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A PERDA DA PREPO SIÇÃO A E A RE CATEGO RIZAÇÃO DE LHE Marilza de OLIVEIRA (Universidad e d e São Paulo) ABSTRA CT: The aim of this paper is to analyse the loss of the pr eposition “a ” with dative verbs, the use of the preposition “para” and the new function of the dative clitic“lhe”. KEYWORDS: clitic; pr eposition; reanalyze; r ecategorization. 0. Introdu ção Analisando a realização do OI no PB contempo râneo, Berlinck (1997) atestou a queda de lhe e da preposição a, em favo r, respectivamente, do uso da categoria vazia e d a preposição para. A auto ra registrou 71% de nulo anafórico , 28 % de SP e apenas 1,0 % do clítico lhe. O SP é, majoritariamente, encabeçado p ela preposição para . Figueiredo Silva (ms) ressalta o uso da preposição para nos co mplementos verbais do Português Brasileiro (PB) atual, em lugar d a preposição a e sugere qu e para atribui papel benefactivo. Apoiando-s e n a subdivisão dos p apéis t emáticos em pri mários (agente, tema, met a, fonte) e secundários (locativo, benefactivo), proposta por Guerón (1985), a autora sugere que os argumentos co m p apel meta e aqu eles co m pap el benefactivo não ocupam o mes mo lugar na estrutura senten cial. O argu mento co m pap el meta ocupa u ma posição intern a à estrutura do sintag ma verbal; o argu mento co m pap el benefactivo é proj etado fora de VP, como os adjuntos. Os resultados a que chegou Berlinck e a análise de Figueiredo Silva ensej am as seguintes questões: a) Co mo se d eu a gramaticalização de para em complementos de verbos dativos? b) O PB está de fato p erdendo o clítico lhe? Neste trab alho, an aliso o uso das preposiçõ es a e para em co mplementos verbais co m função dativa nos anúncios e cartas enviad as aos jornais do século XIX, esboço u ma p roposta p ara a gramaticalização d e para e sugiro a recatego rização do clítico dativo lhe . 1. Gramaticalização d a p reposição para Na amostra sel ecionad a, foram computados 624 dados d e objeto indireto, que apres entaram as seguintes variantes: a preposição a (95,1%), a preposi ção para (1,4%) e a variant e zero (3 ,5 %). Neste trab alho, li mito-me à an álise das preposições lexicalizad as, como em: 1. pedindoao E xcelentíssi mo gov erno compra d e fachinaes (PR1879) Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 292-297, 2004. [ 292 / 297 ] 2. O sr Bicalho ... se limitava á escrev er cartas com xoradeiras aos collectores pedindo votos [aos coletores] para seus amos (MG1840) E m (1) temos o emprego da preposição a co m p apel meta e em (2) temos o emp rego de para co m pap el benefactivo. Esperava-se que para o corresse ap enas co mo b enefactivo, entretanto, há oco rrên cias de para co m papel meta: 3. ...pedindo de porta em port a u ma es mola para quem não tremeu nunca diante do inimigo (SP1865) A pri meira hipótese a ser veri ficad a é s e houve ext ensão do uso de para , de papel benefactivo para pap el meta, a partir do t raço [+hu mano] co mu m a ambos . E m comédias do início do século XX, observei qu e para introduz elementos [-ani mados]: 4. Telephonou para a casa d e mamãe. (Armando Gonzaga) O que os dados co mo (4) parecem apontar é que para [+meta] n ão deriva de para [+benefactivo], pois a extensão do uso d e para [+met a] se faz pelo traço [- ani mado ]. A análise dos dados do XIX mostrou qu e, além de atribuir os p apéis temáticos assinalados, a preposição para introduzia adjuntos co m v alor final, co mo na senten ça abai xo: 5. ...hoje que por Deliberação de SMI foi dad a [a praça] para o Estabellecimento da Acad emi a do Curso Jurídico (SP1828) A presen ça da variante inovado ra em (5) é indício de que a extens ão do uso de para [+met a], co m compl ementos dativos, tenha ocorrido a p artir d a no ção de finalidade, em posição de adjunto. A gramaticalização de para deve ter ocorrido a partir de deverb ais: SMI d eu a praça p ara estabelecer a A cademia do Curso Jurídico > SMI deu a praça p ara o estabel eci mento da Acad emi a do Curso Ju rídico em estruturas em que o verdad eiro argu mento dativo não está realizado lexical ment e e pode ser tomado co mo um argu mento [+arbitrário]: SMI d eu a praça [ao povo paulista] para o estabeleci mento da A cad emi a. Esta hipótese está em consonância co m a hipótese de Figuei redo Silva de que a introduz complementos e para introduz adjuntos e está d e acordo com a hierarqui a da referencialidade (Cyrino et alii, op.cit.), segundo a qu al a natureza referencial do antecedente é um dos fatores qu e in flu encia na escolha de u ma v ariante nula ou plena dos argu mentos, no s entido de que os argu mentos mais referen ciais ocupam a posição mais alta n a hierarquia referencial e os menos referenciais ocupam a posição mais baixa. A hierarquia referen cial leva à fo rmulação da hipótese de map eamento i mplicacional: Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 292-297, 2004. [ 293 / 297 ] i) Quanto mais referenci al for o antecedente, maior é a possibilidade de u m prono me pleno; ii) U ma variante nula em u m ponto especí fi co da escal a i mplica em variantes nulas à esqu erda da hierarquia referencial. Se se assu me que os co mplementos verb ais preposicionados (CVP), por serem elementos referenciais , se sub metem à hierarqui a referencial , temos que a preposição para passou a introduzir os CPVs nos contextos p roposicionais, em contextos de nenhu ma referen cialidade, o qu e ocorria em construções em qu e para ap res entava o valor fin al. Tem-se assi m o seguinte processo de gramaticalização: para+S → p ara+deverbal → para+N[-ani mado] → p ara+N [+humano] para estabelecer → para o estabeleci mento (deverbal) → para o estabel eci mento (N) → para o n egociant e Cyrino (1994) obs ervou qu e o objeto nulo tem su a origem na elipse sent encial e é cons eqüên cia de u ma reanálise diacrônica que estendeu a possibilidade da elipse para estruturas co m clíticos cujos antecedentes tinham traços s emelhantes ao do clítico sentencial [-animado, -esp ecífico ]. Proponho que a preposição para tev e trajetória semelhante à do objeto nulo. Introdutora d e senten ças finais, o uso de para se expandiu d as senten ças p ara os deverbais. A interp retação do dev erbal como u m si mples item no min al [+N] levou à ext ensão do uso de para co m elementos no minais [-ani mado] e, em s eguida, [+ani mado ], o qu e, po r sua vez, acarretou a reinterpretação do papel semântico fin al como pap el meta. Adotamos , assi m, a hipótese de que para, em complementos verbais , surgiu em u ma estrutura extern a ao sintagma verbal (cf. Figueiredo Silva), mas a partir de construções co m v alor final. 2. A recat egorização de “lhe” Para Figueiredo Silva, a adoção da preposição para no PB i mplica na op ção pela estrutura de adjunto, o que justi fica a perd a do clítico d ativo lhe . O apagamento de lhe constitui u m problema para a hipótes e do map eamento i mplicacional da referencialidad e, pois, lhe exibe o traço [+hu mano] e, de aco rdo co m o map eamento i mplicacional, “ quanto mais referencial é o ant eced ente, maior é a possibilidade de u m p rono me pleno ”. Será qu e o clítico lhe está d e fato desaparecendo do sistema prono minal brasileiro? Faraco (1982), Kato (1994), Moura Neves (2000), ent re outros , apontam a ext ensão do emprego do clítico lhe no PB para pronominalizar o objeto direto de 2a. pessoa, em substituição dos clíticos acus ativos o/a. Apoiando-me ness es achados, d efendo a hipótese da recatego rização do clítico lhe e não de seu simples apagamento. O PB exibe outro prono me em p rocesso de Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 292-297, 2004. [ 294 / 297 ] gramaticalização. O possessivo s eu, original mente d e 3a . pesso a está se especializando como de 2a. pessoa. Para a 3a. p essoa, o sistema introduziu a fo rma d ele . Kato (1985) propõe a hipóteseda distribuição harmônica ent re os sistemas prono minais: se o objeto é tônico, tem-s e o uso do genitivo dele, se o objeto é átono (me/te), t em-se o uso do possessivo (meu/teu) . Apoiando-nos em Kato , podemos formular a seguinte hipótese: se t emos o uso do possessivo seu (2a. pessoa), temos o uso de u m prono me átono. O candidato mais provável é o clítico acusativo de 3a. p essoa, co mo o prono me seu. Entretanto, esse clítico exibe marcas d e gên ero e nú mero , propriedad es aus entes no clítico d e 1a pessoa (me) . Como lembra Pagotto (1993 ), os clíticos de 3a. p essoa di ferem dos da 1a. e 2a. pessoas devido às marcas de conco rdân cia. O clítico acusativo o(s) , a(s) para a 2a. pessoa fere a hipótese d a distribuição harmônica, pois se o pronome d e 1a. p essoa (me) não é marcado quanto ao g ênero, o prono me d e 2a . pessoa tamb ém não o deve ser. O clítico lhe não apresent a distinção de gênero e, po rtanto, pass a a ser u ma opção na língua.1 Rest a explicar de que forma o clítico lhe passa a marcar pesso a. Assu mo a hipótese de que o clítico lhe co m v erbos transitivos diretos deriva da rean álise do objeto direto preposicionado (Odprep ). E m Olivei ra (2002), mostrei que o ODprep no s éculo XIX era favorecido p elo traço [+hu mano] do objeto. Observei que, ainda que a coincidên cia de traço [+pessoa] entre sujeito e objeto favoreça a presença da preposição (58 ,8 %), hipótese sustentad a por Ramos (1992), o traço [+hu mano] do objeto, independentement e do traço [+hu mano] do sujeito, é o fator responsável pela inserção da preposição , pois a soma dos percentuais de objeto direto [+hu mano ] al can ça o índice de 97,4 %. De acordo co m Ramos, o índice de Odprep sempre foi baixíssi mo no português e apresentou queda acentuada a partir do século XIX, chegando a apenas 1,7 % no século XX. U m dos fatores que mais favorece o uso do Odp rep é o p rono me de tratamento, fato também observado por Oliveira (2002). Assi m, o traço [+humano] do Odprep d eve ter sido reanalisado co mo [+pessoa]. O uso recorrente do Odprep co m prono mes de tratamento aponta para o uso do Odprep com a 2a. p essoa indireta. Duart e (1993), ao analisar o preenchimento do sujeito, atesta a perda da 2a . pessoa direta, em favor d a 2a. pessoa indireta, representado pelo pronome você, o qual ativa a concordância verbal de 3a . pessoa. Graças à distribuição harmôni ca dos prono mes, o uso de você leva ao uso de outras formas prono minais d e 3a. p essoa (clíticos acusativos, clíticos dativos e possessivos) p ara remeter a uma 2a. pessoa. Com a falta de distribuição h armônica ent re os pronomes acusativos de 3a. pessoa [+gênero], e os de 1a. e 2a. pessoas [-gênero], de um lado , e co m a perda dos clíticos acusativos (Duarte 1989; Pagotto op.cit; Cyrino, op.cit, entre outros), de outro, a representação da 2a . p essoa co m u ma forma pronominal de 3a. pessoa fica descoberta. Lhe era o único clítico que apres entava o traço [+hu mano] e qu e não apresentav a a 1 O clítico lhe apresenta traços de nú mero , ausentes no clítico de 1a. pessoa, mas, curiosamente, esse traço foi adquirido ent re o fim do período que corresponde ao português mediev al e início do português clássico . Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 292-297, 2004. [ 295 / 297 ] marca de gênero. Lhe pôde, ent ão, s er reanalisado co mo [+pessoa], n a est eira do Odprep, e pass ar a referir a 2a. pessoa indireta, em co mpl ementos acusativos. Castilho (com.pessoal) atenta p ara a despalatalização do clítico lhe, o qu e o torna si milar às formas dos clíticos acusativos em estruturas com verbos não finitos, come-lo , vê-las , em que o onset da sílaba do clítico é licenciado (Nunes 1993). Registre- se que o clítico acusativo nessa posição é um contexto de ênclise no PB (Duarte 1993) e u m contexto facilitador d a ap rendizagem formal desses elementos (Cordeiro, em andamento). 3. Considerações Finais Castilho (1999) propôs qu e os temas gramati cais do PHPB respondessem às seguintes questões: a) houve variação/ mud ança? b ) que lugar têm os resultados encontrados n a história so cial? c) que variações/ mudan ças podem ser explicadas por fatores sócio-históricos? Analisando o corpus do PHPB, v eri fiquei qu e o Odprep era fort emente presente nos d ados da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Gibrail (2003) estudou o Odprep no portugu ês clássico e observou que esta construção atingiu os índices mais exp ressivos e os contextos mais abrangent es no século XVII. No século XVIII, o uso do Odprep diminuiu vertiginosamente e no século XIX dei xou d e ser u m fenômeno lingüístico do PE. Esses resultados sugerem que o Odprep presente no corpus brasileiro é u m resíduo de p eríodos anteriores , mais precisamente o século XVII, época de grande i mig ração portugu esa, g raças à corrida aurí fera. E mbora o uso de lh e co mo clítico d e 2a. pessoa para v erbos transitivos diretos comece a aparecer em di ferent es regiões do país, el e parece s er u ma característica marcant e dos dialetos nordestinos. O alto índice d e uso de Odprep nos dados d a Bahia (século XIX) e o uso de lhe com verbos transitivos diretos nessa região vêm con fi rmar a correlação entre Odprep e gramaticalização do clítico lhe. RESUMO: Neste artigo, mostramos que à p erda da preposição “a” com verbos dativos, seguem-se o avanço do uso da preposição “ para” e a recatego rização do clítico dativo “lhe”. PALAVRAS-CHA VE: clítico; preposição; reanálise; recatego rização REFE RÊNCIAS BIBLIOG RÁFICA S BERLIN CK, Rosane. Sobre a realização do objeto indireto no Português do Brasil, comunicação apres entada no II Encontro do Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul (CEL SUL), Florianópolis, mimeo, 1997. CASTILHO, Ataliba. Projeto para a História do Português Brasileiro , Equipe de São Paulo – Agend a d a reunião de 26 de nov emb ro d e 1999 , ms, 1999. CORDEIRO, Roseli. A aprendi zagem dos clíticos acusativos de 3a. pesso a, diss . de mestrado, em andamento. Estudos Lingüísticos XXXIII, p. 292-297, 2004. [ 296 / 297 ] CYRINO , Sônia. O objeto nulo no Português do Brasil: um estudo sintático- diacrônico, t ese d e doutorado, Unicamp/ 1997, Londrina: Ed. UEL , 1994 . CYRINO , Sônia, DUA RTE, M.Eugênia & KATO , Mary. 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