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A Representação da metafisica em Florbela Espanca

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A Representação da metafisica em Florbela Espanca
 Florbela Espanca, batizada inicialmente como Flor Bela Lobo, nome que herdara da mãe, Antónia Conceição Lobo, nasce de uma relação extraconjugal. O pai, João Maria Espanca, nega a paternidade de Flor Bela até o ano de 1949, quando um grupo de influentes de Vila-Viçosa sugere a João que oficialize a filiação de Flor. Quando Flor Bela decide publicar seus primeiros versos, João sugere que esta adote o sobrenome paternal (ainda sem reconhecê-la como filha), e assim conhecemos Flor Bela de Alma da Conceição Espanca. O primeiro poema publicado de Florbela saiu na revista Modas e Bordados em 22 de março de 1916.
 A alentejana mostrou-se durante toda vida como uma mulher autentica e de caráter firme. O tempo em que viveu, apesar de já bem desenvolvido em alguns aspectos, ainda era de dominação machista, o que punha as mulheres em um desagradável estado de submissão. Porém, Florbela sempre enfrentou esse preceito consciente das condições intelectuais e espirituais que possuía; intelectuais: a busca pelo conhecimento, ingressando na Universidade de Direito de Évora; espirituais: o fato de ser poetisa, saber que o era, e vangloriar-se de tal aspecto constantemente. 
 Contudo, todo este talento mistura-se com intensos desequilíbrios na vida amorosa, (amor inclusive, tema constante em toda sua obra) casando-se três vezes, e divorciando-se as três. A vida em, outras circunstâncias, também fora cruel com a poetisa, a rejeição do pai, que não a reconheceu como filha em vida, os constantes conflitos que obrigada a enfrentar por conta de atitudes revolucionárias, a doença mental provavelmente transmitida pela mãe e principalmente, a morte do irmão, Apeles Espanca, contribuíram para que a autora não conseguisse tranquilidade enquanto esteve viva.
 Tamanhas oscilações emocionais resultaram no derradeiro ato de Florbela Espanca; ela suicida-se no dia do próprio aniversário em 8 de dezembro de 1930, quando completaria 36 anos. Esta grande mulher deixou como legado alguns livros editados em vida e outros postumamente. Livro de Mágoas (1919); Livro de Sóror Saudade (1923); Charneca em Flor (1931 – póstumo); Juvenília (1931 – póstumo); As Mascaras do Destino, livro de contos (1931 – póstumo); O Dominó Preto (1982 – póstumo). (fonte: Coleção A Obra Prima de Cada Autor; Trocando Olhares; Editora Martin Claret)
 Existe muita controvérsia sobre em qual movimento literário enquadrar Florbela Espanca. Alguns teóricos acreditam que toda a obra da autora possui características românticas, e ainda alguns traços que lembram obras trovadorescas, mais especificamente as cantigas de amigo, como se lê em Triste Passeio.
 Vou pela estrada, sozinha.
 Não me acompanha ninguém.
 Num atalho, em voz mansinha:
 “Como está ele? Está bem?”
 É a toutinegra curiosa;
 Há em mim um doce enleio...
 Nisto pergunta uma rosa:
 “Então ele? Inda não veio?”
 Sinto-me triste, doente...
 E nem me deixam esquecê-lo!...
 Nisto o Sol impertinente:
 “Sou um fio do seu cabelo...”
 Ainda bem. É noitinha.
 Enfim já posso pensar!
 Ai, já me deixam sozinha!
 De repente, oiço o luar:
 “Que imensa mágoa me invade,
 Que dor o meu peito sente!
 Tenho uma enorme saudade
 De ver o teu doce ausente”
(Espanca, Florbela; Trocando Olhares; página 53) 
Quando Florbela inicia a carreira literária, em Portugal, acontece a revolução modernista; ai uma contradição da autora, que tão a frente do próprio tempo, não se interessou profundamente pelo que ocorria fora do campo individual dela, entretanto não se pode condena-la como totalmente desinteressada dos fatos e acontecimentos da própria época, já que colabora com contos e poemas na revista Portugal Feminino, revista partidária do movimento feminista. Nós, para termos didáticos, e levando em consideração algumas características fundamentais da obra de Flor Bela, trataremos de enquadra-la como simbolista justamente por participar de alguns ideários do movimento, como por exemplo o desinteresse pela sociedade e a negação dos valores desta. Mas o fato é que: Florbela Espanca não pertenceu a movimento literário algum, salvo pelo interesse particular que ela possuía pelos decassílabos; ela buscou na originalidade e em um universo egocêntrico os ensinamentos para efetuar a poesia em que acreditava sem recorrer a modismo ou a escolas especificas. O que se evidência no Diário do último ano: “Que me importa a estima dos outros se eu tenho as minha? Que me importa a mediocridade do mundo se Eu sou Eu? Que importa o desalento da vida se eu tenho a morte? E os meus versos e a minha alma, e meus sonhos, e os montes, e as rosas, e canção dos sapos nas ervas úmidas, e a minha charneca alentejana, e os olivais vestidos de Gata Borralheira, e o assombro dos crepúsculos, e o murmúrio das noites... então isso não é nada? Napoleão de saias, que impérios desejas? Que mundos queres conquistar? Estás, decididamente, atacada de delírios de grandezas!...” (Coleção A Obra Prima de Cada Autor; Trocando olhares; Editora Martin Claret - Renata Soares Junqueira; Florbela Espanca – Uma Estética da Teatralidade; Editora da Unesp) 
 Em toda obra florbeliana, a figura do amor, ora submisso, ora sensual é muito destacada, portanto o eu lírico da poetisa foca-se em expressar as desilusões que o amante provoca ao nega-la, ou desdenha-la subjugando os sentimos dedicado ao objeto que ela tanto ama; ou este mesmo eu lírico extravasa todas as fronteira permitidas a uma mulher e se entrega a um amor libertino capaz de amar a quantos puder sem sentir remorso algum em agir assim: “Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar: Aqui... Além.../Mais Este e Aquele, o Outro e toda gente.../Amar! Amar! E não amar ninguém! Quando ela escapa desta característica, é no campo, no Alentejo que ela busca inspiração para o poema, evidenciando traços da infância e o gosto pelo lugar onde fora criada: 
 O Meu Alentejo
 Meio-dia. O sol a prumo cai ardente, 
 Doirando tudo... Ondeiam nos trigais
 D’oiro fulvo, de leve... docemente...
 As papoilas sangrentas, sensuais...
 Andam asas no ar; e raparigas,
 Flores desabrochadas em canteiros,
 Mostram, por entre o oiro das espigas, 
 Os perfis delicados e trigueiros...
 Tudo é tranquilo, e casto, e sonhador...
 Olhando esta paisagem que é uma tela 
 De Deus, eu penso então: onde há pintor, 
 Onde há artista de saber profundo,
 Que possa imaginar coisa mais bela 
 Mais delicada e linda neste mundo?!
(Espanca, Florbela; Trocando Olhares; página 71)
 Portugal também aparece em condição de destaque na poesia da autora: “Meu Portugal querido, minha terra/ De risos e quimeras e canções/ tens dentro de ti, esse teu peito encerra/ Tudo que faz bater os corações!” Contudo,questões existências, comuns ao homem do século XX, são raras nas coletâneas organizadas pela poetisa, e por isso difíceis de serem encontradas em apenas um livro. Todavia, quando Florbela se dedica a falar sobre um eu perdido, sem afeição com a própria existência, desconhecendo-a às vezes por completo, ela expõe um lirismo potente e audacioso, nunca visto em poetas comuns. A metafísica não fora para Florbela algo interessante, visto pela pouca representatividade do tema nos poemas que ela escreve e isso se torna ainda mais evidente dado pela apatia de alguns estudiosos de Florbela em mencionar o acontecimento deste tema na obra da poetisa. Os textos que serão apresentados a seguir, não foram retirados de um único livro, mas constituem a mesma ideia: os conflitos que atormentam o homem, impedindo-lhe de conciliar-se com as mudanças exteriores e as características fundamentais que sedimentam a própria identidade humana, a ausência de um conforto, de um estado de espirito equilibrado e consciente, a crítica a um modelo ultrapasso e ineficaz que consegue apenas deturpar o que pode ser extraído de melhor da espécie para a espécie. Enfim, um desconforto que parte do eu para o mundo que o cerca e retorna para o eu obrigando-o a crer ser ele é o problema ou se está nele a incapacidade de adaptação, levando-o a descrer do mundo e de si. 
 Não Ser
Quem me dera voltar à inocência 
Das coisas brutas, sãs, inanimadas, 
Despir o vão orgulho, a incoerência: 
- Mantos rotos de estátuas mutiladas! 
Ah! arrancar às carnes laceradas 
Seu mísero segredo de consciência! 
Ah! poder ser apenas florescência 
De astros em puras noites deslumbradas! 
Ser nostálgico choupo ao entardecer, 
De ramos graves, plácidos, absortos 
Na mágica tarefa de viver! 
Ser haste, seiva, ramaria inquieta, 
Erguer ao sol o coração dos mortos 
Na urna de oiro duma flor aberta!... 
Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"
A negação do que se é ou a insatisfação em que o estado das coisas se encontra levando o eu lírico a abdicar a própria natureza, o “amadurecimento” e os vícios que este amadurecer enseja aparecem na primeira estrofe: “Quem me dera voltar à inocência/ Das coisas brutas, sãs, inanimadas,/ Despir o vão orgulho, a incoerência:” ela se mata para renascer à vontade e continuar “florescendo” até atingir o êxtase: Ah! “arrancar às carnes laceradas/ Seu mísero segredo de consciência!/ Ah! poder ser apenas florescência/ De astros em puras noites deslumbradas!” E assim encontra uma maneira leve de se viver: “Ser nostálgico choupo ao entardecer,.../ Na mágica tarefa de viver!” Não há matéria nesta vontade há apenas uma ideia transcendente de existir, um mundo mágico sem as desagradáveis incoerências da consciência física. 
 Eu
Eu sou a que no mundo anda perdida, 
Eu sou a que na vida não tem norte, 
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte 
Sou a crucificada ... a dolorida ... 
Sombra de névoa ténue e esvaecida, 
E que o destino amargo, triste e forte, 
Impele brutalmente para a morte! 
Alma de luto sempre incompreendida! ... 
Sou aquela que passa e ninguém vê ... 
Sou a que chamam triste sem o ser ... 
Sou a que chora sem saber porquê ... 
Sou talvez a visão que Alguém sonhou, 
Alguém que veio ao mundo pra me ver 
E que nunca na vida me encontrou! 
Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"
Florbela apresenta um lirismo comovido e descrente, ela nos da a certeza do ser, porém não sabe definir há que veio esta existência ou o que ela é: “Eu sou a que no mundo anda perdida,/ Eu sou a que na vida não tem norte,” portanto resta apenas a ilusão, conscientizar-se, se possível, da incompatibilidade com a realidade e entregar-se ao desejo, ao sonho, ao irreal: “Sou a irmã do Sonho.../ Sombra de névoa ténue e esvaecida,”. Contudo, está certeza (ou incerteza) traz consigo dor e sofrimento: “Sou a crucificada ... a dolorida ...”, capaz mesmo de fazer com se deseje o fim da matéria: “E que o destino amargo, triste e forte, /Impele brutalmente para a morte!”, o que confirma a certeza de uma insegurança espiritual, alguém que não se sabe, que não está afeiçoado a si mesmo e que desconhece os porquês da própria existência: “Sou aquela que passa e ninguém vê .../ Sou a que chamam triste sem o ser ... /Sou a que chora sem saber porquê ... /Sou talvez a visão que Alguém sonhou,/ Alguém que veio ao mundo pra me ver/ E que nunca na vida me encontrou!” 
Florbela Espanca deixa de lado, por um instante, a fonte maior de inspiração para a maioria dos poemas que escreveu: o amor, e vai ao encontro de questões fundamentais para o homem de todos os tempos: o que sou eu? Eu me conformo com o que tenho, com o que digo, penso e apresento, tenho compatibilidade com esta imagem, este corpo, esta existência? É o humano, aplicando-se ao autoconhecimento e sofrendo por ver-se mínimo, incoerente, incompreendido. A sensibilidade através dos sentidos deixa de ser unanime para a pesquisa do ser, portanto o mundo das ideias, ou a intuição em contato com o espirito, o principio, passa a ser a ferramenta que coloca o eu lírico de Flor Bela a antes negar tudo brutalmente, como fosse um anarquista, avesso a todos os modelos e estereótipos, não sendo o que se mede a medidas únicas, perfiladas em comodismos e satisfações patéticas e falsas. E depois leva-nos a perceber a duvida que se encerra sobre ela mesma, sabendo a existência de um “eu” ou uma originalidade, que, todavia, desencontra-se de si mesma, e que no fundo não sabe definitivamente o que é mesmo depois de ter negado tudo quanto o levaram a aprender que poderia ser chamado de “eu”. Logo existe o conflito, um impasse, que a mente, a consciência por si só não é capaz de resolver, e por isso há certa aproximação com o inconsciente, a fantasia, espaço onde a totalidade pode devanear a custas de saber que nunca se encontrou na vida.

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