Buscar

Santaella - Temas e dilemas do pós-digital - A voz da política

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 224 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 224 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 224 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

ÍNDICE
Capa
Rosto
Introdução
1. Michel Foucault - o nascimento da biopolítica
A contemporaneidade de Foucault
As heterotopias do poder
Do homem-corpo ao homem-vivo
O biopoder e o capitalismo
Aplicação a si
2. Giorgio Agamben - a vida como motivo-chave
A trajetória da obra
Vida nua e produção de poder
Soberania e estado de exceção
Direito e violência
Por uma nova política
3. Antonio Negri - a potência emancipatória da multidão
Economia informacional
O conceito figurativo de Império
A multidão como contra-Império
Capitalismo cognitivo
Repensar a política
Poder constituinte e poder destituinte
4. A política nas ruas - movimentos sociais já não são os mesmos
As eclosões e os diagnósticos
Que democracia se quer?
A potência das redes digitais
A nova dinâmica dos movimentos sociais
Multidões à luz da biomídia
5. Pós-digital: por quê? - a cultura digital na berlinda
Breve histórico do prefixo “pós”
Pós-modernidade
Pós-humano
A onda do pós-virtual
O que é o pós-digital
Transmediale 2014-2015
O que falta aos diagnósticos
6. Patologias psíquicas do pós-digital - o que as redes têm a ver com isso
Vida e obra
Do espetáculo à transparência
A psicopolítica no enxame
Eros em agonia
Bactéria, vírus e neurônio
Hiperculturalidade
Vita contemplativa
Han no contraponto com Agamben
Acertando as contas
7. A ecologia expandida das mídias - por uma eco e cosmopolítica
Por uma nova ontoepistemologia
Um canteiro de trabalho
Da política das mídias à eco e cosmopolítica
Hesitações ontológicas
8. Transmutações estéticas da política - a eficácia do sensível
Prismas do biopoder
Vida que te quero viva
Uma estética saturada de ética
Vozes da alma lúdica
9. A coevolução fluida entre humanos e tecnologias - brechas de luz na
escuridão
Um artista-pensador visionário
O poder imantador do conceito de moist
O Big B.A.N.G.
Design urbano e arquitetura
Cibercepção e o self distribuído
A arte e o papel do artista
10. A estética, a ética e a política da existência - a construção da vida como
arte
A arte da existência
Vida como forma de vida
A tríade dos ideais
O admirável como ideal estético
11. Temporalidades da memória - questão do arquivo
Arqueologia como método de construção em Freud
Arqueologia e monadologia em Walter Benjamin
Arqueologia como método de investigação em Michel Foucault
Formações discursivas
O arquivo e a arqueologia
Mal de arquivo em Derrida
12. O boom e a efemeridade da memória - retorno ao arquivo
Rotas de reflexão
Dilemas da impermanência
Pontos de fuga
13. Dilemas da estética pós-digital - diagnóstico da impermanência
Indecisões sobre a nomenclatura
A preservação em risco
Driblar o efêmero
14. Arte digital e/ou arte contemporânea - inclusões e cesuras
Sob o signo do pluralismo
A radicalização do hibridismo nas artes
Cartografia das artes digitais
Ritmos em descompasso
15. História da arte - multiplicidades e heterotopias
Os outros espaços de Foucault
Heterotopia e anacronismo/memória
Heterotopia e sintoma/fantasma
Heterotopia e montagem/dialética
Bibliografia
Coleção
Ficha Catalográfica
Notas
Meus agradecimentos ao CNPq pela bolsa
de produtividade em pesquisa, de que
resultou este livro como uma das partes
do projeto desenvolvido e �nalizado
com este trabalho. Agradeço também à
Fapesp pelo estágio de pesquisa que me
permitiu, entre outras iniciativas,
assistir ao Transmediale-2015.
P
INTRODUÇÃO
O conhecimento leva dentro de si uma máquina que se mantém em
funcionamento por meio do desejo.
(Deleuze e Guattari)
ensar a tecnologia, nesta era do pós-digital, signi�ca implicá-la nas
táticas e estratégias do poder. Mas, para evitar a trajetória fácil das
doxas, é preciso adentrar territórios ontológicos, epistemológicos,
metodológicos e interpretativos plurais, abertos e inspiradores. É preciso
questionar o que nos é dado como verdade e re�etir sobre as condições atuais de
modo a conceber o horizonte vital que hoje se apresenta. Buscar caminhos que
passem longe do saber esterilizado que não pensa sobre si mesmo e não se
autocritica. Há boas companhias para isso nas rotas que nos foram e estão sendo
apresentadas por pensadores que passaram e têm passado a vida na detecção e
denúncia dos �lamentos arbitrários do poder não facilmente entrevistos devido
à perversa dissimulação que os envolve (capítulos 1, 2 e 3).
Não se pode escapar de tal tarefa, especialmente em sociedades em pleno
transe de con�itos irresolvíveis, muitas vezes mergulhados na crueza e crueldade
de embates sangrentos. Isso nos impele a um comprometimento inescapável
com o ethos de um pensamento crítico tanto quanto possível autônomo e liberto
das modas que se deixam levar pelas marolas do boca a boca. Militar em prol do
ethos de uma crítica que não fuja pela tangente preguiçosa de crenças acabadas e
enfrente o esforço exploratório da densidade complexa das condições atuais. Isso
implica desenvolver um projeto intelectual agudamente sensível ao intolerável
das injustiças que nos rodeiam. Ademais, não deixar de expor publicamente,
com clareza, mesmo que diáfana, os resultados alcançados pelo esforço de
compreender. Nas palavras de Ortega y Gasset, “a clareza é a cortesia do
�lósofo”. É uma gentileza com o leitor, mas, certamente, sem escorregar em
simpli�cações que desrespeitam a sua inteligência.
Como nos lembram Aguilera Portales e González Cruz (2011, p. 10), a teoria
crítica pode ser uma práxis em si mesma, a teoria como uma maneira de
potencializar a sensibilidade e a re�exão. “Há que deixar de menosprezar a
importância desse modo de pensar as coisas, pois ele nos encaminha e torna
claras situações, acontecimentos, circunstâncias e realidades que a prática por si
mesma, como um pragmatismo super�cial, não pode explicar.” O objetivo
maior daqueles cujos projetos intelectuais estão indissoluvelmente ligados à
formação educacional e cientí�ca dos mais jovens é torná-los pensadores livres,
capazes de detectar as ortodoxias e os catecismos disfarçados de conhecimento
que não cessam de rondar e tomar assento nos ambientes que frequentamos.
“Educar um cidadão é cultivá-lo, ensinar-lhe a pensar e raciocinar por si mesmo,
libertá-lo da tirania dos costumes, convenções e preconceitos, mostrar-lhe que
vive em um mundo hipercomplexo e ajudá-lo a imaginar as visões da realidade
do outro, sobretudo dos mais desfavorecidos, os que não têm voz” (Aguilera
Portales, 2008, p. 36).
Que a vida teorética seja impassível é a ilusão de todo pregador de um
pragmatismo super�cial. Para evitar essa super�cialidade, torna-se necessário
resgatar a ontologia do pensamento. O ato de pensar, no legítimo sentido que
deveria ter, não é diálogo silencioso consigo mesmo, mas é, sim, pensamento
que, por estar exposto aos ventos cáusticos do real, realiza a práxis do pensar.
Uma práxis que se manifesta na exposição pública do pensamento. Palavras
ditas e escritas são partes materiais da realidade, dotadas do poder brando de
agir sobre o mundo psíquico e social nos efeitos que produz. Sobretudo, há que
levar o pensamento ao teste do tribunal da experiência, como prescreve o
pragma ticismo de Charles Sanders Peirce na sua atração instintiva pelas coisas
vivas.
Nos livros anteriores que publiquei pela editora Paulus [1], tratei de seguir
pari passu e penetrar fundo na busca de compreensão das aceleradas
transformações técnicas, sociais, educacionais e psíquicas introduzidas pela
revolução digital. O mundo digital cobra de quem se põe a pensá-lo que esse
pensamento esteja mergulhado na prática, na vivência e participação naquilo
que esse mundo, que há pouco tempo era chamado de virtual (capítulo 5), tem
a oferecer, ou seja, habitá-lo, estar dentro dele com a intimidade de um
morador. O ser humano está ganhando muito com a horizontalidade
participativa que vem minando as velhas hierarquias comunicacionais. “O
desenvolvimento da telefonia celular e dos computadores portáteis, que
desamarra de forma ainda mais radical os pontos de comunicação da rede,
intensi�cou os processos de desterritorialização.” Por não ter centro e cada
pedaço poder funcionarde modo relativamente autônomo, a rede continua a
operar mesmo com parte dela destruída. “Como nenhum ponto da rede é
necessário para que os outros pontos se comuniquem, é difícil para a Internet
regulamentar ou proibir a comunicação entre eles.” Rizoma é o nome que,
segundo Deleuze e Guattari, pode-se dar a esse modelo democrático (Hardt e
Negri, 2001, p. 320). Nenhuma crítica pode �car cega a essa dimensão da
realidade digital e da penetração de que ela goza na vida dos cidadãos,
especialmente dos jovens.
Entretanto, quanto mais avançamos nas tramas das redes, mais nos damos
conta de que nelas �cam expostos, como nunca antes, todos os variados graus
intermediários e, sobretudo, os extremos daquilo que a humanidade tem de
melhor e o que ela tem de pior. Infelizmente, a bondade tem limites, ao passo
que a bestialidade bruta ou tola é ilimitada. Entre esses dois extremos
apresentam-se variadas facetas, algumas das quais este livro visou enfrentar.
Entre elas, a principal foi a de dar voz à política. Deixá-la falar como meio de
atravessamento das densas sombras da contemporaneidade. Uma cruzada tanto
quanto possível isenta das paixões ideológicas unidimensionais. Há facetas
mergulhadas na escuridão da noite digital (capítulo 2). Outras, mais solares,
trazem à cena a voz do artista (capítulo 9), aquele cuja batalha está sempre
voltada para o lado de Eros (uma ideia que me acompanha e que já deixei
expressa em muitos dos meus escritos). Mesmo quando atravessam as trevas da
indignação, os artistas, aqueles que transmutam esteticamente as vozes da
política, carregam tochas para iluminar os rumos que podem digni�car o
humano (capítulo 8). Outras facetas ainda são aquelas em que a re�exão busca
enfrentar os dilemas de que, sob o título de pós-digital, o contemporâneo está
recheado. Seguindo Agamben, é nas zonas sombrias que o digital melhor se
mostra. Mas, quando se mostra, abre nesgas de luz. É nesse lusco-fusco que os
capítulos deste livro buscaram se movimentar. São muitas as questões em aberto
para fustigar a re�exão. A contingência impõe-se, afastando o conforto e o fastio
de crenças seguras.
Em Heidegger, a linguagem é a morada do ser. Na continuidade dessa mesma
sabedoria, para Agamben “a casa da verdade é a linguagem”; portanto, dela o
�lósofo precisa cuidar. Mas, enquanto o �lósofo dela cuida, os artistas e poetas
com ela fazem experimentos ousados, pois não há como mudar pensamentos
cansados sem mudanças na própria materialidade da linguagem. Vem daí a
entrada da arte neste livro (capítulos 13 e 14). A agudeza do pensamento
político não pode prescindir da escuta e da atenção aos modos como a arte se
É
mostra. É desses entrelaçamentos que os �nos �os moleculares da realidade se
entretecem.
Hardt e Negri (ibidem, p. 323) lembram-nos que, em O que é a �loso�a,
Deleuze e Guattari (1992) argumentam que, “na era contemporânea, e no
contexto da produção comunicativa e interativa, a construção de conceitos não é
apenas uma operação epistemológica, mas igualmente um projeto ontológico”.
Muito bem lembrado, pois construir conceitos é o que os autores chamam de
“nomes comuns”, que, na interpretação de Hardt e Negri, é uma atividade que
combina a inteligência e a ação da multidão, forçando-as a trabalhar juntas.
Construir conceitos signi�ca fazer existir, na realidade, um projeto que é uma
comunidade. Não existe outra forma de construir conceitos que não seja
trabalhando de forma comum. Essa comunalidade é, dos pontos de vista da
fenomenologia da produção, da epistemologia do conceito e da prática, um
projeto no qual a multidão está completamente emparelhada. Os bens comuns
são a encarnação, a produção e a liberação da multidão. Disse Rousseau que a
primeira pessoa que desejou um pedaço da natureza como sua possessão
exclusiva, e a transformou na forma transcendente da propriedade privada, foi
quem inventou o mal. O bem, ao contrário, é aquilo que é de todos.
O que é um livro, a�nal, quando sai da mão do autor e cai no mundo senão
um bem comum? Aí está, na brevidade desta introdução, o télos deste livro. Não
se termina um livro. Ele demanda sua continuidade em outros livros do próprio
autor, passados e futuros, assim como demanda seu confronto com vozes
concordantes e discordantes. O entendimento não vem apenas da simpatia, mas
também da discussão. Enquanto a simpatia fala aos afetos, a discussão fala ao
intelecto. Que, para o leitor, ambos se unam em uma melodia comum é a
expectativa e ambição deste livro. A�nal, o que em nós sente está pensando, já
dizia Fernando Pessoa.
A
1
MICHEL FOUCAULT
o nascimento da biopolítica
O direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o
direito de resgatar, além de todas as opressões ou alienações, aquilo que se é e
tudo o que se pode ser...
(Michel Foucault)
s monumentais obras de Michel Foucault, de Georgio Agamben e de
Antonio Negri ocupam longas prateleiras. Especializar-se em cada
uma delas é tarefa para muitos anos, dada até mesmo a herança que os
dois últimos receberam, entre outros, de Gilles Deleuze e, consequentemente,
também de Baruch Spinoza. Portanto, na sua confessada modéstia, este e os dois
próximos capítulos visam extrair apenas o que me parece essencial das vozes
políticas desses autores, especialmente porque elas voltarão a soar aqui e ali
neste livro. Sabe-se que há um sem-número de tradições teóricas e
interpretativas da política que se constituem em um cadinho de controvérsias.
Nesse emaranhado, Foucault, Agamben e Negri são as vozes de minha escolha,
não apenas porque estão gozando de grande prestígio (o que não acontece por
acaso, pois a inteligência humana tem seus �ltros para extrair a lucidez), mas
em razão de a�nidades que neles encontra o meu modo de pensar, o que não
signi�ca que, entre eles, não haja discordâncias, como é o caso de Agamben e
Negri. Mas a discordância tempera a nossa re�exão aumentando-lhe o sabor.
A CONTEMPORANEIDADE DE FOUCAULT
A obra de Foucault é sobejamente conhecida e o acesso à sua obra expandiu-se
com a publicação, em várias línguas e também em português, de aulas
ministradas no Collège de France (Foucault, 1999, 2001a, 2004, 2008, 2010,
2011a, 2014), escritos estes que nos ajudam a relê-lo com enormes ganhos de
compreensão. A contemporaneidade de Foucault é constatação indiscutível. Sua
atualidade é devida não apenas ao fato de que a publicação de suas aulas vem
enriquecendo o acesso ao seu pensamento, mas, sobretudo, porque uma obra
permanece viva nos herdeiros que a retomam. O valor de um pensador pode ser
medido pela qualidade e excelência daqueles que o repensam. Foucault tem, na
atualidade, nada menos do que Agamben, Negri, e também Georges Didi-
Huberman, entre outros, como seus sucessores. Isso, sem mencionarmos as
marcas que deixou no pensamento de Gilles Deleuze e nas sementes que ambos
– Foucault e Deleuze – plantaram na teoria ator-rede de Bruno Latour.
É bom lembrar que obras fundamentais de Foucault foram traduzidas no
Brasil já nos anos 1970, de modo que a penetração do seu pensamento em solo
brasileiro já se deu bastante cedo, antes que a onda pós-estruturalista tivesse
tomado conta das academias norte-americanas. O que aqui se segue é uma
apresentação seletiva dos conceitos de Foucault que possam nos levar a
compreender o pensamento de Agamben e de Negri, autores que serão tratados
nos dois próximos capítulos, ou seja, em que ponto de desenvolvimento ambos
encontraram a obra de Foucault e em que aspectos a levaram adiante.
A crescente valorização da obra de Foucault não é casual. Seu pensamento
funciona, antes de tudo, como um divisor de águas em relação às concepções de
poder que o precederam. Ademais, foi o criador dos conceitos de biopoder e
biopolítica, cuja relevância hoje se espraia por todas as áreas das humanidades e
ciências sociais. Foucault foi um estudioso e seguidor dos pensadores que foram
chamados por Ricouer de pensadores da suspeita: Marx, Freud e Nietzsche. O
primeiro instaurou a ação e o trabalho como fundadores da ontologiado
humano. O segundo minou a pretensão e o orgulho de sermos senhores de nossa
consciência. O terceiro fez desabar a secular metafísica transcendental,
colocando o humano no palco de sua humanidade (ver Foucault, 1975). Foi
nessas fontes que Foucault buscou arsenal para questionar desde as práticas mais
triviais do existir social até os mais complexos sistemas de pensamento. Criou
assim uma obra incategorizável que transita pela �loso�a, psicologia, medicina,
psiquiatria, sociologia, antropologia, linguística, semiologia, política e direito,
tudo isso engendrado por um método arqueológico do saber e genealógico do
poder, este de inspiração nietzschiana.
AS HETEROTOPIAS DO PODER
Em oposição a todas as concepções sobre o poder vigentes no seu tempo, que
postulavam uma classe social dominante como detentora exclusiva do poder,
para Foucault o poder não vem de um território localizável, alojado em um
núcleo central que tudo controla. Assim como o inconsciente que, ao contrário
do que se crê, não habita um local determinado, no fundo do poço da alma
também o poder é dinâmico, instável, investido de todas as partes do social, por
isso heterotópico. Portanto, as noções comumente aceitas de “classe dirigente” e
todos os verbos que a acompanham, tais como dominar, governar, controlar,
manipular etc., requerem um exame cuidadoso para se saber
até onde se exerce o poder, quais etapas e até quais instâncias frequentemente ínfimas,
de hierarquia, de controle, de vigilância, de proibições, de constrangimentos. Por toda a
parte onde existe o poder, o poder exerce-se. Ninguém propriamente dito é titular do
poder; e, no entanto, ele sempre se exerce em certa direção, com uns de um lado e
outros do outro; não se sabe quem o tem exatamente, mas se sabe quem não o tem.
(Foucault, 2001b, p. 1.181)
O poder em si não existe, existem relações de poder, muitas vezes difusas,
�utuantes, imprecisas, que, nas relações humanas, quaisquer que sejam,
amorosas, institucionais ou econômicas, atuam em diversos níveis, sob
diferentes formas, de maneira móvel, sutil e múltipla (ibidem, p. 1.538).
Levando adiante seus mestres da suspeita, Foucault colocou em dúvida e fez
balançar as práticas sociais, institucionais e jurídicas, entre outras, do que
decorre a sua ênfase no fato de que quaisquer projetos de ordem política,
jurídica, social e, até mesmo, cientí�ca estão imersos em um contexto, em um
espaço e tempo determinados. Isso os submete a práticas e exercícios especí�cos
do poder de que nem mesmo a produção do conhecimento está isenta devido
aos interesses e vontades de poder que também a circunscrevem.
A ciência produz discursos de saber por meio de “dispositivos de poder, de
disciplina, de vigilância e controle enquadrados no corpus institucional que,
por sua vez, justi�ca e reproduz suas práticas constantemente; a verdade surge
de uma posição privilegiada de poder-saber” (Aguilera Portales e González
Cruz, 2011, p. 4). Nas palavras de Foucault (1981, p. 137), “o que faz com que
o poder se sustente, que seja aceito, é simplesmente porque não pesa como
potência que diz não, mas que cala de fato, produz coisas, induz o prazer, forma
saber, produz discursos”, há que considerá-lo como uma rede produtiva que
passa através de todo o corpo social em vez de uma instância negativa que tem
por função reprimir.
Portanto, o poder não se restringe a reprimir e castigar, mas dele também
depende a produção de saber e de verdade. Por trás do conhecimento, também
estão em jogo lutas pelo poder, ou seja, relações de força das quais decorrem
efeitos de verdade, ou melhor, racionalizações dos discursos da verdade.
Se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da
exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se
apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é
porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e
também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. (Foucault, 1979,
p. 148)
Foi a atração que o estudo das tramas do poder, incluindo a episteme, atração
aliada à prática do método genealógico, que conduziu Foucault, no �nal de seu
trabalho sobre a vontade de saber, no tópico “direito de morte e poder sobre a
vida” ([1976] 1977c, pp. 127-149), a se dar conta daquilo que passou a
considerar como biopoder, retomado com mais ênfase no curso ministrado no
Collège de France, em 1975-1976, sobre “Il faut défandre la société”, traduzido
para o português por “Em defesa da sociedade” (1999).
Na segunda aula desse curso, datada de 14 de janeiro de 1976 (1999, pp. 21-
35), depois da explicitação das cinco precauções do seu método, Foucault
apresentou com clareza cristalina a passagem do poder soberano do feudalismo
para o nascimento, nos séculos XVII e XVIII, da biopolítica e do biopoder.
Surge aí uma nova mecânica do poder, incompatível com as relações de
soberania. Trata-se de uma mecânica que incide sobre os corpos e o que eles
fazem, o que permite extrair dos corpos tempo e trabalho em uma forma de
poder que “se exerce continuamente por vigilância” e que “pressupõe uma
trama cerrada de coerções materiais”, garantindo a coesão do corpo social e
de�nindo “uma nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao
mesmo tempo fazer que cresçam as forças sujeitadas e a força e e�cácia daquilo
que as sujeita”. O tema continua na aula de 17 de março (ibidem, pp. 201-
222). As técnicas que se incumbiam dos corpos buscavam “aumentar-lhes a
força útil através do exercício, do treinamento etc.”. Um poder que, para ser
exercido, dependia de vigilância, hierarquias, inspeções, escriturações, relatórios
a que Foucault deu o nome de “tecnologia disciplinar do trabalho” da qual
resulta a docilização e disciplinarização dos corpos.
DO HOMEM-CORPO AO HOMEM-VIVO
Contudo, a segunda metade do século XVIII viu surgir outra tecnologia não
disciplinar do poder. Sem excluir a anterior, em bute-a, integra-a, utiliza-a para
nela se implantar, incrustando-se graças à técnica disciplinar prévia. O que se
tem é uma nova técnica que opera em outra escala, com “outra superfície de
suporte e auxiliada por instrumentos totalmente diferentes”. Ela se dirige agora
não ao homem-corpo, mas ao homem-vivo; no limite, ao homem-espécie. “A
disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa
multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser
vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos.” A nova técnica, por
sua vez, dirige-se “à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se
resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa
global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são
processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc.” (ibidem, p.
204). Isso levou à introdução da medicina com função de higiene pública e de
controle das populações. Também no início do século XIX a velhice entrou no
campo de intervenção do biopoder, trazendo consigo instituições de assistência
e mecanismos como seguros, poupanças etc. A isso se acresce o domínio das
relações entre a espécie humana e seu meio de existência, o geográ�co, aqueles
criados pelo homem, as raças etc.
Assim, resumindo, a partir do século XVII o poder passou a assumir a tarefa
de gerir a vida com base em duas formas principais não antitéticas como dois
polos de desenvolvimento interligados por feixes intermediários de relações:
O primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu
adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no
crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de
controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que
caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se
formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-
espécie, no corpo transpassado pela mecânicado ser vivo e como suporte dos processos
biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração
da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais
processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles
reguladores: uma biopolítica das populações. (Foucault, 1977c, p. 131)
Abriu-se com isso a era do biopoder, cujas duas direções estavam ainda
separadas no século XVIII, mas logo integradas. “Do lado da disciplina, as
instituições como o exército ou a escola; as re�exões sobre a tática, a
aprendizagem, a educação e sobre a ordem da sociedade”. Do outro lado, o “das
regulações de população, a demogra�a, a estimativa da relação entre recursos e
habitantes, a tabulação das riquezas e de sua circulação, das vidas com sua
duração provável” (ibidem, p. 132).
Ora, o início do século XVIII, justamente nos primórdios da Revolução
Industrial, que levaria ao êxodo rural e ao formidável crescimento demográ�co,
foi marcado por uma nova con�guração da sociedade voltada não só para a sua
reorganização, mas também para o bem-estar de sua população, por meio do
controle de sua saúde, operacionalizado mediante regulamentos e normas. Se
antes do século XVII a soberania dizia respeito à defesa e à conquista territorial,
depois disso houve um deslocamento para a vida, o bios das populações com a
imposição de um novo refrão: ordem, riqueza e saúde. O controle populacional
não provinha, evidentemente, de algum gesto humanitário. Os ex-camponeses
iam crescentemente se tornando os novos habitantes das cidades e sua força de
trabalho foi se incorporando às engrenagens das fábricas. Nasce, assim, a
“cidade mercado”. “O �uxo de pessoas, moedas, mercadorias, ideias, crenças será
ainda mais praticado com a propagação dos ideais liberais, acarretando uma
metamorfose paulatina, carregando consigo um novo modo de governo, que
garantia o comércio interior/exterior, a medicina social, os comportamentos
populacionais no território” (Malini, 2011).
O BIOPODER E O CAPITALISMO
Assim, o biopoder tornou-se coadjuvante no desenvolvimento do capitalismo,
cuja garantia dependia da inserção controlada dos corpos nos aparelhos de
produção por meio de ajustamento dos fenômenos de população aos processos
econômicos. Mais que isso, no entanto, o capitalismo também precisou do
investimento no corpo vivo, na sua valorização e na gestão produtiva de suas
forças. A fórmula parece perfeita: quanto melhor a saúde, mais rendimento no
trabalho. Centrada na vida de populações, que não cessam de crescer, a
governabilidade do social tem que incrementar sua função normalizadora.
Portanto, de três séculos para cá, biopoder e capital irmanaram-se para nunca
mais se desligarem, mesmo que pesem as transformações que as revoluções
tecnológicas do �nal do século XIX até os dias de hoje foram instaurando nessa
aliança. Há que se considerar ainda a existência de diferenças geopolíticas
profundas no incremento da biopolítica, pois, nos países periféricos, desde
sempre e até hoje, os planos e programas governamentais repousam sobre a letra
morta da lei.
De todo modo, segundo Genaro (2009), a biopolítica, na escrita foucaultiana,
situa-se nos poderes disciplinares instituídos pelas tecnologias e disciplinas de
jurisdição cientí�ca para o governo da vida. Esses discursos de saber-poder,
chamados de dispositivos de controle, foram visualizados na criação de:
dispositivos de raça, de sexualidade e de segurança etc. Os resultados dessas
construções, continua Genaro, são vistos nas normalizações e adestramentos que
são encontrados em qualquer uma das grandes instituições da modernidade:
escola, caserna, fábrica, hospital, prisão etc., que produzem não apenas
indivíduos dóceis e úteis, mas também uma gestão produtiva da vida das
populações, esta garantida pelo neoliberalismo, condição de inteligibilidade da
biopolítica, na medida em que regula “o exercício do poder político com base
nos princípios de uma economia de mercado” (Foucault, 2008, p. 181).
O mais crucial nisso tudo é o paradoxo em que �ca enlaçada a possibilidade de
resistência política ao biopoder. Resistir a ele signi�ca tomar como base de
apoio justamente aquilo em que o poder investe: a vida vivida dos seres
humanos. As forças que resistem apoiam-se exatamente naquilo em que o poder
investe: na vida, no humano enquanto ser vivo. “O que é reivindicado e serve de
objetivo é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a essência
concreta do homem, a realização de suas virtualidades, a plenitude do possível”
(Foucault, 1977c, p. 136). Foi assim que os recentes movimentos sociais que
pipocaram no mundo, apesar das diferenças (capítulo 4), tinham como cerne de
suas reivindicações as necessidades fundamentais da vida na concretude do seu
viver. “A vida tem sido tomada como objeto político e voltada contra o sistema
que tenta controlá-la. A vida, muito mais do que o direito, tem-se tornado o
objeto das lutas políticas, mesmo sendo estas últimas formuladas através de
a�rmações de direito”, como: “direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à
autorrealização, à satisfação das necessidades etc.” (Merçon, 2011, p. 91).
De 1976 em diante, cada vez mais Foucault focalizou sua atenção “nos modos
concretos através dos quais o poder penetra o corpo mesmo dos sujeitos e suas
formas de vida”. Segundo Merçon (ibidem, p. 92), essa atenção dirigiu-se para
duas direções. De um lado, as técnicas políticas, como a polícia, para garantir a
vida natural dos indivíduos; de outro, as tecnologias do eu. A polícia não se
restringe à instituição policial, mas se refere “ao conjunto dos mecanismos pelos
quais são assegurados a ordem, o crescimento canalizado das riquezas e as
condições de manutenção da saúde”. Quando “os procedimentos mistos de
assistência são decompostos e decantados, e em que se delimita, em sua
especi�cidade econômica, o problema da doença dos pobres, a saúde e o bem-
estar físico das populações aparecem como um objetivo político que a ‘polícia’
do corpo social deve assegurar ao lado das regulações econômicas e obrigações
da ordem” (Foucault, 1979, p. 197).
APLICAÇÃO A SI
De todo modo, nos últimos anos de sua vida, o tema central para Foucault
situou-se naquilo que chamou de souci de soi (Epimelesthai sautou, em grego), cuja
melhor tradução deve ser “cuidado de si”, a arte da existência – a techne tou biou,
ocupar-se de si próprio, sob as suas diferentes formas. A aplicação a si (epilemeia)
não requer atitude geral, atenção difusa, nem simplesmente preo cupação, mas
implica labor, todo um conjunto de ocupações (Foucault, 1985, pp. 49, 55).
Com isso, Foucault queria dizer atitudes que se expressam por meio de
exercícios e práticas voltadas para “si mesmo”, de modo a constituir uma
estilística da existência. A primeira manifestação foucaultiana sobre essa
questão deu-se nos seis seminários que ministrou na Universidade de Vermont
(Canadá), no outono de 1982, publicados em 1988 pela Universidade de
Massachusetts. Suas indagações se voltaram inicialmente para as proibições
sexuais que ele relacionou com o tema da verdade, quer dizer, a verdade sobre si
mesmo. A proibição conduz ao imperativo de autodecifração e isso o levou ao
que passou a chamar de “tecnologia do eu”, delimitada como uma entre outras
tecnologias, as de produção, as discursivas e as de poder; portanto um total de
quatro:
As tecnologias de produção são aquelas que permitem manipular e
transformar as coisas. As discursivas ou semióticas, hoje chamadas midiáticas,
são aquelas que con�guram sistemas de signos, atualmente cada vez mais
híbridos e proliferantes, produzindo representações e signi�cações. As
tecnologias de poder, fartamente estudadas por Foucault, determinam, por meio
de controle e dominação, a objetivação dos indivíduos. Por �m, as tecnologias
do eu visam levar os indivíduos a efetuar, por conta própria ou com a ajuda de
outros, determinado tipo de operações sobre seu corpo e sua alma, sobre seus
pensamentos, modos de sentir, conduta,com a �nalidade de alcançar certos
estados de pureza, sabedoria e, certamente, como �m último, como o summum
bonum dos cuidados de si, atingir estados de felicidade (Foucault, 1990, p. 48).
Foucault reconheceu que estudou fundamentalmente as tecnologias do poder
e dominação, passando, então, a se interessar pela história dos modos pelos
quais o indivíduo atua sobre si mesmo, na interação com o outro, a partir desse
autorreconhecimento. Fazendo uso de seu método genealógico, voltou-se para
os helênicos, os cristãos, e, a partir do século XVIII, constatou que a
verbalização já não visava, como anteriormente, renunciar ao eu, mas sim
construí-lo (ver Santaella, 2013, pp. 127-146).
Ficar face a face consigo mesmo, recolher o próprio passado, colocar diante de si o
conjunto da vida transcorrida, familiarizar-se, através da leitura, com os preceitos e os
exemplos nos quais se quer inspirar e encontrar, graças a uma vida examinada, os
princípios essenciais de uma conduta racional. É possível ainda, no meio e no fim da
própria carreira, livrar-se de suas diversas atividades e, aproveitando esse declínio da
idade onde os desejos ficam apaziguados, consagrar-se inteiramente, como Sêneca, no
trabalho filosófico ou, como Spurrina, na calma de uma existência agradável, à posse de
si próprio. (Musonius; Pline apud Foucault, 1985, p. 56)
Numa visão de conjunto, segundo Foucault, o Estado ocidental moderno
passou a integrar “técnicas de individuação subjetivas e procedimentos de
totalização objetivos, fazendo com que surgisse um duplo vínculo político,
constituído pela individuação e pela simultânea totalização das estruturas do
poder moderno” (Merçon, ibidem, p. 92). Para Agamben, a convergência desses
dois aspectos do poder não foi devidamente explicitada por Foucault.
Provavelmente a vida lhe foi roubada antes que pudesse levar essa tarefa
adiante. Todavia, tudo parece indicar que o grande interesse de Foucault, nos
anos 1980, de fato migrou para a vida. O último texto que escreveu tomou a
questão da vida como enigma (2001b, pp. 763-777). Não é por acaso que
também Deleuze (2002) tenha deixado como seu último testamento um texto
sobre a vida na sua imanência – eis o enigma. Embora Agamben, de fato, possa
ter tomado como ponto de partida a ausência, em Foucault, de conexão entre os
cuidados de si e os processos de subjetivação objetivos, a questão da vida
também ocupa o âmago de seu pensamento, como será discutido no próximo
capítulo.
D
2
GIORGIO AGAMBEN
a vida como motivo-chave
Enquanto é um ser de potência, que pode fazer e não fazer, conseguir ou falhar,
perder-se ou encontrar-se –, o homem é o único ser em cujo viver está sempre em
jogo a felicidade, cuja vida é irremediável e dolorosamente destinada à felicidade.
(Giorgio Agamben)
e fato, a vida se constitui em motivo-chave nas sequências melódicas
do pensamento de Agamben. O �lósofo está ciente disso quando diz:
Por uma singular coincidência, o último texto publicado por Michel Foucault e
por Gilles Deleuze, antes da morte, tem, em seu centro, em ambos os casos, o conceito
de vida. O significado dessa coincidência testamentária (tanto em um caso como no
outro se trata, de fato, de algo da ordem de um testamento) está além da secreta
solidariedade entre dois amigos. Ele implica a enunciação de um legado que diz respeito
inequivocamente à filosofia que vem. Se esta o quiser acolher, deverá partir do conceito
de vida indicado pelo último gesto dos filósofos. (Essa é, pelo menos, a hipótese de
onde parte nossa investigação.) (Agamben, 2015a, p. 331)
Para isso, Agamben leu em conjunto as re�exões de Foucault sobre o biopoder
e os processos de subjetivação e as re�exões de Deleuze “– aparentemente tão
serenas – sobre ‘uma vida...’ como imanência absoluta e beatitude”. Sem
simpli�car nem nivelar, mas buscando a conjugação em que cada texto constitui
um corretivo e um obstáculo para o outro, Agamben encontrou no primeiro
outra maneira de se aproximar da noção de vida e, no segundo, “uma vida que
não consista apenas em seu confronto com a morte e uma imanência que não
volte a produzir transcendência”. Para isso, conseguiu ver, “em cada momento,
no princípio que permite a atribuição de uma subjetividade, a própria matriz da
des-subjetivação, e no mesmo paradigma de uma possível beatitude, o elemento
que assinala a submissão ao biopoder” (Agamben, ibidem, p. 356). Mas
vejamos, em passos breves, o percurso de Agamben.
Ó
A TRAJETÓRIA DA OBRA
Segundo Penna (2007), movido pela premência dos fatos políticos dos anos
1990 (a primeira Guerra do Golfo, os campos de refugiados na Bósnia, o pós-11
de Setembro e a lei antiterrorista, o USA Patriot Act de 2001), Agamben
desviou-se da prioridade, que havia dado até então, aos temas da linguagem, da
morte, da poesia e da arte, para se voltar à escritura de uma resposta �losó�ca no
seu tríptico Homo sacer, constituído de Homo sacer I. O poder soberano e a vida nua
([1995] 2002); Estado de exceção. Homo sacer II, 1 ([2003] 2004); O que resta de
Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Homo sacer III ([1998] 2008). Desde então, o
tríptico desdobrou-se em uma série de obras adjacentes, como O reino e a glória.
Uma genealogia teológica da economia e do governo. Homo sacer II, 2 ([2007] 2011); O
sacramento da linguagem. Arqueologia do juramento. Homo sacer II, 3 ([2008] 2010);
Altíssima pobreza. Regras monásticas e formas de vida. Homo sacer IV, 1 ([2011]
2014a); Opus Dei. Arqueologia do ofício. Homo sacer II, 5 ([2012] 2013); e, por �m,
ainda não traduzido para o português, L’uso dei corpi. Homo sacer IV, 2 (2014b).
Nas palavras de Agamben (2006):
Quando comecei a trabalhar em Homo sacer, soube que estava abrindo um canteiro
que implicaria anos de escavações e de pesquisa, algo que não poderia jamais ser
levado a termo e que, em todo caso, não poderia ser esgotado certamente em um só
livro. Daí que o algarismo I no frontispício de Homo sacer é importante. Depois da
publicação do livro, frequentemente me acusam de oferecer ali conclusões pessimistas,
quando na realidade deveria ter ficado claro desde o princípio que se tratava somente
de um primeiro volume, no qual expunha uma série de premissas e não de conclusões.
Talvez tenha chegado o momento de explicitar o plano da obra, ao menos tal como ele
se apresenta agora em minha mente. Ao primeiro volume (O poder soberano e a vida
nua, publicado em 1995) seguirá um segundo, que terá a forma de uma série de
investigações genea lógicas sobre os paradigmas (teológicos, jurídicos e biopolíticos) que
têm exercido uma influência determinante sobre o desenvolvimento e a ordem política
global das sociedades ocidentais. O livro Estado de exceção (publicado em 2003) não é
senão a primeira dessas investigações, uma arqueologia do direito que, por evidentes
razões de atualidade e de urgência, pareceu-me que devia antecipar em um volume à
parte. Porém, inclusive aqui, o algarismo II, indicando a sequência da série, e o
algarismo I no frontispício indicam que se trata unicamente da primeira parte de um
livro maior, que compreenderá um tipo de arqueologia da biopolítica sob a forma de
diversos estudos sobre a guerra civil, a origem teológica da oikonomia, o juramento e o
conceito de vida (zoé) que estavam já nos fundamentos de Homo sacer I. O terceiro
volume, que contém uma teoria do sujeito ético como testemunha, apareceu no ano de
1998 com o título Ciò che resta di Auschwitz. L’Archivio e il testimone. No entanto,
talvez será somente com o quarto volume que a investigação completa aparecerá sob
sua luz própria. Trata-se de um projeto para o qual não só é extremamente difícil
individualizar um âmbito de investigação adequado, senão que tenho a impressão de
que a cada passo o terreno desaparece debaixo dos meus pés. Posso dizer unicamente
que no centro desse quarto livro estarão os conceitos de forma-de-vida e de uso, e que
o que está posto em jogo ali é a tentativa de capturar a outra face da vida nua, uma
possível transformação da biopolítica em uma nova política.
Isso foi ditoem 2006. Hoje o previsto quarto volume já foi publicado. Uma
vez que a seguir darei mais atenção aos conceitos de soberania, estado de
exceção e vida nua, valeria a pena fazer brevíssimas menções ao conteúdo dos
livros que decorreram dos três primeiros. O reino e a glória situa-se no rastro das
pesquisas sobre a genealogia da governabilidade de Foucault, mas Agamben
avança muito além dos limites cronológicos da genealogia de seu predecessor ao
mostrar de que maneira o locus teológico da oikonomia trinitária pode “constituir
um laboratório privilegiado para observar o funcionamento e a articulação – ao
mesmo tempo interna e externa – da máquina governamental” (Agamben,
2011a, p. 9). O sacramento da linguagem, na articulação entre religião e política,
discute sobre a importância decisiva que o juramento, na base do pacto político,
desempenhou na história do Ocidente. A decadência irreversível atual do pacto
solene, ligado a um corpo político, corresponde à crise do ser humano como
animal político. Isso não signi�ca que se deva abandonar a investigação das
novas formas de associação política que podem emergir. Essa é a proposta do
livro.
Altíssima pobreza, por sua vez, estuda as relações dialéticas que, na vida
monástica, se instauram entre regra e vida. A grande tentação dos monges era
movida pela vontade irrefreável de construir a própria vida como uma liturgia
integral e incessante. “Por isso, a investigação, que a princípio se propunha
de�nir, pela análise do monasticismo, a forma de vida, teve de confrontar-se
com a tarefa, de modo algum óbvia e, ao menos aparentemente, desviante e
estranha, de uma arqueologia do ofício” (Agamben, 2014a, p. 10). Os
resultados dessa arqueologia foram publicados no livro Opus Dei, no qual uma
ontologia é pensada para além da operatividade e do comando e uma ética e
uma política são inteiramente liberadas dos conceitos de dever e de vontade. Na
apreciação de Negri:
A demonstração de que a ontologia criticada por Heidegger ainda é, no fundo, uma
teoria da operatividade e da vontade, é uma ideia indubitavelmente verdadeira.
Schürmann já a havia desenvolvido quando criticara o Sein como a própria ideia de
“arché” e, portanto, como indistinção de início e de comando. Seguir o
desenvolvimento e a organização sucessiva dessa ontologia da operatividade – que dos
neoplatônicos aos Padres da Igreja, dos filósofos latinos a Kant, de Tomás e Heidegger
põe uma ideia do ser completamente assimilada à da vontade/comando – é tarefa de
Agamben, aqui resolvida com grande maestria. (Negri, 2013)
Negri não se detém apenas nos elogios, mas apresenta algumas discórdias em
relação às posições adotadas por Agamben, discórdias que não serão aqui
colocadas em discussão. O que vale lembrar nesta oportunidade é que, desde
Altíssima pobreza, Agamben já tinha em mente como pensar “uma forma-de-
vida, ou seja, uma vida humana totalmente subtraída das garras do direito e um
uso dos corpos e do mundo que nunca acabe numa apropriação. Ou seja, pensar
a vida como aquilo de que nunca se dá propriedade, mas apenas um uso
comum” (Agamben, 2014a, p. 11). Essa tarefa foi enfrentada no seu L’uso dei
corpi, por meio da elaboração de uma teoria do uso da qual é gerada uma crítica
à ontologia operativa e governamental que, sob os disfarces mais diversos,
continua determinando os destinos da espécie humana. Posto isto, podemos
passar à exploração mais detalhada dos conceitos que funcionam como centro
irradiador de toda a série Homo sacer.
VIDA NUA E PRODUÇÃO DE PODER
Na teoria política de Aristóteles, o homem, como qualquer outro ser vivente,
é zoé (vida nua = mera existência biológica, o simples fato de estar vivo que o
ser humano compartilha com outros seres vivos, animais e outros), mas, em
razão de um atributo que os seres viventes não têm – a linguagem –, o humano
possui, também, uma existência política: é a linguagem que torna possível ao
homem passar de zoé a uma vida política, politikòn zôon (animal político). Para
Aristóteles, a política é um dos modos de vida. Na sua Ética Nichomachea (1967,
livro I, cap. 5, p. 1.174), o �lósofo distingue três modos de vida: a vida
contemplativa do �lósofo (bios theoretikos), a vida prazerosa (bios apolaustikos) e a
vida política (bios politikos). No seu conhecido livro Antropológica do espelho. Uma
teoria da comunicação linear e em rede, Muniz Sodré (2002) acrescenta a esses três
um quarto bios no qual estamos também mergulhados na contemporaneidade: o
bios midiático.
Para os gregos, a distinção estabelecida entre zoé e zôon não signi�ca que não
existe uma certa porção de bem que consiste no viver em si, mas o que os
gregos buscavam assinalar é uma vida quali�cada, um modo de vida, o que
con�nava a simples vida natural à sua mera capacidade reprodutiva, pois só a
polis permite ao homem viver para o bem.
Michel Foucault partiu dessa distinção especí�ca entre zoé e zôon para elaborar
sua teoria da biopolítica, cujo limiar ele encontrou, como já vimos, no
surgimento da modernidade, quando se deu a constituição do Estado de
População. Este implica incluir todos os aspectos concernentes ao viver – saúde,
sexualidade, trabalho etc. – nos mecanismos, programas e cálculos do poder de
Estado que passou, depois de milênios, de um Estado de proteção e
administração territorial a um Estado biopolítico em que a vida e a saúde
populacional tornaram-se a preocupação central do poder, visando tornar os
humanos corpos dóceis à convergência, daí para a frente cada vez mais estreita e
precisa, entre poder político e capitalismo. Portanto, para Foucault, a
biopolítica implica a reintrodução da vida natural nos mecanismos e cálculos do
poder estatal. “O desenvolvimento e o triunfo do capitalismo não teria sido
possível, nesta perspectiva, sem o controle disciplinar efetuado pelo novo
biopoder, que criou para si, por assim dizer, através de uma série de tecnologias
apropriadas, os ‘corpos dóceis’ de que necessitava” (Agamben, 2002, p. 11).
Agamben (ibidem, p. 13) reconhece que a politização da vida nua como tal
constitui evento decisivo da modernidade. Reconhece ainda a importância dos
dois aspectos que foram explorados por Foucault, a saber, de um lado, as
técnicas políticas que, por meio da ciência do policiamento, integram a vida
natural dos indivíduos; de outro, as tecnologias do eu, por meio das quais se
realiza “o processo de subjetivação que leva o indivíduo a vincular-se à própria
identidade e à própria consciência e, conjuntamente, a um poder de controle
externo”. Embora essas tendências entrelacem-se e remetam a um centro
comum, para Agamben o ponto de convergência entre ambos permanece
obscuro em Foucault. Diante dos fenômenos de poder midiático espetacular que
estão hoje por toda parte transformando o espaço político, não parece mais
legítimo separar as tecnologias subjetivas e as técnicas políticas. Além disso, as
relações entre o direito e a teologia, que, para Agamben, Foucault deixou de
lado, são extremamente importantes para pensar nossa situação presente,
justamente esses dois âmbitos sobre os quais Agamben trabalhou por alguns
anos.
Para preencher essas lacunas, movido pela premência de fatos políticos que
Foucault não testemunhou, Agamben deu início à sua sequência de obras
�losó�co-políticas. Para pensar a nova condição da política, construiu uma
�gura única de Soberania sobre não sujeitos que, extirpados de cidadania (a vida
nua), encontram-se subjugados ao paradoxo da exceção. De antemão, é preciso
ressaltar que “vida nua”, para Agamben, não é concebida como um dado
natural, mas como uma produção especí�ca do poder. Assim também “Homo
sacer” não é, para ele, uma �gura obscura do direito romano arcaico, mas uma
cifra para compreender nossa situação presente. O mesmo se pode dizer do
estado de exceção e do muçulmano, des�guramento do humano, trabalhado em
O que resta de Auschwitz.
SOBERANIA E ESTADO DE EXCEÇÃO
A noção de soberano foi extraída da de�nição canônica do jurista alemão,
teórico do nazismo, Carl Schmitt. A suspensão constitucional,que se encontra
ao mesmo tempo dentro e fora da norma jurídica, a que o direito deu diversos
nomes – estado de exceção, estado de sítio, estado de emergência –,
paradoxalmente e, ao contrário do que se poderia imaginar, é que passa a
constituir o estado de direito. O insight de Schmitt é simples: disposição interna
à constituição como sua garantia em momentos de extrema necessidade, a
suspensão constitucional não é só recurso último, mas a condição primeira da
vigência da norma, que não existe sem ela. A norma depende assim
essencialmente da anormalidade. O soberano é quem decide quando, como e
onde vige o estado de direito e, situando-se dentro e fora do direito, é a exceção
que condiciona a regra (e não apenas a con�rma) (Penna, 2007).
O que caracteriza a soberania é a sua duplicidade porque o ser se
autossuspende mantendo-se como potência, em relação de bando (ou abandono)
consigo, para realizar-se, então, como ato absoluto (que não pressupõe, digamos,
nada mais do que a própria potência). No limite, potência pura e ato puro são
indiscerníveis, e essa zona de indistinção é, justamente, o soberano (Agamben,
2002, p. 53).
Tendo o poder legal de suspender a validade da lei, o soberano coloca-se
legalmente fora da lei. Cria-se um paradoxo que pode ser assim formulado: “a
lei está fora dela mesma”, ou então: “eu soberano, que estou fora da lei, declaro
que não há um fora da lei”. Assim, o estado de exceção não deve ser confundido
com “o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta de sua suspensão.
Nesse sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora
(ex-capere) e não simplesmente excluída”. A tese defendida por Agamben é que o
estado de exceção, “como estrutura política fundamental, emerge sempre mais
ao primeiro plano e tende, por �m, a tornar-se a regra” (Agamben, ibidem, pp.
22, 24, 26).
Resumindo, portanto, o estado de exceção não é tanto uma suspensão espaço-
temporal quanto uma �gura topológica complexa, em que não só a exceção é a
regra, mas até mesmo o estado de natureza e o direito, o fora e o dentro
transitam um pelo outro. É justamente nessa zona topológica de indistinção,
que deveria permanecer oculta aos olhos da justiça, que nós devemos tentar em
vez disso �xar o olhar (ibidem, pp. 43-44).
Transmutado em regra, o estado de exceção “assinala a consumação da lei e o
seu tornar-se indiscernível da vida que devia regular”, ou seja, “zona de
indiscernibilidade entre lei e vida”. Desse modo, “a violência que é exercida no
estado de exceção não conserva nem simplesmente põe o direito, mas o conserva
suspendendo-o e o põe excetuando-se dele” (ibidem, pp. 59, 64, 69). Conforme
Agamben, “é essa terra de ninguém, entre o direito público e o fato político e
entre a ordem jurídica e a vida”, que seu livro Estado de exceção explora em
detalhes para evidenciar que tal estado apresenta-se como um patamar de
indeterminação entre democracia e absolutismo, e uma de suas características
essenciais – “a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo
e judiciário – mostra, aqui, sua tendência a transformar-se em prática duradoura
de governo” (Agamben, 2004, pp. 12, 19). Seu livro pensa, portanto, o que
signi�ca viver em estado de exceção permanente.
O complemento necessário ao estado de exceção é a vida nua, termo de
inspiração benjaminiana, a que Agamben fez jus na sua releitura transformada
de Foucault. A tese foucaultiana é, assim, de certo modo, corrigida ou, pelo
menos, integrada, no sentido de que aquilo que caracteriza a política moderna
não é tanto a inclusão de zoé na polis, em si antiguíssima, nem simplesmente o fato de
que a vida como tal venha a ser um objeto eminente dos cálculos e das previsões do
poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado com o fato de que a
exceção se torne em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado
originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o
espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bios e zoé, direito e fato
entram em uma zona de irredutível indistinção. (Agamben, 2002, p. 16)
Nem vida animal nem vida humana, mas, sim, vida separada e excluída de si
mesma, é a vida nua, ou seja, vida exposta à morte. No direito arcaico romano,
o Homo sacer é aquele que pode receber a morte das mãos de quem quer que seja,
sem que seu autor cometa um sacrilégio. Uma vida ambivalente que não pode
ser sacri�cada porque, tendo cometido um delito grave, não se faz merecida
pelos deuses, cabendo-lhe, portanto, a morte por qualquer membro da
comunidade que assim se habilite. Santo e maldito, o Homo sacer, ao mesmo
tempo, está aprisionado a uma dupla exclusão e exposto à morte. “Quando seus
direitos não são mais direitos do cidadão, então, o homem é realmente sagrado,
no sentido que esse termo tem no direito romano arcaico” (Agamben, 2015b, p.
30). Exemplos atuais: os condenados à morte, os con�nados nos campos de
concentração, os refugiados e todos aqueles que podem ser enquadrados como
vida indigna de ser vivida (mais sobre isso no capítulo 8).
Tendo isso em vista, a vida nua não deve ser pensada “como um estado
biológico natural, que existiria originalmente, para depois ser anexada à ordem
jurídica pelo estado de exceção. Pois ela é precisamente, junto com o poder
soberano, o produto dessa máquina biopolítica” (Pelbart, 2003, p. 65).
Respondendo à entrevista de Costa, Agamben (2006) a�rma que
todos os problemas, incluindo os da técnica, deverão ser reinscritos na perspectiva de
uma vida inseparável de sua forma. No fundo, a vida fisiológica não é outra coisa que
uma técnica esquecida, um saber tão antigo que já perdemos toda memória dele. Uma
apropriação da técnica não poderá ser feita sem um re-pensamento preliminar do corpo
político do Ocidente.
Tal constatação �ca evidenciada com clareza cristalina quando Agamben
(2014c), em palestra pública proferida em Atenas para uma sala apinhada de
jovens, declara:
Em 1943, o Congresso dos Estados Unidos ainda recusava o Citizen Identi�cation Act,
que queria introduzir um cartão de identidade com impressões digitais para todos. Mas,
de acordo com uma lei fatal ou clandestina da modernidade, as tecnologias que foram
inventadas para animais, para criminosos, para estrangeiros ou para judeus foram
posteriormente estendidas a todos os seres humanos. Assim, no decurso do século XX,
as tecnologias biométricas foram aplicadas a todos os cidadãos, e as fotografias
identificadoras de Bertillon e as impressões digitais de Galton são hoje utilizadas por
todos os países nos seus bilhetes de identidade. Mas o passo mais extremo só foi dado
nos nossos dias e está ainda no processo de total implementação. Com o
desenvolvimento de novas tecnologias digitais, com scanners ópticos que podem
facilmente gravar não apenas impressões digitais, mas também a retina ou a estrutura
da íris ocular, os dispositivos biométricos tendem a ultrapassar as esquadras e os
gabinetes de imigração para se espalharem à vida quotidiana. Em muitos países o
acesso a cantinas ou mesmo a escolas é controlado por um dispositivo biométrico onde
o estudante coloca a sua mão.
A pesquisa levada a cabo por Agamben, em suma, revela o oculto ponto de
intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do
poder, registrando com isso, entre seus resultados, a inseparabilidade das duas
análises, pois a implicação da vida nua na esfera política “constitui o núcleo
originário – ainda que encoberto – do poder soberano. [...] Colocando a vida
biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto,
do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua”
(Agamben, 2002, p. 14). Essa é uma descrição sóbria e rigorosa do estado de
coisas do mundo contemporâneo tal como já havia sido de�nido por outro
pensador de quem Agamben recebeu grande in�uência: Walter Benjamin. Na
sua oitava tese sobre a �loso�a da história, Benjamin (1985, p. 226) opõe ao
estado de exceção em que vivemos um estado de exceçãoefetivo que é nossa
tarefa realizar. Em suas palavras: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o
estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra. Precisamos construir
um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento,
perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção”.
À luz da relação entre poder soberano e vida nua, Agamben repensa todas as
categorias da tradição política para fazer ver a política contemporânea como
“experimento devastador que desarticula e esvazia em todo o planeta
instituições e crenças, ideologias e religiões, identidades e comunidades, para
voltar depois a repropor a sua forma de�nitiva nuli�cada”. Isso faz do estado de
exceção a regra, quando “a vida nua é imediatamente portadora do nexo
soberano e, como tal, ela é hoje abandonada a uma violência tanto mais e�caz
quanto anônima e cotidiana”. Quando se torturam e fazem em pedaços corpos
humanos, para o resto pode-se suportar quase tudo. “Não há autoridade nem
poder público que não ponha agora a nu o seu vazio e a sua abjeção. A
magistratura está poupada dessa ruína, somente enquanto, tal como uma Erínia
da tragédia grega surgida por engano numa comédia, age unicamente como
instância de punição e de vingança” (Agamben, 2015b, pp. 102, 104, 112,
114).
DIREITO E VIOLÊNCIA
Para denunciar tais condições, Agamben coloca ênfase no que mais lhe
interessa: as íntimas e talvez indissolúveis ligações entre direito e violência.
Nada é mais sombrio do que a “vigência incondicionada das categorias jurídicas
em um mundo em que elas não re�etem mais nenhum conteúdo ético
compreensível: sua vigência é verdadeiramente sem signi�cado, como
imperscrutável é o guardião da lei na parábola kafkiana” (ibidem, p. 120).
Nesse passo, seu pensamento aproxima-se bastante das re�exões de outro
�lósofo contemporâneo, Jacques Derrida. A referência de Agamben, aqui e no
texto Estado de exceção, é à “Força de lei: o fundamento místico da autoridade”,
célebre conferência proferida por Derrida no ano de 1989, publicada em
português, em segunda edição, em 2010.
Derrida expôs a íntima ligação entre lei, direito e violência, a qual colocaria
em questão até mesmo a própria possibilidade da justiça. A expressão “força de
lei”, do título, já demonstra que o direito é sempre uma força autorizada. Disso
decorre a di�culdade em se diferenciar a força de lei da violência que se julga
sempre injusta. Como também diferenciar a força de lei de um poder legítimo e
a violência pretensamente originária que essa autoridade deve ter instaurado?
Para responder a essas questões, Derrida recorre ao fundamento místico da
autoridade tal como formulado por Montaigne e Pascal, para concluir com eles
que “as leis não são justas enquanto leis. Não se lhes obedece por serem justas,
mas porque têm autoridade”. Daí que a autoridade das leis só pode derivar do
crédito que se lhes dá; “crê-se nelas, tal é o seu fundamento único”. E tal é “o
fundamento místico da autoridade. Não podem, por de�nição, a origem da
autoridade, a fundação ou o fundamento, a posição da lei, apoiar-se senão em si
mesmas”.
Para Agamben, “a �cção sobre a qual se funda toda a regulamentação é a
mesma que, aprisionada pela indecibilidade, constitui a abertura para que se
instaure o estado de exceção”, em que “a norma exibe sua superação em pura
força” (Ferreira, 2007). Mas é justamente nos terrenos incertos e sem nome, nas
ásperas zonas de incerteza que podem ser pensadas as vias e os modos de uma
nova política.
POR UMA NOVA POLÍTICA
Ao �nal de Vontade de saber, após ter tomado distância do sexo e da
sexualidade, nos quais a modernidade acreditou encontrar o próprio segredo e a
própria liberação, enquanto não tinha entre as mãos nada mais do que um
dispositivo do poder, Foucault acena para “uma outra economia dos corpos e do
prazer” como possível horizonte para uma nova política. As conclusões da nossa
pesquisa impõem uma ulterior cautela. Até mesmo o conceito de “corpo”, bem
como aqueles de sexo e sexualidade, já está desde sempre preso em um
dispositivo, ou melhor, é desde sempre corpo político e vida nua, e nada, nele
ou na economia de seu prazer, parece oferecer-nos um terreno �rme contra as
pretensões do soberano. Na sua forma extrema, aliás, o corpo biopolítico do
Ocidente (esta última encarnação da vida do Homo sacer) apresenta-se como um
limiar de absoluta indistinção entre direito e fato, norma e vida biológica
(Agamben, 2002, p. 182).
Em oposição a quaisquer tipos de utopias, para ele ingênuas, Agamben
conclui que “toda tentativa de repensar o espaço político do Ocidente deve
partir da clara consciência de que da distinção clássica entre zoé e bios, entre vida
privada e existência política, entre homem como simples vivente, que tem seu
lugar na casa, e o homem como sujeito político, que tem seu lugar na cidade,
nós não sabemos mais nada” (ibidem). Isso não signi�ca deslizar para um
niilismo catatônico. A questão é mais complexa, como �ca evidente na
declaração de Agamben (2006):
Diria que o problema da revolução permanente é o de uma potência que não se
desenvolve nunca em ato, e, ao contrário, sobrevive a ele e nele. Creio que seria
extremamente importante chegar a pensar de um modo novo a relação entre a
potência e o ato, o possível e o real. Não é o possível que exige ser realizado, mas é a
realidade que exige tornar-se possível. Pensamento, práxis e imaginação (três coisas que
jamais deveriam ser separadas) convergem nesse desafio comum: tornar possível a vida.
Neste ponto, tomando por base o livro A comunidade que vem (Agamben,
1993), as palavras de Pelbart (2003, p. 38) são providenciais:
Como desafiar aquelas instâncias que expropriaram o comum, e que o
transcendentalizaram? É onde Agamben evoca uma resistência vinda, não como antes,
de uma classe, um partido, um sindicato, um grupo, uma minoria, mas de uma
singularidade qualquer, do qualquer um, como aquele que desafia um tanque na Praça
Tienanmen, que já não se define por uma pertinência a uma identidade específica, seja
de um grupo político ou de um movimento social. É o que o Estado não pode tolerar, a
singularidade qualquer que o recusa sem constituir uma réplica espelhada do próprio
Estado na figura de uma formação reconhecível. A singularidade qualquer que não
reivindica uma identidade, que não faz valer um liame social, que constitui uma
multiplicidade inconstante, como diria Cantor. Singularidades que declinam toda
identidade e toda condição de pertinência, mas manifestam seu ser comum – é a
condição, diz Agamben, de toda política futura.
Mas nesse aspecto, não obstante diferenças não indiferentes, já estamos nos
aproximando do conceito de multidão em Negri. Passemos a ele no capítulo a
seguir.
P
3
ANTONIO NEGRI
a potência emancipatória da multidão
A produção da subjetividade, em particular, embora produzida e determinada
pelo poder, desenvolve sempre resistências que se abrem por meio de dispositivos
incontíveis.
(Antonio Negri)
assar para o panorama do pensamento político de Antonio Negri
implica pequeno retrospecto. Há um consenso de que estamos na
terceira revolução industrial. De fato, isso também se con�rma na
evolução das tecnologias comunicacionais: as tecnologias eletromecânicas, que
trouxeram o telégrafo, as prensas rotativas para impressão, a fotogra�a, o
cinema (primeira revolução), foram seguidas pelas eletroeletrônicas do rádio e
TV (segunda) e, por �m, pelas digitais do computador, como metamídia
comunicacional (terceira), que está na base material das sociedades globalizadas.
Trata-se de uma revolução não apenas informacional, mas, sobretudo, semiótica.
São as linguagens humanas que estão em mutação com todas as consequências
que isso traz para a percepção, cognição, gerenciamento da vida, da cultura e
das sociedades em geral. As três revoluções resultaram de força cientí�ca
inovadora, que é inseparável das mudanças no modo de produção capitalista e
da emergência da divisão internacional do trabalho. Disso resultaram a
mundialização do capital�nanceiro e trocas mercantis reguladas e controladas
por agentes econômicos, políticos e sociais em todas as escalas territoriais, o que
tem provocado, segundo Genaro (2009), um “desespero intelectual” em um
palco de divergências, polêmicas e debates na busca de fórmulas e conceitos
para esse contexto.
Com o fim da era fordista e início de uma nova forma de acumulação – a acumulação
flexível –, como sentenciou F. Jameson (1992), [a produção capitalista] ficou cada vez
mais dependente de uma regulação por meio da lógica cultural. Nesse sentido, uma das
mudanças mais interessantes foi a penetração cada vez maior das chamadas novas
tecnologias da informação e comunicação. Modernas redes de comunicação e
circulação possibilitaram que as diversas mídias, o marketing, as indústrias de
entretenimento e de serviços etc. tivessem grande importância na diversificação e
aumento do consumo e, enfim, na garantia do processo de reprodução do capital.
(Ibidem)
Para diagnosticar as injunções desse processo, muitas denominações
começaram a surgir: capitalismo cultural, hipercapitalismo, turbocapitalismo,
capitalismo pós-industrial, pós-capitalismo e capitalismo cognitivo. Esta última
é a designação que vem sendo usada, entre outros, em especial pelos
divulgadores das ideias de Antonio Negri e Michael Hardt, as quais têm
despertado grande interesse, o que não as isenta de controvérsias e disputas.
ECONOMIA INFORMACIONAL
Para Hardt e Negri (2001, pp. 305-309), o plano social foi inteiramente
transformado e rede�nido pelos processos de modernização e industrialização. A
agricultura modernizada tornou-se indústria e a fazenda foi virando uma
fábrica, com todas as disciplinas, tecnologias e relações salariais que ela implica,
carregando consigo a industrialização da sociedade como um todo, o que
transformou também as relações humanas e a própria natureza humana. Mas,
em nossa época, continuam os autores, a modernização acabou, pois já não é a
produção industrial que “estende sua dominação sobre outras formas
econômicas e outras formas sociais”. Na modernização houve a migração do
trabalho da agricultura e da mineração (setor primário) para a indústria
(secundário).
Já na pós-modernização ou informatização a indústria migrou para os serviços
(terciários). Estes incluem “uma vasta gama de atividades, de assistência
médica, educação e �nanças a transporte, diversão e publicidade”, implicando
empregos movediços e �exibilidade de aptidões. Neles, o conhecimento,
informação, afeto e comunicação desempenham papéis centrais. Daí a economia
pós-moderna poder ser chamada de “economia da informação”. Isso não
signi�ca que a produção industrial será descartada. “Assim como os processos
de industrialização transformaram a agricultura e a tornaram mais produtiva, a
revolução da informação transformará a indústria, rede�nindo a rejuvenescendo
os processos de fabricação.” O processo é irreversível e, nos países subordinados,
o que se nota é, em lugar da progressão histórica metódica, a mistura e a
coexistência entre essas formas de produção econômica e de relações sociais
implicadas.
De todo modo, a passagem para uma economia informacional envolve
mudanças na qualidade e natureza do trabalho, o que caracteriza a implicação
sociológica e antropológica mais imediata da transição de paradigmas
econômicos, pois hoje a informação e a comunicação desempenham papel
fundamental nos processos de produção. Essa é a base histórica da qual parte o
pensamento de Hardt e Negri, caracterizado, fundamentalmente, pela mescla
do caráter emancipatório da esquerda com a conceituação atualizada das
condições contemporâneas do poder, do ser humano, do conhecimento e das
novas formas de trabalho.
O CONCEITO FIGURATIVO DE IMPÉRIO
É nos robustos livros Império (2001) e Multidão (2005) que os autores
expuseram suas contribuições para os dilemas políticos atuais. Andreotti (2005,
pp. 369-370) fornece-nos uma boa síntese do entendimento que Hardt e Negri
têm de política: ela resulta de um embate de forças que se dividem entre
aquelas que querem dominar (forma de soberania ou Império) e aquelas que não
querem ser dominadas (forma de resistência ou Multidão). A análise dos autores
é tanto molar, dentro da tradição marxista, quanto molecular, ou seja, a herança
marxista reinterpretada à luz do pós-estruturalismo. Essa distinção entre molar
e molecular não se dá apenas entre o macro e o micro ou entre o coletivo e o
individual, pois eles diferem “quanto à velocidade. O molar se refere a amplos
agregados e grupos estáticos, conjuntos coesos e unitários, o molecular remete a
micromultiplicidades, singularidades” (ibidem, p. 372).
O Império é uma nova lógica distinta do imperialismo que vigorou até por
volta dos anos 1970, centrado nos Estados-nações. No Império, “os fatores
primários de produção e troca – dinheiro, tecnologia, pessoas e bens –
comportam-se cada vez mais à vontade em um mundo acima de fronteiras
nacionais” (Hardt e Negri, 2001, p. 11). Assim, junto com o enfraquecimento
da soberania nacional e o fortalecimento da globalização neoliberal, a
governabilidade dá-se em redes mundiais, por meio de instituições
supranacionais e conglomerados privados cuja soberania é sustentada por
poderes militares, monetários, comunicativos, culturais e linguísticos, e as
formas de produtividade são efetivadas no contexto biopolítico.
Deve-se ressaltar que “Império” é empregado como �gura de linguagem, no
caso, a metáfora, ou melhor, empregado como a construção de um conceito, o
que dispensa comparações com outras formas históricas de Império. Na sua
natureza de conceito, Império “caracteriza-se fundamentalmente pela ausência
de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites”. Ele abrange todo
o espaço e “nenhuma fronteira nacional pode con�nar o seu reinado” (ibidem, p.
14). Juntamente com o mercado global e com circuitos globais de produção,
emergiram, portanto, uma nova ordem global e uma nova lógica e estrutura de
comando, ou seja, uma nova forma de supremacia. “O Império é a substância
política que, de fato, regula essas permutas globais, o poder supremo que
governa o mundo.” Nesse contexto, “a soberania tomou nova forma, composta
de uma série de organismos nacionais e supranacionais, unidos por uma lógica
ou regra única. Esta nova forma global de economia é o que chamamos de
Império” (ibidem, pp. 11, 12).
[O Império] engloba a totalidade do espaço do mundo, apresenta-se como fim dos
tempos, isto é, ordem a-histórica, eterna, definitiva, e penetra fundo na vida das
populações, nos corpos, mentes, inteligência, desejo, afetividade. [...] O Império
coincide com a sociedade de controle, tal como Deleuze, na esteira de Foucault, a havia
tematizado. [...] Em lugar do espaço esquadrinhado pela família, escola, hospital,
manicômio, prisão, fábrica, tão característicos do período moderno e da socidade
disciplinar, a sociedade de controle funciona através de mecanismos de monitoramento
mais difusos, flexíveis, móveis, ondulantes, “imanentes”, incidindo diretamente sobre os
corpos e as mentes, prescindindo das mediações institucionais, antes necessárias, que
de qualquer formar entraram progressivamente em colapso. (Pelbart, 2003, p. 81)
O Império se de�ne, portanto, como um novo engendramento de forças
constitutivo de uma outra forma de soberania expansiva, subsumida ao capital,
em que o poder torna-se um regime de dominação da vida que, além de alvo
desse poder, é também campo de resistência a ele. Vem daí o conceito de
biopolítica que os autores abraçam. A vida tornou-se alvo de exploração.
Portanto, o embate de forças dá-se no terreno biopolítico entre a soberania do
Império que gera essa exploração e a Multidão, singularidades que geram o
poder da vida.
Hardt e Negri chamam a atenção para o fato de que, embora o Império exerça
enormes poderes de opressão e destruição, isso “não deveria, de modo algum,
nos deixar saudosos de outras formas de dominação”, pois nele brotam novas
possibilidades para as forças de libertação. “As forçascriadoras da multidão que
sustentam o Império são capazes também de construir, independentemente, um
Contra-Império, uma organização política alternativa dos �uxos e intercâmbios
globais. [...] A multidão terá de inventar novas formas democráticas e novos
poderes constituintes que um dia nos conduzirão através e além do Império”
(ibidem, p. 15).
A MULTIDÃO COMO CONTRA-IMPÉRIO
Os autores empregam o conceito de multidão em dois sentidos, remetendo a
distintas temporalidades. O primeiro é um conceito eterno de multidão,
baseado em Spinoza, segundo o qual, na complexa interação de forças históricas,
através da razão e das paixões, a multidão cria uma liberdade chamada de
absoluta. Sua natureza é ontológica. Disso deriva que “a faculdade de liberdade
e a propensão por recusar a autoridade tornaram-se os instintos humanos mais
saudáveis e nobres, os verdadeiros sinais de eternidade”. O segundo sentido é
histórico. Uma multidão que nunca existiu até hoje. Mas parecem estar
surgindo as condições culturais, jurídicas, econômicas e políticas que hoje
tornam possível a multidão. Ambos os sentidos são inseparáveis. “Se a multidão
não estivesse latente e implícita em nosso ser social, não poderíamos sequer
imaginá-la como projeto político; da mesma forma, só podemos esperar realizá-
la porque ela já existe como potencial real.” Juntando os dois sentidos,
portanto, a multidão adquire uma estranha temporalidade dupla: “sempre-já e
ainda-não” (Hardt e Negri, 2005, p. 286).
Para alguns, a produção de multidão, defendida pelos autores, a�gura-se como
um novo conceito de soberania, “uma identidade organizada semelhante aos
velhos corpos sociais modernos, como o povo, a classe operária ou a nação”. Para
outros, a noção de multidão composta de singularidades é confundida com pura
anarquia. Diferentemente desses dois entendimentos, que não nos permitirão
jamais compreender o que é multidão, é preciso romper com os velhos
paradigmas e reconhecer um modo de organização social não soberano. Para
isso, os autores recorrem ao conceito comparativo de carnaval em Bakhtin, visto
que “a narração polifônica de Bakhtin coloca em termos linguísticos uma noção
de produção do comum numa estrutura em rede aberta e disseminada” (ibidem,
pp. 271-274). Além disso, é também preciso lembrar que “a dinâmica da
singularidade e da multiplicidade que de�ne a multidão nega a alternativa
dialética entre o Uno e o Muitos – são ambos e nenhum dos dois” (ibidem, p.
289).
Negri é um especialista em Spinoza, e Hardt, em Deleuze. Essas são as fontes
de onde extraíram a potência do conceito de Multidão. Para os autores, “a carne
produtiva da multidão adquiriu a forma do corpo político global do capital,
dividido geogra�camente por hierarquias de trabalho e riqueza e governado por
uma estrutura multinivelada de poderes econômicos, jurídicos e políticos”.
Diante disso, a tarefa que se propõem desenvolver é, entre outras, a de
“investigar a possibilidade de que a carne produtiva da multidão venha a se
organizar de outra maneira e descobrir uma alternativa para o corpo político
global do capital” (ibidem, p. 247). Para isso, abandonam as nostalgias dos
corpos sociais modernos que se dissolveram, vindo em seu lugar,
uma espécie de carne social, uma carne que não é um cor po, uma carne que é comum,
substância viva. [...] Puro potencial, uma força informe de vida, e plenitude da vida. [...]
Do ponto de vista da ordem e do controle políticos, assim, a carne elementar da
multidão é desesperadoramente fugidia, pois não pode ser inteiramente enfeixada nos
órgãos hierárquicos de um corpo político. (Ibidem, p. 251)
Precisamos, dizem eles, “escrever uma espécie de anti-De Corpore que vá
contra todos os tratados modernos do corpo político, apreendendo essa nova
relação entre o que é comum e o que é singular na carne da multidão”. Ambos,
Hardt e Negri, são herdeiros de Foucault a partir do ponto de vista de Deleuze.
Este reconheceu o monstro no interior da humanidade, pois é o homem o
animal responsável pela mudança de sua própria espécie. Disso Hardt e Negri
derivam a necessidade de “usar as expressões monstruosas da multidão para
desa�ar as mutações da vida arti�cial transformadas em mercadorias, o poder
capitalista de pôr à venda as metamorfoses da natureza, a nova eugenia que dá
sustentação ao poder vigente. É no novo mundo dos monstros que a
humanidade tem de agarrar o seu futuro” (ibidem, p. 256).
De fato, Deleuze esteve atento às alterações da biopolítica quando os
mecanismos de controle da vida tornaram-se cada vez mais ampliados nas novas
formas de sujeição dos corpos por vias bioquímicas. Imagens, medicina,
virtualidade levaram a uma domesticação crescente dos desejos e sensações
humanas na constituição de um poder biopolítico, um regime subjetivo de
controle permanente (Genaro, 2009). Nesse contexto, para Negri, a
subjetividade possível hoje já não é a classe operária, mas a multidão, um
conceito que implica outra concepção ampliada do trabalho e dos trabalhadores,
que Hardt e Negri chamam de “capitalismo cognitivo”.
CAPITALISMO COGNITIVO
As novas formas de trabalho são um ponto de partida fundamental, pois, para
Negri, tanto quanto para Marx, a ontologia humana está fundada no trabalho.
Quando vivo, trabalho é força ontológica que hoje se constitui como imaterial.
O nome, convenhamos, não é muito feliz (ver também Kurz, 2005).
Felizmente, está muitíssimo bem de�nido em Hardt e Negri (2001). Para os
autores, o trabalho imaterial envolve as novas tecnologias informacionais muitas
vezes de cunho colaborativo, um tipo de colaboração que não é organizado de
fora, mas é imanente à própria atividade.
Não se pode negar que os setores de serviços da economia pós-moderna
apresentam um modelo de comunicação produtiva. São serviços baseados na
permuta contínua de informações e conhecimento. Assim, o nome “imaterial”
deriva do fato de que as produções de serviços, produtos culturais,
conhecimento e comunicação não resultam em um bem material e durável. É
um tipo de trabalho que pode ser comparado com o funcionamento de um
computador cujo uso cada vez mais amplo “tende progressivamente a rede�nir
as práticas e relações de produção, juntamente com todas as práticas e relações
sociais”. É que o computador se apresenta como a ferramenta universal ou
central pela qual passam todas as atividades. “Mediante a informatização da
produção, portanto, o trabalho tende à posição de trabalho abstrato.” Nesse tipo
de trabalho, “a linha de montagem é substituída pela rede como modelo de
organização da produção, alterando as formas de cooperação e comunicação
dentro da cada lugar que produz e entre os lugares de produção”.
Desse modo, “o circuito de cooperação é consolidado na rede e na mercadoria
num nível abstrato”, do que deriva a desterritorialização dos lugares de
produção. Estes tendem “à existência virtual, como coordenadas da rede de
comunicação. Em oposição ao velho modelo vertical industrial e social, a
produção tende, agora, a ser organizada em redes horizontais de empresas”.
Ademais, “as redes de informação também liberam a produção das coações
territoriais, na medida em que tendem a pôr o produtor em contato direto com
o consumidor, independente da distância entre eles” (Hardt e Negri, 2001, pp.
311-317).
Tal tipo de trabalho desmembra-se em três formas: o comunicativo, o
interativo e o trabalho de produção e manipulação de afetos (ver também
Lazzarato e Negri, 2001). Isso não se restringe ao trabalho intelectual. A
produção pós-fordista tirou de cena a ideia do operário submetido à repetição
automática de gestos mecanizados. A maior �uidez dos parâmetros do trabalho
faz emergir o operário que se fortalece na condução criativa de sua rotina.
Juntando, assim, a biopolítica com o capitalismo cognitivo do trabalho
imaterial, Negri e Hardt detectam a emergência de uma forma de resistência
inédita realizada pelas subjetividades, quer dizer, a multidão.
A imanência da relação entre a produção e a política, Negri recolhe de
Spinoza. Nesta era informacional,

Outros materiais