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U N O PA R C U LTU RA B RA SILEIRA E IN TERC U LTU RA LID A D E Cultura brasileira e interculturalidade Iuri Aleksander Dias Fernandes de Souza Cultura brasileira e interculturalidade Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Souza, Iuri Aleksander Dias Fernandes de ISBN 978-85-8482-358-1 1. Identidade cultural. 2. Cultura - Brasil. 3. Cultura popular - Brasil. I. Título. CDD 981 Dias Fernandes de Souza. – Londrina : Editora e Distribuidora Educacional S.A., 2016. 184 p. S719c Cultura brasileira e interculturalidade / Iuri Aleksander © 2016 por Editora e Distribuidora Educacional S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Editora e Distribuidora Educacional S.A. Presidente Rodrigo Galindo Vice-Presidente Acadêmico de Graduação Mário Ghio Júnior Conselho Acadêmico Dieter S. S. Paiva Camila Cardoso Rotella Emanuel Santana Alberto S. Santana Regina Cláudia da Silva Fiorin Cristiane Lisandra Danna Danielly Nunes Andrade Noé Parecerista Fábio Pires Gavião Editoração Emanuel Santana Cristiane Lisandra Danna André Augusto de Andrade Ramos Daniel Roggeri Rosa Adilson Braga Fontes Diogo Ribeiro Garcia eGTB Editora 2016 Editora e Distribuidora Educacional S.A. Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza CEP: 86041-100 — Londrina — PR e-mail: editora.educacional@kroton.com.br Homepage: http://www.kroton.com.br/ Unidade 1 | Cultura popular brasileira Seção 1 - O sentido da cultura 1.1 | Cultura popular: um conceito híbrido Seção 2 - As manifestações da cultura no Brasil 2.1 | Bumba-meu-boi 2.2 | Os festejos de carnaval 2.3 | Os batuques de terreiro: batidas vindas da África 2.4 | Festas juninas 2.5 | Congadas 2.6 | Folia de reis 2.7 | A cavalhada 2.8 | Lendas e mitos do folclore brasileiro 2.9 | Brincadeiras populares Seção 3 - A cultura popular em tempos de globalização: do esvaziamento de sentido à ampliação de possibilidades 3.1 | A cultura popular na globalização Unidade 2 | Identidade cultural Seção 1 - Cultura e identidade 1.1 | O que é cultura? 1.2 | A globalização, a cidade e as identidades Seção 2 - Identidade Nacional 2.1 | Construção histórica da identidade brasileira 2.2 | O que é ser brasileiro? 51 55 55 68 73 73 82 Unidade 3 | Manifestações artísticas Seção 1 - Arte brasileira: da Pré-História ao início da república 1.1 | Arte rupestre 1.2 | Arte marajoara e cultura Santarém 1.3 | O barroco brasileiro 1.4 | Missão Artística Francesa 1.5 | A Arte Acadêmica 93 97 97 98 100 106 108 Sumário 7 11 11 17 17 22 28 31 33 34 35 35 38 41 41 1.6 | A arte do início da República Seção 2 - Arte moderna e contemporânea no Brasil 2.1 | Modernismo 2.1.1 | Semana de 22 2.1.2 | Principais artistas do primeiro período modernista 2.2 | Segunda e terceira gerações dos modernistas brasileiros 2.3 | Arte contemporânea brasileira 2.3.1 | Anos 1950 2.3.2 | Anos 1960: Neoconcretismo e Tropicália 2.3.4 | Anos 1970: a arte conceitual 2.3.5 | Anos 1980: o retorno da pintura 2.3.6 | Novos paradigmas: dos anos noventa até o presente 110 113 113 114 115 120 124 124 127 129 130 132 Unidade 4 | Arte e artesanato Seção 1 - Artesanato: conceitos e funções 1.1 | Arte e artesanato 1.2 | Conceitos básicos do artesanato brasileiro 1.2.1 | Artesão 1.2.2 | Mestre artesão 1.2.3 | Arte popular 1.2.4 | Trabalho manual 1.2.5 | Matéria-prima 1.2.6 | Técnica 1.3 | Funções do artesanato Seção 2 - Diversidade: Materiais, Técnicas e Regionais 2.1 | Materiais e técnicas 2.2 | O artesanato e as regiões 141 145 145 147 148 148 149 150 150 153 154 157 157 166 Apresentação Olá, aluno! Apresento a você o livro da disciplina Cultura Brasileira e Interculturalidade. No correr das páginas, você terá a oportunidade de conhecer as diferentes expressões culturais e artísticas que estão presentes no nosso país, as suas origens e influências, bem como a importância delas na construção de uma identidade brasileira. O conteúdo será abordado de forma objetiva, clara e crítica. O importante, caro aluno, é que você consiga associá-lo a suas experiências de vida, para que ele se torne realmente significativo e o seu aprendizado aconteça de forma efetiva. Assim, espero que o livro possa auxiliá-lo e, também, instigá-lo nesta jornada que será desbravada a cada nova página. A unidade 1, "Cultura Popular Brasileira", é constituída por três seções. Na primeira seção, "O sentido de cultura popular", o conceito de cultura popular será abordado sob a perspectiva de autores que o estudam. Na segunda seção, "As manifestações da cultura popular no Brasil", você terá a oportunidade de percorrer os diferentes lugares e modos de expressão da nossa sociedade. Já na terceira seção, "A cultura popular em tempos de globalização: do esvaziamento de sentido à ampliação de possibilidades", você perceberá que a tradição não é um elemento imóvel e que ela está em constante reformulação. Na unidade 2, "Identidade Cultural", será abordado o conceito de identidade, bem como o de cultura, globalização e todos seus desdobramentos, na tentativa de indicar uma possível identidade nacional dentro de uma conjuntura surpreendentemente complexa e diversificada que é nossa cultura. Na primeira seção, "Cultura e Identidade", você poderá conhecer aspectos e perfis que envolvem a noção de identidade, tendo como base a cultura brasileira, sendo exemplificada por meio de diversas manifestações artísticas e culturais. Na segunda seção, "Identidade Nacional", você entrará em contato com os diferentes diagnósticos da identidade nacional ao longo de nossa história e verá como ela se manifesta no indivíduo e nos povos que compõem uma nação. Na unidade 3, "Manifestações Artísticas", você será levado a conhecer os períodos artísticos ocorridos no Brasil e poderá analisar de que modo se expressa a arte na atualidade. A primeira seção, "Arte brasileira: da pré-história ao início da república", irá apresentar a arte brasileira que compreende o período anterior à chegada dos portugueses até as suas influências clássicas e acadêmicas. Na segunda seção, "Modernismo e arte contemporânea no Brasil", traremos arte brasileira do século XX e XXI e seus principais nomes. Por fim, a unidade 4, Arte e Artesanato, é composta por duas seções. Na primeira seção, "Artesanato: Conceitos e funções", serão expostas as prováveis significações, os conceitos práticos e as funções que o artesanato pode apresentar. Na segunda seção, "Diversidade: materiais, técnicas e regionais", você poderá observar os materiais e as técnicas mais comuns no artesanato brasileiro e como ele se estabelece nas diferentes regiões do Brasil. Ótima leitura e bons estudos! Unidade 1 CULTURA POPULAR BRASILEIRA Nesta seção, iremos abordar o conceito de cultura popular tendo como base alguns autores que debatem esse termo, explanando pontos de vista diversos, tanto do passado como da atualidade. Com o intuito de valorizar a diversidade cultural no cenário nacional, na segunda seção, você terá a chance de percorrer os diversos cantos do Brasil e perceber os modos como cada sociedade se expressa por intermédio de suas festas, danças e músicas. Também explanaremos os saberes populares transmitidos através das tradições orais que se manifestam nas lendas e costumes dos povos. Já na terceira seção, o nosso foco está em mostrar que a tradição não é algo Seção 1 | O Sentido da Cultura Popular Seção 2 | As Manifestações da Cultura Popular no Brasil Seção 3 | A Cultura Popular em Tempos de Globalização: do Esvaziamento de Sentido à Ampliação de Possibilidades Objetivos de aprendizagem O objetivo desta unidade é mostrar a importânciade conhecer os aspectos que caracterizam a cultura popular brasileira nas suas mais diversas manifestações. Você, leitor, perceberá que a cultura popular do Brasil e suas singularidades são resultantes de uma sociedade ricamente heterogênea, o que reflete em manifestações das mais variadas naturezas e traços. Iuri Aleksander Dias Fernandes de Souza Cultura popular brasileira U1 8 estático, que se mantém inalterado com o passar do tempo, mas, ao contrário, está sempre em constante reforma, sendo um misto de tradição e inovação, permanências e revoluções. Cultura popular brasileira U1 9 Introdução à unidade O que é cultura popular brasileira? Quais suas características? Qual a importância dela na constituição de uma identidade nacional? Nesta unidade, buscaremos responder a essas e outras questões. Para isso, faremos uma abordagem sobre as festas, danças, música, folclore, ritos e mitos, levantando os aspectos simbólicos e estéticos, assim como suas origens e as relações que estabelecem com as comunidades e os espaços no qual acontecem. Você poderá perceber que a cultura popular brasileira não está somente fundamentada em tradições imóveis no tempo e espaço, mas, antes, se manifesta em meio a inúmeras trocas e hibridações estabelecidas entre povos e suas culturas, bem como entre as heranças do passado e as novidades do presente. Cultura popular brasileira U1 10 Cultura popular brasileira U1 11 Seção 1 O sentido de cultura popular Nesta seção, iremos abordar as possíveis definições de cultura popular, apresentando diferentes pontos de vista. Você perceberá que o conceito de cultura popular não é estático e pode ser lido e interpretado de diferentes formas, de acordo com o tempo e o lugar. Veremos que, no passado, o popular, o erudito e a cultura de massa eram tidos como imutáveis, mas na contemporaneidade, cada vez mais tem-se aceito que essas três instâncias na verdade estão constantemente se interligando num processo de hibridação, e é esse pensamento que nos dará respaldo para tratar da cultura popular brasileira ao longo desta unidade. 1.1 Cultura popular: um conceito híbrido Ao abordar a cultura na modernidade, Arão Souza (2010, p. 1) diz que “as sociedades (o ser humano) são moventes e, à medida que elas/eles se movem, o seu habitat se transforma, se reinventa”. Como ser movente, consequentemente, as culturas do homem também passam a ser. Ou seja, podemos dizer que a cultura é algo que está sempre se reinventando e estabelecendo trocas. Esse é o pensamento hegemônico sobre a cultura na atualidade. Mas ao voltarmos um pouco no tempo, veremos que ouve momentos em que essa ideia ainda não era percebida, ou era simplesmente ignorada pelos antropólogos em prol de classificações fechadas e lineares, como foi o próprio entendimento de cultura popular, tida como algo quase oposto ao erudito. Basicamente, presumia-se que a cultura popular, erudita e de massa não se misturavam, sendo cada uma detentora de definições específicas. Algumas características estavam relacionadas a cada uma das culturas: • A cultura popular era entendida como aquela que possui um caráter de tradição, ligada à oralidade, permanência e coletividade. Era normalmente associada aos camponeses. Cultura popular brasileira U1 12 Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Festa_de_São_João!.jpg?uselang=pt- br>. Acesso em: 29 mar. 2016. Fonte: Pixabay. Disponível em: <https://pixabay.com/pt/bal%C3%A9-bailarina-desempenho-534357/>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.1 | Festa junina: cultura popular brasileira Figura 1.2 | Ballet: cultura erudita • A cultura erudita, por sua vez, valoriza o indivíduo criador, a obra pensada e racionalizada dentro de um processo de estudos. Apesar de ter entre seus criadores personagens de origens humildes, seus consumidores eram as classes mais abastadas. Cultura popular brasileira U1 13 • A cultura de massa seria aquela que se apropria da cultura popular e erudita transformando-as em produtos para serem reproduzidos e comercializados. É uma consequência do processo de industrialização e estava vinculada ao proletariado do meio urbano. Porém, apesar dessas definições ainda serem usadas, segundo Néstor García Canclini, antropólogo argentino nascido em 1939 e pesquisador das culturas na contemporaneidade, “muitos são os fatos que vem conspirando contra essa rigorosa distinção entre os sistemas simbólicos” (CANCLINI, 1983, p. 52). Já Abreu (2003, p. Fonte: Istock. Disponível em: <http://www.istockphoto.com/vector/monster-stealing-a-pretty-lady-gm467825050- 61360038?st=a804c8a>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.3 | Histórias em quadrinhos: cultura de massa Cultura popular brasileira U1 14 9), seguindo na mesma linha do outro autor, irá dizer que “pensar a interação e compartilhamento entre estas culturas seria sempre uma boa opção”. Ou seja, apesar dessas três instâncias ainda serem utilizadas numa análise da estrutura cultural, seus limites nunca foram bem definidos e, de umas décadas pra cá, com o surgimento da cultura de massa, as fronteiras entre uma e outra têm se tornado cada vez mais difusas e maleáveis. É possível ver a presença do popular no erudito, do massivo popular e do erudito no popular. Vocês conhecem as composições clássicas e as adaptações para corais de Heitor Villa-Lobos? Apesar de ser o protagonista da música modernista brasileira na primeira metade do século XX, encontramos em suas composições a incorporação de elementos da música popular. Muitas de suas canções carregavam a ousadia de uma estética modernista, em compasso com as influências de diversas regiões do Brasil. Por meio do canto de coral e da orquestra sinfônica, enalteceu cantigas infantis tradicionais, além de canções indígenas e negras. E, nas bandas de tocadores presentes em diversas festas populares, você já percebeu que muitos instrumentos tocados eram usados em orquestras europeias? Alguns grupos populares se apropriaram de elementos tidos como da cultura “culta” ou erudita usando-os à sua maneira. Na tradicional procissão baiana da Nossa Fonte: Álbum Itaú Cultural. Disponível em: <http://albumitaucultural.org.br/radios/villa-lobos/>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.4 | Heitor Villa-Lobos Ouça a interpretação do coral Madrigal Renascentista interpretando a adaptação de Villa-Lobos para "Nozani-ná", canção dos índios parecis: YOUTUBE. Madrigal Renascentista - Nozani-ná (Villa-Lobos). 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LWItVl1n3LY>. Acesso em: 29 mar. 2016. Cultura popular brasileira U1 15 Senhora da Boa Morte, em meio a outros instrumentos populares, encontramos violinos e clarinetes, típicos das orquestras sinfônicas de música erudita. A partir de seus estudos sobre as culturas populares nos países latino-americanos, incluindo o Brasil, Canclini, em seu livro Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade (1997), traçou o conceito de hibridismo. Segundo ele, o legado latino-americano de abrigar ao longo da história uma gama de diferentes povos levou à perpetuação de culturas ricas em misturas. No Brasil, as tradições populares ainda permanecem de modo bastante vivo na vida das pessoas. Podemos defini-las como o conjunto de criações e manifestações espontâneas, originais e autênticas, nascidas e consumidas pelos próprios sujeitos que as geraram. Porém, cada vez mais recebem influência das novas tendências da modernidade. Nisso, nossa cultura também acaba por se encontrar no misto daquilo que permanece através das tradições passadas de geração para geração, e das novas influências que surgem diante de um olhar crítico e criador das novas gerações. Vendo a atual situação no que se refere às influências dos meios de comunicação e da globalização, você considera a possibilidade de que um dia a cultura popular possa vir a deixar de existir? 1. Quais são as três esferas que alguns teóricos do passadousavam como forma de categorizar diferentes culturas? 2. Dando sequência à questão anterior, tendo como base o pensamento de Néstor Canclini, pode-se dizer que essas três instâncias são independentes? Por quê? Cultura popular brasileira U1 16 Cultura popular brasileira U1 17 Seção 2 As manifestações da cultura popular no Brasil Ao longo desta seção, vocês poderão conhecer uma pequena parcela da cultura popular brasileira por meio de suas manifestações nas festas, músicas, mitos, religiosidades e brincadeiras. Devido à imensa multiplicidade da cultura em nosso país, não será possível tratar de tudo que ela tem a oferecer. Porém, esperamos mostrar o quão rica e diversa é a expressão popular brasileira, traçando suas raízes, os diálogos entre as culturas negra, indígena e europeia e as suas diversas variações de acordo com as regiões. 2.1 Bumba-meu-boi Assim como o carnaval, a encenação do Bumba-meu-boi é uma das manifestações culturais mais conhecidas do Brasil. Ela é marcada pela incorporação de simbolismo religioso e assimilação das tradições culturais de diversos povos, revelando características que se moldam nas várias regiões do país, prevalecendo as culturas negra, indígena e europeia. A tradição do Bumba-meu-boi é, antes de tudo, "uma grande celebração na qual se confundem fé, festa e arte, numa mistura de devoção, crenças, mitos, alegria, cores, dança, música, teatro, artesanato, entre outros elementos" (IPHAN, 2011, p. 8). Em todas as festas de Bumba-meu-boi, prevalece na indumentária o colorido vibrante, o brilho, os símbolos, as texturas e o movimento, na utilização de elementos como as fitas, as lantejoulas, as miçangas, as plumas, os desenhos e os diversos tecidos. Diferente do que é hoje, houve um momento em que as festas de Bumba- -meu-boi não eram bem aceitas pela comunidade branca, pois estavam ligadas às classes menos privilegiadas. No século XIX, essa manifestação popular era vista como uma brincadeira agressiva, barulhenta e atentadora da moral. Daí ter sido proibida, censurada, controlada e repudiada Cultura popular brasileira U1 18 publicamente pelas classes mais abastadas, sendo reprimida pelos órgãos estatais, chegando a ser proibida a sua apresentação, por ordem da polícia, no período de 1861 a 1867. Essa aversão se deu, pode-se dizer, por ser uma brincadeira produzida efetivamente por negros, escravos, índios e alguns mestiços dos setores populares (CASTRO, 2008, p. 7). A música é um dos principais elementos da festa. Ela é resultado da combinação de músicos talentosos acompanhados de suas zabumbas, matracas, pandeiros e tambores; do canto coletivo de todos que participam e assistem; e do belo ritmo da toada, estilo musical de melodia simples que narra as peculiaridades os costumes regionais, podendo também abordar temas mais amplos, como problemas sociais, política, entre outros. Apesar de se manifestar com características próprias de cada região, há alguns personagens comuns a todas as festas do Bumba-meu-boi, como o Pai Francisco, a Catirina e o próprio Boi, sendo que o enredo se desenvolve em torno desses personagens. O Pai Francisco, que surge como o vaqueiro, e Catirina, sua esposa grávida, que surge como a trabalhadora do campo, ambos representados como a figura do trabalhador negro, são presos pelos vaqueiros e/ou índios a mando do coronel após matarem o belo boi do patrão, para que a mulher pudesse satisfazer o desejo de comer a língua do animal. A custo de muita música e dança, o animal é Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Boi-bumb%C3%A1#/media/ File:Festival_Folcl%C3%B3rico_de_Parintins.jpg>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.5 | A festa do Boi de Parintins Cultura popular brasileira U1 19 revivido pelo pajé. Com sua volta, todos festejam o acontecimento. A moral do alto gira em torno da ideia de que, um dia, o boi deixe de pertencer ao patrão e torne-se do povo, como uma alegoria que representa o desejo de mudança e melhorias na vida do povo trabalhador. Além dos personagens da trama central, outras figuras compõem a festa, tais como os brincantes, os caboclos, as índias, os vaqueiros, os instrumentistas e os personagens folclóricos próprios de cada região. Como foi dito anteriormente, existem diversas expressões do boi no território nacional, sendo a festa do Boi de Parintins, certamente, a maior e mais conhecida. Nela, o momento mais importante é a disputa entre os bois Garantido (branco) e Caprichoso (preto) que disputam a simpatia do público, vencendo aquele que, com sua dança, fizer o público mais se animar. O Boi de Parintins é marcado pela forte presença dos caboclos e das tribos indígenas, bem como de figuras lendárias da Amazônia, como o Curupira. Inspirado na cultura negra e indígena, o Boi de Parintins surge como uma forma de valorização e preservação da identidade regional amazonense. Fonte: Anderson França. Disponível em: <http://maranhaomaravilha.blogspot.com.br/2014/03/carnaval-na-passarela-chega- ao-fim-com.html>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.6 | Catirina e pai Francisco na festa do boi do Maranhão Cultura popular brasileira U1 20 Fonte: Melhores Destinos. Disponível em: <https://osmelhoresdestinos.wordpress.com/2015/06/17/desbravando-a- amazonia/>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.7 | Garantido e caprichoso: festa do Boi de Parintins Nos primórdios de seu surgimento, a festa do boi no Amazonas acontecia de forma simples nas ruas, casas e quintais, mas, com o tempo, devido ao aumento de seu prestígio e número de adeptos, passou a ser realizada em uma grande arena e a receber altos investimentos e atenção midiática. No Maranhão, a festa do Bumba-meu-boi é o principal evento das comemorações juninas, marcadas como homenagem a São João, Santo Antônio e São Pedro. É contextualizada pelo período colonial, enfatizando como questões centrais a escravidão, o trabalho nas lavouras e a religiosidade cristã. O Boi de Reis de Minas e Pernambuco, diferente das demais festas do boi que se desenvolvem junto com as comemorações juninas, acontece no compasso das Folias de Reis, unindo a temática do nascimento de Jesus e dos três Reis Magos, com o folguedo do Bumba-meu-boi. Apesar da beleza exuberante e da grandiosidade da festa do Boi de Parintins, hoje conhecida como a segunda maior festa popular do mundo, atrás apenas do carnaval, muito se tem questionado sobre o excesso de espetacularização da festa. Seus críticos falam da perda do sentido original do cortejo do boi na relação com o povo, que produz e assiste, para surgir como um grande entretimento de massa, envolvendo estratégias para atrair investimento capital e visibilidade nacional e internacional. Diz-se de um desenraizamento da cultura popular para buscar estratégias inovadoras para capturar seus espectadores. Cultura popular brasileira U1 21 Fonte: Diário do Sol. Disponível em: <http://diariodosol.com.br/noticias/2013/08/boi-de-reis-e-o-coco-de-roda-em- mipibu/>. Acesso em: 29 mar. 2016. Fonte: Espaço Cultural Casa do Bruxo. Disponível em: <http://casadobruxoespacocultural.blogspot.com.br/p/cultura- popular-de-santa-catarina.html>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.8 | O Bumba-meu-boi na Festa de Reis Figura 1.9 | A Bernúncia O boi de Mamão, por sua vez, espalhou-se pela região sul do Brasil, agregando-se à cultura tradicional gaúcha por meio da incorporação dos vaqueiros e das prendas. Além do boi, outro personagem icônico dessa festa é a Bernúncia, espécie de bicho- -papão que assusta as crianças. Podemos citar, também, a festa do Cavalo-Marinho nordestino, que, apesar do nome, é fundamentada no auto do Bumba-meu-boi. Nessa festa, o boi divide o protagonismo com o coronel montado em seu cavalo alegórico. Um momento marcante é a dança dos arcos, na qual os brincantes se cruzam, movimentando belos arcos cobertos de fitas coloridas. Cultura popular brasileira U1 22 Fonte: Arte Educação. Disponível em:<http://arteeducacao2011.blogspot.com.br/2011/09/cavalo-marinho-do-mestre- zequinha.html>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.10 | Dança dos arcos Como pudemos ver, a festa de Bumba-meu-boi se espalhou por todo o Brasil, adquirindo singularidades próprias ligadas às culturas locais, todas dotadas de beleza e significados particulares. Isso se deve tanto pela extensão do nosso território como, principalmente, pela heterogeneidade cultural construída ao longo da história do país. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tem disponível em seu site o dossiê do registro do Bumba-meu-boi como Patrimônio Cultural do Brasil. Ele contém informações sobre a história e os saberes e tradições que envolvem a festa do boi do Maranhão. Dispõe também de um rico acervo de imagens referentes à festa. Confira: IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/>. Acesso em: 29 mar. 2016. 2.2 Os festejos de carnaval As festas de carnaval, apesar do aparente caráter profano, têm suas origens ligadas à religião católica. Tradicionalmente, seus preparativos iniciam-se logo após os festejos natalinos e vão até a quarta-feira de cinzas. Mas, dependendo da cultura de cada lugar, podem haver comemorações antes ou após este período. A origem da festa remonta aos antigos bailes de máscaras de Veneza e da França. A partir Cultura popular brasileira U1 23 Fonte: Arqtodesca. Disponível em: <http://arqtodescadois.blogspot.com.br/2010/11/brasil-1818.html>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.11 | Jean-Baptiste Debret, Marimba (Passeio de domingo à tarde), 1826 do século XIX, chega ao Brasil trazido pelos portugueses e, muito diferente do que é hoje, era festejado apenas pela aristocracia do Rio de Janeiro. Porém, as classes menos favorecidas economicamente, predominantemente formadas por negros, passaram a fazer seus próprios carnavais e, influenciadas pelas músicas e danças de origem africanas, formaram os blocos e os cordões de carnaval presentes até hoje. No Rio de Janeiro, além dos blocos de rua, nasceram as escolas de samba que até hoje organizam anualmente grandes desfiles de carros alegóricos. Como o próprio nome diz, o samba é o ritmo predominante, seja na bateria, no samba-enredo ou entre as passistas. O cortejo das escolas é dividido em alas, sendo elas a comissão de frente, o mestre-sala e a porta-bandeira, as baianas, a bateria e as alegorias. A comissão de frente tem por função abrir o desfile saudando o público e apresentando o samba enredo. O mestre-sala e a porta-bandeira são a representação da nobreza do século XVIII, trajando fantasias volumosas, com muito brilho e detalhes. A ala das baianas é uma homenagem às tias que amparavam os sambistas no passado e é também uma A palavra “carnaval” tem sua origem na expressão italiana carne levare, que significa “adeus à carne”, numa referência ao período abstinência e jejum da quaresma, quando os fiéis deveriam abdicar das tentações mundanas, entre elas, comer carne. Cultura popular brasileira U1 24 referência às origens do próprio samba na Bahia. A bateria é formada pelos músicos que tocam, entre outros instrumentos, tamborim, pandeiro, reco-reco, tarol, cuíca e repinique. Já a ala alegoria tem como principal função ilustrar, por meio das fantasias e carros alegóricos, o tema abordado no samba-enredo. Ao final, o que permanece é a alegria das passistas, a tradição e as raízes das baianas, a euforia da bateria e a exuberância e imponência das fantasias e carros alegóricos. Ainda no Rio de Janeiro, sobretudo nas periferias, encontramos nos dias de carnaval os Bate-bolas, ou simplesmente Clóvis. Foliões trajando coloridas e impetuosas fantasias de palhaços saem pelas ruas importunando as pessoas que encontram pelo caminho. No passado, cada mascarado levava nas mãos uma bola de cheiro forte feita de bexiga de boi, fazendo com que as pessoas corressem amedrontadas. Hoje, além das máscaras, casacas, sombrinhas, bandeiras e bonecos, cada um segue batendo uma bola de plástico no chão, o que aumenta ainda mais a apreensão daqueles que perambulam pelas ruas. Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:GRES_Portela_in_2009_-_Mestre_ sala_e_Porta_Bandeira_(3507377591).jpg?uselang=pt>. Acesso em: 29 mar. 2016. Fonte: Imagens do Povo. Disponível em: <http://www.imagensdopovo.org.br/blogip/page/14/>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.12 | Mestre-sala e porta-bandeira da Portela Figura 1.13 | Grupo de bate-bolas do Rio do Janeiro Cultura popular brasileira U1 25 Na Bahia, a principal marca do carnaval são as folias nas ruas ao ritmo do axé e dos trios elétricos. Assim como o carioca, o carnaval de rua baiano, originalmente ligado às classes mais pobres, surgiu em oposição aos carnavais em clubes privados. A partir do sexto dia que antecede a quarta-feira de cinzas, os blocos e os foliões saem para as ruas de Salvador atrás do trio elétrico, que pode ser um caminhão ou ônibus, local onde ficam os músicos que animam a festa. Dentre os elementos mais tradicionais e emblemáticos estão os blocos afros e os afoxés. O primeiro bloco de designação afro foi o Ile Aiyê, sendo ainda hoje o maior e mais influente. A principal marca do Ile Aiyê e de outros é exaltação da cultura afro-brasileira, que se evidencia por meio dos cânticos cadenciados ao ritmo dos tambores; da vestimenta, em que as padronagens geométricas e o colorido fazem referência às indumentárias típicas de povos africanos; e do movimento presente na dança que evidencia a relação com os rituais do candomblé, religião de origem afro praticada no Brasil. Uma característica marcante desses blocos é a postura em relação a questões sociais, como afirma Elias Guimarães (2001, p. 3): Ou seja, os blocos afros têm como principal fundamento a preservação e propagação da cultura afro-brasileira por meio dos elementos estéticos e artísticos, bem como pela valorização do negro, agindo socialmente dentro das comunidades e pela mídia no combate ao racismo e aos processos de exclusão social. Fonte: Decolar. Disponível em: <http://www.decolar.com/blog/eventos/carnaval-de-salvador>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.14 | Multidão no carnaval de Salvador O movimento realiza não somente as atividades carnavalescas, mas também ações sociais, como a luta contra o racismo e a discriminação, conjugando vontades, interesses, apropriação de espaços, postura de resistência, consciência e valorização do ser negro. Cultura popular brasileira U1 26 Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Il%C3%AA_Aiy%C3%AA_ (6472510471).jpg?uselang=pt-br>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.15 | Bloco Ile aiyê Como os blocos afros, os afoxés se tornaram símbolo do carnaval baiano e de expressão afro. Influenciados pela cultura dos povos iorubas africanos, os seguidores do afoxé são, em geral, adeptos do candomblé. Levam para as ruas nos dias de carnaval, além da animação e das mensagens de paz, um pouco dos ritos e da cultura dos terreiros. Há muito tempo, o maior e, para muitos, o mais belo afoxé na Bahia foi o grupo Filhos de Gandhy, propagadores da cultura Nagô. Desde seu surgimento, na década de 1940, seus integrantes esforçam-se em preservar os aspectos tradicionais do grupo, que vai desde a clássica indumentária azul e branca, os turbantes, colares, até a restrição à partição de mulheres. Também existe um esforço em manter o comportamento e os princípios durante os desfiles. Toda a estrutura dessa festa provém da ritualidade, as roupas são ricamente ornamentadas com panos-da-costa, fios de conta e torso nas cores do orixá patrono; o ritmo musical é o “Ijexá”, que, proveniente do candomblé, além de caracterizar a musicalidade também define os mitos da cultura ioruba. Os instrumentos do “Ijexá” são os agbê’s, atabaques, agogôs e xequerês; a dança é ritmada da mesma forma em que ocorre no terreiro,pois na verdade tratam-se de homenagens aos orixás, tendo por vezes algumas pessoas vestidas com a roupa que simboliza o Orixá (MATRICARDI, 2011, p. 2). Cultura popular brasileira U1 27 Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Filhos_de_Gandhy_-_Bahia. jpg?uselang=pt-br>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.16 | Filhos de Gandhy Já em Pernambuco, a maior expressão do carnaval é o Frevo. Surgiu, entre o século XIX e XX, da combinação de ritmos, como as polcas, a capoeira, o ballet, as marchinhas carnavalescas e as bandas marciais. Toda essa mistura resultou em uma dança alegre e colorida, rica em acrobacias e expressividade. Assim como em outras festas, o frevo deriva da união de expressões da cultura erudita, como o ballet, em comunhão com as de origem popular, tal como a capoeira e as marchinhas. Além dos movimentos complexos (ao mesmo tempo alegres e cativantes), algumas das suas principais características são o colorido dos trajes e a sombrinha, que se tornou o símbolo da festa. Apesar de ser uma expressão tipicamente pernambucana, e sua prática ainda se restringir ao nordeste, o frevo é conhecido em todo Brasil, dado seu poder de encantamento. O nome “Filhos de Gandhy” é uma homenagem ao líder religioso indiano Mahatma Gandhi, um dos mais conhecidos disseminadores dos princípios de paz e não violência. Cultura popular brasileira U1 28 Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Passistas_de_Frevo.jpg?uselang=pt- br>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.17 | Passistas de frevo 2.3 Os batuques de terreiro: batidas vindas da África Os escravos que vieram da África para o Brasil não trouxeram somente seus braços e mãos para o trabalho forçado nas lavouras e casas dos senhores de engenho, mas nos presentearam com os ritmos dos tambores tocados no outro lado do Atlântico. Em seus momentos de folgas, os escravos africanos se reuniam para fazer suas festas e tocar seus tambores e festejar os batuques. A própria palavra do ponto de vista etimológico tem origem no continente africano. Segundo Luis Nassif (2015), “a palavra ‘Batuque’ se originou da palavra ‘Batukajé’, um termo Bantu, numa referência ao bater dos tambores”. Vale também ressaltar a relação dos batuques de terreiro com o candomblé, em que o próprio tambor é tido como um instrumento sagrado, sendo tocado do início ao fim das cerimônias. Atualmente, os ritmos de batuque se espalharam de norte a sul do Brasil, adquirindo formas específicas ligadas as suas origens e contexto no qual se inserem hoje. Todas elas se combinaram e recombinaram, tanto entre si quanto com outras danças, de maneira a dar uma grande variedade de espécies herdeiras do batuque. Essas danças se Cultura popular brasileira U1 29 Entre as diferentes manifestações dos batuques, podemos citar o jongo, o batuque de umbigada, o tambor de crioula, o samba de roda e de partido alto, entre outros. O jongo é uma dança de roda que se mantém desde os tempos da escravidão. Alguns homens tocam seus atabaques, enquanto que os demais, juntamente com as mulheres, dançam ao toque das batidas. No centro, um casal dança de forma mais enérgica. Uma figura importante na festa é o jongueiro que narra o “ponto”, espécie de charada cantada em versos que deve ser decifrada pelo oponente. O batuque de umbigada leva esse nome pela presença de um movimento conhecido como “punga”, no qual os dançarinos impulsionam a cintura um em direção ao outro, tocando suas barrigas. Esse movimento representa a fertilidade, a fecundidade da vida, seja do ser humano, do plantio ou da colheita na lavoura. distribuíram por todo o Brasil, marcadas por três grandes zonas de incidência, onde evoluíram distintamente da dança rural, diversão de escravos para dança urbana e mesmo social (SANTOS FILHO, 2008, p. 44). Se os Estados Unidos também tiveram mãos de obra de escravos vindos do continente africano, por que lá não possui, como no Brasil, os sons regados aos tambores? Isso se deve a uma lei que proibia os negros de tocar seus instrumentos, pois os brancos presumiam que as festas com batuques sempre antecediam rebeliões e protestos dos escravos. Sem os tambores, os negros tinham como únicos instrumentos as mãos, os pés e a voz. Isso levou ao surgimento desde os cânticos gospel até a capela, ritmados pelas palmas e pelo sapateado. Cultura popular brasileira U1 30 Fonte: A Roda dos Brincantes. Disponível em: <http://arodadosbrincantes.blogspot.com.br/2012/03/dancas-de-umbigada. html>. Acesso em: 29 mar. 2016. Fonte: IPHAN. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/63>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.18 | A Punga no batuque de umbigada Figura 1.19 | Tambor de crioula O tambor de crioula é uma festa para homenagear São Benedito e pode acontecer nos festejos juninos, como a celebração do Bumba-meu-boi. Assim como em outros batuques, estão presentes os tocadores de atabaque e a punga, mas uma de suas particularidades é que as mulheres dançam e rodopiam, levantando lindas e leves saias de padrões florais. O samba de roda surgido na Bahia no século XIX e dançado principalmente pelos trabalhadores negros das lavouras de cana pode ser considerado o pai do samba moderno. Como outros batuques, é organizado em formato de roda, sendo que, ao centro, um único dançarino samba, enquanto que os demais integrantes cantam e tocam instrumentos como pandeiro, violas, atabaques, berimbaus, chocalhos e Cultura popular brasileira U1 31 Fonte: Hebreu Suburbano. Disponível em: <http://hebreu-suburbano.blogspot.com.br/2010/09/samba-documentario- sobre-o-partido-alto.html>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.20 | Amigos tocando bamba de partido alto pratos de cozinhas, que são raspados com uma faca. Findado o ciclo da cana-de-açúcar, essa dança foi se tornando cada vez mais urbana e, devido ao crescente deslocamento de trabalhadores para o Sudeste, o samba de roda chegou à cidade do Rio de Janeiro, adquirindo uma nova cara. Com isso, tornou-se o samba de partido alto, ou simplesmente o samba carioca, conhecido e difundido em todo território nacional por todos os meios de comunicação. O samba de partido alto tornou-se tipicamente urbano, sendo realizado principalmente nos morros, locais em que se encontram as classes mais pobres. Sua celebração traz consigo um sentimento de coletividade, envolvendo música, dança, comidas, bebidas e conversas. O pandeiro, o cavaquinho, o violão e a cuíca dão o ritmo da festa. Como podemos perceber, todos os batuques de terreiro, apesar de receberem características próprias de cada lugar em que foram difundidos, mantêm suas principais características que se ligam diretamente a aspectos da cultura de países africanos, como Congo, Angola e Moçambique, de onde veio a grande maioria dos escravos. Diferente das festas de carnaval, que se originaram a partir de festejos tipicamente europeus e que, com o tempo, adquiriram novas faces ao serem incorporadas às culturas indígenas e negras, os batuques são, desde sempre, uma expressão da cultura africana no Brasil. Desse modo, os batuques reafirmam a força, a importância e a beleza da cultura negra no Brasil e a sua relevância na formação de nossa identidade. 2.4 Festas juninas As festas juninas fazem parte do ciclo em homenagem a São João, São Pedro e São Paulo, sendo comemoradas pelos europeus muito antes de chegarem por Cultura popular brasileira U1 32 aqui. Na época do descobrimento como forma de lembrar São João, os jesuítas acendiam grandes fogueiras e tochas que atraíam a atenção dos índios. Com isso, a fogueira tornou-se um dos principais símbolos das festas de São João. Também representava o momento de preparação para o plantio e colheita do alimento. Hoje, as comemorações juninas ocorrem em todo o Brasil e estão presentes até nas escolas, como parte do calendário festivo das instituições de ensino. A festa gira em torno de um casamentode caipiras, em que, além dos noivos, temos a presença do padre, dos pais do futuro casal, dos padrinhos e dos convidados. Declarados noivos, o casal e os outros participantes partem para compor a quadrilha em comemoração aos recém-casados. Diferente de outras manifestações populares, as festas juninas tiveram influência de franceses e chineses. Diz-se que dos franceses foi herdado o estilo da dança de quadrilha, em que casais realizam coreografias marcadas. Dos chineses, foi apropriada a prática de colorir o céu com o brilho dos fogos de artifício. Uma característica marcante das festas juninas são as comidas típicas, tais como pipoca, bolo de fubá, quentão, chocolate quente, milho cozido, pamonha, pé de moleque, entre outros. Nesse cardápio, percebemos uma grande quantidade de pratos que têm como ingrediente principal o milho. Isso se deve ao período da colheita desse vegetal que coincide com a data das comemorações. Fonte: Jornalismo Junior. Disponível em: <http://jornalismojunior.com.br/sala33/festas-junina-na-tradicao-nordestina/>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.21 | Quadrilha em festa junina Se quiser saber mais sobre as festas juninas, uma dica é a leitura do texto a seguir, no qual a autora traça as origens remotas, as características e os Cultura popular brasileira U1 33 significados da festa: RANGEL, Lúcia Helena Vitalli. Festas Juninas, Festas de São João – Origens, Tradições e História. São Paulo: Publishing Solutions, 2008. Disponível em: <http://www.bfp.uff.br/sites/default/files/servicos/documentos/festas_ juninas_festas_de_sao_joao_origens_tradicoes_e_historia.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2016. 2.5 Congadas As congadas são festas ligas às irmandades de Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito, caracterizando um festejo popular inserido no calendário católico desde os tempos coloniais. Assim como no Maracatu Nação, na congada também existe a coroação do Rei do Congo, mas com algumas características próprias, de acordo com cada região. No geral, caracteriza-se como procissão com pessoas que representam escravos, capatazes, a nobreza, os músicos e o rei e rainha, que, ao final do cortejo, serão coroados em uma igreja. Durante o caminho ao som de muita música e festa, a procissão é descontinuada para a encenação de batalhas com espadas. Esse momento surge como uma alegoria às batalhas entre mouros e cristãos. Uma das maiores riquezas da congada é, sem dúvida, a possibilidade de ver nitidamente as culturas negra e europeia – o candomblé e o catolicismo, o rei do congo e os soldados cristãos – sendo reinventadas pelo povo na constituição de um ritual profundamente importante e expressivo para aqueles que participam. Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Congada_Terno_de_Sainha_ Irm%C3%A3os_Paiva.jpg?uselang=pt-br>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.22 | A congada Cultura popular brasileira U1 34 2.6 Folia de Reis A Folia de Reis é uma festa que se fundamenta na comemoração do nascimento de Jesus, acontecendo como parte dos festejos natalinos, cujos integrantes dirigem- -se às residências, oferecendo suas músicas em troca de alimentos e bebidas. Teriam chegado ao Brasil por meio dos portugueses, pois a comemoração do nascimento de Jesus regada à música, danças e troca de presentes já era praticada no território europeu antes de ser difundida aqui. As comemorações foram implementadas pelos jesuítas em meados dos anos de 1500, como elemento de catequização dos índios e negros. Com o tempo, a Folia de Reis foi se espalhando por todo o território nacional, sendo até hoje praticada nas zonas rurais, em pequenas cidades do interior e nas regiões periféricas dos grandes centros. O principal momento da folia é o cortejo. Trajando vestimentas coloridas que variam de grupo para grupo, e de região para região, a banda de tocadores e cantores, acompanhada de três figuras mascaradas que representam os reis magos, uma porta estandarte e o Bastião (palhaço que dança e realiza acrobacias e que afasta os maus espíritos), caminha pelas ruas arrecadando donativos e oferecendo belos espetáculos para a população local. O estilo das músicas é a toada, sempre voltada aos temas religiosos. Já as movimentações dos bastiões são inspiradas no lundu, dança africana trazida pelos escravos. Uma vertente da Folia de Reis que adquiriu características específicas é o Reisado Alagoano. Além dos personagens da folia tradicional, são incorporadas outras figuras, como: rei e rainha do Congo, Bumba-meu-boi, Mateus, Catirina e Jaraguá – personagem lendário das culturas indígenas e africanas. Nessa versão da Festa de Fonte: Infoescola. Disponível em: <http://www.infoescola.com/datas-comemorativas/folia-de-reis>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.23 | Folia de Reis Cultura popular brasileira U1 35 A cavalhada, trazida para o Brasil pelos portugueses, descende das batalhas medievais. Com o tempo, tornou-se uma celebração festiva de caráter religioso, uma alegoria do bem contra o mal. Porém, quando chegou ao país, precisou passar por novas reconfigurações ao entrar em contato com as culturas negra e indígena. Ela ocorre em meio ao ciclo dos festejos do Divino Espírito Santo e está presente em diversos estados, tais como Goiás, Paraná e Rio Grande do Sul, sendo a celebração da cidade de Pirenópolis a mais conhecida. Assim como na Congada, as batalhas da cavalhada são as encenações das lutas dos cristãos, representados pela cor azul, contra os mouros, que se vestem com a cor vermelha. Os cavaleiros de ambos os lados carregam suas lanças e espadas e, ao final de três dias, os cristãos vendem e convertem os mouros ao cristianismo. Uma figura importante é o mascarado ou curucucu. Vários deles saem a galope pelas ruas com suas máscaras de boi com a finalidade de atrair a população para a festa. A palavra “folclore” tem origem na expressão folk-lore, que significa “saber do povo”. Partindo dessa definição, o folclore abrange as manifestações populares de maneira bastante ampla, englobando as produções materiais, bem como as imateriais, transmitidas oralmente de geração para geração, estritamente ligadas ao Fonte: Cidade de Pirenópolis. Disponível em: <http://cidadedepirenopolis.blogspot.com.br/2013/04/cavalhadas-daqui-um- mes.html>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.24 | Cavaleiros na cavalhada de Pirenópolis Reis percebemos de modo muito mais evidente a miscigenação entre diferentes culturas. 2.7 A cavalhada 2.8 Lendas e mitos do folclore brasileiro Cultura popular brasileira U1 36 cotidiano das pessoas. Desse modo, fazem parte do folclore as festas, as religiões, a medicina popular, o artesanato, as cantigas e os velhos costumes. A expressão “folclore” pode, portanto, ser um sinônimo de cultura popular, expressão que dá nome a esta unidade. Porém, apesar da amplitude do termo, iremos focar nas antigas lendas e fábulas regionais que resistem ao passar do tempo e que não estabelecem vínculos com autores, mas com a aceitação coletiva e com o anonimato. As lendas populares estão presentes em todo o território nacional, podendo adquirir diferentes aspectos, de acordo com suas origens e o contexto no qual se desenvolvem. Há as lendas ligadas à cultura indígena, outras que se manifestaram em meio à vida dos antigos escravos e as que têm forte influência europeia, em especial provindas do catolicismo. Podem ser rurais ou urbanas, da lavoura ou da floresta, e, com o tempo, agregam novas características no contato com novas culturas e espaços. Pelo modo como certas lendas se espalharam Brasil afora, em muitos casos, torna-se difícil localizar suas verdadeiras origens, embora alguns traços indiquem uma possível procedência. A lenda do negrinho do pastoreio, por exemplo, tornou- -se muito popular no Sul do Brasil, em meio ao sofrimento dos escravos diante de seus patrões. A ressurreição do menino negro que, como punição por ter perdido um cavalo, foi amarradoem um formigueiro, reflete o sentimento de revolta e da fé dos negros escravos do passado. O mito do Caipora, por sua vez, é tipicamente indígena. Dizem que, desde antes dos portugueses chegarem ao Brasil, os índios transmitem às futuras gerações a história do anão ligado à caça e à proteção da Fonte: Studio Clio. Disponível em: <http://www.studioclio.com.br/atividades/almoco-clio/evento/26587/horizontes-do- imaginario-lenda-do-negrinho-do-pastoreio>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.25 | Lenda do negrinho do pastoreio Cultura popular brasileira U1 37 Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Saci_Perere_por_Marconi. jpg?uselang=pt-br>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.26 | Jean Marconi, Saci, 2007 floresta, de cabelos vermelhos, com pelos sobre o corpo e dentes verdes. Um exemplo de uma lenda que reflete a pluralidade da cultura brasileira é a do Saci Pererê. Originada na região Sul do país, e hoje a figura mais conhecida do folclore brasileiro, resultando da mescla das culturas indígenas, africanas e europeias. No início, sua figura era a de um curumim de duas pernas e, posteriormente, tornou-se um menino negro de uma perna só possuidor de poderes sobrenaturais, mas que os utiliza somente para realizar travessuras, como trançar a crina dos cavalos, esconder objetos e soltar os animais do curral. Sua história era contada para as crianças como subterfúgio para assustá-las e evitar que realizassem certas travessuras. Seu nome é de origem tupi, o cachimbo, africana, e o gorro, portuguesa. Por meio desses elementos, podemos notar como as lendas não são imutáveis, mas se adequam às necessidades e aos interesses dos diferentes povos, que agregam novos traços. Além desses mitos citados, podemos mencionar a lenda da Iara, uma espécie de sereia que enfeitiça os homens com sua beleza; a lenda urbana da pisadeira, entidade que pisa sobre a barriga das pessoas enquanto dorme, provocando falta de ar; o mito do Boto e da Vitória Régia, ligado aos rios da Amazônia; da Mula sem cabeça, que tem ligação com o catolicismo; entre outros. Todas essas lendas fazem parte da rica cultura popular brasileira e, apesar do caráter sobrenatural e mágico, carregam um sentido prático na vida cotidiana daqueles que o vivenciaram ou dos que ainda os vivenciam. Cultura popular brasileira U1 38 Outro elemento de fundamental importância na cultura brasileira são as brincadeiras e os jogos populares. Por todos os cantos do país, vemos crianças divertindo-se sem saber que muitas das brincadeiras de que participam existem há muitos e muitos anos e podem ser heranças de povos e lugares dispersos no tempo e no espaço. Os jogos e cantigas de roda, por exemplo, são típicas expressões do folclore brasileiro. Trazidas pelos portugueses, no Brasil receberam influência das culturas africana e indígena. Dentre algumas cantigas de roda mais conhecidas, podemos citar “Atirei o pau no gato”, “O cravo e a rosa”, “Roda pião” e “Sapo cururu”. A brincadeira de roda escravos de Jó, ainda praticada por muitas crianças nas escolas, descende dos tempos de escravidão, quando os negros a jogavam para decidir qual deles iria fugir. A forma de música e a brincadeira eram um artifício para enganar os senhores de engenho. Além das cantigas de roda, muitas outras brincadeiras trazidas pelos portugueses se popularizaram e se mantiveram como parte da cultura popular brasileira, mesmo depois de séculos de sua chegada. Segundo Alves (2010, p. 5), “Grande parte dos jogos tradicionais popularizados no mundo inteiro, como o jogo de saquinhos (cinco marias), amarelinha, bolinha de gude, jogo de botão, pião, pipa e outros, chegou ao Brasil por intermédio dos primeiros portugueses”. De origem indígena, dentre as inúmeras brincadeiras ainda praticadas por esses povos, podemos citar a peteca e a cama de gato. A primeira consiste em arremessar, de uma pessoa para a outra, um pequeno peso com penas que lhe dão equilíbrio e 2.9 Brincadeiras populares Fonte: <http://arteivancruz.blogspot.com.br/2011/06/escravo-de-jo.html>. Acesso em 29 mar. 2016. Figura 1.27 | Crianças brincando de escravos de Jó Cultura popular brasileira U1 39 Fonte: <http://www.fazfacil.com.br/lazer/jogo-cama-gato/>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.28 | Criança indígena brincando de cama de gato estabilidade no lançamento do objeto. O objetivo é não deixá-lo cair no chão. Já a brincadeira cama de gato, jogo do cordel ou pé de galo, consiste em criar formas trançando um barbante entre os dedos. Apesar de ser um jogo presente em diversas partes do planeta, acredita-se que no Brasil foi iniciada pelos indígenas. Em pesquisas de campo feitas entre diversos grupos indígenas, foi constatada a presença da cama de gato em quase todos. As figuras formadas pelas crianças indígenas representam imagens de seus cotidianos, tornando-se, também, um mecanismo de aprendizado. Como necessidade humana e pelo caráter social das brincadeiras e jogos, é natural que essas se prolonguem através dos anos, tornando-se elementos fundamentais na consolidação das culturas populares. Mesmo que muitas dessas brincadeiras não sejam mais tão comuns na vida das crianças, a necessidade do brincar nunca desaparecerá. Desse modo, as brincadeiras sempre existirão na vida dos pequenos, que a cada novo momento de diversão A criança expressa-se pelo ato lúdico e é através desse ato que a infância carrega consigo as brincadeiras. Elas perpetuam e renovam a cultura infantil, desenvolvendo formas de convivência social, modificando-se e recebendo novos conteúdos, a fim de se renovar a cada nova geração. É pelo brincar e repetir a brincadeira que a criança saboreia a vitória da aquisição de um novo saber fazer, incorporando-o a cada novo brincar (TEIXEIRA; ROCHA; SILVA, 2010, p. 103). Cultura popular brasileira U1 40 reinventam um pouco a cultura da qual fazem parte. Sabemos que toda cultura é diferente da outra. Sabendo disso, você considera que uma cultura possa ser mais evoluída que outra? 1. Sobre os batuques de terreiro, podemos dizer que eles foram introduzidos no Brasil por quais povos e a qual religião estão associados? 2. Com base no que abordamos sobre o folclore, é correto dizer que ele se resume às lendas e mitos passados oralmente de geração para geração? Por quê? Cultura popular brasileira U1 41 Seção 3 A cultura popular em tempos de globalização: do esvaziamento de sentido à ampliação de possibilidades Nesta seção, abordaremos a cultura popular em relação ao processo de globalização, enfocando os perigos e as vantagens decorrentes desse contato. Mostraremos como ela tem ora resistido ora incorporado novas tendências. 3.1 A Cultura Popular na Globalização Dentro do mundo globalizado em que vivemos, existe a preocupação de uniformizar e padronizar os modos de vida. Esse modo de vida se desenvolve de acordo com as necessidades de um mercado capitalista, em que o único propósito é o lucro, e de uma cultura de massa propagada pelos meios de comunicação cada vez mais influentes em nossas vidas. Nesse ambiente, há quem diga que as culturas locais correm o risco de, com o passar do tempo, perderem seus traços mais expressivos a ponto de se descaracterizarem totalmente. Diferente de um processo de mutação natural, de contribuições qualitativas das novas gerações, a imposição mercadológica e midiática tende a levar a um esvaziamento dos verdadeiros significados das manifestações das culturas populares em prol de uma cultura globalizada, proclamada prioritariamente pelas sociedades mais poderosas. Em seu livro Identidade Cultural na Pós-modernidade, Stuart Hall trata de uma possível crise de identidade numa sociedade cada vez mais multicultura e fragmentada. Diante disso, assinala as culturas que antes haviam promovido localizações sólidas e duradouras e que hoje encontram novos desafios em um ambiente de constantes reconfigurações. As manifestações populares podemvir a tornar-se mais um produto a ser disseminado pelos meios de comunicação, sendo consumido pelas massas e capitalizado pelo sistema mercadológico. Nessa condição de produto, existem alguns riscos, tais como a banalização, o foco no lucro e a necessidade de se criar algo com o único propósito de atingir o maior número possível de consumidores. Cultura popular brasileira U1 42 Essas consequências podem levar a um enfraquecimento das culturas populares, não apenas em seus produtos, mas na própria relação dos seus produtores com as tradições e seus significados. Podemos citar, por exemplo, os grandes desfiles carnavalescos no Rio de Janeiro e em São Paulo, em que cada vez mais vemos seus idealizadores adequando as apresentações de acordo com uma necessidade capitalista, em detrimento da pura e verdadeira expressão do povo. Constantemente, vemos sambas-enredo e carros alegóricos elaborados com temáticas que privilegiam os patrocinadores, as celebridades da televisão e da música, entre outras personalidades. Essas, por sua vez, desfilam em locais de destaque e são as principais estrelas das festas. Mas há quem diga que o sistema capitalista e os meios de comunicação em massa, embora detenham um poder esmagador, também foram e são fundamentais na preservação das culturas populares. Segundo Canclini, em Culturas Híbridas (1997), apesar do crescente avanço dos meios de comunicações, as culturas populares não foram suprimidas, e sim desenvolveram-se ao passo que sofriam novas transformações. Ou seja, apesar da influência dos meios de comunicação de massa e do mercado sobre as culturas tradicionais, essas ainda permanecem e até se fortalecem. Segundo o autor, isso se deve tanto pela necessidade do próprio mercado em assimilar essas culturas, bem como de sua própria resistência na continuidade da produção de bens culturais. Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Carnaval_2014_-_Rio_de_Janeiro_ (12974274864).jpg>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.29 | Carro alegórico no carnaval do Rio de Janeiro Cultura popular brasileira U1 43 Para Canclini (1997), não se deve ignorar os efeitos negativos do sistema capitalista nas culturas populares. No entanto, ao contrário do que se pensava antes, a tendência não é findar com as culturas locais, mas sim garantir a sua manutenção. Ainda segundo Canclini (2003, p. 40), “As identidades pós-modernas são transterritoriais e multilinguísticas, delineando um novo perfil de cidadão. Supera-se a ideia de que os membros da uma dada sociedade possuem uma cultura homogênea e única”. Considerando esse contexto, vale perguntar: como as culturas populares têm se modificado e se adequado à modernidade? Para responder essa pergunta, vamos trazer alguns exemplos. Além dos grupos que mantêm firmes suas tradições, resistindo ao processo de massificação, como alguns dos que mencionamos nas sessões anteriores desta unidade, existem outros que se fundamentam em suas raízes, mas também incorporam e interagem com outras culturas. Um exemplo são os tradicionais bate-bolas do Rio de Janeiro. Sem perder a essência de suas festas, inspiram-se em elementos da cultura de massa para a criação de suas vestimentas, tais como personagens de desenhos animados, histórias em quadrinhos, novelas, marcas internacionais, entre outras. Na verdade, hoje esses elementos já fazem parte da tradição dos bate-bolas. Podemos citar também o manguebeat, movimento musical surgido no Recife nos anos 1990, formado pela mistura de ritmos da região Nordeste, como o maracatu, e outros ligados à cultura pop internacional, como o rock e o hip-hop, tonando-se um estilo rico em significado e esteticamente autêntico. Além da riqueza artística que atingiu também o cinema, a moda e as artes plásticas, o manguebeat tornou-se um fenômeno importante no ressurgimento da cidade de Recife como um centro cultural de reconhecimento nacional. A incorporação dos bens folclóricos a circuitos comerciais, que costuma ser analisada como se os únicos efeitos fossem homogeneizar os formatos e dissolver as características locais, mostra que a expansão do mercado necessita ocupar-se também dos setores que resistem ao consumo uniforme ou encontram dificuldade para participar dele (CANCLINI, 1997, p. 216). Fonte: Biblioteca MPB. Disponível em: <http://bibliotecampb.blogspot.com. br/>. Acesso em: 29 mar. 2016. Figura 1.30 | Chico Science, figura do manguebeat Cultura popular brasileira U1 44 Chico Science, junto com o grupo Nação Zumbi, lançou apenas dois discos antes de sua morte. Apesar da curta carreira, suas obras já figuram entre as mais importantes da música brasileira. Vale a pena conferir! Um dos eventos mais marcantes da cultura popular brasileira certamente foi o Tropicalismo, movimento de valorização da cultura brasileira que atingiu a música, as artes plásticas, o teatro e o cinema, unindo o popular e as culturas de massa. Na música, seus principais expoentes são Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa e Gilberto Gil. Nas artes plásticas, Hélio Oiticica foi o protagonista, sendo ele o criador do termo “tropicália”, título dado a uma de suas obras que preconizam o movimento. É com Glauber Rocha e o Cinema Novo que o Tropicalismo ganha as telas do cinema e os palcos, com Zé Celso. A tropicália pode ser entendida como um movimento popular, de valorização da cultura do povo, mas que também desenvolve inovações e rupturas, como o movimento de vanguarda, aglutinando tendências artísticas e filosóficas vindas do exterior, de modo autêntico. Além do seu valor como uma nova tendência estética, artística e social no Brasil, a importância da tropicália está, também, na valorização de ritmos da cultura popular, como o samba, o carnaval e os ritmos nordestinos que ganharam destaque por meio da obra dos protagonistas desse movimento. No mundo contemporâneo, fica cada vez mais claro que as culturas populares não são mais práticas exclusivas a determinados grupos, mas, como percebemos nos exemplos do manguebeat e da tropicália, um mesmo indivíduo pode participar de diversas manifestações culturais, em lugares diferentes, sem mesmo ter sido criado naquele ambiente. Os meios de comunicação nos permite vivenciar e assimilar experiências culturais das mais diversas, mesmo estando longe no tempo ou no espaço. No contexto em que vivemos, a multiplicidade é consequência natural e cabe às culturas populares buscar modos de se colocar nesse contexto, para que não venha um dia a perder o significado de sua presença na vida dos que a constituem. No seu dia a dia, você consegue perceber elementos que possam estar associados à cultura popular? Se sim, que tal tentar pesquisar sobre sua origem e significado? Cultura popular brasileira U1 45 1. Cite um dos riscos que as culturas tradicionais podem correr devido à forte influência dos meios de produção e comunicação em massa. 2. No que os meios de comunicação em massa contribuem para a permanência das culturas populares? Nesta unidade, pudemos compreender um pouco mais da cultura popular brasileira e suas características. Na primeira seção, estudamos sobre a fragmentação da cultura popular, cultura erudita e cultura de massa, compreendendo que são esferas que não se relacionam. Como contraponto, conhecemos uma visão contemporânea sobre essas categorias, observando que elas não são estáticas, mas se interpenetram e estabelecem constantes trocas. Na segunda seção, estudamos uma parcela pequena de manifestações da cultura popular brasileira, mas todas extremamente ricas em significados. Por meio das análises pudemos perceber que a cultura popular brasileira é constituída pela união de diversas raças, classes e etnias diferentes, que, nos seus encontros, geram novas descobertas e novas tradições. Por fim, na terceira seção, vimos que a cultura de massa tem agido cada vez mais sobre as culturas populares, gerando efeitos negativos e/ou positivosque podem levar a uma crise de identidade. Nesse cenário, cabe às camadas populares posicionarem-se de modo que assegurem sua permanência. Cultura popular brasileira U1 46 1. Realizado na região Amazônica, atualmente, o Boi de Parintins é a maior e mais conhecida festa de Bumba-meu- boi do Brasil, dado sua grande visibilidade na mídia e graças aos altos investimentos que tem recebido. Com relação à festa do Boi de Parintins, avalie as afirmações a seguir: I – O Boi de Parintins teve grande influência da cultura indígena, fundamentado nas figuras dos caboclos e índias. II – Na festa do Boi de Parintins, o momento mais importante é a disputa entre os bois Garantido (branco) e Caprichoso (preto) que disputam a simpatia do público, vencendo aquele que, com sua dança, fizer o público mais se animar. III – Inspirado na cultura negra e indígena, o Boi de Parintins surge como uma forma de valorização e preservação da identidade regional amazonense. É correto o que se afirma em: a) I, apenas; b) II, apenas; c) I e III, apenas; d) II e III, apenas; e) I, II e III. 2. As festas de carnaval, apesar do aparente caráter profano, têm suas origens ligadas à religião católica. Tradicionalmente, seus preparativos iniciam-se logo após os festejos natalinos e vão até a quarta-feira de cinzas. Mas, dependendo da cultura de cada lugar, podem haver comemorações antes ou após este período. Considerando os conhecimentos sobre a origem da festa de carnaval e seu surgimento no Brasil, assinale a opção correta: a) A origem da festa remonta aos bailes de máscaras realizados nos países nórdicos, como a Dinamarca e a Suécia. b) O carnaval chega ao Brasil trazido pelos portugueses e, no início, era somente festejado pelas classes menos favorecidas. c) As classes menos favorecidas economicamente, predominantemente formadas por negros, passaram a fazer Cultura popular brasileira U1 47 3. Há expressões da cultura brasileira em que se pode identificar a mistura entre cultura popular e erudita ou cultura popular e de massa. Considerando o contexto apresentado, avalie as afirmações a seguir: I – O frevo deriva da união de expressões da cultura erudita, como o ballet, em comunhão com as de origem popular, tal como a capoeira e as marchinhas. II – O estilo Manguebeat é formado pela união de estilos de música popular, como o afoxé, e de massa, como o rock. III – O frevo deriva da união de expressões populares, como as marchinhas, e de cultura de massa, como o rock. É correto o que se afirma em: a) I, apenas; b) II, apenas; c) I e II, apenas; d) II e III, apenas; e) I, II e III. 4. A brincadeira de roda Escravos de Jó, ainda praticada por muitas crianças nas escolas, descende dos tempos de escravidão, quando os: a) negros a jogavam para decidir qual deles iria para o castigo. A forma de música e brincadeira era um artifício para proporcionar certa alegria em um momento tão ruim; b) negros a jogavam para decidir qual deles iria para a casa- -grande, realizar trabalhos mais "brandos", como limpar, seus próprios carnavais e, influenciadas pelas músicas e danças de origem africanas, formaram os blocos e os cordões de carnaval, presentes até hoje. d) O carnaval chega ao Brasil trazido pelos franceses e, muito diferente do que é hoje, era festejado apenas pela aristocracia do Rio de Janeiro. e) A palavra “carnaval” tem sua origem na expressão italiana carne levare, que significa “comer carne”, numa referência ao período após a abstinência e jejum da quaresma, quando os fiéis deveriam abdicar das tentações mundanas, entre elas comer carne. Cultura popular brasileira U1 48 5. O boi, o Pai Francisco e a Catirina são os três personagens principais de toda festa de Bumba-meu-boi. Considerando essa afirmativa, avalie as alternativas a seguir: I – O Pai Francisco e a Catirina, sua esposa grávida, surgem como trabalhadores do campo, ambos representados como a figura do trabalhador negro. II – O boi foi morto por Francisco para que Catirina pudesse comer a língua dos animais. III – O Pai Francisco surge como o vaqueiro. O boi foi morto por Francisco, mas depois foi revivido pelo pajé, o que levou a uma grande festa. É correto o que se afirma em: a) I, apenas; b) II, apenas; c) I e II, apenas; d) II e III, apenas; e) I, II e III. cozinhar, entre outros; c) negros a jogavam para decidir qual deles iria dormir para fora da senzala; d) negros a jogavam para decidir qual deles iria fugir. A forma de música e a brincadeira eram artifícios para enganar os senhores de engenho; e) negros a jogavam para decidir qual deles iria realizar o plantio e colheita da cana de açúcar. 49Cultura popular brasileira U1 Referências ALVES, Maria José de Castro. Lendas e mitos do Brasil. 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Nesta seção, observaremos que a construção histórica da identidade brasileira está conectada ao intento de estabelecer uma unidade em nossa sociedade. Seção 1 | Cultura e Identidade Seção 2 | Identidade Nacional Objetivos de aprendizagem Nesta unidade, você poderá compreender o que é e como se estabelece a noção de identidade cultural, tendo como base a estrutura cultural brasileira. Nosso objetivo é evidenciar para você, caro leitor, que a cultura brasileira é extremamente rica em sua diversidade e que, devido ao longo histórico de hibridação de diferentes povos em nosso território, a definição do que é a identidade cultural brasileira torna-se relativa e incerta, podendo variar de tempos em tempos, de indivíduo para indivíduo, de lugar para lugar, de cultura para cultura. Iuri Aleksander Dias Fernandes de Souza Identidade cultural U2 52 Você compreenderá o conceito de nação como algo que pode ser construído historicamente, que a construção narrativa não determina que a nação seja algo irreal e que ela não está resumida a ser apenas uma criação política, já que pode existir o sentimento sincero de pertencimento a uma nação. Desse modo, você irá observar que a busca ao longo do tempo por uma identidade nacional brasileira ainda hoje permanece, sendo transformada a cada instante. Identidade cultural U2 53 Introdução à unidade O que é identidade cultural? Como ela se estabelece na história e na atualidade do Brasil? Como podemos definir uma possível identidade nacional dentro do cenário extremamente heterogêneo que é a cultura brasileira? Essas e outras indagações serão o norte que nos guiarão ao longo desta unidade. Por meio deste material, você poderá identificar as particularidades que envolvem a construção do que se entende por identidade cultural brasileira, analisando a história e os exemplos concretos expressos nas manifestações artísticas e populares do povo brasileiro. Na primeira seção, "Cultura e Identidade", apresentaremos alguns termos e características que fazem parte da noção de identidade, tais como o entendimento de cultura, bens culturais (materiais e imateriais), globalização e identidade, sempre tendo como norte compreender melhor a construção da identidade cultural brasileira. Na segunda seção, Identidade Nacional, por sua vez, realizaremos um resgate histórico dos debates que envolveram a busca e a identificação de uma identidade nacional tanto na literatura quando na política, para, num segundo momento, a contrapor com a noção real, que se manifesta no indivíduo e no povo. Identidade cultural U2 54 Identidade cultural U2 55 Seção 1 Cultura e identidade Nesta seção, iremos conhecer os vários conceitos da palavra cultura, além de compreender que a cultura não é estática. Você irá observar que todo sistema cultural apresenta aspectos materiais e imateriais e que são esses aspectos combinados que vão resultar nas singularidades de cada povo. No correr da leitura, você entenderá que a identidade cultural, por sua vez, é um sistema de representação das relações sociais, que envolve o compartilhamento de patrimônios comuns. Assim, irá perceber a influência que a globalização estabelece nas diferentes estruturas culturais pelo mundo, como evento que pode gerar homogeneização e perda de referências locais. 1.1. O que é cultura? A noção de cultura teve constantes modificações no decorrer dos tempos. Em latim, expressava o “cultivo da terra” e, simbolicamente, o cultivo do homem. O conceito também foi conectado com o de civilização e utilizado como contrário ao de barbárie. Civilizado era somente o homem que possuía acesso à educação. Os indígenas e os negros no Brasil, por exemplo, eram considerados incultos, pois eram associados a um modo de vida “primitivo” e rudimentar. Por sua vez, os europeus que chegaram ao Brasil eram tidos como povos cultos, pois compreendia-se que a cultura deles devia ser modelo para as demais sociedades. Durante muito tempo no Brasil, os escravos vindos da África não puderam ou tiveram restrições na manifestação de suas tradições. Nesse sentido, os sons e ritmos dos batuques e das danças de origem africana eram considerados primitivos, já que os brancos preferiam as músicas de origem europeia. Do mesmo modo, ainda hoje, apesar da riqueza cultural e religiosa presentes no candomblé, esta prática ainda é alvo de muito preconceito por parte da população, por conta de suas origens. Identidade cultural U2 56 Fonte: Wikipedia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Baiana_(vestu%C3%A1rio)#/media/File:Caetit%C3%A9_ baianas.jpg>. Acesso em: 10 abr. 2016. Figura 2.1 | Baianas de Caetité – BA Fatos como esse, entre outros, ajudaram no fortalecimento da associação da palavra “cultura” como sendo o grau de “evolução intelectual” de um determinado indivíduo. Porém, ela nem sempre está relacionada a um grau de evolução individual ou coletivo. Houve uma diferenciação, no período romântico, entre cultura e civilização. A cultura representava o intelecto, as construções imateriais (arte, ciência, entre outros) e a civiliação estava ligada ao entendimento de progresso econômico e tecnológico, portanto, material. Atualmente, as correntes contemporâneas da sociologia e antropologia apresentaram uma nova maneira de se pensar a palavra cultura, considerando que ela se estabelece como o conjunto completo das ações humanas em uma determinada sociedade. O conceito moderno de cultura foi formulado por Edward Tylor, em seu livro Primitive Culture, de 1871, estabelecendo a cultura como “um complexo que compreende os conhecimentos, as crenças e as artes, a moral, as leis, os costumes e todos os demais hábitos ou aptidões adquiridas pelo homem na qualidade de membro de uma sociedade” (TYLOR apud AZEVEDO, 1963, p. 31). Ou seja, podemos dizer que cultura é tudo aquilo que rodeia e forma o indivíduo ou um grupo de pessoas, sendo cada cultura única nas suas características. Tylor (apud AZEVEDO, 1963) também irá dizer que não há conexão entre genética e cultura. Cultura é todo o comportamento aprendido quando se está inserido em um contexto especifico e não transferido geneticamente de pai para filho. Um recém-nascido vai assimilar a cultura do ambiente em que cresceu, independentemente de sua herança genética. A cultura é um processo acumulativo, ou
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