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ÍNDICE Capa Rosto Introdução 1. Michel Foucault - o nascimento da biopolítica A contemporaneidade de Foucault As heterotopias do poder Do homem-corpo ao homem-vivo O biopoder e o capitalismo Aplicação a si 2. Giorgio Agamben - a vida como motivo-chave A trajetória da obra Vida nua e produção de poder Soberania e estado de exceção Direito e violência Por uma nova política 3. Antonio Negri - a potência emancipatória da multidão Economia informacional O conceito figurativo de Império A multidão como contra-Império Capitalismo cognitivo Repensar a política Poder constituinte e poder destituinte 4. A política nas ruas - movimentos sociais já não são os mesmos As eclosões e os diagnósticos Que democracia se quer? A potência das redes digitais A nova dinâmica dos movimentos sociais Multidões à luz da biomídia 5. Pós-digital: por quê? - a cultura digital na berlinda Breve histórico do prefixo “pós” Pós-modernidade Pós-humano A onda do pós-virtual O que é o pós-digital Transmediale 2014-2015 O que falta aos diagnósticos 6. Patologias psíquicas do pós-digital - o que as redes têm a ver com isso Vida e obra Do espetáculo à transparência A psicopolítica no enxame Eros em agonia Bactéria, vírus e neurônio Hiperculturalidade Vita contemplativa Han no contraponto com Agamben Acertando as contas 7. A ecologia expandida das mídias - por uma eco e cosmopolítica Por uma nova ontoepistemologia Um canteiro de trabalho Da política das mídias à eco e cosmopolítica Hesitações ontológicas 8. Transmutações estéticas da política - a eficácia do sensível Prismas do biopoder Vida que te quero viva Uma estética saturada de ética Vozes da alma lúdica 9. A coevolução fluida entre humanos e tecnologias - brechas de luz na escuridão Um artista-pensador visionário O poder imantador do conceito de moist O Big B.A.N.G. Design urbano e arquitetura Cibercepção e o self distribuído A arte e o papel do artista 10. A estética, a ética e a política da existência - a construção da vida como arte A arte da existência Vida como forma de vida A tríade dos ideais O admirável como ideal estético 11. Temporalidades da memória - questão do arquivo Arqueologia como método de construção em Freud Arqueologia e monadologia em Walter Benjamin Arqueologia como método de investigação em Michel Foucault Formações discursivas O arquivo e a arqueologia Mal de arquivo em Derrida 12. O boom e a efemeridade da memória - retorno ao arquivo Rotas de reflexão Dilemas da impermanência Pontos de fuga 13. Dilemas da estética pós-digital - diagnóstico da impermanência Indecisões sobre a nomenclatura A preservação em risco Driblar o efêmero 14. Arte digital e/ou arte contemporânea - inclusões e cesuras Sob o signo do pluralismo A radicalização do hibridismo nas artes Cartografia das artes digitais Ritmos em descompasso 15. História da arte - multiplicidades e heterotopias Os outros espaços de Foucault Heterotopia e anacronismo/memória Heterotopia e sintoma/fantasma Heterotopia e montagem/dialética Bibliografia Coleção Ficha Catalográfica Notas Meus agradecimentos ao CNPq pela bolsa de produtividade em pesquisa, de que resultou este livro como uma das partes do projeto desenvolvido e �nalizado com este trabalho. Agradeço também à Fapesp pelo estágio de pesquisa que me permitiu, entre outras iniciativas, assistir ao Transmediale-2015. P INTRODUÇÃO O conhecimento leva dentro de si uma máquina que se mantém em funcionamento por meio do desejo. (Deleuze e Guattari) ensar a tecnologia, nesta era do pós-digital, signi�ca implicá-la nas táticas e estratégias do poder. Mas, para evitar a trajetória fácil das doxas, é preciso adentrar territórios ontológicos, epistemológicos, metodológicos e interpretativos plurais, abertos e inspiradores. É preciso questionar o que nos é dado como verdade e re�etir sobre as condições atuais de modo a conceber o horizonte vital que hoje se apresenta. Buscar caminhos que passem longe do saber esterilizado que não pensa sobre si mesmo e não se autocritica. Há boas companhias para isso nas rotas que nos foram e estão sendo apresentadas por pensadores que passaram e têm passado a vida na detecção e denúncia dos �lamentos arbitrários do poder não facilmente entrevistos devido à perversa dissimulação que os envolve (capítulos 1, 2 e 3). Não se pode escapar de tal tarefa, especialmente em sociedades em pleno transe de con�itos irresolvíveis, muitas vezes mergulhados na crueza e crueldade de embates sangrentos. Isso nos impele a um comprometimento inescapável com o ethos de um pensamento crítico tanto quanto possível autônomo e liberto das modas que se deixam levar pelas marolas do boca a boca. Militar em prol do ethos de uma crítica que não fuja pela tangente preguiçosa de crenças acabadas e enfrente o esforço exploratório da densidade complexa das condições atuais. Isso implica desenvolver um projeto intelectual agudamente sensível ao intolerável das injustiças que nos rodeiam. Ademais, não deixar de expor publicamente, com clareza, mesmo que diáfana, os resultados alcançados pelo esforço de compreender. Nas palavras de Ortega y Gasset, “a clareza é a cortesia do �lósofo”. É uma gentileza com o leitor, mas, certamente, sem escorregar em simpli�cações que desrespeitam a sua inteligência. Como nos lembram Aguilera Portales e González Cruz (2011, p. 10), a teoria crítica pode ser uma práxis em si mesma, a teoria como uma maneira de potencializar a sensibilidade e a re�exão. “Há que deixar de menosprezar a importância desse modo de pensar as coisas, pois ele nos encaminha e torna claras situações, acontecimentos, circunstâncias e realidades que a prática por si mesma, como um pragmatismo super�cial, não pode explicar.” O objetivo maior daqueles cujos projetos intelectuais estão indissoluvelmente ligados à formação educacional e cientí�ca dos mais jovens é torná-los pensadores livres, capazes de detectar as ortodoxias e os catecismos disfarçados de conhecimento que não cessam de rondar e tomar assento nos ambientes que frequentamos. “Educar um cidadão é cultivá-lo, ensinar-lhe a pensar e raciocinar por si mesmo, libertá-lo da tirania dos costumes, convenções e preconceitos, mostrar-lhe que vive em um mundo hipercomplexo e ajudá-lo a imaginar as visões da realidade do outro, sobretudo dos mais desfavorecidos, os que não têm voz” (Aguilera Portales, 2008, p. 36). Que a vida teorética seja impassível é a ilusão de todo pregador de um pragmatismo super�cial. Para evitar essa super�cialidade, torna-se necessário resgatar a ontologia do pensamento. O ato de pensar, no legítimo sentido que deveria ter, não é diálogo silencioso consigo mesmo, mas é, sim, pensamento que, por estar exposto aos ventos cáusticos do real, realiza a práxis do pensar. Uma práxis que se manifesta na exposição pública do pensamento. Palavras ditas e escritas são partes materiais da realidade, dotadas do poder brando de agir sobre o mundo psíquico e social nos efeitos que produz. Sobretudo, há que levar o pensamento ao teste do tribunal da experiência, como prescreve o pragma ticismo de Charles Sanders Peirce na sua atração instintiva pelas coisas vivas. Nos livros anteriores que publiquei pela editora Paulus [1], tratei de seguir pari passu e penetrar fundo na busca de compreensão das aceleradas transformações técnicas, sociais, educacionais e psíquicas introduzidas pela revolução digital. O mundo digital cobra de quem se põe a pensá-lo que esse pensamento esteja mergulhado na prática, na vivência e participação naquilo que esse mundo, que há pouco tempo era chamado de virtual (capítulo 5), tem a oferecer, ou seja, habitá-lo, estar dentro dele com a intimidade de um morador. O ser humano está ganhando muito com a horizontalidade participativa que vem minando as velhas hierarquias comunicacionais. “O desenvolvimento da telefonia celular e dos computadores portáteis, que desamarra de forma ainda mais radical os pontos de comunicação da rede, intensi�cou os processos de desterritorialização.” Por não ter centro e cada pedaço poder funcionarde modo relativamente autônomo, a rede continua a operar mesmo com parte dela destruída. “Como nenhum ponto da rede é necessário para que os outros pontos se comuniquem, é difícil para a Internet regulamentar ou proibir a comunicação entre eles.” Rizoma é o nome que, segundo Deleuze e Guattari, pode-se dar a esse modelo democrático (Hardt e Negri, 2001, p. 320). Nenhuma crítica pode �car cega a essa dimensão da realidade digital e da penetração de que ela goza na vida dos cidadãos, especialmente dos jovens. Entretanto, quanto mais avançamos nas tramas das redes, mais nos damos conta de que nelas �cam expostos, como nunca antes, todos os variados graus intermediários e, sobretudo, os extremos daquilo que a humanidade tem de melhor e o que ela tem de pior. Infelizmente, a bondade tem limites, ao passo que a bestialidade bruta ou tola é ilimitada. Entre esses dois extremos apresentam-se variadas facetas, algumas das quais este livro visou enfrentar. Entre elas, a principal foi a de dar voz à política. Deixá-la falar como meio de atravessamento das densas sombras da contemporaneidade. Uma cruzada tanto quanto possível isenta das paixões ideológicas unidimensionais. Há facetas mergulhadas na escuridão da noite digital (capítulo 2). Outras, mais solares, trazem à cena a voz do artista (capítulo 9), aquele cuja batalha está sempre voltada para o lado de Eros (uma ideia que me acompanha e que já deixei expressa em muitos dos meus escritos). Mesmo quando atravessam as trevas da indignação, os artistas, aqueles que transmutam esteticamente as vozes da política, carregam tochas para iluminar os rumos que podem digni�car o humano (capítulo 8). Outras facetas ainda são aquelas em que a re�exão busca enfrentar os dilemas de que, sob o título de pós-digital, o contemporâneo está recheado. Seguindo Agamben, é nas zonas sombrias que o digital melhor se mostra. Mas, quando se mostra, abre nesgas de luz. É nesse lusco-fusco que os capítulos deste livro buscaram se movimentar. São muitas as questões em aberto para fustigar a re�exão. A contingência impõe-se, afastando o conforto e o fastio de crenças seguras. Em Heidegger, a linguagem é a morada do ser. Na continuidade dessa mesma sabedoria, para Agamben “a casa da verdade é a linguagem”; portanto, dela o �lósofo precisa cuidar. Mas, enquanto o �lósofo dela cuida, os artistas e poetas com ela fazem experimentos ousados, pois não há como mudar pensamentos cansados sem mudanças na própria materialidade da linguagem. Vem daí a entrada da arte neste livro (capítulos 13 e 14). A agudeza do pensamento político não pode prescindir da escuta e da atenção aos modos como a arte se É mostra. É desses entrelaçamentos que os �nos �os moleculares da realidade se entretecem. Hardt e Negri (ibidem, p. 323) lembram-nos que, em O que é a �loso�a, Deleuze e Guattari (1992) argumentam que, “na era contemporânea, e no contexto da produção comunicativa e interativa, a construção de conceitos não é apenas uma operação epistemológica, mas igualmente um projeto ontológico”. Muito bem lembrado, pois construir conceitos é o que os autores chamam de “nomes comuns”, que, na interpretação de Hardt e Negri, é uma atividade que combina a inteligência e a ação da multidão, forçando-as a trabalhar juntas. Construir conceitos signi�ca fazer existir, na realidade, um projeto que é uma comunidade. Não existe outra forma de construir conceitos que não seja trabalhando de forma comum. Essa comunalidade é, dos pontos de vista da fenomenologia da produção, da epistemologia do conceito e da prática, um projeto no qual a multidão está completamente emparelhada. Os bens comuns são a encarnação, a produção e a liberação da multidão. Disse Rousseau que a primeira pessoa que desejou um pedaço da natureza como sua possessão exclusiva, e a transformou na forma transcendente da propriedade privada, foi quem inventou o mal. O bem, ao contrário, é aquilo que é de todos. O que é um livro, a�nal, quando sai da mão do autor e cai no mundo senão um bem comum? Aí está, na brevidade desta introdução, o télos deste livro. Não se termina um livro. Ele demanda sua continuidade em outros livros do próprio autor, passados e futuros, assim como demanda seu confronto com vozes concordantes e discordantes. O entendimento não vem apenas da simpatia, mas também da discussão. Enquanto a simpatia fala aos afetos, a discussão fala ao intelecto. Que, para o leitor, ambos se unam em uma melodia comum é a expectativa e ambição deste livro. A�nal, o que em nós sente está pensando, já dizia Fernando Pessoa. A 1 MICHEL FOUCAULT o nascimento da biopolítica O direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o direito de resgatar, além de todas as opressões ou alienações, aquilo que se é e tudo o que se pode ser... (Michel Foucault) s monumentais obras de Michel Foucault, de Georgio Agamben e de Antonio Negri ocupam longas prateleiras. Especializar-se em cada uma delas é tarefa para muitos anos, dada até mesmo a herança que os dois últimos receberam, entre outros, de Gilles Deleuze e, consequentemente, também de Baruch Spinoza. Portanto, na sua confessada modéstia, este e os dois próximos capítulos visam extrair apenas o que me parece essencial das vozes políticas desses autores, especialmente porque elas voltarão a soar aqui e ali neste livro. Sabe-se que há um sem-número de tradições teóricas e interpretativas da política que se constituem em um cadinho de controvérsias. Nesse emaranhado, Foucault, Agamben e Negri são as vozes de minha escolha, não apenas porque estão gozando de grande prestígio (o que não acontece por acaso, pois a inteligência humana tem seus �ltros para extrair a lucidez), mas em razão de a�nidades que neles encontra o meu modo de pensar, o que não signi�ca que, entre eles, não haja discordâncias, como é o caso de Agamben e Negri. Mas a discordância tempera a nossa re�exão aumentando-lhe o sabor. A CONTEMPORANEIDADE DE FOUCAULT A obra de Foucault é sobejamente conhecida e o acesso à sua obra expandiu-se com a publicação, em várias línguas e também em português, de aulas ministradas no Collège de France (Foucault, 1999, 2001a, 2004, 2008, 2010, 2011a, 2014), escritos estes que nos ajudam a relê-lo com enormes ganhos de compreensão. A contemporaneidade de Foucault é constatação indiscutível. Sua atualidade é devida não apenas ao fato de que a publicação de suas aulas vem enriquecendo o acesso ao seu pensamento, mas, sobretudo, porque uma obra permanece viva nos herdeiros que a retomam. O valor de um pensador pode ser medido pela qualidade e excelência daqueles que o repensam. Foucault tem, na atualidade, nada menos do que Agamben, Negri, e também Georges Didi- Huberman, entre outros, como seus sucessores. Isso, sem mencionarmos as marcas que deixou no pensamento de Gilles Deleuze e nas sementes que ambos – Foucault e Deleuze – plantaram na teoria ator-rede de Bruno Latour. É bom lembrar que obras fundamentais de Foucault foram traduzidas no Brasil já nos anos 1970, de modo que a penetração do seu pensamento em solo brasileiro já se deu bastante cedo, antes que a onda pós-estruturalista tivesse tomado conta das academias norte-americanas. O que aqui se segue é uma apresentação seletiva dos conceitos de Foucault que possam nos levar a compreender o pensamento de Agamben e de Negri, autores que serão tratados nos dois próximos capítulos, ou seja, em que ponto de desenvolvimento ambos encontraram a obra de Foucault e em que aspectos a levaram adiante. A crescente valorização da obra de Foucault não é casual. Seu pensamento funciona, antes de tudo, como um divisor de águas em relação às concepções de poder que o precederam. Ademais, foi o criador dos conceitos de biopoder e biopolítica, cuja relevância hoje se espraia por todas as áreas das humanidades e ciências sociais. Foucault foi um estudioso e seguidor dos pensadores que foram chamados por Ricouer de pensadores da suspeita: Marx, Freud e Nietzsche. O primeiro instaurou a ação e o trabalho como fundadores da ontologiado humano. O segundo minou a pretensão e o orgulho de sermos senhores de nossa consciência. O terceiro fez desabar a secular metafísica transcendental, colocando o humano no palco de sua humanidade (ver Foucault, 1975). Foi nessas fontes que Foucault buscou arsenal para questionar desde as práticas mais triviais do existir social até os mais complexos sistemas de pensamento. Criou assim uma obra incategorizável que transita pela �loso�a, psicologia, medicina, psiquiatria, sociologia, antropologia, linguística, semiologia, política e direito, tudo isso engendrado por um método arqueológico do saber e genealógico do poder, este de inspiração nietzschiana. AS HETEROTOPIAS DO PODER Em oposição a todas as concepções sobre o poder vigentes no seu tempo, que postulavam uma classe social dominante como detentora exclusiva do poder, para Foucault o poder não vem de um território localizável, alojado em um núcleo central que tudo controla. Assim como o inconsciente que, ao contrário do que se crê, não habita um local determinado, no fundo do poço da alma também o poder é dinâmico, instável, investido de todas as partes do social, por isso heterotópico. Portanto, as noções comumente aceitas de “classe dirigente” e todos os verbos que a acompanham, tais como dominar, governar, controlar, manipular etc., requerem um exame cuidadoso para se saber até onde se exerce o poder, quais etapas e até quais instâncias frequentemente ínfimas, de hierarquia, de controle, de vigilância, de proibições, de constrangimentos. Por toda a parte onde existe o poder, o poder exerce-se. Ninguém propriamente dito é titular do poder; e, no entanto, ele sempre se exerce em certa direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe quem o tem exatamente, mas se sabe quem não o tem. (Foucault, 2001b, p. 1.181) O poder em si não existe, existem relações de poder, muitas vezes difusas, �utuantes, imprecisas, que, nas relações humanas, quaisquer que sejam, amorosas, institucionais ou econômicas, atuam em diversos níveis, sob diferentes formas, de maneira móvel, sutil e múltipla (ibidem, p. 1.538). Levando adiante seus mestres da suspeita, Foucault colocou em dúvida e fez balançar as práticas sociais, institucionais e jurídicas, entre outras, do que decorre a sua ênfase no fato de que quaisquer projetos de ordem política, jurídica, social e, até mesmo, cientí�ca estão imersos em um contexto, em um espaço e tempo determinados. Isso os submete a práticas e exercícios especí�cos do poder de que nem mesmo a produção do conhecimento está isenta devido aos interesses e vontades de poder que também a circunscrevem. A ciência produz discursos de saber por meio de “dispositivos de poder, de disciplina, de vigilância e controle enquadrados no corpus institucional que, por sua vez, justi�ca e reproduz suas práticas constantemente; a verdade surge de uma posição privilegiada de poder-saber” (Aguilera Portales e González Cruz, 2011, p. 4). Nas palavras de Foucault (1981, p. 137), “o que faz com que o poder se sustente, que seja aceito, é simplesmente porque não pesa como potência que diz não, mas que cala de fato, produz coisas, induz o prazer, forma saber, produz discursos”, há que considerá-lo como uma rede produtiva que passa através de todo o corpo social em vez de uma instância negativa que tem por função reprimir. Portanto, o poder não se restringe a reprimir e castigar, mas dele também depende a produção de saber e de verdade. Por trás do conhecimento, também estão em jogo lutas pelo poder, ou seja, relações de força das quais decorrem efeitos de verdade, ou melhor, racionalizações dos discursos da verdade. Se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. (Foucault, 1979, p. 148) Foi a atração que o estudo das tramas do poder, incluindo a episteme, atração aliada à prática do método genealógico, que conduziu Foucault, no �nal de seu trabalho sobre a vontade de saber, no tópico “direito de morte e poder sobre a vida” ([1976] 1977c, pp. 127-149), a se dar conta daquilo que passou a considerar como biopoder, retomado com mais ênfase no curso ministrado no Collège de France, em 1975-1976, sobre “Il faut défandre la société”, traduzido para o português por “Em defesa da sociedade” (1999). Na segunda aula desse curso, datada de 14 de janeiro de 1976 (1999, pp. 21- 35), depois da explicitação das cinco precauções do seu método, Foucault apresentou com clareza cristalina a passagem do poder soberano do feudalismo para o nascimento, nos séculos XVII e XVIII, da biopolítica e do biopoder. Surge aí uma nova mecânica do poder, incompatível com as relações de soberania. Trata-se de uma mecânica que incide sobre os corpos e o que eles fazem, o que permite extrair dos corpos tempo e trabalho em uma forma de poder que “se exerce continuamente por vigilância” e que “pressupõe uma trama cerrada de coerções materiais”, garantindo a coesão do corpo social e de�nindo “uma nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo fazer que cresçam as forças sujeitadas e a força e e�cácia daquilo que as sujeita”. O tema continua na aula de 17 de março (ibidem, pp. 201- 222). As técnicas que se incumbiam dos corpos buscavam “aumentar-lhes a força útil através do exercício, do treinamento etc.”. Um poder que, para ser exercido, dependia de vigilância, hierarquias, inspeções, escriturações, relatórios a que Foucault deu o nome de “tecnologia disciplinar do trabalho” da qual resulta a docilização e disciplinarização dos corpos. DO HOMEM-CORPO AO HOMEM-VIVO Contudo, a segunda metade do século XVIII viu surgir outra tecnologia não disciplinar do poder. Sem excluir a anterior, em bute-a, integra-a, utiliza-a para nela se implantar, incrustando-se graças à técnica disciplinar prévia. O que se tem é uma nova técnica que opera em outra escala, com “outra superfície de suporte e auxiliada por instrumentos totalmente diferentes”. Ela se dirige agora não ao homem-corpo, mas ao homem-vivo; no limite, ao homem-espécie. “A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos.” A nova técnica, por sua vez, dirige-se “à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc.” (ibidem, p. 204). Isso levou à introdução da medicina com função de higiene pública e de controle das populações. Também no início do século XIX a velhice entrou no campo de intervenção do biopoder, trazendo consigo instituições de assistência e mecanismos como seguros, poupanças etc. A isso se acresce o domínio das relações entre a espécie humana e seu meio de existência, o geográ�co, aqueles criados pelo homem, as raças etc. Assim, resumindo, a partir do século XVII o poder passou a assumir a tarefa de gerir a vida com base em duas formas principais não antitéticas como dois polos de desenvolvimento interligados por feixes intermediários de relações: O primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo- espécie, no corpo transpassado pela mecânicado ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica das populações. (Foucault, 1977c, p. 131) Abriu-se com isso a era do biopoder, cujas duas direções estavam ainda separadas no século XVIII, mas logo integradas. “Do lado da disciplina, as instituições como o exército ou a escola; as re�exões sobre a tática, a aprendizagem, a educação e sobre a ordem da sociedade”. Do outro lado, o “das regulações de população, a demogra�a, a estimativa da relação entre recursos e habitantes, a tabulação das riquezas e de sua circulação, das vidas com sua duração provável” (ibidem, p. 132). Ora, o início do século XVIII, justamente nos primórdios da Revolução Industrial, que levaria ao êxodo rural e ao formidável crescimento demográ�co, foi marcado por uma nova con�guração da sociedade voltada não só para a sua reorganização, mas também para o bem-estar de sua população, por meio do controle de sua saúde, operacionalizado mediante regulamentos e normas. Se antes do século XVII a soberania dizia respeito à defesa e à conquista territorial, depois disso houve um deslocamento para a vida, o bios das populações com a imposição de um novo refrão: ordem, riqueza e saúde. O controle populacional não provinha, evidentemente, de algum gesto humanitário. Os ex-camponeses iam crescentemente se tornando os novos habitantes das cidades e sua força de trabalho foi se incorporando às engrenagens das fábricas. Nasce, assim, a “cidade mercado”. “O �uxo de pessoas, moedas, mercadorias, ideias, crenças será ainda mais praticado com a propagação dos ideais liberais, acarretando uma metamorfose paulatina, carregando consigo um novo modo de governo, que garantia o comércio interior/exterior, a medicina social, os comportamentos populacionais no território” (Malini, 2011). O BIOPODER E O CAPITALISMO Assim, o biopoder tornou-se coadjuvante no desenvolvimento do capitalismo, cuja garantia dependia da inserção controlada dos corpos nos aparelhos de produção por meio de ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Mais que isso, no entanto, o capitalismo também precisou do investimento no corpo vivo, na sua valorização e na gestão produtiva de suas forças. A fórmula parece perfeita: quanto melhor a saúde, mais rendimento no trabalho. Centrada na vida de populações, que não cessam de crescer, a governabilidade do social tem que incrementar sua função normalizadora. Portanto, de três séculos para cá, biopoder e capital irmanaram-se para nunca mais se desligarem, mesmo que pesem as transformações que as revoluções tecnológicas do �nal do século XIX até os dias de hoje foram instaurando nessa aliança. Há que se considerar ainda a existência de diferenças geopolíticas profundas no incremento da biopolítica, pois, nos países periféricos, desde sempre e até hoje, os planos e programas governamentais repousam sobre a letra morta da lei. De todo modo, segundo Genaro (2009), a biopolítica, na escrita foucaultiana, situa-se nos poderes disciplinares instituídos pelas tecnologias e disciplinas de jurisdição cientí�ca para o governo da vida. Esses discursos de saber-poder, chamados de dispositivos de controle, foram visualizados na criação de: dispositivos de raça, de sexualidade e de segurança etc. Os resultados dessas construções, continua Genaro, são vistos nas normalizações e adestramentos que são encontrados em qualquer uma das grandes instituições da modernidade: escola, caserna, fábrica, hospital, prisão etc., que produzem não apenas indivíduos dóceis e úteis, mas também uma gestão produtiva da vida das populações, esta garantida pelo neoliberalismo, condição de inteligibilidade da biopolítica, na medida em que regula “o exercício do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado” (Foucault, 2008, p. 181). O mais crucial nisso tudo é o paradoxo em que �ca enlaçada a possibilidade de resistência política ao biopoder. Resistir a ele signi�ca tomar como base de apoio justamente aquilo em que o poder investe: a vida vivida dos seres humanos. As forças que resistem apoiam-se exatamente naquilo em que o poder investe: na vida, no humano enquanto ser vivo. “O que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realização de suas virtualidades, a plenitude do possível” (Foucault, 1977c, p. 136). Foi assim que os recentes movimentos sociais que pipocaram no mundo, apesar das diferenças (capítulo 4), tinham como cerne de suas reivindicações as necessidades fundamentais da vida na concretude do seu viver. “A vida tem sido tomada como objeto político e voltada contra o sistema que tenta controlá-la. A vida, muito mais do que o direito, tem-se tornado o objeto das lutas políticas, mesmo sendo estas últimas formuladas através de a�rmações de direito”, como: “direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à autorrealização, à satisfação das necessidades etc.” (Merçon, 2011, p. 91). De 1976 em diante, cada vez mais Foucault focalizou sua atenção “nos modos concretos através dos quais o poder penetra o corpo mesmo dos sujeitos e suas formas de vida”. Segundo Merçon (ibidem, p. 92), essa atenção dirigiu-se para duas direções. De um lado, as técnicas políticas, como a polícia, para garantir a vida natural dos indivíduos; de outro, as tecnologias do eu. A polícia não se restringe à instituição policial, mas se refere “ao conjunto dos mecanismos pelos quais são assegurados a ordem, o crescimento canalizado das riquezas e as condições de manutenção da saúde”. Quando “os procedimentos mistos de assistência são decompostos e decantados, e em que se delimita, em sua especi�cidade econômica, o problema da doença dos pobres, a saúde e o bem- estar físico das populações aparecem como um objetivo político que a ‘polícia’ do corpo social deve assegurar ao lado das regulações econômicas e obrigações da ordem” (Foucault, 1979, p. 197). APLICAÇÃO A SI De todo modo, nos últimos anos de sua vida, o tema central para Foucault situou-se naquilo que chamou de souci de soi (Epimelesthai sautou, em grego), cuja melhor tradução deve ser “cuidado de si”, a arte da existência – a techne tou biou, ocupar-se de si próprio, sob as suas diferentes formas. A aplicação a si (epilemeia) não requer atitude geral, atenção difusa, nem simplesmente preo cupação, mas implica labor, todo um conjunto de ocupações (Foucault, 1985, pp. 49, 55). Com isso, Foucault queria dizer atitudes que se expressam por meio de exercícios e práticas voltadas para “si mesmo”, de modo a constituir uma estilística da existência. A primeira manifestação foucaultiana sobre essa questão deu-se nos seis seminários que ministrou na Universidade de Vermont (Canadá), no outono de 1982, publicados em 1988 pela Universidade de Massachusetts. Suas indagações se voltaram inicialmente para as proibições sexuais que ele relacionou com o tema da verdade, quer dizer, a verdade sobre si mesmo. A proibição conduz ao imperativo de autodecifração e isso o levou ao que passou a chamar de “tecnologia do eu”, delimitada como uma entre outras tecnologias, as de produção, as discursivas e as de poder; portanto um total de quatro: As tecnologias de produção são aquelas que permitem manipular e transformar as coisas. As discursivas ou semióticas, hoje chamadas midiáticas, são aquelas que con�guram sistemas de signos, atualmente cada vez mais híbridos e proliferantes, produzindo representações e signi�cações. As tecnologias de poder, fartamente estudadas por Foucault, determinam, por meio de controle e dominação, a objetivação dos indivíduos. Por �m, as tecnologias do eu visam levar os indivíduos a efetuar, por conta própria ou com a ajuda de outros, determinado tipo de operações sobre seu corpo e sua alma, sobre seus pensamentos, modos de sentir, conduta,com a �nalidade de alcançar certos estados de pureza, sabedoria e, certamente, como �m último, como o summum bonum dos cuidados de si, atingir estados de felicidade (Foucault, 1990, p. 48). Foucault reconheceu que estudou fundamentalmente as tecnologias do poder e dominação, passando, então, a se interessar pela história dos modos pelos quais o indivíduo atua sobre si mesmo, na interação com o outro, a partir desse autorreconhecimento. Fazendo uso de seu método genealógico, voltou-se para os helênicos, os cristãos, e, a partir do século XVIII, constatou que a verbalização já não visava, como anteriormente, renunciar ao eu, mas sim construí-lo (ver Santaella, 2013, pp. 127-146). Ficar face a face consigo mesmo, recolher o próprio passado, colocar diante de si o conjunto da vida transcorrida, familiarizar-se, através da leitura, com os preceitos e os exemplos nos quais se quer inspirar e encontrar, graças a uma vida examinada, os princípios essenciais de uma conduta racional. É possível ainda, no meio e no fim da própria carreira, livrar-se de suas diversas atividades e, aproveitando esse declínio da idade onde os desejos ficam apaziguados, consagrar-se inteiramente, como Sêneca, no trabalho filosófico ou, como Spurrina, na calma de uma existência agradável, à posse de si próprio. (Musonius; Pline apud Foucault, 1985, p. 56) Numa visão de conjunto, segundo Foucault, o Estado ocidental moderno passou a integrar “técnicas de individuação subjetivas e procedimentos de totalização objetivos, fazendo com que surgisse um duplo vínculo político, constituído pela individuação e pela simultânea totalização das estruturas do poder moderno” (Merçon, ibidem, p. 92). Para Agamben, a convergência desses dois aspectos do poder não foi devidamente explicitada por Foucault. Provavelmente a vida lhe foi roubada antes que pudesse levar essa tarefa adiante. Todavia, tudo parece indicar que o grande interesse de Foucault, nos anos 1980, de fato migrou para a vida. O último texto que escreveu tomou a questão da vida como enigma (2001b, pp. 763-777). Não é por acaso que também Deleuze (2002) tenha deixado como seu último testamento um texto sobre a vida na sua imanência – eis o enigma. Embora Agamben, de fato, possa ter tomado como ponto de partida a ausência, em Foucault, de conexão entre os cuidados de si e os processos de subjetivação objetivos, a questão da vida também ocupa o âmago de seu pensamento, como será discutido no próximo capítulo. D 2 GIORGIO AGAMBEN a vida como motivo-chave Enquanto é um ser de potência, que pode fazer e não fazer, conseguir ou falhar, perder-se ou encontrar-se –, o homem é o único ser em cujo viver está sempre em jogo a felicidade, cuja vida é irremediável e dolorosamente destinada à felicidade. (Giorgio Agamben) e fato, a vida se constitui em motivo-chave nas sequências melódicas do pensamento de Agamben. O �lósofo está ciente disso quando diz: Por uma singular coincidência, o último texto publicado por Michel Foucault e por Gilles Deleuze, antes da morte, tem, em seu centro, em ambos os casos, o conceito de vida. O significado dessa coincidência testamentária (tanto em um caso como no outro se trata, de fato, de algo da ordem de um testamento) está além da secreta solidariedade entre dois amigos. Ele implica a enunciação de um legado que diz respeito inequivocamente à filosofia que vem. Se esta o quiser acolher, deverá partir do conceito de vida indicado pelo último gesto dos filósofos. (Essa é, pelo menos, a hipótese de onde parte nossa investigação.) (Agamben, 2015a, p. 331) Para isso, Agamben leu em conjunto as re�exões de Foucault sobre o biopoder e os processos de subjetivação e as re�exões de Deleuze “– aparentemente tão serenas – sobre ‘uma vida...’ como imanência absoluta e beatitude”. Sem simpli�car nem nivelar, mas buscando a conjugação em que cada texto constitui um corretivo e um obstáculo para o outro, Agamben encontrou no primeiro outra maneira de se aproximar da noção de vida e, no segundo, “uma vida que não consista apenas em seu confronto com a morte e uma imanência que não volte a produzir transcendência”. Para isso, conseguiu ver, “em cada momento, no princípio que permite a atribuição de uma subjetividade, a própria matriz da des-subjetivação, e no mesmo paradigma de uma possível beatitude, o elemento que assinala a submissão ao biopoder” (Agamben, ibidem, p. 356). Mas vejamos, em passos breves, o percurso de Agamben. Ó A TRAJETÓRIA DA OBRA Segundo Penna (2007), movido pela premência dos fatos políticos dos anos 1990 (a primeira Guerra do Golfo, os campos de refugiados na Bósnia, o pós-11 de Setembro e a lei antiterrorista, o USA Patriot Act de 2001), Agamben desviou-se da prioridade, que havia dado até então, aos temas da linguagem, da morte, da poesia e da arte, para se voltar à escritura de uma resposta �losó�ca no seu tríptico Homo sacer, constituído de Homo sacer I. O poder soberano e a vida nua ([1995] 2002); Estado de exceção. Homo sacer II, 1 ([2003] 2004); O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Homo sacer III ([1998] 2008). Desde então, o tríptico desdobrou-se em uma série de obras adjacentes, como O reino e a glória. Uma genealogia teológica da economia e do governo. Homo sacer II, 2 ([2007] 2011); O sacramento da linguagem. Arqueologia do juramento. Homo sacer II, 3 ([2008] 2010); Altíssima pobreza. Regras monásticas e formas de vida. Homo sacer IV, 1 ([2011] 2014a); Opus Dei. Arqueologia do ofício. Homo sacer II, 5 ([2012] 2013); e, por �m, ainda não traduzido para o português, L’uso dei corpi. Homo sacer IV, 2 (2014b). Nas palavras de Agamben (2006): Quando comecei a trabalhar em Homo sacer, soube que estava abrindo um canteiro que implicaria anos de escavações e de pesquisa, algo que não poderia jamais ser levado a termo e que, em todo caso, não poderia ser esgotado certamente em um só livro. Daí que o algarismo I no frontispício de Homo sacer é importante. Depois da publicação do livro, frequentemente me acusam de oferecer ali conclusões pessimistas, quando na realidade deveria ter ficado claro desde o princípio que se tratava somente de um primeiro volume, no qual expunha uma série de premissas e não de conclusões. Talvez tenha chegado o momento de explicitar o plano da obra, ao menos tal como ele se apresenta agora em minha mente. Ao primeiro volume (O poder soberano e a vida nua, publicado em 1995) seguirá um segundo, que terá a forma de uma série de investigações genea lógicas sobre os paradigmas (teológicos, jurídicos e biopolíticos) que têm exercido uma influência determinante sobre o desenvolvimento e a ordem política global das sociedades ocidentais. O livro Estado de exceção (publicado em 2003) não é senão a primeira dessas investigações, uma arqueologia do direito que, por evidentes razões de atualidade e de urgência, pareceu-me que devia antecipar em um volume à parte. Porém, inclusive aqui, o algarismo II, indicando a sequência da série, e o algarismo I no frontispício indicam que se trata unicamente da primeira parte de um livro maior, que compreenderá um tipo de arqueologia da biopolítica sob a forma de diversos estudos sobre a guerra civil, a origem teológica da oikonomia, o juramento e o conceito de vida (zoé) que estavam já nos fundamentos de Homo sacer I. O terceiro volume, que contém uma teoria do sujeito ético como testemunha, apareceu no ano de 1998 com o título Ciò che resta di Auschwitz. L’Archivio e il testimone. No entanto, talvez será somente com o quarto volume que a investigação completa aparecerá sob sua luz própria. Trata-se de um projeto para o qual não só é extremamente difícil individualizar um âmbito de investigação adequado, senão que tenho a impressão de que a cada passo o terreno desaparece debaixo dos meus pés. Posso dizer unicamente que no centro desse quarto livro estarão os conceitos de forma-de-vida e de uso, e que o que está posto em jogo ali é a tentativa de capturar a outra face da vida nua, uma possível transformação da biopolítica em uma nova política. Isso foi ditoem 2006. Hoje o previsto quarto volume já foi publicado. Uma vez que a seguir darei mais atenção aos conceitos de soberania, estado de exceção e vida nua, valeria a pena fazer brevíssimas menções ao conteúdo dos livros que decorreram dos três primeiros. O reino e a glória situa-se no rastro das pesquisas sobre a genealogia da governabilidade de Foucault, mas Agamben avança muito além dos limites cronológicos da genealogia de seu predecessor ao mostrar de que maneira o locus teológico da oikonomia trinitária pode “constituir um laboratório privilegiado para observar o funcionamento e a articulação – ao mesmo tempo interna e externa – da máquina governamental” (Agamben, 2011a, p. 9). O sacramento da linguagem, na articulação entre religião e política, discute sobre a importância decisiva que o juramento, na base do pacto político, desempenhou na história do Ocidente. A decadência irreversível atual do pacto solene, ligado a um corpo político, corresponde à crise do ser humano como animal político. Isso não signi�ca que se deva abandonar a investigação das novas formas de associação política que podem emergir. Essa é a proposta do livro. Altíssima pobreza, por sua vez, estuda as relações dialéticas que, na vida monástica, se instauram entre regra e vida. A grande tentação dos monges era movida pela vontade irrefreável de construir a própria vida como uma liturgia integral e incessante. “Por isso, a investigação, que a princípio se propunha de�nir, pela análise do monasticismo, a forma de vida, teve de confrontar-se com a tarefa, de modo algum óbvia e, ao menos aparentemente, desviante e estranha, de uma arqueologia do ofício” (Agamben, 2014a, p. 10). Os resultados dessa arqueologia foram publicados no livro Opus Dei, no qual uma ontologia é pensada para além da operatividade e do comando e uma ética e uma política são inteiramente liberadas dos conceitos de dever e de vontade. Na apreciação de Negri: A demonstração de que a ontologia criticada por Heidegger ainda é, no fundo, uma teoria da operatividade e da vontade, é uma ideia indubitavelmente verdadeira. Schürmann já a havia desenvolvido quando criticara o Sein como a própria ideia de “arché” e, portanto, como indistinção de início e de comando. Seguir o desenvolvimento e a organização sucessiva dessa ontologia da operatividade – que dos neoplatônicos aos Padres da Igreja, dos filósofos latinos a Kant, de Tomás e Heidegger põe uma ideia do ser completamente assimilada à da vontade/comando – é tarefa de Agamben, aqui resolvida com grande maestria. (Negri, 2013) Negri não se detém apenas nos elogios, mas apresenta algumas discórdias em relação às posições adotadas por Agamben, discórdias que não serão aqui colocadas em discussão. O que vale lembrar nesta oportunidade é que, desde Altíssima pobreza, Agamben já tinha em mente como pensar “uma forma-de- vida, ou seja, uma vida humana totalmente subtraída das garras do direito e um uso dos corpos e do mundo que nunca acabe numa apropriação. Ou seja, pensar a vida como aquilo de que nunca se dá propriedade, mas apenas um uso comum” (Agamben, 2014a, p. 11). Essa tarefa foi enfrentada no seu L’uso dei corpi, por meio da elaboração de uma teoria do uso da qual é gerada uma crítica à ontologia operativa e governamental que, sob os disfarces mais diversos, continua determinando os destinos da espécie humana. Posto isto, podemos passar à exploração mais detalhada dos conceitos que funcionam como centro irradiador de toda a série Homo sacer. VIDA NUA E PRODUÇÃO DE PODER Na teoria política de Aristóteles, o homem, como qualquer outro ser vivente, é zoé (vida nua = mera existência biológica, o simples fato de estar vivo que o ser humano compartilha com outros seres vivos, animais e outros), mas, em razão de um atributo que os seres viventes não têm – a linguagem –, o humano possui, também, uma existência política: é a linguagem que torna possível ao homem passar de zoé a uma vida política, politikòn zôon (animal político). Para Aristóteles, a política é um dos modos de vida. Na sua Ética Nichomachea (1967, livro I, cap. 5, p. 1.174), o �lósofo distingue três modos de vida: a vida contemplativa do �lósofo (bios theoretikos), a vida prazerosa (bios apolaustikos) e a vida política (bios politikos). No seu conhecido livro Antropológica do espelho. Uma teoria da comunicação linear e em rede, Muniz Sodré (2002) acrescenta a esses três um quarto bios no qual estamos também mergulhados na contemporaneidade: o bios midiático. Para os gregos, a distinção estabelecida entre zoé e zôon não signi�ca que não existe uma certa porção de bem que consiste no viver em si, mas o que os gregos buscavam assinalar é uma vida quali�cada, um modo de vida, o que con�nava a simples vida natural à sua mera capacidade reprodutiva, pois só a polis permite ao homem viver para o bem. Michel Foucault partiu dessa distinção especí�ca entre zoé e zôon para elaborar sua teoria da biopolítica, cujo limiar ele encontrou, como já vimos, no surgimento da modernidade, quando se deu a constituição do Estado de População. Este implica incluir todos os aspectos concernentes ao viver – saúde, sexualidade, trabalho etc. – nos mecanismos, programas e cálculos do poder de Estado que passou, depois de milênios, de um Estado de proteção e administração territorial a um Estado biopolítico em que a vida e a saúde populacional tornaram-se a preocupação central do poder, visando tornar os humanos corpos dóceis à convergência, daí para a frente cada vez mais estreita e precisa, entre poder político e capitalismo. Portanto, para Foucault, a biopolítica implica a reintrodução da vida natural nos mecanismos e cálculos do poder estatal. “O desenvolvimento e o triunfo do capitalismo não teria sido possível, nesta perspectiva, sem o controle disciplinar efetuado pelo novo biopoder, que criou para si, por assim dizer, através de uma série de tecnologias apropriadas, os ‘corpos dóceis’ de que necessitava” (Agamben, 2002, p. 11). Agamben (ibidem, p. 13) reconhece que a politização da vida nua como tal constitui evento decisivo da modernidade. Reconhece ainda a importância dos dois aspectos que foram explorados por Foucault, a saber, de um lado, as técnicas políticas que, por meio da ciência do policiamento, integram a vida natural dos indivíduos; de outro, as tecnologias do eu, por meio das quais se realiza “o processo de subjetivação que leva o indivíduo a vincular-se à própria identidade e à própria consciência e, conjuntamente, a um poder de controle externo”. Embora essas tendências entrelacem-se e remetam a um centro comum, para Agamben o ponto de convergência entre ambos permanece obscuro em Foucault. Diante dos fenômenos de poder midiático espetacular que estão hoje por toda parte transformando o espaço político, não parece mais legítimo separar as tecnologias subjetivas e as técnicas políticas. Além disso, as relações entre o direito e a teologia, que, para Agamben, Foucault deixou de lado, são extremamente importantes para pensar nossa situação presente, justamente esses dois âmbitos sobre os quais Agamben trabalhou por alguns anos. Para preencher essas lacunas, movido pela premência de fatos políticos que Foucault não testemunhou, Agamben deu início à sua sequência de obras �losó�co-políticas. Para pensar a nova condição da política, construiu uma �gura única de Soberania sobre não sujeitos que, extirpados de cidadania (a vida nua), encontram-se subjugados ao paradoxo da exceção. De antemão, é preciso ressaltar que “vida nua”, para Agamben, não é concebida como um dado natural, mas como uma produção especí�ca do poder. Assim também “Homo sacer” não é, para ele, uma �gura obscura do direito romano arcaico, mas uma cifra para compreender nossa situação presente. O mesmo se pode dizer do estado de exceção e do muçulmano, des�guramento do humano, trabalhado em O que resta de Auschwitz. SOBERANIA E ESTADO DE EXCEÇÃO A noção de soberano foi extraída da de�nição canônica do jurista alemão, teórico do nazismo, Carl Schmitt. A suspensão constitucional,que se encontra ao mesmo tempo dentro e fora da norma jurídica, a que o direito deu diversos nomes – estado de exceção, estado de sítio, estado de emergência –, paradoxalmente e, ao contrário do que se poderia imaginar, é que passa a constituir o estado de direito. O insight de Schmitt é simples: disposição interna à constituição como sua garantia em momentos de extrema necessidade, a suspensão constitucional não é só recurso último, mas a condição primeira da vigência da norma, que não existe sem ela. A norma depende assim essencialmente da anormalidade. O soberano é quem decide quando, como e onde vige o estado de direito e, situando-se dentro e fora do direito, é a exceção que condiciona a regra (e não apenas a con�rma) (Penna, 2007). O que caracteriza a soberania é a sua duplicidade porque o ser se autossuspende mantendo-se como potência, em relação de bando (ou abandono) consigo, para realizar-se, então, como ato absoluto (que não pressupõe, digamos, nada mais do que a própria potência). No limite, potência pura e ato puro são indiscerníveis, e essa zona de indistinção é, justamente, o soberano (Agamben, 2002, p. 53). Tendo o poder legal de suspender a validade da lei, o soberano coloca-se legalmente fora da lei. Cria-se um paradoxo que pode ser assim formulado: “a lei está fora dela mesma”, ou então: “eu soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei”. Assim, o estado de exceção não deve ser confundido com “o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta de sua suspensão. Nesse sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída”. A tese defendida por Agamben é que o estado de exceção, “como estrutura política fundamental, emerge sempre mais ao primeiro plano e tende, por �m, a tornar-se a regra” (Agamben, ibidem, pp. 22, 24, 26). Resumindo, portanto, o estado de exceção não é tanto uma suspensão espaço- temporal quanto uma �gura topológica complexa, em que não só a exceção é a regra, mas até mesmo o estado de natureza e o direito, o fora e o dentro transitam um pelo outro. É justamente nessa zona topológica de indistinção, que deveria permanecer oculta aos olhos da justiça, que nós devemos tentar em vez disso �xar o olhar (ibidem, pp. 43-44). Transmutado em regra, o estado de exceção “assinala a consumação da lei e o seu tornar-se indiscernível da vida que devia regular”, ou seja, “zona de indiscernibilidade entre lei e vida”. Desse modo, “a violência que é exercida no estado de exceção não conserva nem simplesmente põe o direito, mas o conserva suspendendo-o e o põe excetuando-se dele” (ibidem, pp. 59, 64, 69). Conforme Agamben, “é essa terra de ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida”, que seu livro Estado de exceção explora em detalhes para evidenciar que tal estado apresenta-se como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo, e uma de suas características essenciais – “a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário – mostra, aqui, sua tendência a transformar-se em prática duradoura de governo” (Agamben, 2004, pp. 12, 19). Seu livro pensa, portanto, o que signi�ca viver em estado de exceção permanente. O complemento necessário ao estado de exceção é a vida nua, termo de inspiração benjaminiana, a que Agamben fez jus na sua releitura transformada de Foucault. A tese foucaultiana é, assim, de certo modo, corrigida ou, pelo menos, integrada, no sentido de que aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão de zoé na polis, em si antiguíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um objeto eminente dos cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado com o fato de que a exceção se torne em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bios e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção. (Agamben, 2002, p. 16) Nem vida animal nem vida humana, mas, sim, vida separada e excluída de si mesma, é a vida nua, ou seja, vida exposta à morte. No direito arcaico romano, o Homo sacer é aquele que pode receber a morte das mãos de quem quer que seja, sem que seu autor cometa um sacrilégio. Uma vida ambivalente que não pode ser sacri�cada porque, tendo cometido um delito grave, não se faz merecida pelos deuses, cabendo-lhe, portanto, a morte por qualquer membro da comunidade que assim se habilite. Santo e maldito, o Homo sacer, ao mesmo tempo, está aprisionado a uma dupla exclusão e exposto à morte. “Quando seus direitos não são mais direitos do cidadão, então, o homem é realmente sagrado, no sentido que esse termo tem no direito romano arcaico” (Agamben, 2015b, p. 30). Exemplos atuais: os condenados à morte, os con�nados nos campos de concentração, os refugiados e todos aqueles que podem ser enquadrados como vida indigna de ser vivida (mais sobre isso no capítulo 8). Tendo isso em vista, a vida nua não deve ser pensada “como um estado biológico natural, que existiria originalmente, para depois ser anexada à ordem jurídica pelo estado de exceção. Pois ela é precisamente, junto com o poder soberano, o produto dessa máquina biopolítica” (Pelbart, 2003, p. 65). Respondendo à entrevista de Costa, Agamben (2006) a�rma que todos os problemas, incluindo os da técnica, deverão ser reinscritos na perspectiva de uma vida inseparável de sua forma. No fundo, a vida fisiológica não é outra coisa que uma técnica esquecida, um saber tão antigo que já perdemos toda memória dele. Uma apropriação da técnica não poderá ser feita sem um re-pensamento preliminar do corpo político do Ocidente. Tal constatação �ca evidenciada com clareza cristalina quando Agamben (2014c), em palestra pública proferida em Atenas para uma sala apinhada de jovens, declara: Em 1943, o Congresso dos Estados Unidos ainda recusava o Citizen Identi�cation Act, que queria introduzir um cartão de identidade com impressões digitais para todos. Mas, de acordo com uma lei fatal ou clandestina da modernidade, as tecnologias que foram inventadas para animais, para criminosos, para estrangeiros ou para judeus foram posteriormente estendidas a todos os seres humanos. Assim, no decurso do século XX, as tecnologias biométricas foram aplicadas a todos os cidadãos, e as fotografias identificadoras de Bertillon e as impressões digitais de Galton são hoje utilizadas por todos os países nos seus bilhetes de identidade. Mas o passo mais extremo só foi dado nos nossos dias e está ainda no processo de total implementação. Com o desenvolvimento de novas tecnologias digitais, com scanners ópticos que podem facilmente gravar não apenas impressões digitais, mas também a retina ou a estrutura da íris ocular, os dispositivos biométricos tendem a ultrapassar as esquadras e os gabinetes de imigração para se espalharem à vida quotidiana. Em muitos países o acesso a cantinas ou mesmo a escolas é controlado por um dispositivo biométrico onde o estudante coloca a sua mão. A pesquisa levada a cabo por Agamben, em suma, revela o oculto ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder, registrando com isso, entre seus resultados, a inseparabilidade das duas análises, pois a implicação da vida nua na esfera política “constitui o núcleo originário – ainda que encoberto – do poder soberano. [...] Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua” (Agamben, 2002, p. 14). Essa é uma descrição sóbria e rigorosa do estado de coisas do mundo contemporâneo tal como já havia sido de�nido por outro pensador de quem Agamben recebeu grande in�uência: Walter Benjamin. Na sua oitava tese sobre a �loso�a da história, Benjamin (1985, p. 226) opõe ao estado de exceção em que vivemos um estado de exceçãoefetivo que é nossa tarefa realizar. Em suas palavras: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção”. À luz da relação entre poder soberano e vida nua, Agamben repensa todas as categorias da tradição política para fazer ver a política contemporânea como “experimento devastador que desarticula e esvazia em todo o planeta instituições e crenças, ideologias e religiões, identidades e comunidades, para voltar depois a repropor a sua forma de�nitiva nuli�cada”. Isso faz do estado de exceção a regra, quando “a vida nua é imediatamente portadora do nexo soberano e, como tal, ela é hoje abandonada a uma violência tanto mais e�caz quanto anônima e cotidiana”. Quando se torturam e fazem em pedaços corpos humanos, para o resto pode-se suportar quase tudo. “Não há autoridade nem poder público que não ponha agora a nu o seu vazio e a sua abjeção. A magistratura está poupada dessa ruína, somente enquanto, tal como uma Erínia da tragédia grega surgida por engano numa comédia, age unicamente como instância de punição e de vingança” (Agamben, 2015b, pp. 102, 104, 112, 114). DIREITO E VIOLÊNCIA Para denunciar tais condições, Agamben coloca ênfase no que mais lhe interessa: as íntimas e talvez indissolúveis ligações entre direito e violência. Nada é mais sombrio do que a “vigência incondicionada das categorias jurídicas em um mundo em que elas não re�etem mais nenhum conteúdo ético compreensível: sua vigência é verdadeiramente sem signi�cado, como imperscrutável é o guardião da lei na parábola kafkiana” (ibidem, p. 120). Nesse passo, seu pensamento aproxima-se bastante das re�exões de outro �lósofo contemporâneo, Jacques Derrida. A referência de Agamben, aqui e no texto Estado de exceção, é à “Força de lei: o fundamento místico da autoridade”, célebre conferência proferida por Derrida no ano de 1989, publicada em português, em segunda edição, em 2010. Derrida expôs a íntima ligação entre lei, direito e violência, a qual colocaria em questão até mesmo a própria possibilidade da justiça. A expressão “força de lei”, do título, já demonstra que o direito é sempre uma força autorizada. Disso decorre a di�culdade em se diferenciar a força de lei da violência que se julga sempre injusta. Como também diferenciar a força de lei de um poder legítimo e a violência pretensamente originária que essa autoridade deve ter instaurado? Para responder a essas questões, Derrida recorre ao fundamento místico da autoridade tal como formulado por Montaigne e Pascal, para concluir com eles que “as leis não são justas enquanto leis. Não se lhes obedece por serem justas, mas porque têm autoridade”. Daí que a autoridade das leis só pode derivar do crédito que se lhes dá; “crê-se nelas, tal é o seu fundamento único”. E tal é “o fundamento místico da autoridade. Não podem, por de�nição, a origem da autoridade, a fundação ou o fundamento, a posição da lei, apoiar-se senão em si mesmas”. Para Agamben, “a �cção sobre a qual se funda toda a regulamentação é a mesma que, aprisionada pela indecibilidade, constitui a abertura para que se instaure o estado de exceção”, em que “a norma exibe sua superação em pura força” (Ferreira, 2007). Mas é justamente nos terrenos incertos e sem nome, nas ásperas zonas de incerteza que podem ser pensadas as vias e os modos de uma nova política. POR UMA NOVA POLÍTICA Ao �nal de Vontade de saber, após ter tomado distância do sexo e da sexualidade, nos quais a modernidade acreditou encontrar o próprio segredo e a própria liberação, enquanto não tinha entre as mãos nada mais do que um dispositivo do poder, Foucault acena para “uma outra economia dos corpos e do prazer” como possível horizonte para uma nova política. As conclusões da nossa pesquisa impõem uma ulterior cautela. Até mesmo o conceito de “corpo”, bem como aqueles de sexo e sexualidade, já está desde sempre preso em um dispositivo, ou melhor, é desde sempre corpo político e vida nua, e nada, nele ou na economia de seu prazer, parece oferecer-nos um terreno �rme contra as pretensões do soberano. Na sua forma extrema, aliás, o corpo biopolítico do Ocidente (esta última encarnação da vida do Homo sacer) apresenta-se como um limiar de absoluta indistinção entre direito e fato, norma e vida biológica (Agamben, 2002, p. 182). Em oposição a quaisquer tipos de utopias, para ele ingênuas, Agamben conclui que “toda tentativa de repensar o espaço político do Ocidente deve partir da clara consciência de que da distinção clássica entre zoé e bios, entre vida privada e existência política, entre homem como simples vivente, que tem seu lugar na casa, e o homem como sujeito político, que tem seu lugar na cidade, nós não sabemos mais nada” (ibidem). Isso não signi�ca deslizar para um niilismo catatônico. A questão é mais complexa, como �ca evidente na declaração de Agamben (2006): Diria que o problema da revolução permanente é o de uma potência que não se desenvolve nunca em ato, e, ao contrário, sobrevive a ele e nele. Creio que seria extremamente importante chegar a pensar de um modo novo a relação entre a potência e o ato, o possível e o real. Não é o possível que exige ser realizado, mas é a realidade que exige tornar-se possível. Pensamento, práxis e imaginação (três coisas que jamais deveriam ser separadas) convergem nesse desafio comum: tornar possível a vida. Neste ponto, tomando por base o livro A comunidade que vem (Agamben, 1993), as palavras de Pelbart (2003, p. 38) são providenciais: Como desafiar aquelas instâncias que expropriaram o comum, e que o transcendentalizaram? É onde Agamben evoca uma resistência vinda, não como antes, de uma classe, um partido, um sindicato, um grupo, uma minoria, mas de uma singularidade qualquer, do qualquer um, como aquele que desafia um tanque na Praça Tienanmen, que já não se define por uma pertinência a uma identidade específica, seja de um grupo político ou de um movimento social. É o que o Estado não pode tolerar, a singularidade qualquer que o recusa sem constituir uma réplica espelhada do próprio Estado na figura de uma formação reconhecível. A singularidade qualquer que não reivindica uma identidade, que não faz valer um liame social, que constitui uma multiplicidade inconstante, como diria Cantor. Singularidades que declinam toda identidade e toda condição de pertinência, mas manifestam seu ser comum – é a condição, diz Agamben, de toda política futura. Mas nesse aspecto, não obstante diferenças não indiferentes, já estamos nos aproximando do conceito de multidão em Negri. Passemos a ele no capítulo a seguir. P 3 ANTONIO NEGRI a potência emancipatória da multidão A produção da subjetividade, em particular, embora produzida e determinada pelo poder, desenvolve sempre resistências que se abrem por meio de dispositivos incontíveis. (Antonio Negri) assar para o panorama do pensamento político de Antonio Negri implica pequeno retrospecto. Há um consenso de que estamos na terceira revolução industrial. De fato, isso também se con�rma na evolução das tecnologias comunicacionais: as tecnologias eletromecânicas, que trouxeram o telégrafo, as prensas rotativas para impressão, a fotogra�a, o cinema (primeira revolução), foram seguidas pelas eletroeletrônicas do rádio e TV (segunda) e, por �m, pelas digitais do computador, como metamídia comunicacional (terceira), que está na base material das sociedades globalizadas. Trata-se de uma revolução não apenas informacional, mas, sobretudo, semiótica. São as linguagens humanas que estão em mutação com todas as consequências que isso traz para a percepção, cognição, gerenciamento da vida, da cultura e das sociedades em geral. As três revoluções resultaram de força cientí�ca inovadora, que é inseparável das mudanças no modo de produção capitalista e da emergência da divisão internacional do trabalho. Disso resultaram a mundialização do capital�nanceiro e trocas mercantis reguladas e controladas por agentes econômicos, políticos e sociais em todas as escalas territoriais, o que tem provocado, segundo Genaro (2009), um “desespero intelectual” em um palco de divergências, polêmicas e debates na busca de fórmulas e conceitos para esse contexto. Com o fim da era fordista e início de uma nova forma de acumulação – a acumulação flexível –, como sentenciou F. Jameson (1992), [a produção capitalista] ficou cada vez mais dependente de uma regulação por meio da lógica cultural. Nesse sentido, uma das mudanças mais interessantes foi a penetração cada vez maior das chamadas novas tecnologias da informação e comunicação. Modernas redes de comunicação e circulação possibilitaram que as diversas mídias, o marketing, as indústrias de entretenimento e de serviços etc. tivessem grande importância na diversificação e aumento do consumo e, enfim, na garantia do processo de reprodução do capital. (Ibidem) Para diagnosticar as injunções desse processo, muitas denominações começaram a surgir: capitalismo cultural, hipercapitalismo, turbocapitalismo, capitalismo pós-industrial, pós-capitalismo e capitalismo cognitivo. Esta última é a designação que vem sendo usada, entre outros, em especial pelos divulgadores das ideias de Antonio Negri e Michael Hardt, as quais têm despertado grande interesse, o que não as isenta de controvérsias e disputas. ECONOMIA INFORMACIONAL Para Hardt e Negri (2001, pp. 305-309), o plano social foi inteiramente transformado e rede�nido pelos processos de modernização e industrialização. A agricultura modernizada tornou-se indústria e a fazenda foi virando uma fábrica, com todas as disciplinas, tecnologias e relações salariais que ela implica, carregando consigo a industrialização da sociedade como um todo, o que transformou também as relações humanas e a própria natureza humana. Mas, em nossa época, continuam os autores, a modernização acabou, pois já não é a produção industrial que “estende sua dominação sobre outras formas econômicas e outras formas sociais”. Na modernização houve a migração do trabalho da agricultura e da mineração (setor primário) para a indústria (secundário). Já na pós-modernização ou informatização a indústria migrou para os serviços (terciários). Estes incluem “uma vasta gama de atividades, de assistência médica, educação e �nanças a transporte, diversão e publicidade”, implicando empregos movediços e �exibilidade de aptidões. Neles, o conhecimento, informação, afeto e comunicação desempenham papéis centrais. Daí a economia pós-moderna poder ser chamada de “economia da informação”. Isso não signi�ca que a produção industrial será descartada. “Assim como os processos de industrialização transformaram a agricultura e a tornaram mais produtiva, a revolução da informação transformará a indústria, rede�nindo a rejuvenescendo os processos de fabricação.” O processo é irreversível e, nos países subordinados, o que se nota é, em lugar da progressão histórica metódica, a mistura e a coexistência entre essas formas de produção econômica e de relações sociais implicadas. De todo modo, a passagem para uma economia informacional envolve mudanças na qualidade e natureza do trabalho, o que caracteriza a implicação sociológica e antropológica mais imediata da transição de paradigmas econômicos, pois hoje a informação e a comunicação desempenham papel fundamental nos processos de produção. Essa é a base histórica da qual parte o pensamento de Hardt e Negri, caracterizado, fundamentalmente, pela mescla do caráter emancipatório da esquerda com a conceituação atualizada das condições contemporâneas do poder, do ser humano, do conhecimento e das novas formas de trabalho. O CONCEITO FIGURATIVO DE IMPÉRIO É nos robustos livros Império (2001) e Multidão (2005) que os autores expuseram suas contribuições para os dilemas políticos atuais. Andreotti (2005, pp. 369-370) fornece-nos uma boa síntese do entendimento que Hardt e Negri têm de política: ela resulta de um embate de forças que se dividem entre aquelas que querem dominar (forma de soberania ou Império) e aquelas que não querem ser dominadas (forma de resistência ou Multidão). A análise dos autores é tanto molar, dentro da tradição marxista, quanto molecular, ou seja, a herança marxista reinterpretada à luz do pós-estruturalismo. Essa distinção entre molar e molecular não se dá apenas entre o macro e o micro ou entre o coletivo e o individual, pois eles diferem “quanto à velocidade. O molar se refere a amplos agregados e grupos estáticos, conjuntos coesos e unitários, o molecular remete a micromultiplicidades, singularidades” (ibidem, p. 372). O Império é uma nova lógica distinta do imperialismo que vigorou até por volta dos anos 1970, centrado nos Estados-nações. No Império, “os fatores primários de produção e troca – dinheiro, tecnologia, pessoas e bens – comportam-se cada vez mais à vontade em um mundo acima de fronteiras nacionais” (Hardt e Negri, 2001, p. 11). Assim, junto com o enfraquecimento da soberania nacional e o fortalecimento da globalização neoliberal, a governabilidade dá-se em redes mundiais, por meio de instituições supranacionais e conglomerados privados cuja soberania é sustentada por poderes militares, monetários, comunicativos, culturais e linguísticos, e as formas de produtividade são efetivadas no contexto biopolítico. Deve-se ressaltar que “Império” é empregado como �gura de linguagem, no caso, a metáfora, ou melhor, empregado como a construção de um conceito, o que dispensa comparações com outras formas históricas de Império. Na sua natureza de conceito, Império “caracteriza-se fundamentalmente pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites”. Ele abrange todo o espaço e “nenhuma fronteira nacional pode con�nar o seu reinado” (ibidem, p. 14). Juntamente com o mercado global e com circuitos globais de produção, emergiram, portanto, uma nova ordem global e uma nova lógica e estrutura de comando, ou seja, uma nova forma de supremacia. “O Império é a substância política que, de fato, regula essas permutas globais, o poder supremo que governa o mundo.” Nesse contexto, “a soberania tomou nova forma, composta de uma série de organismos nacionais e supranacionais, unidos por uma lógica ou regra única. Esta nova forma global de economia é o que chamamos de Império” (ibidem, pp. 11, 12). [O Império] engloba a totalidade do espaço do mundo, apresenta-se como fim dos tempos, isto é, ordem a-histórica, eterna, definitiva, e penetra fundo na vida das populações, nos corpos, mentes, inteligência, desejo, afetividade. [...] O Império coincide com a sociedade de controle, tal como Deleuze, na esteira de Foucault, a havia tematizado. [...] Em lugar do espaço esquadrinhado pela família, escola, hospital, manicômio, prisão, fábrica, tão característicos do período moderno e da socidade disciplinar, a sociedade de controle funciona através de mecanismos de monitoramento mais difusos, flexíveis, móveis, ondulantes, “imanentes”, incidindo diretamente sobre os corpos e as mentes, prescindindo das mediações institucionais, antes necessárias, que de qualquer formar entraram progressivamente em colapso. (Pelbart, 2003, p. 81) O Império se de�ne, portanto, como um novo engendramento de forças constitutivo de uma outra forma de soberania expansiva, subsumida ao capital, em que o poder torna-se um regime de dominação da vida que, além de alvo desse poder, é também campo de resistência a ele. Vem daí o conceito de biopolítica que os autores abraçam. A vida tornou-se alvo de exploração. Portanto, o embate de forças dá-se no terreno biopolítico entre a soberania do Império que gera essa exploração e a Multidão, singularidades que geram o poder da vida. Hardt e Negri chamam a atenção para o fato de que, embora o Império exerça enormes poderes de opressão e destruição, isso “não deveria, de modo algum, nos deixar saudosos de outras formas de dominação”, pois nele brotam novas possibilidades para as forças de libertação. “As forçascriadoras da multidão que sustentam o Império são capazes também de construir, independentemente, um Contra-Império, uma organização política alternativa dos �uxos e intercâmbios globais. [...] A multidão terá de inventar novas formas democráticas e novos poderes constituintes que um dia nos conduzirão através e além do Império” (ibidem, p. 15). A MULTIDÃO COMO CONTRA-IMPÉRIO Os autores empregam o conceito de multidão em dois sentidos, remetendo a distintas temporalidades. O primeiro é um conceito eterno de multidão, baseado em Spinoza, segundo o qual, na complexa interação de forças históricas, através da razão e das paixões, a multidão cria uma liberdade chamada de absoluta. Sua natureza é ontológica. Disso deriva que “a faculdade de liberdade e a propensão por recusar a autoridade tornaram-se os instintos humanos mais saudáveis e nobres, os verdadeiros sinais de eternidade”. O segundo sentido é histórico. Uma multidão que nunca existiu até hoje. Mas parecem estar surgindo as condições culturais, jurídicas, econômicas e políticas que hoje tornam possível a multidão. Ambos os sentidos são inseparáveis. “Se a multidão não estivesse latente e implícita em nosso ser social, não poderíamos sequer imaginá-la como projeto político; da mesma forma, só podemos esperar realizá- la porque ela já existe como potencial real.” Juntando os dois sentidos, portanto, a multidão adquire uma estranha temporalidade dupla: “sempre-já e ainda-não” (Hardt e Negri, 2005, p. 286). Para alguns, a produção de multidão, defendida pelos autores, a�gura-se como um novo conceito de soberania, “uma identidade organizada semelhante aos velhos corpos sociais modernos, como o povo, a classe operária ou a nação”. Para outros, a noção de multidão composta de singularidades é confundida com pura anarquia. Diferentemente desses dois entendimentos, que não nos permitirão jamais compreender o que é multidão, é preciso romper com os velhos paradigmas e reconhecer um modo de organização social não soberano. Para isso, os autores recorrem ao conceito comparativo de carnaval em Bakhtin, visto que “a narração polifônica de Bakhtin coloca em termos linguísticos uma noção de produção do comum numa estrutura em rede aberta e disseminada” (ibidem, pp. 271-274). Além disso, é também preciso lembrar que “a dinâmica da singularidade e da multiplicidade que de�ne a multidão nega a alternativa dialética entre o Uno e o Muitos – são ambos e nenhum dos dois” (ibidem, p. 289). Negri é um especialista em Spinoza, e Hardt, em Deleuze. Essas são as fontes de onde extraíram a potência do conceito de Multidão. Para os autores, “a carne produtiva da multidão adquiriu a forma do corpo político global do capital, dividido geogra�camente por hierarquias de trabalho e riqueza e governado por uma estrutura multinivelada de poderes econômicos, jurídicos e políticos”. Diante disso, a tarefa que se propõem desenvolver é, entre outras, a de “investigar a possibilidade de que a carne produtiva da multidão venha a se organizar de outra maneira e descobrir uma alternativa para o corpo político global do capital” (ibidem, p. 247). Para isso, abandonam as nostalgias dos corpos sociais modernos que se dissolveram, vindo em seu lugar, uma espécie de carne social, uma carne que não é um cor po, uma carne que é comum, substância viva. [...] Puro potencial, uma força informe de vida, e plenitude da vida. [...] Do ponto de vista da ordem e do controle políticos, assim, a carne elementar da multidão é desesperadoramente fugidia, pois não pode ser inteiramente enfeixada nos órgãos hierárquicos de um corpo político. (Ibidem, p. 251) Precisamos, dizem eles, “escrever uma espécie de anti-De Corpore que vá contra todos os tratados modernos do corpo político, apreendendo essa nova relação entre o que é comum e o que é singular na carne da multidão”. Ambos, Hardt e Negri, são herdeiros de Foucault a partir do ponto de vista de Deleuze. Este reconheceu o monstro no interior da humanidade, pois é o homem o animal responsável pela mudança de sua própria espécie. Disso Hardt e Negri derivam a necessidade de “usar as expressões monstruosas da multidão para desa�ar as mutações da vida arti�cial transformadas em mercadorias, o poder capitalista de pôr à venda as metamorfoses da natureza, a nova eugenia que dá sustentação ao poder vigente. É no novo mundo dos monstros que a humanidade tem de agarrar o seu futuro” (ibidem, p. 256). De fato, Deleuze esteve atento às alterações da biopolítica quando os mecanismos de controle da vida tornaram-se cada vez mais ampliados nas novas formas de sujeição dos corpos por vias bioquímicas. Imagens, medicina, virtualidade levaram a uma domesticação crescente dos desejos e sensações humanas na constituição de um poder biopolítico, um regime subjetivo de controle permanente (Genaro, 2009). Nesse contexto, para Negri, a subjetividade possível hoje já não é a classe operária, mas a multidão, um conceito que implica outra concepção ampliada do trabalho e dos trabalhadores, que Hardt e Negri chamam de “capitalismo cognitivo”. CAPITALISMO COGNITIVO As novas formas de trabalho são um ponto de partida fundamental, pois, para Negri, tanto quanto para Marx, a ontologia humana está fundada no trabalho. Quando vivo, trabalho é força ontológica que hoje se constitui como imaterial. O nome, convenhamos, não é muito feliz (ver também Kurz, 2005). Felizmente, está muitíssimo bem de�nido em Hardt e Negri (2001). Para os autores, o trabalho imaterial envolve as novas tecnologias informacionais muitas vezes de cunho colaborativo, um tipo de colaboração que não é organizado de fora, mas é imanente à própria atividade. Não se pode negar que os setores de serviços da economia pós-moderna apresentam um modelo de comunicação produtiva. São serviços baseados na permuta contínua de informações e conhecimento. Assim, o nome “imaterial” deriva do fato de que as produções de serviços, produtos culturais, conhecimento e comunicação não resultam em um bem material e durável. É um tipo de trabalho que pode ser comparado com o funcionamento de um computador cujo uso cada vez mais amplo “tende progressivamente a rede�nir as práticas e relações de produção, juntamente com todas as práticas e relações sociais”. É que o computador se apresenta como a ferramenta universal ou central pela qual passam todas as atividades. “Mediante a informatização da produção, portanto, o trabalho tende à posição de trabalho abstrato.” Nesse tipo de trabalho, “a linha de montagem é substituída pela rede como modelo de organização da produção, alterando as formas de cooperação e comunicação dentro da cada lugar que produz e entre os lugares de produção”. Desse modo, “o circuito de cooperação é consolidado na rede e na mercadoria num nível abstrato”, do que deriva a desterritorialização dos lugares de produção. Estes tendem “à existência virtual, como coordenadas da rede de comunicação. Em oposição ao velho modelo vertical industrial e social, a produção tende, agora, a ser organizada em redes horizontais de empresas”. Ademais, “as redes de informação também liberam a produção das coações territoriais, na medida em que tendem a pôr o produtor em contato direto com o consumidor, independente da distância entre eles” (Hardt e Negri, 2001, pp. 311-317). Tal tipo de trabalho desmembra-se em três formas: o comunicativo, o interativo e o trabalho de produção e manipulação de afetos (ver também Lazzarato e Negri, 2001). Isso não se restringe ao trabalho intelectual. A produção pós-fordista tirou de cena a ideia do operário submetido à repetição automática de gestos mecanizados. A maior �uidez dos parâmetros do trabalho faz emergir o operário que se fortalece na condução criativa de sua rotina. Juntando, assim, a biopolítica com o capitalismo cognitivo do trabalho imaterial, Negri e Hardt detectam a emergência de uma forma de resistência inédita realizada pelas subjetividades, quer dizer, a multidão. A imanência da relação entre a produção e a política, Negri recolhe de Spinoza. Nesta era informacional,
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