Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
JORAL DE APRENDIZAGEM /REFLEXÃO SOBRE UMA SITUAÇÃO DE CUIDADOS DESCRIÇÃO A consulta de enfermagem decorria no gabinete 1 com a enfª I.L. e eu, num ambiente calmo e tranquilo, quando se ouve gritos vindos da sala de espera entre uma senhora e um senhor, respetivamente mãe e filho e ambos seguidos na Equipa de Saúde Mental de Oeiras. Rapidamente tratou-se de saber o que se passava, mas naquele momento, a Senhora J. foi para a consulta médica e acabou por se dissipar o alarido. Após esta, a médica informou-nos da possibilidade de violência doméstica, pois a utente referiu dois episódios, não apresentava marcas notórias, apenas um discreto edema na hemiface direita. A utente também referiu que o filho começara a consumir sustâncias ilícitas, e a equipa pensou que poderia despoletar a violência. Por outro lado, o filho, o Senhor P., referia que era ele que tratava da mãe, que nunca lhe bateu e que agora ela tinha decidido “dizer a toda a gente que lhe bato.” (sic). Era óbvio que esta situação teria de ser resolvida, mas não no meio da sala de espera. Pedimos para aguardar 5 minutos de forma a terminar outra consulta. Separadamente, cada um foi chamado ao gabinete de enfermagem. A D. J. apresentou-nos os dois episódios que ela referiu anteriormente, como violência doméstica. Por a equipa saber que a mãe comunica de forma hostil com o filho, também foi aconselhado a falar com mais calma, não com o intuito de a culpabilizar por esta violência, mas ser menos um foco que pudesse catapultar a agressão. Prontamente contrapôs afirmando que isso não era o problema, mas sim o consumo de drogas pelo filho. Seguiu-se a entrevista exploratória pelo filho, manteve o mesmo discurso anterior – sempre foi ele a cuidar da mãe, nunca lhe bateu e só houve uma situação em que a mãe não queria sair da casa-de-banho e ele levantou-a, contrariando-a. De seguida foi confrontado se recomeçou ou não os consumos e se estaria disposto a fazer um testo de urina para despiste, na próxima consulta. Inicialmente disse que não, mas depois questiona se o teste é só para canabinóides ou se é também para heroína e cocaína, mas mesmo assim disse que faria o teste. Foram feitos alguns ensinos para respeitar os tempos e as necessidades da mãe. No final, optou-se por estarem os dois novamente, pois permanecia a dúvida se era ou não verdade a existência de violência doméstica naquela família. A mãe, ao entrar no gabinete, mostra que o filho lhe dobrou o cartão SIM do telemóvel para não fazer chamadas, o filho nega que o tenha feito, mas ao mesmo tempo faz um sorriso discreto. Foi confrontado com esta situação e foi exigido que arranjasse um novo cartão para a mãe e a importância de ela fazer chamadas pelo telemóvel dela e não através do dele. Mais tarde nesse dia, já com o dia a terminar, recebemos um telefonema da assistente social a dizer-nos que tentou despistar esse problema e com a informação extra que no centro de dia que a mãe frequenta, esta em frente de todos, grita com o filho e é agressiva verbalmente com ele. PENSAMENTOS E SENTIMENTOS Admito que não gosto de gritos… por norma quando há gritos, há pessoas que não querem escutar e muito focadas na sua ideia, criando uma barreira para o estabelecimento de uma relação de ajuda. Quando a consulta foi interrompida, era óbvio que estava algo a acontecer, mas como a enfermeira da equipa já tem uma relação estabelecida com ambos os utentes, os ânimos ficaram rapidamente mais calmos e, foi possível perceber minimamente o que se passava – violência doméstica. Nunca presenciei uma situação de violência doméstica, nem enquanto pessoa, nem como enfermeira. É um tópico extremamente delicado. Regressei à consulta com muitas dúvidas: o que tinha realmente acontecido? Será que tudo isto é verdade? Se for, o que fazer nestas situações? Como não perder a relação já estabelecida com a mãe e o filho? A situação era sensível. Se fosse verdade e não acreditasse na mãe, quebraria uma relação já estabelecida, mas se não fosse dado espaço para o filho falar também essa relação seria quebrada. Está tudo nas nossas mãos e devido à fragilidade, qualquer ação terá uma repercussão imediata. Começámos por receber a D. J. no gabinete, descreveu-nos com alguns pormenores os dois atos de violência que foi sujeita, observámos a pele e sem sinais visíveis, apenas o discreto edema na face. A história pareceu-me exagerada nalguns aspetos, o que me levou a duvidar da veracidade da história. Confesso que naquele momento pensei se seria suposto sequer por em causa quando se trata de um caso de violência doméstica? Deveria à partida assumir como verdadeiro e reportar? É incorreto duvidar? Chegou a hora de ouvir a outra versão, sempre negando que o tinha feito e afirmando que sempre cuidara da mãe – o que é verídico. Sendo assim, porquê agora a violência? O Sr.P. também refere que a mãe, para ele, tem um contacto hostil. Mas será isto o suficiente para agredir fisicamente? Surge a questão do consumo de drogas, o utente nega-o, mas depois faz duas questões que me fazem voltar a ter incertezas. Alguém que não consome iria perguntar se o teste de urina também dá para heroína ou cocaína? Transpareceu que teria reiniciado os consumos, como a sua mãe reportara. A dúvida pairava, por isso a meu ver a vigilância, apertada, seria o passo mais apropriado, porém continuava insegura… É uma enorme responsabilidade e são assuntos muito sensíveis. Nestas situações novas em que me confronto com a vida real, tenho tendência a ser negativa, por isso só imaginava no dia seguinte saber-se que a D. J. fora vítima de um novo ato de violência, e eu tinha optado por vigiar. No fim, quando se colocou mãe e filho novamente na mesma sala, senti o ambiente hostil, quase como se uma nuvem negra tivesse entrado no gabinete. Atropelavam-se um ao outro enquanto falavam- a mãe com uma atitude de confrontação e o filho negando qualquer ato de violência. Mas eis que a mãe mostra o cartão SIM do telemóvel dobrado, o filho mostra-se algo surpreso, mas esboça um discreto sorriso, o que demonstra que ele sabia perfeitamente o que tinha feito. Neste momento, ponderei seriamente se ele tinha mentido em tudo o que disse anteriormente, mas a forma como a mãe tratava aquele filho… parecia tudo tão estranho e uma história mal contada. Senti que faltava ali qualquer coisa. A incerteza permanecia no ar, mas foi dito ao filho para arranjar um novo cartão SIM naquele dia e que na sua próxima consulta iria realizar os testes para despiste de drogas. E, juntos foram embora. Apesar de saber que tomámos a melhor solução para aquele caso tinha “o coração nas mãos”. No final desse dia, o telefonema foi uma lufada de ar fresco, veio confirmar que a mãe também tinha um contacto hostil com o filho. Não que isso justificasse o ato de violência física, mas preencheu algumas lacunas na história. Mantivemos a vigilância, e, desta vez, um pouco mais confiante. AVALIAÇÃO Tive particular interesse nesta situação porque, para além da violência doméstica, envolvia uma relação terapêutica já estabelecida entre dois utentes na equipa. É nos dito que como enfermeiros por vezes temos de ser advogados dos nossos utentes. Como fazê-lo neste momento? Por um lado, questiono o que será viver nestas condições de violência? O que é viver e não saber se seremos um saco de boxe para o outro? O que é viver com medo e insegurança constantes? O que leva o outro a usar a violência? Por outro, como é que exploro a situação sem pôr em causa a confiança que cada um já desenvolveu com o enfermeiro? Foi a primeira vez que presenciei uma situação de possível violência, mas o que posso fazer exatamente? Se estou com dúvidas, devo na mesma apresentar queixa? Mas a mãe contou sempre tudo aos profissionais, porque não foi logo à polícia? Nunca demonstrou insegurança enquantonos contou, portanto terá sido para proteção do filho? Ou terá exagerado nalguns aspetos? Senti que era importante este assunto porque refleti se as situações de violência serão sempre pouco claras ou óbvias. Sempre pensei que se observava os sinais de violência e reportava-se, mas e, por exemplo, a violência psicológica? Como se resolve em tribunal? Não há sinais visíveis… Apercebi-me que será sempre uma questão delicada. Concomitantemente, estava presente perante duas pessoas, ambas acompanhadas pela equipa, portanto como resolver esta situação sem quebrar a relação terapêutica construída ao longo dos anos? Mas também como iríamos perceber o que estava realmente a acontecer? Haverá uma fórmula ideal? Seria tudo mais fácil se tudo fosse uma equação de 2º grau e encontrávamos a solução utilizando a fórmula resolvente. Felizmente, para mim, não o acontece. Cuidamos pessoas únicas e cada enfermeiro tem a sua forma pessoal de estabelecer a relação, porém deverá haver guias orientadoras para estas situações, ou não? Apercebi-me que terei de ter essas linhas orientadoras e consoante a pessoa que estiver à minha frente terei de balancear o mais adequado. Será quase denominado “jogo de cintura”. Tenho-me apercebido que certas situações têm que ser resolvidas no aqui e agora, não posso ir a casa refletir no assunto, mas a reflexão terá de ser feita no momento e num curto espaço de tempo. Penso que a decisão que tomámos e todas as nossas ações foram as mais corretas e, felizmente tivemos 5 minutos para refletir e planear a nossa ação, Mas e quando mais tarde a decisão não é assim tão acertada? Quão responsáveis somos se tudo correr mal? Resumidamente, consciencializei as repercussões que as nossas intervenções têm nestas situações delicadas e como é importante refletir para estarmos a melhoria contínua, pois nunca sabemos o dia de amanhã. ANÁLISE “O problema da violência intrafamiliar levanta questões complexas aos técnicos, até pela ressonância que a mesma tem em cada um de nós” diz-nos Alarcão (2002). Apercebo-me agora que nesta situação não senti qualquer fenómeno de transferência e contratransferência, apesar de me ser repugnante o ato de violência, principalmente desde que descobri, uns meses depois de a minha avó falecer, que numa altura da sua vida, ela foi a vítima, neste caso estava neutra. Não consegui sentir o ódio que sinto, senti-me num papel de investigadora porque toda a situação era uma confusão. Se assim se comprovasse, claramente que reportaria. Perante os atos de violência e até nas situações que nos parecem mais ligeiras, estas devem ser consideradas igualmente dramáticas e é importante intervir no sentido de ajudar a família a ultrapassar e de ajudar cada um dos membros da família a resolver os seus problemas. (Alarcão, 2002) E foi, de facto o que se concretizou, reunimos com cada um individualmente e posteriormente com os dois elementos da família, contudo não se conseguiu resolver tudo. Primeiramente usou-se a técnica exploratória, em que segundo Chalifour (2008) é importante a forma como se questiona para as perguntas não serem percebidas como ameaçadoras e gerar desconfiança com o próximo. Mas era necessário o interveniente ter um papel muito mais ativo junto do cliente pois tratava-se de uma situação urgente (Chalifour, 2008). Era emergente perceber o que tinha acontecido e ouvi-lo de ambas as partes. Estávamos perante uma possível situação de maus tratos a idosos, que engloba “todas as ações e omissões de qualquer membro da família que provoquem um dano físico ou psicológico ao idoso: agressões físicas, desrespeito, descuido na alimentação, habitação ou cuidados médicos, abuso verbal, emocional e financeiro, falta de atenção, ameaças, (…)” (Alarcão, 2002). Depois da fase exploratória com cada um dos utentes e a utilização da confrontação com o filho era necessária uma entrevista familiar. Sequeira (2016) elucida-nos acerca dos principais objetivos deste tipo de entrevistas, nomeadamente: • “Avaliar o estilo de comunicação da família; • Identificar o problema principal da família; • Proporcionar oportunidades de comunicação; • Compreender a estrutura e a dinâmica da família; • Identificar níveis de stress, de tensão e de resiliência familiar; • Identificar a existência de uma eventual crise familiar e os fatores associados; • Ajudar a compreender as implicações da crise e as opções de intervenção; • Estimular a compreensão e a adoção de estratégias de coping efetivas; • Possibilitar a expressão de problemas, sentimentos e emoções; • Negociar um compromisso.” Apesar de pouco estruturada, tivemos em conta muitos dos objetivos mencionados acima, mas é um tipo de entrevista que não estou à vontade, pois cada elemento da família não deixa de ser um ser individual e manter a relação com cada um deles, com sentimentos, reações diferentes, é desafiante e assustador ao mesmo tempo. Sequeira (2016) acrescenta que “apesar de muitos problemas vivenciados no seio das famílias serem comuns, cada uma possui a sua individualidade e peculiaridades na forma de conhecer, sentir e reagir a situações esperadas ou inesperadas.” O que eu sinto? Cada vez mais dou valor à importância de nos conhecermos a nós e de termos ferramentas para lidar com determinadas situações que nunca serão iguais, podem ser similares, mas todos os dias somos confrontados com uma situação nova em que a solução não nos é dada por uma fórmula e cada um soluciona à sua maneira. CONCLUSÃO E PLANEAR A AÇÃO “Só sei que nada sei” uma frase famosa que corre o mundo, mas que neste dia teve todo o significado para mim. Estar neste local de estágio sou confrontada todos os dias com múltiplos problemas, situações caricatas, em 8 horas, totalmente diferente de um contexto de internamento. Apercebo-me da importância de estar em constante formação e melhorar enquanto enfermeira, a vida não é de todo um mar de rosas e quando acho que vi tudo, aparece-me algo novo. Neste caso, trata-se de um contexto de violência doméstica. Oiço falar muito nos media e até nas aulas, mas ver a acontecer à nossa frente e termos de agir naquele momento, é difícil. Difícil porque nunca sabemos se a nossa forma de agir foi a mais correta. Senti-me insegura nalgumas partes e noutras até me questiono porque reagi de certa forma. Mas aprendi que há sempre uma discreta insegurança, mas desde que utilize os meus conhecimentos da melhor forma que sei não me poderei julgar por isso. A situação, tal como referi até agora, era delicada. Acho que se agiu de uma maneira correta, não se colocou em causa a relação com cada um dos utentes, e também não foi menosprezado a história de violência, nem foi esquecido a dinâmica familiar daquela família até à data. Penso que talvez me sentisse menos insegura se já conhecesse a história de cada um, mas não dava para ir estudar e pôr tudo em stand by. Por outro lado, quantas vezes somos confrontados com situações, em que não somos detentores de toda a história pessoal e familiar, e temos de intervir? Estou mais alerta, pois nem tudo é óbvio e não há uma solução para tudo. Com a concretização desta reflexão, apercebi-me da minha lacuna com entrevistas familiares e fez-me querer saber mais sobre a sua preparação, e saber mais sobre comunicação pois num só espaço tentamos estabelecer uma relação de confiança com duas ou mais pessoas que são sere individuais, com os seus próprios gostos, os seus sentimentos, as suas preocupações e vivências que apesar de poderem ter aspetos em comum nunca são iguais. Da próxima vez que for confrontada com uma situação idêntica, acho que vou respirar fundo e consciencializar todas as “armas” de comunicação que detenho e atuar, isto é, ter segurança e certeza das minhas capacidades e não viver sempre com medo de falhar. Como é que ganho segurança? Trabalhandoa minha autoconfiança, consciencializando o meu percurso até à data e ver os pontos positivos que detenho e usá-los como trunfo no futuro. REFERÊNCIAS Alarcão, M., (2002). (Des)Equilíbrios Familiares. Coimbra: Quarteto Chalifour, J., (2008). A Intervenção Terapêutica- Volume 1. Lisboa: Lusodidacta. Sequeira, C., (2016). Comunicação Clínica. Lisboa: Lidel
Compartilhar