposta a todas as capturas 24 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 18-25 fantasísticas. Ela se torna o “objeto” da mãe e não tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto. (Lacan, 1969/2003, p. 369). Cabe esclarecer que, ao longo do relato clínico, tomamos o cuidado de nos referirmos à Joana enquanto mulher que adotara, e não enquanto mãe de Blanca, pois nos apoiamos na consideração de Winnicott (1956/2000) de que “uma mãe adotiva, ou qualquer mulher que possa ficar doente no sentido de apresentar uma preocupação materna primária pode ser capaz de se adaptar suficientemente bem, por ter alguma capacidade de se identificar com o bebê” (Winnicott, 1956/2000, p. 151). Joana demonstrou sinais, conforme revelou na anamnese, de, desde os primeiros contatos com Blanca, não se identificar com ela, negando-lhe o nome dado pela genitora e, inclusive, escolhendo um nome que remetia a uma característica que se contrapunha à cor de pele, a qual tinha consciência de que a criança iria assumir. Acentuamos que, conforme defende Dolto (1982/2013), uma criança é capaz de suportar todas as verdades, mesmo aquelas que os adultos consideram mais difíceis de serem comunicadas. Dolto (1999) nos lembra de que a verdade pode ser elaborada, ao passo que a omissão dá lugar aos fantasmas. Quanto ao processo de adoção, Liaudet (1988/2000), sustentado em Dolto, exemplifica: “Hay que decir la verdade al niño. Decirle que nacio del amor de un hombre y de una mujer que son sus padres de nacimiento y que éstos no tuvieron la posibilidad de criarle, por razones sin duda válidas. Lejos de suponer un castigo para el niño, esa noticia le aportará dinamismo, al permirirle situarse claramente em su origen. Si se habla de ello desde el mismo dia de la adopción, se evitará tener que recurrir más tarde a uma revelación . (Liaudet, 1998/2000, pp. 152-153)” Dolto (1982/2013) acentua, ainda, que a negação da origem por aquela que desempenha a função materna fragiliza o psiquismo da criança: Uma criança pode morrer porque não lhe deram sua cena primitiva e, portanto, seu orgulho de estar no mundo. Não é desvalorizante o fato de ter pais que não puderam ir mais longe do que assumir uma criança até seu nascimento e, depois, abandoná-la. Mas a criança é objeto das projeções desvalorizantes das outras pessoas. (Dolto, 1982/2013, p. 17). Considerações finais Consideramos que todas as crianças, independentemente de conterem ou não o material genético daqueles que se nomeiam seus pais, foram adotadas por eles, uma vez que necessitaram do olhar/ palavra que as legitimasse. No processo de adoção inter-racial, o aspecto psicodinâmico de reconhecimento da criança pelo outro pode ser prejudicado se aqueles que se apresentam como pais não sustentarem a diferença de cor enquanto possibilidade, que pode se tornar mais acessível de compreensão para a criança na medida em quelhe é comunicada a verdade sobre a sua origem. A negação das características do corpo biológico da criança pelo outro poderia levá-la a um comprometimento na sua apropriação psíquica deste corpo, e, por conseguinte, na constituição do seu eu. O eu é uma composição realizada pelo psiquismo da criança a partir da apropriação de seu corpo enquanto unidade e que é referendada pelo olhar do outro. Se o olhar daquela que assume a função materna não legitima a imagem da criança enquanto tal, esta última, por sua vez, poderá sofrer tensionamentos para situar-se nos laços sociais, o que, em um país marcado por um passado escravagista e pela incidência de preconceitos raciais – tais como nos episódios citados na introdução do presente trabalho –, pode gerar sofrimento psíquico. Blanca, no entanto, mais do dar sinais que poderiam ser interpretados enquanto manifestados enquanto expressões de estranhamento quanto à gestalt do próprio corpo, mas que, pela brevidade do tempo de acompanhamento do caso, não podemos afirmar com suficiente segurança se tratar de tal (asma, psoríase, primeiro queda depois o ato de arrancar os próprios cabelos), posicionou-se com uma recusa (anorexia) pelo lugar que lhe era atribuído por aquela que estava se apresentando para cumprir a função materna. Tais considerações foram formuladas a partir de elementos da teoria psicanalítica em interlocução com as reflexões que o caso clínico nos provocou. Neste o reconhecimento não se deu a contento, e a criança reagiu da forma que pode (negando a se 25 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 18-25 alimentar) ainda que isso limitasse as suas possibilidades de existência. 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Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 26-39 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 26-39 ÉDIPO NEGRO: ESTRUTURA E ARGUMENTO Rafael Alves Lima Universidade de São Paulo Contato: rafaelnego@gmail.com Não esqueci da senhora limpando o chão desses boy cuzão Tanta humilhação não é vingança, hoje é redenção Uma vida de mal me quer, não vi fé Profundo ver o peso do mundo nas costas de uma mulher (Emicida – “Mãe”) Resumo O presente artigo apresenta uma interpretação da proposição do conceito de Édipo Negro, da antropóloga Rita Segato. Por meio da reconstrução das estratégias argumentativas e autores de referência da autora, busca-se sublinhar especificidades do conceito e marcar diferenças deste em relação a outras proposições que lhe são vizinhas. A organização do campo a que se destina o conceito de Édipo Negro visa reforçar a importância e a pertinência do conceito para iluminar este elemento central que organiza o campo social no Brasil que é o exercício da maternidade transferida da mãe legítima para a babá, compreendida como herdeira da ama-de-leite da história escravagista brasileira. Contemplando os desdobramentos imediatos dessa formulação na psicanálise e na experiência clínica, por fim, procura-se incluir o conceito no interior de uma paisagem comum a outros autores que se relacionam lateralmente a ele, incluindo-o no debate geral da interseccionalidade, que torna indispensável a articulação entre os níveis de classe, raça e gênero na crítica social brasileira e no debate contemporâneo da psicanálise no Brasil. Palavras-chave: Édipo Negro; Rita Segato; psicanálise; maternidade; Brasil; racismo. Black Oedipus: structure and argument Abstract This article presents an interpretation of the proposition of the concept of Black Oedipus by the anthropologist Rita Segato. Through the reconstruction of the argumentative strategies and authors of reference of the author, it is sought to emphasize specificities of the concept and to mark its differences in relation to other propositions that are neighbor to it. The organization of the field to which the concept of Black Oedipus is 28 Acta Psicossomática, v. 2, n. 1, 2019, pp. 26-39 intended aims to strengthen the importance and relevance of the concept to illuminate this central element that organizes the social field in Brazil, which is the exercise of motherhood transferred from the legitimate mother to the nanny, understood as direct heir of the wet nurse of Brazilian slavery history. Contemplating the immediate unfolding of this formulation in psychoanalysis and
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