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O CICLO DO LÍTIO, O HEARTLAND SUL-AMERICANO E A INDUSTRIA 4 0 thiago valencaEnsaio Geopolítica e Globalização

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Geopolítica e Globalização 
Mestrado em Geografia Humana: Globalização, Sociedade e Território 
Ano Letivo 2020/2021 
 
 
 
O CICLO DO LÍTIO, O HEARTLAND SUL-AMERICANO E A INDUSTRIA 4.0 
 
 
 
 
 
Thiago Valença 
Resumo: 
Diante da 4ª Revolução Industrial, a América do Sul com grandes reservas 
de lítio se apresenta com uma importância estratégica ainda maior no que se 
refere a geopolítica dos recursos naturais. No entanto, a história do capitalismo 
e da industrialização revela um estigma da América Latina em que a exploração 
estrangeira de seus recursos abundantes significou subdesenvolvimento, 
dependência e subordinação no sistema Internacional. O trabalho apresenta 
uma leitura sobre o papel da Bolívia na geopolítica do lítio, matéria prima 
fundamental para o conjunto de tecnologias apresentadas na atual revolução 
tecnológica. Considerada pela geopolítica clássica sul-americana como o 
heartland do subcontinente, apresenta gigantescas reservas e uma política de 
desenvolvimento nacional heterodoxa diante do mainstream ideológico-
econômico. O objetivo é considerar implicações deste fenômeno para a 
geopolítica regional do ponto de vista dos impactos, desafios e possibilidades. 
Conceitos-chave: Ciclo do lítio, heartland, Modelo de desenvolvimento, 
Bolívia. 
1. Introdução 
Está em curso a 4ª revolução industrial ou a chamada “indústria 4.0”, que 
promete trazer mudanças profundas na sociedade, em todas as escalas. 
Segundo Klaus Schwab, diretor executivo do Fórum Econômico Mundial e autor 
do livro A Quarta Revolução Industrial (2018), “estamos a bordo de uma 
revolução tecnológica que transformará fundamentalmente a forma como 
vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Em sua escala, alcance e 
complexidade, a transformação será diferente de qualquer coisa que o ser 
humano tenha experimentado antes". Não se trata de um avanço emergente das 
tecnologias convencionais, mas a transição para novos sistemas que utilizam a 
infraestrutura da revolução industrial anterior, a digital (inaugurada na década de 
1950). Nesse processo, o lítio é um recurso fundamental para produção dessas 
novas tecnologias. Utilizado na produção de alumínio, lentes de telescópios, 
lubrificantes, propelentes de foguetes, armas nucleares, medicamentos, e 
principalmente na produção de baterias e sistemas de armazenamento. De 
modo que as reservas deste mineral adquiriram um status estratégico prioritário 
nas relações entre os Estados Nacionais para garantir o abastecimento da 
indústria de alta tecnologia. O lítio pode ser considerado o equivalente ao que foi 
o carvão mineral e o petróleo nas fases anteriores da revolução industrial. Da 
mesma forma, podemos considerar que a disputa pelo lítio pode ter implicações 
semelhantes, como acirramento de conflitos, conspirações e tensões quanto ao 
processo de extração e apropriação e de configuração da geopolítica 
internacional (Fiori, 2014) 
A américa do Sul, mais precisamente a área que corresponde ao 
denominado “triângulo do lítio” (Rodrigues & Padula, 2017) concentra cerca de 
60% e abrange uma enorme área na cordilheira dos andes, dividida entre os 
territórios da Argentina, Bolívia e Chile. No caso da Bolívia, detentora das 
maiores reservas conhecidas, percebe-se uma postura de grande cautela, haja 
vista a história de exploração de seu gigantesco patrimônio natural a serviço do 
colonialismo e imperialismo industrial estrangeiro trazer graves consequências 
políticas, econômicas sociais e geopolíticas, existe um trauma da população que 
ao custo de muita luta conseguiu o controle dos seus recursos por meio da 
nacionalização dos hidrocarbonetos e minerais desde 2006. Na geopolítica 
clássica da América do Sul, a Bolivia é considerada o heartland do 
subcontinente, (Tambs,1965) pelas suas características geodésica, topográfica 
e ambiental, indispensável para se construir um projeto de integração de 
infraestrutura e controle de recursos entre os países Sul-americanos. Assim, o 
objetivo deste trabalho é apresentar uma leitura sobre a posição da Bolívia na 
geopolítica emergente do ciclo do Lítio, a partir da proposta de que, além de suas 
características de heartland, apresenta um modelo de desenvolvimento 
econômico heterodoxo ao mainstream e o paradigma neoliberal, preocupado em 
romper com os ciclos de subdesenvolvimento. Nos últimos 14 anos a Bolívia tem 
apresentado uma média de crescimento do PIB em torno de 4,5% (FMI 2018) 
apesar da grande pressão e instabilidade política de atores internos e externos 
ao país. 
O trabalho está dividido da seguinte forma: Primeiro será apresentado o 
contexto geopolítico do ciclo do lítio; em seguida, uma explanação sobre os 
aspectos que fazem da Bolívia um heartland, bem como de certas 
particularidades, como o modelo de desenvolvimento econômico empregado 
desde 2006, que tem como diretriz a ruptura com os ciclos de exploração e 
expropriação de seu patrimônio natural e tem construído resistência ao modelo 
neoliberal ao mesmo tempo que se apresenta como alternativa, com resultados 
econômicos e sociais expressivos ao mesmo tempo que exerce boas práticas 
financeiras no mercado internacional. Finalmente, seus resultados e suas 
implicações na geopolítica regional, as possibilidades diante do ciclo do lítio, um 
momento único de oportunidade de integração e desenvolvimento da América 
do Sul. 
Figura 1: Triângulo do Lítio 
 
(Rodriues & Padula, 2017) 
2. O ciclo do Lítio e a geopolítica global. 
O lítio é um metal alcalino o material sólido mais leve da tabela periódica 
(Metade da densidade da água) e é um excelente condutor de calor e energia. 
Não é encontrado de forma livre na natureza, está contido em rochas e 
salmouras na forma de composto iônico. As reservas de salmoura apresentam 
maior viabilidade de exploração e apresentam-se na forma de salares, áreas 
anteriormente cobertas por águas oceânicas e que por conta da regressão 
marinha e fenômenos orográficos, imensas quantidades de água salgada foram 
confinadas e evaporadas, produzindo grandes desertos salgados como os da 
região andina, com destaque para o salar de Uyuni na Bolívia, Atacama no Chile 
e Hombre Muerto na Argentina que correspondem a cerca de 92 % das reservas 
mundiais em 2009. Essas três áreas formam o chamado “triangulo do lítio”, 
conforme demonstrado na Figura 1 (Bruckmann 2011, 217-219). Embora seja 
conhecido desde o século XIX, o emprego do mineral ficou restrito a área militar 
(em propelentes de foguete e bombas nucleares) e na medicina (remédios para 
transtornos mentais) até meados da década de 1990, com a proliferação de 
telefones e computadores portáteis, a demanda para o emprego na produção de 
baterias elétricas aumentou e em 2007 já havia se tornado o setor de maior 
consumo do lítio (Klare, 2012). Atualmente existe uma demanda latente e uma 
corrida tecnológica para produção de baterias mais eficientes para veículos 
elétricos EV (Eletric Vehicle) o que aponta para um ciclo de uso intensivo do Lítio 
a partir de 2005 e com projeção até 2050 (Bruckmann 2011). 
A vantagem do lítio é a sua alta densidade energética permitindo maior 
capacidade de armazenamento de energia com menor peso em relação as 
baterias feitas com níquel ou chumbo. 
2.1. Mercado internacional do lítio 
 
O mercado internacional do lítio segue a tendência de variação típica das 
commodities. Devido a intensificação de prospecções em busca de novas 
jazidas nos últimos anos, bem como a entrada de nova empresas produtoras, a 
variação do valor do lítio não correspondeu a subida da demanda, embora seja 
bastante significativa. 
O primeiro fator é A entrada de empresas no setor de exploração como a 
SQM – Sociedad Química e Minera de Chile S.A em meados dos anos1990 e a 
australiana Tallison em 2007. O segundo fator é o aperfeiçoamento da 
exploração do lítio em salares, reduzindo o custo de produção inclusive 
provocandoo encerramento da exploração na Rússia, nos EUA e na China que 
apresentavam custos mais elevados. O terceiro fator foi a crise de 2008 que 
provocou uma ruptura na projeção de crescimento experimentada desde o ano 
2000, embora os preços tenham voltado a crescer já em 2009. O quarto fator é 
a tendência de crescimento do mercado de automóveis elétricos na Ásia, o que 
irá puxar a demanda, sobretudo do lítio produzido na Austrália, pela proximidade 
do mercado. Quinto fator: uma vez que 70% das reservas mundiais do minério 
se encontram na América do Sul, com custos menores e com pureza mais 
elevada, Argentina, Bolívia e Chile terão importante participação no 
estabelecimento dos preços (Rodrigues & Padula, 2017). 
Atualmente quatro países concentram 90% das reservas mundiais de lítio 
(Chile 38%, Austrália 31%, Argentina 13% e China 10%), e quatro empresas 
controlam 80% do mercado (Talison 35%, SQM 26%, Rockwood 12% e FMC 
7%). 
A australiana Talison Lithium é a maior produtora de lítio no mundo, 
fornecendo aproximadamente 35% do mercado mundial de lítio e a empresa 
dominante de vidro e indústria cerâmica com alta pureza, além de ser o principal 
fornecedor de carbonato de lítio para o mercado chinês (Rodrigues & Padula, 
2017). 
A chinesa Chengdu Tianqi Industry Group Co. (Tianqi), uma sociedade 
anônima privada líder na produção de produtos químicos de lítio, Desde 1997, 
com a ajuda de bancos, departamentos governamentais e outros parceiros, o 
agregado econômico da Tianqi tem mantido um crescimento constante de 40% 
ao ano. 
Nas América do Sul, três empresas se destacam: a chilena SQM (Sociedad 
Química y Minera de Chile SA), a alemã Rockwood, a Cyprus Foote, dos EUA e 
a SCL, do Chile) e a norteamericana FMC Coporation. A maior participação de 
mercado em salares possui a SQM, com 26%. 
Com relação a demanda, estima-se que, em 2040, estejam a rolar cerca de 
500 milhões de veículos elétricos no planeta. Teremos então cerca de 3,6 biliões 
de baterias de lítio instaladas. E muitas mais serão necessárias no mercado de 
retalho para substituição (Diniz, 2019). O destaque é para o mercado asiático. 
Empresas de tecnologia asiáticas continuam a investir no desenvolvimento de 
operações de lítio em outros países a fim de garantir o suprimento da sua 
indústria de baterias. China, Japão e Coréia são responsáveis por 85 a 90% da 
produção global de bateria de lítio-íon e 60% do consumo mundial de lítio, com 
24% da Europa e 9% dos Estados Unidos. Esses três países asiáticos, portanto, 
estão gerando um crescimento elevado da demanda futura do lítio. Em 2011, a 
China se tornou o principal consumidor, com 33% do total mundial de consumo, 
com previsões de consumir quase 50% em todo o mundo em 2020 (United 
States, 2016). 
3. A Bolívia como heartland da América do Sul 
Partindo da concepção clássica de Mackinder em seu trabalho “Heartland” 
(1919), muitos autores que analisaram sob esta ótica a América do Sul fizeram 
relação ao território boliviano como o “mediterrâneo”, ou uma grande área central 
grande quantidade e diversidade de recursos e com capacidade de mobilidade 
e projeção em todas as direções do subcontinente, ao mesmo tempo em que 
consiste numa fortaleza natural. Nas primeiras referências como a de Travassos 
(1947) considera-se os aspectos topográficos como o fato da Bolívia estar no 
interflúvio das bacias hidrográficas de leste e Oeste principalmente a Amazônica 
e a da Prata, além disso, a diversidade de paisagens como a floresta amazônica 
no altiplano, a depressão do chaco que se converte em pântano nos períodos 
chuvosos, os desertos entre os picos da cordilheira dos andes além da região do 
lago Titicaca (Rodrigues,2013). Na geopolítica clássica também é considerado o 
argumento histórico como respaldo para tese do “heartland sul-americano 
proposto pelo diplomata estadunidense Lewis Tambs onde demonstra que 
desde o povo Aimara, Inca, e na organização administrativa do império colonial 
espanhol a região do altiplano boliviano era ponto nerval, inclusive sendo o último 
reduto do Império espanhol na América. “Quem controla Santa Cruz comanda 
Charcas. Quem controla Charcas comanda o Heartland. Quem controla o 
Heartland comanda a América do Sul” (Rodrigues, 2013). 
Em um período mais recente, com a projeção dos combustíveis fósseis e a 
descoberta de reservas de gás na região, somado aos recursos hídricos 
abundantes, terras férteis e minerais outro conceito geopolítico importante que 
vem tona é a questão dos recursos estratégicos. Isto fica representado nos 
trabalhos nos trabalhos do general brasileiro Golbery do Couto e Silva (1981) em 
que amplia a área central, para alcançar uma região configurada pela 
abundância de recursos naturais que ele define de “zona de soldadura” em uma 
classificação que divide o subcontinente em cinco zonas estratégicas, tal qual 
representado na figura 2. Esta proposta de Godoy fez escola e influenciou 
diversos autores da Geopolítica latino-americana, centrada na ideia de grande 
potencial de integração como zona de soldadura. 
Godoy certamente foi influenciado pelo ator boliviano Alberto Ostria 
Gutierrez que já havia utilizado o termo “soldadura” (1946 apud RODRIGUES, 
2013, p.45): 
“situada en el centro de la América Meridional, cabecera de los tres grandes 
sistemas hidrográficos – Amazonas, Plata y Pacífico – nexo entre dos océanos, 
limítrofe de cinco naciones, obligado paso de norte a sur y de este a oeste, la 
geografía impone a Bolivia, no una función aisladora y de aislamiento, sino de 
atracción, de articulación, de unión, de soldadura entre los países que le rodean.” 
Cabe destacar também a colocação do geopolítico boliviano Alipio Valencia 
Vega (2011, p.55 apud Rodrigues, 2012, p. 45): 
“la vastedad territorial de Bolivia, abarcando cuatro regiones tan distintas 
entre sí y, sobre todo, separadas de otras por accidentes geográficos poderosos, 
sólo podría mantenerse a condición de que la acción humana de los escasos 
pobladores de dicho territorio se orientara prácticamente y sin descanso, desde 
el primer día de la independencia, al aprovechamiento efectivo de los principales 
recursos económicos de esas regiones y a la superación de los obstáculos 
geográficos, mediante la apertura de vías de penetración de unas regiones sobre 
otras. Si no se operaba esta acción, los centros nerviosos del país siempre 
estarían sumamente lejanos de la periferia de las fronteras (SEVERO, 2012, p.6) 
De modo que esta zona embora relativamente isolada apresenta um grande 
potencial de integração regional a depender da geopolítica empregada pelos 
Estados envolvidos, no intuito de garantir o aproveitamento dos recursos 
estratégicos, e fomentar um desenvolvimento consciente da necessidade de 
romper com os ciclos viciosos do subdesenvolvimento. Há uma tendência de 
deslocamento do eixo geopolítico global que abre oportunidade de ruptura com 
certas configurações da Divisão Internacional do Trabalho, que não será 
considerada neste trabalho, mas que exige, diante da posse de um gigantesco 
arsenal de recursos estratégicos para a nova etapa de reestruturação do 
capitalismo, o debate sobre um modelo de desenvolvimento regional para a 
América do Sul, apesar dos entraves inerentes. 
Figura 2: Divisão geopolítica de Godoy (1981) 
 
Fonte: Oliveira e García (2010. Apud. Rodrigues, 2013) 
 
3.1. O modelo de desenvolvimento boliviano 
O modelo de desenvolvimento boliviano implementado em 2006 com a 
ascensão do partido “Movimento ao Socialismo” – MAS, denominado Novo 
Modelo Econômico e Social, comunitário e produtivo pautado no protagonismo 
do Estado, com uma estratégia investir em setores estratégicos geradores de 
excedentes, nomeadamente energia elétrica, hidrocarbonetos, e mineração, no 
intuito de reinvestir na demanda interna e na economia plural, por meio de 
programas de distribuição renda e aumento progressivo dosalário mínimo, 
fomentando os setores geradores de emprego (manufatura, agropecuária, 
construção civil) via setor privado, cooperativo e comunitário em busca de uma 
industrialização que crie valor agregado ao trabalho e ao produto. 
Essa estratégia dentro do contexto de liquidez internacional quando da sua 
implementação, possibilitou um cenário de estabilidade com investimentos 
significativos e eficientes em infraestrutura que proporcionaram a 
industrialização dos recursos naturais, geração de emprego e renda e avanços 
significativos nos índices de escolaridade (Castro, Guerra e Filho, 2020) 
O PIB boliviano saltou de US$ 9,57 bi, em 2005, para US$ 43,69bi, em 2018. 
Já o PIB per capita (a preços correntes) saltou de US$ 1.050 em 2005 para US$ 
3.820 em 2018. Um crescimento médio de aproximadamente 5% ao ano (FMI, 
2019. apud Castro et.al. 2020). 
No campo macroeconômico, constata-se uma política fiscal de “expansão 
sustentável” do gasto público, principalmente em infraestrutura, seguindo boas 
práticas internacionais, com políticas de metas de inflação, câmbio flutuante, 
responsabilidade fiscal, etc. No entanto, os excedentes são aplicados em 
políticas de desenvolvimento interno setor produtivo e distribuição de renda, Ao 
invés de aplicações financeiras internacionais. Essa dualidade do modelo 
boliviano gera um mal-estar no mainstream internacional já que seus resultados 
positivos seguem procedimentos fundamentais fora daqueles recomendados 
pelas organizações econômicas internacionais (Castro, Guerra e Filho, 2020). 
Sobre a aplicação dos excedentes, as plantas industriais no setor de 
exploração de minérios, desde o processo de nacionalização dos 
hidrocarbonetos e minérios a política estabeleceu como prioridade o gás natural 
e o lítio. Houve um investimento considerável, na ordem de 953 milhões de 
Dólares, para o gás natural, com a criação de valor agregado na produção de 
fertilizantes a base de ureia e amoníaco pela YPFB (Yacimientos Petrolíferos 
Fiscales Bolivianos) que atende à demanda interna e exporta 80% da produção, 
sobretudo para o Centro-Oeste brasileiro, uma dos maiores cinturões agrotech 
do mundo (Castro, Guerra e Filho, 2020). 
No caso do lítio, a exploração requer maior grau de tecnologia, da qual a 
Bolívia não detém e exige parcerias, ao mesmo tempo que grandes corporações 
do setor pressionam por maior flexibilidade do governo quanto as exigências 
para concessões de exploração daquelas que são as maiores reservas de lítio 
do mundo, estimadas em 9 milhões de toneladas. As exigências são 
basicamente a participação majoritária do governo, por meio da criação da 
empresa Estatal YLB (Yacimientos de Litio Bolivianos) criada em 2017 no intuito 
de controlar a cadeia produtiva do mineral investindo em projetos no setor, a 
transferência de tecnologia, por programas de qualificação de cientistas de 
técnicos e criação de unidades de pesquisa para produção de baterias e outros 
elementos de agregação de valor de exportações. Esse cenário faz com as 
grandes corporações se afastem e a produção ocorra em menor proporção que 
os vizinhos Argentina e Chile onde o capital encontra aporte de investimentos, e 
a participação de empresas estatais é minoritária com projetos pontuais de 
desenvolvimento de tecnologias para gerar valor agregado as exportações, 
como a produção competitiva de baterias para automóveis elétricos (Castro, 
Guerra e Filho, 2020). 
Diante destes pressupostos, foram estabelecidos distintos acordos 
internacionais para a industrialização do lítio. No Salar de Uyuni (maior reserva 
de lítio do mundo), todo processo de extração da matéria prima, que se inicia na 
extração dos sais no salar e na evaporação em piscinas industriais, passando 
pela produção de cloreto de potássio e finalizando na produção de carbonato de 
lítio, é realizado exclusivamente pela YLB, portanto, sem a presença de capital 
internacional. 
Na planta de La Palca, em Potosí, foi criado o Centro de Estudos Centro de 
Pesquisa em Ciência e Tecnologia dos Recursos Evaporativos, sendo parte de 
uma sociedade entre a YLB (51%) e a empresa alemã ACISA (49%) para a 
construção de 4 fábricas: Hidróxido de Lítio, Hidróxido de Magnésio, materiais 
Catódicos e Baterias de Íon de Lítio6. A perspectiva é que estas fábricas estejam 
em funcionamento até 2022. Atualmente funciona o centro de pesquisa e uma 
fábrica em escala piloto de baterias de íon de lítio, onde são feitos diversos 
estudos para o desenvolvimento de tecnologia, inclusive com a perspectiva do 
carro elétrico. Cabe destacar a criação da Quantum Motors na região de 
Cochabamba de capital nacional privado, antecipando do primeiro carro elétrico 
boliviano com tecnologia 100% nacional, a um custo de mercado em torno de 
5.000 dólares e carregável em qualquer tomada 220V. Sobre as instalações de 
La Palca, a equipe de pesquisadores brasileiros, os economistas Fabio S. M. de 
Castro, Sinclair Mallet e Guy Guerra que desde 2009 veem estudando o modelo 
de desenvolvimento elaborado pelo MAS (desde 2006), relatou em seu trabalho 
de campo, a segunda visita a Bolívia, (primeira em 2010), no ano de 2019, 
publicado no artigo “A Bolívia pré – golpe, notas de um estudo de campo”(2020) 
as constatações da visita a plante de La Palca: 
 
“Na visita à planta La Palca, em uma região isolada próxima à cidade de Potosí, sob 
proteção do exército, foi possível verificar o andamento destes projetos. Destaco que todos os 
trabalhadores são bolivianos, muitos dos quais mestres e doutores, com elevado grau de 
envolvimento com a execução do projeto. Além disso, as baterias de íon de lítio produzidas até 
o momento, em sua maioria, são utilizadas para oferecer iluminação pública a regiões remotas 
do país, a partir de circuitos de energia solar produzidos pela empresa alemã que utiliza as 
baterias bolivianas para armazenamento” (p. 113). 
 
Nos Salares de Coipasa (Oruro) e Pastos Grandes (Noroeste de Potosí), foi 
firmado um acordo para uma empresa mista entre a YLB (51%) e o consórcio 
chinês Xinjiang TBEA Group-Baocheng (49%) para a exploração e produção de 
Sulfato de Potássio, Hidróxido de Lítio, Ácido Bórico, Bromo Puro, Bromo de 
Sódio, Cloreto de Lítio, Carbonato de Lítio e Lítio Metálico, num total de 8 fábricas 
com perspectiva, no futuro, de diversificar a produção para a produção de 
baterias. 
Cabe ainda destacar, dentro desta política de investimento de excedentes 
na indústria nacional, o investimento no setor da construção civil em obras de 
infraestrutura, como a construção de rodovias interligando as regiões do país, a 
construção da mais moderna fábrica de cimentos da América do Sul, na cidade 
de Oruro, com capacidade 3.000 toneladas por dia; e a construção da Usina 
Siderúrgica de Mutún, em Puerto Suarez, que prevê industrializar 194.000 
toneladas de aço por ano a partir de 2020 (Castro, Guerra e Filho, 2020). No 
setor de telecomunicações grande destaque para o lançamento do satélite 
Tupac katari, financiado e produzido pela China, mas envolveu a construção de 
2 estações de monitoramento de satélites e uma grande equipe de técnicos 
bolivianos foram capacitados na China para que pudessem administrar as 
atividades vinculadas ao setor espacial. O aparelho atua na cobertura das 
telecomunicações de todo país e região andina é empregado em provisão de 
internet em áreas remotas, serviços de telemedicina e educação, promovendo 
uma melhor coordenação das atividades econômicas, de programas de 
segurança, das forças armadas e da polícia, e das relações internacionais. O 
sucesso econômico e tecnológico foi tanto que já está em projeto a construção 
do Satélite Tupac Katari 2, que entre outras coisas estabelecerá a tecnologia do 
5G no país. (Castro, Guerra e Filho, 2020) 
A estratégia é não permitir que os recursos saiam do país sem valor 
agregado e atrair um ciclo de desenvolvimento tecnológico tal qual já visto nocaso da Quantum Motors, no intuito de romper com o ciclo vicioso do 
subdesenvolvimento. 
Outra vertente de investimento dos excedentes é a distribuição de renda com 
bolsas direcionadas em três áreas estratégicas: educação (Bono Juancito Pinto, 
que paga uma benefício de Bs 200 por ano a estudantes de escolas públicas, 
condicionadas a 80% de presença escolar) terceira idade (Renta Dignidad, que 
paga uma renda complementar (à aposentadoria) a idosos com mais de 60 anos 
no valor de Bs 250, ou Bs 300 àqueles que não conseguiram se aposentar) e 
maternidade (Bono Juana Azurduy, que paga uma renda de Bs 1820, divididos 
em 33 meses, para mulheres grávidas ou com filhos, de até 2 nos de idade, em 
situação de vulnerabilidade, condicionado à realização de exames pré-natal). 
Outro programa interessante é o chamado Double Aguinaldo um programa que 
obriga as empresas a pagar um 14º salario (gratificação natalina) toda vez que 
a economia apresentar um crescimento econômico acima de 4,5%, com a 
condição de que 15% do valor seja destinado ao consumo de bens e serviços de 
origem nacional. 
 
Fonte: Ministerio de Economía y Finanzas Públicas, 2011.Apud. Castro 
et.al.(2020): 
De modo que, apesar de estar num processo inicial o modelo de 
desenvolvimento já apresenta resultados que indicam um empenho do governo 
em romper com o estigma histórico de subdesenvolvimento e alinhar o país em 
relações internacionais mais paritárias. Segundo Castro et.al.(2020): 
 
“O fato é que há, de forma geral, a coexistência entre o modelo neoliberal e o modelo 
decolonial, entre o trabalho alienante e a autogestão, entre a segregação e a inclusão, entre o 
extrativismo e a preservação. Não há uma ideologia ou grupo hegemônico na esfera política, 
trata-se de um processo em construção, transitando para um novo país” (p.121) 
 
 Continuidade do modelo depende da continuidade da gestão do MAS, já 
que este interfere em interesses seculares que envolve as elites oligárquicas 
locais, grandes corporações transnacionais e seus Estados nacionais de origem. 
A fundação do Estado Plurinacional da Bolívia em 2006, fruto da vitória do MAS 
nas eleições, representa uma posição de resistência frente a séculos de pobreza, 
instabilidade político-econômica e exploração estrangeira, que acentuou nos 
finais dos anos 1990 com a implantação da agenda neoliberal e total submissão 
ao Consenso de Washington, com resultado numa completa dolarização da 
economia, com a privatização de setores estratégicos e essenciais como a agua 
potável, como ocorreu em Cochabamba em 2003 e a famosa revolta popular 
composta por diversas etnias indígenas, movimentos sindicais e mestiços da 
população urbana que resultou na ruptura dos acordos comerciais, a renúncia 
do presidente Gonzalo Sanchez de Lozada, o Goni, figura icônica por falar um 
castelhano com sotaque estadunidense por ter sido criado e vivido a maior parte 
da sua vida nos EUA, pois seu pai era diplomata. De modo que o cerne do 
modelo de desenvolvimento está pautado num desafio de superar o trauma 
histórico de entrega de riquezas. 
Deste modo, a postura da Bolívia diante do ciclo do lítio tem sido de cautela 
quanto à pressão de abertura e concessão da exploração para o capital 
estrangeiro, ao mesmo tempo que tenta superar entraves tecnológicos para 
produção autônoma e com valor agregado, o que explica uma menor proporção 
da exploração do lítio na Bolívia do que nos demais países do triângulo do lítio – 
Argentina e Chile. No entanto, pelo fato de apresentar as maiores jazidas do 
planeta e diante do aumento cada vez maior, esse cenário de cautela pode ser 
encarado como uma oportunidade de elaborar uma estratégia de integração 
regional que vise um maior controle dos preços do mercado internacional, por 
meio de instituições de cooperação entre os países da região (não somente do 
triângulo do lítio mas de países como Paraguai, Brasil e Peru, que podem 
contribuir com projetos de infraestrutura e escoamento da produção ( privilégio 
de acesso ao oceano Atlântico e Pacífico) viabilizando um alcance dos principais 
mercados globais. Para isso é necessário um ambiente de coesão política 
regional que esteja disposta a “olhar para dentro”, e articular estratégias de 
soberania e desenvolvimento conjuntos. 
Neste sentido a Bolívia se apresenta como alternativa, pela continuidade do 
seu modelo, mesmo após a saída de governos de esquerda na Argentina, no 
Brasil e no Paraguai. 
 
4. Considerações finais: Implicações geopolíticas, desafios e 
Possibilidades. 
O papel geopolítico da Bolívia tem se tornado mais importante a medida que 
desenvolve sua estratégia de desenvolvimento em meio a um cenário de ameaça 
a hegemonia geopolítica estadunidense diante da presença cada vez maior de 
atores proeminentes como Rússia e China. Os acordos bilaterais cada vez mais 
constantes em detrimento de acordos multilaterais daquilo que os EUA 
consideram sua esfera de influência natural acirra tensões a medida que o 
mercado demanda novos recursos estratégicos para a nova reestruturação do 
capitalismo. Desde 2011 ocorre uma mudança no mapa político dos países sul-
americanos com a entrada de governos de direita e extrema direita mais 
alinhados com a agenda neoliberal, que de certo modo “isolou” o heartland e ao 
projetos de integração que vinham sendo discutidos desde o início dos anos 
2000 (Frenkel y Comini, 2017). 
Esta mudança do cenário geopolítico implica numa mudança de política 
interna e externa, inclusive com a reformulação do conceito de guerra, tão qual 
ocorreu com a doutrina bush e a guerra ao terror com a reivindicação ao direito 
de “guerra preventiva”. Neste caso, o que emerge é uma retomada do emprego 
maciço de think thanks, muito empregado durante a guerra fria em estados 
satélites e que influenciou em golpes de estado por todos os continentes, numa 
guerra travada por meio de ferramentas como o poder político –diplomático, 
comunicacional/cibernético, militar/inteligência, e econômico para influenciar ou 
afetar de alguma maneira a tomada de decisão de um estado (Rand Corporation, 
2019. Apud Romano & lajtman, 2020). Esse novo contexto é o que autores 
chamam de “nova guerra política” (Tellería y González, 2015; Field, 2016) 
No caso da Bolívia pode –se constatar um empenho em travar uma guerra 
psicológica, com um forte componente de guerra psicológica travada em Por 
meio da mídia e das redes sociais, com a propagação de vozes de “especialistas” 
notas e opiniões na mídia hegemônica de distorção e depreciação de valores 
atribuídos ao governo boliviano e sua legitimidade construindo um consenso de 
fragilidade e fracassos de modelos antagônicos ao neoliberalismo (Romano & 
lajtman, 2020). 
Mais especificamente no caso do lítio deve-se considerar que além de 
estratégico para a nova etapa industrial, é um recurso que os EUA apresentam 
relativa vulnerabilidade neste novo contexto geopolítico. O departamento de 
energia estadunidense de energia, tomando por princípio que a América Latina 
é parte de sua esfera de influência declarou e 2011 que “o lítio da Bolívia não se 
considera sua reserva econômica, mas um recurso subeconômico, com 
potencial para converter-se em econômico no futuro (US Department of Energy, 
2011). 
 De modo que os acordos bilaterais firmados entre Bolivia e China são vistos 
como ameaças a geopolítica estadunidense na região de modo que segundo 
muitos autores esses interesses juntamente com o alinhamento de parte da elite 
econômica tradicionalmente aliada aos EUA, por meio de think thanks 
elaborados com a ajuda de um cenário regional de guinada à direita são os 
verdadeiros interesses e causas do golpe de Estado aplicado na Bolívia em 
2019. Ou ainda: 
“O golpe de Estado, desferido com apoio do governo dos Estados Unidos e 
de outros países latino-americanos com governos conservadores, atingiu 
diretamente a autonomia da Bolívia e dasua população, especialmente a parcela 
indígena, e foi realizado por meio do uso de alto grau de repressão e de ataque 
ao caráter plurinacional do Estado, com o consentimento da grande imprensa e 
de organismos internacionais, com destaque para a Organização dos Estados 
Americanos Por trás do golpe está o interesse das companhias transnacionais 
nos recursos energéticos1, uma vez que o governo boliviano estima que o país 
concentre 70% das reservas mundiais de lítio” (Romano & lajtman, 2020, p.17). 
Sabe-se que as eleições aplicadas durante o governo provisório 
representaram na vitória do MAS e na decisão popular de continuidade do 
modelo de desenvolvimento e sua expansão. Mas o caso do heartland da 
América do Sul em meio a um cenário de aumento da importância dos seus 
recursos estratégicos representa uma perspectiva de maior instabilidade e 
tensões na região pelo interesse diverso dos diferentes agentes do Sistema 
Internacional, o que implica na necessidade de se construir uma estratégia que 
contemple a busca por uma ruptura dos ciclos anteriores que a história e a 
dialética evidenciam, e converter a oportunidade de projetar a região em um novo 
eixo geopolítico em ascensão e construir um desenvolvimento consolidado e 
soberano. 
O modelo de desenvolvimento boliviano, embora longe de ser incontestável, 
seu sentido de desenvolvimento comunitário e cooperativo ainda é muito 
limitado, com uma tendência de centralização estatal ainda maior nos próximos 
anos e os perigos de percurso que se apresentam quando o Estado chega a 
certos níveis de centralização. No entanto, a existência de um modelo 
alternativo, regional, e de sucesso emerge como elemento de resistência e 
possibilidade que pode ser desenvolvido se houver um terreno fértil no campo 
político interno dos países da Região. 
 
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