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Edmundo Fernandes Dias - Política brasileira_ Embate de projetos hegemônicos - Capítulo 3 (parcial)

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Edmundo Fernandes Dias
Política Brasileira:
Embate de projetos 
hegemônicos
Editora T r\.
InstitutoJosé Lufs e M \ 
Rosa Sundermann f \
São Paulo 
2006
ISBN: 85-99156-06-3
Série Polêmicas, n- 4
Supervisão editorial: Iraci Borges 
Diagramação: Eduardo Perez 
Capa: Cristiane Gaion
Dados internacionais de catalogação (CIP) elaborados na fonte por Iraci Borges
Dias, Edmundo Fernandes
Política brasileira: Embate de projetos hegemônicos. São 
Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2006 
240 p. 23 cm (Série Polêmicas, 4)
ISBN: 85-99156-06-3
1. Política. 2. Governo Lula-elem entos para análise. 3. 
Marxismo. 4. Hegemonia poMca. 5. Movimento sindical e go­
verno. I. Título.
CDD: 330
Editora Instituto José Luís
Rua Matias Aires, n“ 78 - Consolação 
São Paulo - SP - CEP - 01309-020 
Fone: 011-32535801
editoraJlrsundermann @ yahoo.com.br
A Editora disponibiliza qualquer parte deste texto para ser reproduzida, 
desde que mencionada a fonte.
- CRB8 - 2263
e Rosa Sundermann
SUMÁRIO
UMA BREVE NOTA INTRODUTÓRIA, 11 
I PAJRTE:
LIBERALISMO E MARXISMO, 19 
CAPÍTULO 1
GRAMSCI E A POLÍTICA HOJE, 21
Gramsci, a clarificação da política e a construção da hegemonia, 22 
Os limites (liistórico-concretos) do pensam ento das esquerdas, 26 
A identidade de classe: as práticas e os saberes, 30 
Sociedade civil e sociedade política, 31 
A análise morfológica: oriente/ocidente, 34 
O economicismo: da miséria crítica à im potência política, 36 
Crise do trabalho ou crise do capital?, 39
Reestruturação produtiva ou criação do trabalhador do capital?, 40 
Os ensinam entos da luta de classes, 43 
A atualidade do comunismo, 45
CAPÍTULO 2
DA NATUREZA CORRUPTA DO CAPITALISMO 
E DE SUAS FORMAS PRÁTICAS, 49
CAPÍTULO 3
O EMBATE HEGEMÔNICO, 53
Hegemonia, ideologias, classes: o campo da política, 53 
A hegemonia com o processo, 61
A concepção de m undo liberal: a estratégia capitalista, 82
- Ou como a prática revisitada do capitalismo 
vira seu mito fundador, 82
- A Economia e a Política, 84
- O processo real, 88
O Marxismo com o campo estratégico das classes trabalhadoras, 91
- Pensar a política: possibilidades e limites, 91
- A forma da construção da inteligibilidade da política, 103 ,
- Os intelectuais, a direção, 109 
Pensar o real: um a síntese provisória, 112
- O modo empirista, 112
- O liberalismo e a prática metodológica weberiana, 115
- Bobbio e a constmção da teoria política, 117
- O modo dialético, 118
- A atualidade do marxismo: a nova racionalidade, 120
- Constmir a inteligibilidade do real, 121 
Sobre as tarefas do trabalho teórico, 124
II PARTE:
ELEMENTOS PARA A ANÁLISE DO GOVERNO LULA 
(NOTAS DE CONJUNTURA), 127
CAPÍTULO 4
OS DESAFIOS COLOCADOS 
NA CONJUNTURA NACIONAL, 129
Premissas iniciais, 129
Sobre as eleições e os problem as colocados p o r elas, 129 
O processo eleitoral e seus avatares, 131 
Os intelectuais e a política, 133 
O recado das eleições, 134
Os cenários da coligação tendencialmente vitoriosa, 135 
CAPÍTULO 5
AS TAREFAS FACE AO GOVERNO 
“DEMOCRÁTICO-POPULAR”: QUE FAZER?, 141
M udança ou Transformação?, 141
A conjuntura pós-eleitoral, 143 
A caracterização do governo, 147
Reform a da previdência ou radicalização da “refundação 
do capital?”, 156
Outras políticas, a m esm a lógica, 168 
A autonom ia com o m étodo da política, 174
CAPÍTULO 6
TRAIÇÃO OU LÓGICA? , 177
Uma trajetória ambígua, 179
A mutação programada, 181
Aparência e realidade - o dito e o feito, 183
As bases da mutação transform ista, 188
N ova classe? Não. Velho despotismo, 191
As palavras do poder e o poder das palavras, 194
Concluindo provisoriam ente, 196
CAPÍTULO 7
REFORMAS OU CONTRA-REVOLUÇÃO?
O GOVERNO LULA, 199
O governo Lula: o atual m om ento da contra-revolução capitalista, 199 
O m odo petista de governar: desorganizar, reprimir, 203
A CUT de m ovim ento sindical à estrutura estatal: 
elementos para o estudo dessa transição, 205
A CUT já transform ada, 209 
A reform a sindical do governo Lula, 212
D estruir a educação, trabalhar na construção 
da classe trabalhadora do capital, 215
A perspectiva de classe, 216 
CAPÍTULO 8
A SABEDORIA DO PODER, 221 
CONCLUSÃO:
AS CONDIÇÕES DO TRANSFORMISMO, 225
Capítulo 3:
O EMBATE HEGEMÔNICO
H e g e m o n ia , id e o l o g ia s , c l a s s e s :
o CAMPO DA POLÍTICA
Existe na sociedade, em especial entre os intelectuais, o mito da obra-pri­
ma, obra decisiva seja para a humanidade, seja para conferir renome e prestígio 
ao seu autor. Isto se traduz no campo escolar, em especial no universitário, em 
uma fórmula consagrada: “Quem sabe cria, quem não sabe ensina” . Além de 
ser, obviamente, uma contradição essa formulação considera menor, e mesmo 
indigno para os intelectuais, o trabalho de dar acesso a um conliecimento a uma 
faixa ampla de leitores. Esta hierarquização introduz diferenças entre os criado­
res de ciência, filosofia, arte, candidatos potenciais (ou imaginários) ao Prêmio 
Nobel e aqueles que socialmente aparecem como simples administradores e 
divulgadores da cultura, vistos pelos primeiros como pequenos burocratas que 
administram esse saber às massas.
Essa postura tenta ocultar que o elaborador e o sistematizador são igual- 
mente necessários. Fazer de uma nova cultura o patrimônio de todos é fazer 
filosofia. Não no sentido tradicional, da grande obra, o que aparece como 
sendo dado a poucos, mas no de permitir o acesso de todos, ao invés de 
aceitar que este “permaneça patrimônio de pequenos grupos intelectuais”"'̂ . 
Falamos que construir a grande obra é privilégio de poucos não por superiori­
dade genética, mas pelo fato de que para tal faz-se necessário um longo afasta­
mento da produção material. A questão das condições materiais é aqui, como 
em tantos lugares, decisiva. Gramsci salienta que todos somos “filósofos”, “in­
telectuais”, na medida em que podemos elaborar sobre as questões colocadas 
pela realidade social. O que não nega o fato de que poucos exercem profissio- 
nalmente as chamadas atividades intelectuais. Ao proceder atarefa pedagógica
Quaderni dei cárcere (QC), pp. 1377-8.
de dar o acesso ao conliecimeiito a grandes grupos (classes, partidos, sindica­
tos, individualidades) se realiza uma imensa tarefa democrática. O que, sem 
dúvida, é decisivo na constmção de qualquer projeto de hegemonia. E isso 
define o tipo de intelectual (dirigente) que somos ou podemos ser.
Tornar o conhecimento exotérico significa fazer com que muitos mais se 
apoderem da experiência humana acumulada há bastante tempo. Significa de­
mocratizar efetivamente o saber com todas as conseqüências inerentes a esse 
processo como, por exemplo, a possibilidade de libertação ideológica das clas­
ses trabalhadoras em relação aos intelectuais de carreira que normalmente mo­
nopolizam o saber em nome de um poder, ainda que se imaginem desenraizados, 
mannheimianos. O modo de impor hierarquias entre os intelectuais é típico das 
sociedades classistas: o alto e o baixo clero, quem publica em revistas internaci­
onais de ponta. Dado que o conhecimento - em especial a chamada alta cultura 
- é visto como esotérico esta cisão hierarquiza o conjunto dos intelectuais em 
uma escala de poder que exprime as diferenças da própria sociedade.
O que os chamados grandes intelectuais - ou “alto clero” {sic), como eles 
mesmos se designam - esquecem é que o trabalho daqueles fornece as condi­
ções de existência do seu próprio pensamento. No Brasil, a simples publicação 
da coleção Os Pensadores realizou uma operação filosófica imensa, a maior já 
realizada nestas terras. Um enorme contingente de pessoas (predominante, mas 
não somente, o “baixo clero”) passou a poder ler obras que eram patrimônio 
de poucos ou permaneciam inacessíveis nas estantes das bibliotecas universitá­
rias. 0 logospode se fa^er carne. A. filosofia ganhou uma materialidade jamais suspeitada. A 
arma da critica ganhou instrumentos importantes.
O “poder” intelectual (leia-se político) pode ser exercido de múltiplas for­
mas. O simples domínio dosideogramas elaborados ao longo da civilização 
clássica chinesa, pela sua complexidade e pelo tempo necessário para aprendê- 
los, fazia dos intelectuais membros do poder e não apenas portadores do 
conhecimento'*^. Na outra ponta desse esquema veremos a situação dos analfa­
betos que se perdem no emaranhado dos signos urbanos, os quais são, na 
maioria das vezes, memorizados como possibilidade de sobrevivência. Torna­
dos estrangeiros em sua própria terra eles encontram nestes signos uma violên­
cia simbólico-política a lembrar-lhes, cotidianamente, que não pertencem a esse 
universo, a não ser pela venda da sua capacidade de trabalho e pela obediência. 
É necessário construir um mapa dessa situação (acesso ou não ao saber codifi-
Sobre isso existe uma imensa bibliografia. Mesmo entre os não-marxistas esse problema é 
relevante. Ver, p. ex., de Max Weber, Tie Kdigion of China, traduzido, comentado e editado 
por Haus H. Gertli, The Free Press, New York, 1968 e as obras de Marcei Granet sobre 
civilização e pensamento clmieses.
cado) para entendermos como e porque a maioria da população tornada mas­
sa eleitoral que de tempos em tempos escolhe entre os dominantes quem vai 
tocar a gestão da sociedade, quando não são, pura e simplesmente, declarada e 
tornada supérflua, dispensável.
A divulgação desse conJiecimento pode se referir tanto a uma teoria quan­
to ao domínio da própria linguagem falada. Em muitos paises plurinacionais a 
linguagem dita nacional ajuda a suprimir e desorganizar formas culturais e lin- 
güísticas regionais ou nacionais, suprimindo assim aquelas histórias e culturas. 
Exemplo típico; durante o franquismo era proibido o uso das linguagens das 
diversas nacionalidades reprimidas e incorporadas pelo Estado espanhol como, 
entre outras o gallego, o basco etc. Na França o problema se repete: bretões, 
bascos, corsos, alsacianos, os occitaines, entre outros, trava(ra)m lutas nacionais 
em pleno território francês contra a dominação francesa até, pelo menos, a 
última quadra do século passado. Não estou falando dos processos de coloni­
zação externa, mas de dominação a partir do processo de “unidade nacio- 
nal”''"'. Na Itália idem: a questão sarda, entre outras, demonstra bem essa forma 
de exclusão"*^. Muitos outros exemplos poderiam ser citados. Em um caso 
extremo está o processo de “mssiflcação” da URSS onde a imposição não 
apenas da burocracia mssa sobre as diversas nacionalidades foi combinada 
com a subordinação de linguagens, culturas e tradições de diversas nacionalida­
des'" ̂. Isto, seguramente, foi um elemento importante na pulverização pós- 
URSS. O mesmo valeu para a fragmentação da antiga Iugoslávia e sua 
balcanização que se seguiu à destmição dessa unidade enfeixadaporjosip Broz- 
Tito. O cortejo é imenso. Nos territórios do equivocadamente chamado mun­
do socialista, se sucederam guerras nacionais, limpezas étnicas, aparecimento de 
máfias o que revelou claramente o quão artificial era aquela construção, não 
obstante tenha sobrevivido por oito décadas. Existem belos exemplos na lite-
Sobre tudo isso ver o número triplo (324 a 326) de Les Temps Modernes, agosto-setembro de 
1973, dedicado às minorias nacionais na França. Ver em especial os artigos de J. L. Calvet, Le 
colonialisme .lingnistique em France e Yves Person, Impérialisme linginsHqiie et colonialisme.
Gtamsci narra como a burguesia italiana usou, em um conflito operário em Turim, a situação 
de exclusão da massa sarda para apresentar os operários grevistas como úumigo, como 
“exploradores”, como “senliores”. O modo de vestir, o uso da gravata [nc], a linguagem 
operária etc. tudo isto aparecia aos sardos como prova incontestável da sua diferença e de 
como os operários eram os “senhores” contra os quais deviam lutar. Essa exclusão político- 
simbólica permitiu transformar setores das classes subalternas em inimigos entre si. Dar 
acesso a esse mundo de miiltíplas experiências codificado por uma determinada linguagem, 
teoria científica, concepção de mundo, é abrir horizontes mesperados para essas classes.
Procedimentos em aberta oposição à tese leninista e luxemburguista do direitos de autodeter­
minação dos povos.
ratura universal de usos de culturas e linguagens negadoras das historicidades 
nacionais: Fontamara, de Ignazio Süone e E l mundo es anchoy ajeno do peruano 
Ciro Alegria'*’ . Nos dois casos a linguagem exerce uma função de ditadura de 
classe seja contra o campesinato italiano, seus dialetos e sua historicidade. Isso 
ocorre também contra a população indígena peruana, resguardada, é óbvio, a 
sua historicidade. Interditar os subalternos culturalmente é exercer um poder 
ditatorial. Cultura, política e história são, nas suas múltiplas manifestações, um 
único e mesmo processo.
O conliecimento, dito especializado, tende a minimizar as possibilidades 
dos não iniciados. Seu poder a partir do processo de democratização do saber 
jamais será o mesmo. A atividade de divulgação tem cada vez mais um poder 
de intervenção no real**®. Ter acesso a esse conhecimento significa viver a pró­
pria sociedade de maneira mais democrática. Se, como Gramsci afirma, o 
saber é intervenção e se “todos os homens são intelectuais”, a obra de divulga­
ção em nada é inferior a das grandes investigações, pode ser até mais expressi­
va. Haverá que trabalhar para recusar a interpretação de Kautsld segundo a qual 
“os operários só poderão alcançar a consciência sindical”, o que exigiria a inter­
venção de intelectuais de fora da classe para construir a teoria revolucionária. 
Com isso nega-se o papel da história concreta dos indivíduos como o grande 
laboratório da teoria. E se é verdade que “sem teoria revolucionária não há 
revolução”, não o é a afirmação de que basta o conliecimento dos grandes 
autores para que essa teoria se faça arma de classe. A o se ignorar as mediações, 
negamos a história.
O economicismo e o determinismo são os grandes inibidores da reflexão 
crítica. Se tudo se explica pelas leis inexoráveis da economia cometemos um 
duplo erro: por um lado, abandonamos toda a análise crítica de Marx e sua 
formulação teórica (crítica, totalidade, leis tendenciais etc.) em nome de um 
positivismo e de um empirismo primário e, por outro, abandonamos a história 
(vista como puro reflexo). Perdemos, assim, o papel da intervenção da vonta­
de humana (a ação das classes, suas direções, seus projetos etc.).
Mostraremos o erro fundamental dos que afirmam ser a ideologia um 
epifenônemo da estrutura ou um modo de ‘Jasçer a cabeça do dominado”. E o perigo
Cito Alegria mas muitos outros exemplos seriam possíveis quando tomada a literatura andina 
e centro americana referenciada à questão indígena (que é, como dizia José Carlos Mariátegui, 
a forma da questão nacional).
A repressão ao método de alfabetização Paulo Freire e ao Movimento de Educação de Base, 
durante a ditadura aberta de 64, mostra claramente como essa abertura ao conhecimento era 
compreendido pelos dominantes como subversivo. Esse método permitiría ampliar de forma 
significativa o colégio eleitoral e, donde, debilitar o domínio dos veUios poMticos.
dessa leitura reducionistas'*’ . É fiindamental recusar qualquer idéia determinista
- liberal ou pseudomarxista - da redução da totalidade social ao “econômico” . 
A tese de que a ideologia é essencialmente falsa consciência ou estratégia mera­
mente instrumental oculta que os dominantes sofrem também seus efeitos, 
ainda que, obviamente, com mediações distintas, não lhe são imunes. Ela está 
ém todas as práticas da sociedade classista no sentido de demarcar possibilida­
des ou de inviabilizá-las.
O fetichismo da mercadoria é o exemplo, por excelência, dessa interferência, 
constituidora do real. A troca de mercadorias por dinlieiro oculta as relações 
de poder das classes que se dão no cotidiano da produção e da troca capitalis­
tas. Tudo parece ocorrer no “mercado”, de forma neutra. Veremos, mais adi­
ante, que ao tratar o mercado de forma abstrata e não como histórico, deter­minado, esse mecanismo ganha generalidade e eficácia política. Funciona como 
inibidor do movimento da crítica, como perpetuador das relações sociais do­
minantes. As ideologias são produtoras e produzidas exatamente pelas relações 
sociais, pelos antagonismos de classe e são absolutamente indispensáveis à pró­
pria existência dessas relações^®. Não se trata de um plus, nem de um acessório.
A concepção de ideologia como um epifenômeno, reflexo da determina­
ção econômica imediata, “autoriza” sua percepção como simples mecanismo 
de engano. Se o real é o que aparenta ser, não ocultando nenhuma relação, tudo
- da linguagem à distribuição desigual de poder, na “economia”, na “política”
- é natural e legítimo. Os liberais e os conservadores acusam os socialistas de 
subversivos, visto atuarem no sentido da destruição do capitalismo, da ordem 
do Capital vista como a ordem natural, a sua ordem.
Uma leitura que aceite o real como translúcido, neutro, permite a incorpo­
ração dos dominados à órbita dos dominantes. Isso se dá pela homogeneização 
da vida social. Classes, saberes etc., tudo se reduz a diferenças em um gradiente 
visto c|ue a totalidade social é um coletivo de individualidades e pode ser resu­
mida a estas. Diferenças, sim, desigualdades, não: dizem os liberais. Conflito
Curiõsamente essa “pseiido-explicação” que tem a aparência de uma radicalidade (abstrata) 
oculta um caráter defensivo quase paranóide. “Eles precisam nos enganar”. E, com isso, 
dispensamo-nos de pensar os limites e os alcances das nossas práticas classistas, de nossas 
debüidades. Afinal, eles nos enganam sempre e a qualquer momento ou muitas vezes nos 
deixamos enganar? Isso tem um componente derrotista: eles podem, nos sofremos. Além do 
que ao aceitarmos que a ideologia é um reflexo da estrutura, como pensar a ruptura revolu­
cionária? Se ela é um reflexo, como pensar a possibilidade de uma ideologia revolucionária 
que aniquile essa ordem? De um salto passamos do determinismo economicista à sua negação 
abstrata (o voluntarismo).
“ Sobre isso ver a exemplar análise de Marx em O Dezoito Bmmário de Liiis Bonaparte.
sim, desde que... regulável na epela ordem vigente. Fora desta existe apenas o caos, 
a desordem. A concepção liberal de estado é exemplar. Para eles o estado e 
todas as instituições da sua sociedade são neutros. Dizer que o estado é um 
estado de classe soa como um escândalo. Gramsci desconsttói esse discurso. 
Afirma que o estado é a forma pela qual uma classe expande suas eficácia e 
capacidade de governar. Graças ao determinismo, as classes subalternas caem 
prisioneiras da ideologia dominante, através da qual o domínio de uma classe 
se realiza seja no plano material, imediato, seja no plano teórico-discursivo. O 
domínio de classe pode se estabelecer, assim, sem necessariamente haver o uso 
da coerção física.
A institucionalidade criada a partir daí torna-se o elemento que confere 
“naturalidade”, legitimação da violência cotidiana e é percebida, paradoxal­
mente, pelo conjunto das classes como a liberdade sansphrase. Lembremos como 
progressivamente todas as instituições classistas foram “perdendo” seu caráter 
de antagônicas: sindicato cidadão, partido da governabilidade, tudo articulado 
com ONGs, Terceiro Setor etc. Os dominantes aparecem, necessariamente, 
como porta-vozes da sociedade cabendo aos subalternos o papel de 
corporativistas. De Collor a Lula, assistimos esse discurso da primazia dos 
interesses nacionais, do honrar compromissos com o grande capital e nunca 
com as classes trabalhadoras. Não cabe aos que negam essa ordem a afirmação 
de que o Estado é um puro instrumento de classe, pois isto levaria a negar a 
possibilidade dos subalternos de intervirem ainda como subalternos, no pro­
cesso de transformação social.
0 cotidiano é o local do choque dos projetos classistas que buscam impor 
sua visão e controle sobre os demais, é o epaço da luta de classes. Por isso Gramsci 
fala da necessidade para as classes subalternas de constaiir e praticar a crítica 
dos discursos' tendencialmente hegemônicos dos dominantes. Isto não é, con­
tudo, suficiente. Faz-se necessário destruir as condições sociais que tornam pos­
síveis aqueles projetos. A crítica rigorosa, o embate de projetos hegemônicos, 
não é um debate abstrato, mas. determinação objetiva do real, necessidade 
histórica. Não é uma filigrana de idealistas ou sectários, mas é fiondamental na 
constituição das classes e forças em presença. Esse embate, seja percebido ou 
não pelos subalternos, é vivido na imediaticidade como administração e não 
como política. É um prolongamento normal da Ordem do Capital. E atua no 
sentido de reproduzir e ampliar as diferenças classistas, de realizar um poder de 
classe que é superior e externo às classes subalternas.
Compreender a totalidade como concepção epistemológica central e as 
ideologias como formas fundamentais da contradição em processo, analisar o real e 
constaiir os conceitos que o explicam, e não simplesmente os descrevem e 
legitimam, é garantir a possibilidade de uma intervenção rigorosa na totalidade
social a partir da qual a transformação da sociedade é uma possibilidade real. 
Libertar-se dos projetos antagônicos, constmir o projeto da nova subjetivida­
de é em si mesmo condição de liberdade. A constituição do saber e da subjetivida­
de das classes trabalhadoras é vital. Os processos de destruição do velho e de 
criação do novo são contemporâneos, caminliam lado a lado. Nada mais ab­
surdo que a velha teoria de que primeiro “tomamos o poder” e depois “constixi- 
ímos a nova sociedade” .
Os discursos classistas não são complementares, negam-se um ao outro, 
embora procurem incorporar os outros à sua lógica®*. Isso significa que o 
discurso e as práticas social-democratas que se baseiam em um projeto de 
colaboração de classes são, evidentemente, ordenados pelo discurso capita­
lista dominante. Na sua essência eles negam a contradição classista ao afir­
mar um horizonte comum: o da nação®^. Para os capitalistas, enquanto do­
minantes, basta a reprodução do cotidiano e seus desdobramentos lógicos. 
E evidente que praticamente todas as manifestações teórico-práticas, na so­
ciedade capitalista, são formas de implementá-la como projeto e história 
real. Isto não significa que não possuem contradições e que os negadores 
dessa ordem devem trabalhá-las e não podem capitular diante dela. 0 cotidi­
ano é 0 lugar da luta de classes, o espaço dofetichismo. Essa é a importânciada obra 
de Marx que significa o ingresso da inteligência nas lutas de classe®®, por 
permitir aos militantes revolucionários sair da intervenção cega, empirista, desarmada, na 
política para captar as leis de tendência, as leis de movimento da formação 
social considerada.
Pensarmos o embate hegemônico entre as ideologias que norteiam os cam­
pos da luta permite-nos perceber como se manifestam esses projetos classistas, 
as subjetividades que os sustentam e lhes dão sentido e direção, como esses dois 
grandes exércitos classistas se movem, se estruturam, estabelecem seus planos 
de guerra. Enfim, como suas direções se movem e buscam determinar o com­
portamento dos antagonistas. Isto significa como intervir na política, construir 
a nova sociabilidade (socialista) ou reforçar suas fortalezas e casamatas (capita­
listas). A. história é incompatível com a ingenuidade. Isto não significa que os que
Maquiavel, já em 1513, na dedicatória de O Príncipe afirma essa tese com clareza: para 
compreender a natureza dos povos é necessário ser príncipe e para compreender a destes é 
necessário ser povo.
Isto não significa ignorar a relação nacional/intemacional, mas é necessário qualificar as 
formas pelas quais essa relação é determinada e determina o movimento das classes em 
presença. Cf Gramsci, op. cit.
Cf. II nostro Marx, 'II Grído dei Popolo”, n° 719, 4 de maio de 1918, republicado em II Mostro 
Marx, Eiuaudi Editore, Torino, 1984, p. 3.
intervém nesse processo tenliam plena clarividência, mas quese pode aprender 
com os erros e acertos nossos e dos outros. A categoria dos intelectuais, que na 
literatura socialista, foi sempre identificada como “direção”, é decisiva nesse 
processo.
Sabemos que, para além desses discursos polares, existem diversos ou­
tros discursos, referentes às práticas de outros personagens históricos (cam­
poneses, trabalhadores sem terra, setores médios etc.). Temos, obviamente, 
consciência disso. Porém , nunca é demasiado lem brar que ainda que 
conjunturalmente essas falas e representações apareçam na cena histórica não 
são as que dão (ou podem dar) o sentido e a direção para o conjunto da 
formação social. Tomemos o exemplo dos Sem Terra brasileiros. Não há 
como negar que essa utopia urbana sobre o rural, essa reconstmção de um ideal 
de terra comunitária, só é possível de ser compreendida a partir da sua inser­
ção nas relações capitalistas de produção, eufemisticamente chamadas de 
“mercado” . Sua aceitação ou rejeição envolve tanto o projeto capitalista (for­
ma atualmente dominante) quanto o socialista (sociabilidade a ser fundada). 
O que é indicado claramente pela sua reivindicação “socialista” . Se pensar­
mos nas falas e representações dos setores médios, a classe do excedente^"*, 
vemos que, apesar desse discurso aparecer freqüentemente sob a forma de 
“sociedade do conhecimento”, ele nada mais é do que a atualização do dis­
curso do capital e de seus intelectuais orgânicos.
Gramsci contribuiu decisivamente para a análise da política com a constm- 
ção da categoria da hegemonia como terreno fundamental da luta de classes. 
Os projetos de hegemonia — constituídos ou em constituição — não apenas mas 
atuais da luta e as formas concretas da institucionalidade daí resultantes. Definir, 
clara e rigorosamente, o quadro e os movimentos da luta permite-nos escapar 
às tentações economicistas. As classes não são meras posições tópicas derivadas 
mecanicamente da estrutura econômica como o pseudomarxismo afirmou 
durante muito tempo
Nicholaus, Martin — ‘̂ Proletariado y clase média em Marx: Coreografia Hegeliana e Dialectica 
capitalista", publicado origmabnente com o título 'Proletariat and middle class in Marx: Hegelian 
chroreography and tbc capitalist dialectic", Studies on the Ixfi, vol. 7, n° 1, 1967, traduzido por 
Fernando Sanches Fontela, Editorial Anagrama, Madrid, 1972. Esta formtilação demonstra 
claramente como qualquer tentativa de pensar esses grupos como tuna “nova classe” — de 
Milovan Djilas a Francisco de Oliveira — não encontra base empírica para sua afirmação, 
assim como as teses de James Bumliam, Al revolução dos gerentes etc.
Não é de espantar que essa visão caricatural tenba sido compartílltada seja pela social-demo- 
cracia, seja pelas vertentes do chamado marxismo-leninismo, meras versões teológicas do 
poder estatal estalinista, negadores da luta e afirmadores, um e outro, meramente, de propos­
tas estatais.
A HEGEMONIA COMO PROCESSO
A centralidade da política enquanto expressão dos antagonismos classistas 
está na base da reflexão sobre a hegemonia. Muitos, contudo, ainda que se 
proclamem marxistas reduzem esta rica perspectiva a uma mera questão das 
alianças de classe na sua imediaticidade, como reflexo do plano da produção, 
pura e simplesmente. Negam assim a importância da política, reduzem-na ao 
plano institucional aceitando o vigente como incontestável. Ao falarmos em 
embate hegemônico nos situamos em outro plano: o da capacidade de uma 
classe subordinar /coordenar classes aliadas ou inimigas. A hegemonia, ao ex­
pressar a luta entre os antagonistas, atua na resolução política de um projeto de . 
sociedade, no encaminliamento concreto das possibilidades reais em confron­
to, mostra como a estrutura se atualiza.
Marxismo e Liberalismo não são apenas concepções teóricas. São, a um 
só tempo, modos de explicar o real e de coordenar as forças classistas em 
oposição. São armas na luta de classes. Optar por esta ou por aquela teoria 
não é um mero exercício intelectual ou retórico. Essas teorias (e suas práticas) 
permitem construir, consolidar, alterar ou destruir formas especificas de 
dominação classista. A luta ideológica é a forma específica dos enfrentamentos 
e se apresenta seja nas pequenas convenções, seja na tradição, tanto na 
institucionalidade quanto na ação judicial que julga os movimentos dos que 
intervém politicamente. A Constituição é a forma do pacto social - implícito 
ou explícito - que atua no cotidiano da política para conformar as perspec­
tivas e práticas classistas. Quando aceita como legítima ela determina o modo 
concreto da regulação dos conflitos e quando colocada em questão funciona 
como poderosa arma de conservação. Lembremos o papel do Supremo 
Tribunal na declaração de inconstitucionalidade da quase totalidade das me­
didas promovidas pelo governo de Unidade Popular de Salvador Allende. 
No mesmo sentido o STF brasileiro ao declarar a constitucionalidade da 
contribuição previdenciária pelos aposentados rasgou a Constituição e gol­
peou o chamado Estado democrático de direito. 0 mito do direito adquirido está 
liquidado, está aberto o campo para nossas reformas saudou o Palácio do Planalto®'". 
A idéia de um Estado democrático de direito, na prática, funciona como 
limite às transformações sociais embora minoritariamente, sob certas cir­
cunstâncias, possa ser usado pelos subalternos como tentativa de limitação 
do abuso dos dominantes.
Mais explicito akida foi a fala cie Nelson Jobim, presidente do STF ao atacar os funcionários 
públicos; “Só mudamos costumes a pontapés”. Folha de São Paulo, quatro de setembro de 
2004, p. AlO. Estado democrático de direito? Ou ditadura impMcita?
A questão ceiitfal da política é o nexo entre capacidade de construção de 
uma visão de mimdo QYdeltanschamin ̂ e realização da hegemonia. A capacidade 
que uma classe (subalterna ou dominante) tenlia de construir sua hegemonia, 
decorre da sua possibilidade de elaborar sua própria visão de mundo, autônoma. 
Essa centralidade não é um a^r/or/lógico, um “efeito da estrutura”, mas a “síntese 
de múltiplas determinações”, determinante no exercício da hegemonia. Diferen- 
ciar-se, contrapor-se como visão de mmido às classes antagônicas, afirmar-se 
como projeto para si e para a sociedade, ser direção das outras classes subalternas 
e dominadas na construção de uma nova forma civilizatória. A capacidade de 
estruturar o campo de lutas a partir do qual seja possível determinar suas frentes 
de intervenção e articular suas alianças é fundamental. O embate hegemônico é 
então o insta-unento da incorporação ou não de uma classe no projeto de outra. 
A autonomia - o pensar-se como classe distinta, portadora de projetos diferen­
ciados - é sinônimo de construção da liberdade. A consagrada fórmula “conquis­
tar corações e mentes” marca exatamente os limites do antagonismo.
A hegemonia é a elaboração de uma nova üviltà, uma reforma intelectual e 
moral. Trata-se da criação de um “terreno para um ulterior desenvolvimento 
da vontade coletiva nacional-popular, em direção à realização de uma forma 
superior e total de civilização moderna”®’ da qual o partido dessa classe deve 
ser o porta-voz e o organizador. Partido não no sentido jurídico-formal, mas 
como intelectual coletivo. O caráter classista é vital. Esse intelectual coletivo 
organiza e expressa a ação de uma classe ainda que esta procure ser o horizonte 
ideológico de toda a formação social. Sua tarefa é a da constnação das respostas/ 
soluções adequadas aos problemas colocados pelo real à sua classe. Ao admi­
tirmos essa formulação não estamos colocando a hipótese dos regimes de 
partido único. Uma classe muitas vezes aparece “representada” por vários par­
tidos, mas, nos momentos decisivos, a centralidade de um deles aparece clara­
mente. Por outro lado se falamos em processo de subordinação/coordenação 
dos aliados e dos adversários pensamos que também estes se representam por 
partidos que atuam a partir de um ideário colocado seja pelo Marxismo,seja 
pelo Liberalismo.
O processo da hegemonia se realiza tanto no plano do movimento quanto 
no plano das instituições. Estamos falando da construção de uma racionalidade 
nova, distinta da anterior-®®. Projeto de “elevação civil dos estratos deprimidos
p. 1560.
Ao falarmos de racionalidade não estamos, obviamente, excluindo a questão complexa da 
afetividade. Não existe, sabemos, racionabdade sem subjetividade, sem construção rica e 
contraditória de personalidades mdividuais, sempre originais. Relembremos a afirmação 
gramsciana de que cada homem é, nesse nível, nm bloco histórico.
da sociedade” essa hegemonia atua no sentido da transformação das condições de 
existência das classes subalternas. Esta reforma intelectual e moral deve, necessaria­
mente, estar ligada a um programa de reforma econômica que é, exatamente, o 
seu modo concreto de apresentar-se. Pensar-se a construção de uma nova forma social, 
uma nova sociabilidade, só épossível se pensamos conjuntamente asformas epecificas de sua 
realitçação material e simbólica.
Os intelectuais e os aparelhos de hegemonia, tanto no que se refere à fun­
ção de consenso quanto à de coerção, no plano estatal ou no plano da produ­
ção, apresentam gradações. Ocupam graus diferenciados na hierarquia:
inclusive do ponto de vista intrínseco; estes graus, nos momentos de 
extrema oposição, dão lugar a uma verdadeira e real diferença qualitati­
va: no mais alto posto devem-se colocar os criadores das várias ciências, 
da filosofia, da arte etc.; no mais baixo, os mais humildes “administrado­
res” e divulgadores da riqueza intelectual já existente, tradicional, acumu­
lada. O organismo militar, também neste caso, oferece um modelo des­
tas complexas gradações: oficiais subalternos, oficiais superiores. Estado 
maior; e não se deve esquecer os praças graduados, cuja importância real 
é superior ao que habitualmente se crê
O campo da hegemonia é marcado pela análise da relação de forças. As crises 
econômicas por si só, não criam as condições de desttuição ou de enfraquecimen­
to de uma dada ordem. Mas, podem “criar um terreno favorável à difusão de 
certos modos de pensar, de colocar e de resolver as questões que arrastam todo o 
ulterior desenvolvimento da vida estatal®”. Quando falamos nesse “terreno” 
estamos, claramente afirmando que a crise é a atualização das contradições da 
estrutura. É o famoso “terreno do ocasional” que, em absoluto, quer dizer aleató­
rio, onde os antagonismos aí presentes se fazem conjuntura decisiva.
O campo de ação das classes e dos seus Estados passa necessariamente 
pela hegemonia: trata-se da ampliação da esfera de classe. Em momentos con­
cretos da identificação da classe dirigente com a sociedade ela pode absorver­
as classes aliadas e as antagônicas. Para as classes subalternas trata-se de buscar 
ser direção de todos os dominados e apresentar-se, praticamente, como proje­
to que permite criar o horizonte ideológico, no qual as demais classes se move­
rão ou poderão vir a mover-se. Plorizonte que desorganiza, inviabiliza, ou pelo 
menos o tenta, os projetos das demais classes. Desorganiza ativa ou passiva­
mente: ativamente ao sobrepor com o seu os outros projetos e assim desca-
“ QC, pp. 1S19-20. 
“ M /;;,/. 1587.
racterizá-los; passivamente pela repressão pura e simples aos demais projetos. 
Horizonte que é estruturação do campo das lutas, das alianças, do permitido e 
do interdito. A. hegemonia é a racionalidade de classe que se fa ^ história e que obriga às 
demais classes a se pensar nessa história que não é a delas.
Aqui nos defrontamos com um aparente paradoxo. Tanto o Liberalismo 
como o MaiTcismo se apresentam como processos de construção de individu­
alidades. Como examinaremos mais adiante, o projeto da hegemonia da classe 
operária é pensado como o da autonomia dos indivíduos. O Liberalismo fala 
de individualização. Mas este pensa os indivíduos como sendo ahistóricos, por­
tadores de uma natureza humana que se identifica com o capitalismo e se ex­
pressa na figura do consumidor.
A afirmação de que o Estado se confunde com os indivíduos (com os 
indivíduos de um grupo social), como elemento de cultura ativa (como 
movimento para criar uma nova civilis^ção, um novo tipo de homem e de cidadãó) 
deve servir para determinar a vontade de construir no invólucro da 
sociedade política uma complexa e bem articulada sociedade civil, em 
que o simples indivíduo se governe por si, sem que por este seu 
autogoverno entre em conflito com a sociedade política, pelo contrário, 
tornando-lhe a continuação normal, o complemento orgânico®^.
Tarefa impossível para o Liberalismo que requer a necessidade, a cisão das 
classes e o reforço do antagonismo entre elas. Ainda que em teoria os liberais 
neguem o conflito, necessitam dele. Transformado em concorrência, uma es­
pécie de guerra civil - o homem é o lobo do próprio homem - eles encontram 
aí sua justificativa. Trata-se de uma negação política necessária para neutcalizar 
as grandes lutas sociais e para o estabelecimento da cidadania do consumidor. 
Essa tarefa só é possível para a classe que coloque “o fim do Estado e de si 
mesm(a) como fim a atingir”. Só ela “pode criar um Estado ético, tendente a 
pôr fim às divisões internas de dominados etc. e a criar um organismo social 
unitário técnico-moral”
Em carta à sua companheira Júlia, Gramsci sintetiza, com boa dose de 
ironia, como deveria ser o homem moderno:
“uma síntese daqueles... que vêm hipostaziados como caracteres nacio­
nais: o engenlieiro americano, o filósofo alemão, o político francês, recri­
ando, por assim dizer, o homem italiano do Renascimento, o tipo mo-
“ idem, p. 1020. 
“ idem, p. 1050.
demo de Leonardo da Vinci tomado homem-massa ou homem-coleti- 
vo, mantendo, contudo, as suas fortes personalidade e originalidade indi­
viduais. Uma coisa à toa como se vê”
A definição do campo de constmção de identidade das classes trabalhado­
ras é essencialmente o terreno da hegemonia.
Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica, e se verifica não 
apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo o 
catnpo internacional e mundial, entre complexos de civiliiçações nacionais e continentais
Pedagógica não no sentido de que ela se reduza
...às relações especificamente “escolares”, pelas quais as novas gerações 
entram em contato com as antigas, e lhes absorvem as experiências e os 
valores historicamente necessários, “amadurecendo” e desenvolvendo 
uma relação própria, histórica e culturalmente superior “
...existe em toda a sociedade no seu conjunto e para todo indivíduo em 
relação aos outros indivíduos, entre camadas intelectuais e não-intelectu- 
ais, entre governantes e governados, entre elites e sequazes, entre dirigen­
tes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército “
Pedagógica no sentido em que é experiência coletiva de emancipação. Ex­
periência que nega/supera hierarquias. Lembremos a afirmação anterior sobre 
o reconliecimeiito pela ciência política da existência de dirigentes e dirigidos, 
governantes e governados. Existência essa que deve ser negada ou afirmada 
quando se propõe um novo projeto. E que é a síntese do antagonismo entre 
liberalismo e marxismo. A existência de dirigentes e dirigidos não é uma ques­
tão técnica mas a forma concreta do antagonismo que se expressa nas socieda­
des classistas como oposição entre produtores sociais/apropriadores privados 
que se traduz na sociedade capitalista sob a forma do par capital/trabalho e na 
“política” aparece como cisão entre dirigentes e dirigidos.
Uma nova visão de mundo supõe e exige necessariamente a constmção e a 
resolução de um debate-mptura com a experiência histórica. Debate que não é e 
nem pode ser nunca uma pura negação abstrata. Supõe a criação de um novo
“ Carta a Jiília Scliiiclit, 1-8-1932. Gramsci, 1975a, p. 654. 
Idem. Grifo nosso.
iíkm, idem. 
idem, idem.
tipo de intelectual. Foi assim com a Revolução Francesa que foi precedida,segun­
do Gramsci, por um imenso trabalho de crítica, uma verdadeira e magnífica 
revolução, na prática uma “internacional espiritual burguesa” . O mesmo vale 
para o Marxismo com a especificidade de que se trata da mais radical mptura 
com as práticas anteriores. Essa nova visão de mundo é sempre uma interferência 
contraditória entre as classes, seus intelectuais e o complexo cultural vigente:
...a personalidade de um filósofo individual é dada também pela relação 
ativa entre ele e o ambiente cultural que ele quer modificar; ambiente que 
reage sobre o filósofo e, obrigando-o a uma contínua autocrítica, a fun­
cionar como “professor” .
As liberdades de pensamento e de expressão e a luta histórica pela sua 
realização são condições politicamente necessárias para que se possa realizar 
historicamente um novo tipo de intelectual/filósofo que podemos chamar de
...“filósofo democrático”, do filósofo convencido de que a sua persona­
lidade não se limita ao próprio indivíduo físico, mas é uma relação social 
ativa de modificação do ambiente cultural .
O marxismo é essa nova visão de mundo, essa filosofia superior. Vê o 
processo economia/política como construção ativa dos homens, e afirma a 
estmtura como a articulação específica das classes, de suas práticas e confron­
tos. Essa filosofia postula a intervenção dos homens, negando sempre, como 
elemento deteriorado, toda forma de determinismo economicista. A filosofia 
é, então, “relação entre a vontade humana (superestrutura) e a estrutura eco­
nômica” ®. Gramsci vê como, na teoria economia burguesa,
...os negadores da teoria do valor caem no crasso materialismo vulgar, 
colocando as máquinas em si - como capital constante ou técnico - como 
produtoras de valor, exteriormente ao homem que as conduz ™.
iíktn, idem. 
idem, p. 1332. 
idem, idem.
™ Idem. Ver a respeito a rubrica Lúrianismo presente iios QC. Isto é vital nas análises corriqueiras da 
chamada Revolução tecno-cientíJica e de suas implicações nas idéias de fim do sujeito histórico, 
sociedade da informação etc. O estalinismo e seus contínuadores levaram ao máximo essa questão a 
ponto de ver a técnica como “antesala do socialismo”. CF. Edmundo Fernandes D ias,^ Liberdade 
jm)possivel na Ordem do Capital. Leestmturação Produtíva e Passim\afão, Textos Didáticos, 29, IFCFI/ 
Unicamp, 1999. Elementos para trabaUiar essa posição podem ser, exemplarmente, encontrados 
no economista russo W G. Maracliow, StmkturundEntinicklung derProduktwikràfe in derSosjalistichen 
Gessselschajt, citado por Magaliue, Lntte de classes et desvaloriiiaãon du Capital, Franfois Maspero.
O mesmo ocorrendo na política, local da “intervenção do Estado (vontade 
centralizada) para educar o educador, o ambiente social em geral”
O trabalho filosófico tem, assim, seu campo ampliado. Nós o encontrare­
mos na chamada filosofia espontânea, própria de toda a gente. Está contido na 
religião, na linguagem, no sentido comum, no bom senso, na religião popular. 
A linguagem é o lugar onde se cristalizam e se expressam as noções e os concei­
tos, o senso comum, a religião, o folclore e onde estes ganiram vida, se genera­
lizam. Ela permite o ocultamento ou o esclarecimento: nela, ganira forma toda 
e qualquer concepção de mundo. Siirteticamente: é o locus da trairsformação 
cultural necessária. A questão é saber como se trabalha a Imguagem. Ser autô­
nomo é ter, entre outras questões, a possibilidade de constmir a liirguagem 
adequada ao processo de trairs formação, é
...elaborar a própria concepção de mundo consciente e criticamente (...), 
em conexão com tal trabalho do próprio cérebro, escolher a própria 
esfera de atividade, participar ativairrente na produção da história do 
muirdo, ser guia de si mesmo
É, em suma, decodificar os signos da linguagem anterior e ser capaz de 
construir a linguagem necessária à articulação dos nossos projetos.
No processo da construção é necessário e vital recusar o economicismo 
que naturaliza e reifica. O economicismo faz do atual, do vigente, uma segunda 
“natureza”, uma pura continuidade, subordina tudo e todos a uma realidade já 
dada; mais ainda: recusa a possibilidade de intervenção das vontades na histó­
ria. Ele é, mesmo quando aparece sob outras vestes, a forma mais perversa do 
positivismo. O marxismo, a partir da ótica economicista presente na quase 
totalidade do pensamento da III Internacional, ao criar seus intelectuais dogmática 
e sec ta riam en teao subordiná-los a um pensamento estático, foi transforma­
do em uma mera doutrina de sustentação da experiência estatal mssa, enfim, 
absorvido, neutralizado e esterilizado na sua capacidade revolucionária.N ão 
ganhou a massa das classes subalternas, teve apenas a ilusão de conseguí-lo. Sob 
o estalinismo’®, o marxismo transformou-se em uma vulgata economicista e
QC, p. 1332. 
ickm, p. 1376.
Ver entre outras a obra de Nicolas Bouldiarine, I jt théorie cln matérialisme historique. Manuel 
populaire de Soüologie Marxiste (1921).
Sobre isso ver, entre outros, François Cbâtelet, Ijogos et Práxis, e Le Capital. Projil d’une auvre.
Não se trata nem de “culto à personalidade” nem de demonização. Estalúiismo é, aqui, um 
nome coletivo e refere-se à ditadura da burocracia russa.
passou a ser uma teologia, com dogmas infalíveis, leis inevitáveis. Não colocou 
a elevação do pensamento como necessidade e optou na relação intelectuais/ 
simples, como a igreja, pela disciplina dos intelectuais. São projetos distintos: o 
que para a religião pode aparecer como força, para a vulgata da filosofia da 
práxis, mutilada e reduzida à nulidade, é pura perda.
Na forma de “superstição economicista” a filosofia da práxis adquiriu 
enorme prestígio “entre as massas populares e entre os intelectuais de meia 
pataca, que não querem cansar o cérebro, mas querem parecer espertíssimos” .’’ 
Prestígio ganlio às custas de sua capacidade de “expansividade cultural na esfe­
ra superior do gmpo intelectual” ’®. Prestígio estéril dado que, no essencial, 
representou uma grave perda de sua capacidade de intervenção política. O 
marxismo, tal como vivido por muitos dos seus “práticos”, esqueceu-se do 
fundamental: o da criação rigorosa dos seus próprios intelectuais. Com isso, 
sucumbiu ao materialismo mecanicista. Não compreendeu a história, isto é não 
foi capaz de dominar as formas da racionalidade capitalista, nem de propor 
efetivamente a nova sociedade. Perdeu capacidade de intervenção e de educa­
ção política. O marxismo que exercera um enorme fascínio entre os grandes 
intelectuais, ao reduzir-se a um mero catecismo, não conseguiu produzir, se­
quer, seus intelectuais. Perdeu, no círculo dos intelectuais, a luta pela hegemonia. 
Facilitou a absorção, a captura, dos seus militantes pelas ideologias e projetos 
adversários. Um bom exemplo disso é a perplexidade de certos “marxis­
tas” diante da chamada crise do Leste e da sua posterior passagem ao campo 
do pensamento e da prática liberais, processo cuja radicalidade e rapidez é 
exemplar.
O economicismo, forma particular do determinismo mecânico, tende a 
negar as “expressões de vontade, de iniciativa e de ação política e intelectual, 
como se estas não fossem uma emanação orgânica das necessidades econômi­
cas e, mesmo, a única expressão eficiente da economia”.’® Não perceber essa 
relação fundamental é impedir-se de colocar a questão da hegemonia, é conde­
nar-se à perpétua subalternidade. Reduzindo tudo mecanicamente ao econô­
mico, às leis férreas e exteriores de um desenvolvimento ahistóricos, o 
economicismo acaba por esquecer a “tese segundo a qual os homens adquirem 
consciência dos conflitos fundamentais sobre o terreno das ideologias” trans-
'"‘QQ-ç. 1595, MPE, p. 37,
’’ idem, idem. 
idem, idem.
’’ idem, p. 1590, JVIPE, p. 33. 
idem, idem.
formou-se em negação da pesquisa histórico-científica e reduziu o conlieci- 
mento histórico em “um contínuo marché de dupes, um jogo de ilusionismos e de 
prestidigitação. A atividade ‘crítica’ reduziu-se em desvelar truques, em suscitarescândalos” Gramsci, dizia em 1917, em aberta polêmica com Cláudio Treves®̂ , 
que, nessa versão naturalista, a filosofia da práxis transformara-se em teoria da 
inércia do proletariado. Perde-se a própria concepção de totalidade. Mutila-se 
a dialética e caminha-se para a derrota.
O economicismo procede por reduções. O conceito de formação social de­
saparece diante do conceito de modo de produção. Este é tomado como uma 
abstração com a qual o real deve coincidir. O modo de produção é reduzido à 
esfera do “econômico” “ Desaparecem, assim, as classes e as relações sociaisl. 
Logo, reduz-se o conjunto das forças produtivas às relações de produção, vistas 
como base e motor da história. Complementam-se os equívocos pela redução 
das forças produtivas à tecnologia. Concluído esse círculo vicioso, o marxismo 
está devidamente reduzido a um conjunto de dogmas. De redução em redução, 
cai-se na famosa contradição Trabalho-Capital, tornada uma tautologia vazia. Tra­
ta-se não de uma racionalidade classista, mas de uma abstração vazia, com o que 
caímos na mais bmtal metafísica: “as forças produtivas são a expressão da liber­
dade dos homens em relação às forças da natureza”, (j/í)®'' Todas as demais con­
tradições parecem desaparecer em uma espécie de “Triângulo das Bermudas”.
Um dos principais elementos de subordinação do pensamento e das práti­
cas das classes subalternas é precisamente a bnrtal dificuldade de elas elabora­
rem a sua própria identidade. O seu saber/pensamento é construído, errática e 
fragmentariamente, a partir da sua inserção subordinada na totalidade social. 
As classes subalternas têm que, em um processo permanente de luta contra essa 
dominação/saber, dar respostas concretas aos problemas colocados pelos 
dominantes. E, normalmente, no interior, no próprio cerne destas práticas e 
discursos dominantes, vistos como a única possibilidade, como naturalidade, 
como horizonte, que as respostas das classes subalternas se configuram como 
não-saberes. E é exatamente por isso que os saberes/práticas dos dominantes 
ditam os ritmos e as formas de todo saber constituído.
idem, idem.
Cláudio Treves era um dos Mderes máximos do reformismo socialista italiano.
Com este procedimento acaba-se por traduzir o conceito de modo de produção em algo como 
um tipo ideal weberiano. ReduZ-se a teoria marxista às proposições do que Marx chamou de 
economia vulgar.
*■’ Ver a expressão do economista russo W G. Maracliow, Stmktur... citado por Magaline, op. cH., 
p. 17.
A não-estmturação autônoma das classes subalternas, o fato de elas terem 
que ser resposta a outros - os dominantes faz com que a totalidade da sua 
existência (rica e contraditória) seja tendencialmente reduzida à cotidianeidade, 
à imediaticidade e à fragmentariedade, atuando, fundamentalmente, nos limites 
do campo econômico-corpotativo, ou seja, da sua reprodução pura e simples. 
Perde-se, assim, a perspectiva da construção do momento ético-político, vale 
dizer o da construção da sua identidade como classe e, portanto, o projeto de 
sua hegemonia.
Poder-se-ia lembrar - e contrapor - que essa redução à cotidianeidade, à 
imediaticidade, à fragmentariedade, também ocorre com as classes dominan­
tes, visto estarmos vivendo em uma sociedade marcada pelo fetichismo das 
formas mercantis. Há, no entanto, uma mediação fundamental: as classes do­
minantes comandam a estmtura — contraditória - do processo de produção e 
reprodução social. A produção-reprodução ampliada das classes subalternas é 
assim desqualificada, descentrada em relação a si mesma e centrada na 
racionalidade contraditória do(s) seu(s) antagonista(s). Para as classes dominan­
tes basta a reprodução, pura e simples, de suas práticas. Por isso mesmo, a 
prática dominante é pensada como instmmentação técnica da sua racionalidade, 
de toda racionalidade possível, colocando-se no chamado “campo econômi­
co”, como resolução das questões imediatas da produção e da reprodução da 
materialidade.
Falamos em autonomia, em elaboração da visão de mundo específica das 
classes trabalhadoras, das classes subalternas, para que estas se liberem da 
racionalidade capitalista, ou seja, da organicidade prático-discursiva promovi­
da pelas classes dominantes. Se “somos conformistas de algum conformismo, 
somos sempre homens-massa ou homens coletivos”
Criticar a própria concepção do mundo significa, portanto, torná-la uni­
tária e coerente, e elevá-la ao ponto que atingiu o pensamento mundial 
mais avançado. Significa, então, mesmo, criticar toda a filosofia até, ago­
ra existente, enquanto ela deixou estratificações consolidadas na filosofia 
popular
O processo de construção da identidade da classe é, portanto, o da crítica 
em relação aos seus diversos níveis de consciência anteriores, sempre e sempre, 
em contraste com a racionalidade dominante. Esse é o processo da construção 
de uma “concepção do m undo criticamente coerente” , ciente da sua
p. 1376. 
“ idem, idem
historicidade. Sem isso, estaríamos em uma posição anacrônica, seríamos “fosseis 
e não seres viventes modernamente. Ou pelo menos (...) ‘com postos’ 
bizarramente” A percepção de um anacronismo relativo é documento do próprio nível de 
estruturação da classe sempre em debate com as racionalidades passada e presente dos domi­
nantes, e com a história da stiaprópria racionaãdade (consciente ou não, desagregada ou nãà).
A linguagem é vital porque “contém os elementos de uma concepção de 
mundo e de uma cultura” E nela e com ela, que se pode comunicar e proces­
sar o debate hegemônico. No processo de descolonização africano muitas ve­
zes os colonizados enfrentavam o problema de sua diversidade nacional e o 
fato de que o único que os unificava, até mesmo para enfrentar o inimigo, era a 
língua deste. Assim, o conliecimento/desconhecimento da linguagem permite 
criar/destruir, controlar/libertar a capacidade de estruturar projetos e práticas.
Quem fala apenas o dialeto ou compreende a língua nacional em graus 
diversos, participa necessariamente de uma intuição do mundo mais ou 
menos restrita e provincial, fossilizada, anacrônica em confronto com as 
. grandes correntes de pensamento que dominam a história mundial
Iniciado o processo de criação de uma nova concepção de mundo, um 
dos elementos mais importantes será, necessariamente, a sua capacidade de 
tradução. Ela deve ser capaz de “difundir criticamente verdades já descobertas, 
'socializá-las' (...) fazê-las tornar-se base de ações vitais, elemento de coordena­
ção e de ordem intelectual e moral”
A hegemonia é exatamente isso: a criação de uma massa de homens capasçes de “pensar 
coerentemente e de modo unitário” o presente e, portanto, de projetar para o futuro, na 
perspectiva de um novo patamar civilitçatório. Não pode haver exterioridade entre a 
filosofia da práxis e o conjunto das classes subalternas. Ou ela é capaz, por um 
lado, de perceber o conjunto das questões colocadas por aquelas classes e resolvê- 
las no interior da sua problemática e ser capaz de fazer-se compreender por 
elas ou não, há possibilidade de hegemonia.
Subtrair-se ao domínio ideológico de outra classe é condição necessária, 
mas rião suficiente, na construção da hegemonia. E um primeiro passo na 
direção da coerência e de unitariedade da nova concepção. Para tal, faz-se 
necessário constmir intelectuais:
idsw, p. 1377. 
idem, idem.
idem, idem. 
idem, pp. 1377-8,
Autocoiisciência crítica significa, histórica e politicamente criação de uma 
elite de intelectuais: uma massa humana não se 'distingue' e não se torna 
independente 'per se' sem organizar-se (em sentido lato). Não existe or­
ganização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, sem 
que o aspecto teórico do nexo teoria-prática se distinga concretamente 
em um estrato de pessoas “especializadas” na elaboração conceituai e 
filosófica®*.
Processo longo e contraditório, a hegemonia em construção traz outros 
problemas. Quando se pensa a teoria como exterior à prática - e não como 
unidade- estamos em face de proposições marcadas por uma concepção que 
toma a “teoria como ‘complemento’, ‘acessório’ da prática, de teoria como 
escrava da prática” Na dialética intelectuais-massa estabelecida no processo 
da hegemonia, ocorre freqüentemente
...uma perda de contato, donde a impressão de “acessório”, de comple­
mentar, de subordinado. A insistência sobre o elemento “prático” do 
nexo teoria-prática, depois de ter cindido, separado e não apenas distin- 
guido os dois elementos (...) significa que se atravessa uma fase ainda 
econômico-corporativa, em que se transforma quantitativamente o qua­
dro geral da “estatura” e a qualidade-superestatura adequada está em 
vias de surgir, mas não está ainda organicamente formada® .̂
Essas novas intelectualidades não podem propor-se nem como exterioridade, 
nem como círculo restrito. O logos tem que sefasier carne. Tem que ter a força do 
coletivo, da classe, não é um processo de individualidades puras ainda que no 
início isso só seja possível “pelos trâmites de uma elite, em que a concepção 
implícita na atividade humana já se tenha tornado em uma certa medida cons­
ciência atual coerente e sistemática, e vontade precisa e decidida®'* ”
Como a mptura das classes subalternas em relação aos antigos modos de 
pensar é apenas o ponto inicial e que se tem de partir, necessariamente, da sua 
prática subordinada e organizada pela racionalidade dos dominantes,”a fideli­
dade e a disciplina são inicialmente a forma que assume a adesão da massa e a 
sua colaboração ao desenvolvimento do fenômeno cultural como um todo®® ”
idetn, p. 1386. O giifo é nosso. 
idsm, idem.
” idem, pp, 1386-7. 
idem, idem. 
idem, p. 1386.
Na realização da dialética intelectuais-massa, aos deslocamentos dos inte­
lectuais existe
...um movimento análogo da massa dos simples, que se eleva a níveis 
superiores de cultura e amplia simultaneamente seu círculo de influência, 
com avanços individuais ou de gmpos mais ou menos importantes em 
direção ao estrato dos intelectuais especializados®* .̂
O mecanicismo, o determinismo, o fatalismo são obstáculos a essa tarefa. 
Mais do que nunca é necessário romper com eles, dado que funcionam como
...um “aroma” ideológico imediato (...), uma forma de religião e de 
excitante (mas ao modo dos estupefacientes), tornad(o) necessári(o) e 
justificad(o) historicamente pelo caráter “subalterno” de determinados 
estratos sociais. Quando não se tem à iniciativa da luta e a própria luta acaba 
então por identificar-se com uma série de derrotas, o determinismo mecanicista se torna 
umaforçaformidável de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e obsti­
nada. (...) A vontade real se traveste em um ato de fé, em uma certa 
racionalidade da história, em uma forma empírica e primitiva de fmalismo 
apaixonado que aparece como um substituto da predestinação, da 
providência etc., das religiões confessionais. (...) Mas quando o “subalterno” 
se torna dirigente e reponsávelpela atividade econômica de massa, o mecanicismo 
aparece em um certo ponto como um perigo iminente, ocorre uma revisão de todo modo 
de pensarporque ocorreu uma mutação no modo social de ser
O combate ao determinismo, como vimos, é uma das formas de liberta­
ção do pensamento e das práticas das classes subalternas. A aceitação, pura e 
simples, do “econômico” e do “político” como esferas do real vigente permi­
tem o atrelamento das classes subalternas a um projeto que não é o seu.
Salientemos alguns mecanismos da luta de hegemonias. Consideremos pri­
meiramente a existência
...de uma extrema labilidade nas novas concepções das massas popula­
res, especialmente se estas novas convicções estão em contraste com as 
convicções (mesmo novas) ortodoxas, socialmente conformistas segun­
do os interesses gerais das classes dominantes®'.
Uma segunda consideração é de que uma “parte da massa mesmo subal­
terna é sempre dirigente e responsável, e a filosofia da parte precede sempre a
ídcm, idem.
” idem, p. 1388. Grifos nossos. 
™ idem, .'ç. 1391.
filosofia do todo, não apenas como antecipação histórica, mas como necessi­
dade atual
Deve-se, então,
...trabalhar incessantemente para elevar intekctualmente estratos populares cada ve ̂
mais vastos, (...), para dar personalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa 
trabalhar para suscitar eãtes de intelectuais de um tipo novo que surjam diretamente 
da massa,permanecendo (...) em contato com ela (...). Esta (...) necessidade, se satifiei- 
ta, é a que realmente modifica o ‘panorama ideológico” de uma época
A luta das hegemonias é um processo de conhecimento. Frente ao peso 
que a tradição confere ao pensamento anterior é necessário todo um trabalho 
de consolidação das novas orientações gerais, de elaboração da nova lingua­
gem, de fazê-las tornar-se cotidiano das massas, uma segunda natureza, com o 
que se tornam epontaneidade racional “A adesão ou não adesão de massa a uma 
ideologia é o modo com que se verifica a crítica real da racionalidade ou da 
historicidade dos modos de pensar
Faz-se necessária a clareza de que não se trata de uma mera luta ao nível do 
discurso. A eficácia das ideologias decorre da sua capacidade de interferir na 
vida concreta das classes, dos homens.
A realização de um aparelho hegemônico, enquanto cria um novo terreno 
ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de 
conliecimento, é um fato de conhecimento, um fato filosófico. Em lingua­
gem crociana: quando se consegue introduzir uma nova moral conforme 
a uma nova concepção de mundo, se acaba por introduzir mesmo tal 
concepção, isto é, se determina uma inteira reforma filosófica“ .̂
Ou seja, determinam-se novos campos de luta, recoloca-se a questão dos 
projetos. Só assim se podem pensar estratégias e táticas.
A vitória de um princípio hegemônico (ético-político) não se dá pela 
pura superioridade técnica, lógica ou racional. A tarefa de quem busca cons- ' 
tmir a nova hegemonia é, fundamentalmente, compreender as razões pelas 
quais um projeto de hegemonia é vitorioso ou não. Ou seja, de compreender
idem, p. 1389.
idm, p. 1392. Grifo nosso.
idem, p, 1393.
idem, p. 1250.
como um discurso pode capturar as emoções e as práticas das classes que domina. Deve­
mos enfatizar, contudo, que o debate hegemônico não se move apenas no 
plano lógico-discursivo. Mas também no campo da afetividade. Eis aqui uma 
outra dificuldade da nova racionalidade. As formas anteriores de pensamen­
to não apenas têm, por si, a legitimidade do antigo uso, mas a sua transfor­
mação em afetividade. Basta-lhes a pura repetição e o uso das imagens 
sacralizadas e dos valores tornados segunda natureza. Para os subalternos 
faz-se necessário “inventar o novo”, desenvolver a razão, combinando-a com 
a afetividade, ruptura com construção.
Falamos anteriormente do uso da noção de ordem. Mas, poderiamos seguir 
pensando em categorias tão fortes como família, pátria, fraternidade, amor. A 
nova racionalidade será combatida por apelos que vão das afirmações genéri­
cas do tipo “eles negam a famflia” até a imputação do “desrespeito aos símbo­
los pátrios”, da negação da liberdade e da propriedade, mesmo que no cotidi­
ano as classes subalternas jamais tenliam vivenciado plenamente qualquer uma 
dessas categorias no sentido que as classes dominantes lhes atribuem. Marx e 
Engels, em 1848-9 mostraram, no Manifesto do Partido Comunista, o discurso da 
ordem em funcionamento. E procederam à sua desconstrução crítica. A afir­
mação de Marx sobre as aparências necessárias é vital. Dado que o discurso das 
classes dominantes busca permanentemente capturar a vontade das classes 
dominadas e pô-las a seu serviço é preciso determinar o peso concreto de 
cada um dos elementos da estrutura e o modo de sua realização em conjun­
turas as mais diversas. Decifrar o real é um momento do processo de sua 
transformação.
Cada classe possui sua concepção de mundo, sua weltanschauung, seu modo 
próprio de organizar a si e ao mundo. Na analítica marxiana,a totalidade 
social é o espaço contraditório onde as classes, forças sociais etc., se apresen­
tam e se defrontam seja no território da materialidade imediata, seja no espa­
ço onde se representam, se pensam, se chocam ou se aliam conforme seus 
projetos, em conjunturas determinadas. As classes são, portanto, um proces­
so permanente de constituição de sujeitos históricos, em contradição não 
apenas com outras, mas que admitem, também, em seu seio, diferenças histó­
ricas. Seu processo de constituição é histórico e permanente. Nada há nada 
mais antimarxista, por exemplo, do que imaginar uma classe operária fixa e 
fixada para todo o sempre, nem no conjunto da história, nem mesmo na 
particularidade de uma formação social concreta. Esta formulação é, pelo 
contrário, muito próxima ao pensamento liberal. Para este é possível pensar a 
classe (ou qualquer outro coletivo social) como uma reunião aleatória de 
personalidades, que se agregam e desagregam, mas que não alteram, a cada 
momento, nada da sua formatação meta-histórica, o terreno último da exis­
tência social e objeto privilegiado de análise. Weber ao examinar a estratificação 
social, nos dá um belíssimo exemplo dessa formulação. Não apenas segmen­
ta o real em três grandes esferas nas quais os homens distribuem-se em esca­
las de desigualdade (economia, honra social e poder político), mas pensa os 
indivíduos deslizando entre uma ou outra forma a partir da sua inserção na 
ação s o c i a l . O mercado (econômico, político, simbólico) é a síntese privile­
giada desses átomos sociais.
Na luta pela(s) hegemonia(s) nada está definido a priori, tudo é espaço 
contraditório onde as classes tentam afirmar seus projetos e horizontes, suas 
concepções classistas de mundo, possuidoras de uma materialidade que constitui 
suas práticas e lutas concretas. Contrariamente às visões reducionistas que 
limitam as lutas de classe ao plano de uma materialidade abstratâ ®*̂ {capitalx 
trabalho) ou ao plano da institucionalidade vigente^® (participar ou não, ser mai­
oria na ordem, obedecerás regras dojogo etc.) as ideologias sintetizam as experiências 
e identidades de classe, viabilizam a formulação dos projetos classistas. Daí o 
peso das intervenções ideológicas no cenário da luta. Nunca é demais lem­
brar que elas nem sempre são percebidas como tais“ ®. Normalmente, seu 
papel organizador/ desorganizador, é “ignorado”: tudo parece ser natureza. 
Viveriamos, caso isso fosse verdade, um rígido determinismo {a infra-estrutu­
ra determinando mecanicamente tudo e todod) graças ao qual a História não seria 
construída pela vontade dos homens, mas por uma lei de brom ê da natureza.
Ver Economia e Sociedade.
Não apenas abstrata, mas, fundamentalmente mistificada e mistificadora. Prática que enca- 
miulia a derrota visto negar não apenas as posições das forças em presença, mas seu peso 
específico, duas formas de intervenção. E acima de tudo negadora da postura marxista ao 
recusar a possibilidade de intervenção da vontade classista (bistoricamente determinada) na 
luta de classes. É uma proposição positivista do tipo “o mundo caminba para o socialismo” 
que tantas derrotas impôs aos subalternos (ver as táticas da classe contra classe, das afirma­
ções da social-democracia como social-fascismo etc. etc). Diante dessa proposição o marxis­
mo deveria ser considerado como um non sem, um discurso externo às leis de ferro da 
economia, Essa questão aproximou esse pseudomarxismo do pensamento liberal. Onde estes 
lêem mercado, aqueles pensam economia..
Cf. a posição de Kautsky, Bernstein e dos mencheviques na análise do processo revolucionário 
na virada dos séculos XIX e XX.
A ideologia funciona como uma “atmosfera”. Se todo o peso da atmosfera se concentrasse, 
localizadíunente, sobre o corpo de um indivíduo produziría o seu esmagamento. Como, no 
entanto, ela se exerce em todos os sentidos seu peso sequer é percebido, Esse efeito quando 
referido à ideologia se dá quando ela aparece como naturalidade, o “sempre foi assim” etc. 
Um belo documento sobre sua eficácia está descrito em O Príncipe (1513) de Maquiavel 
quando este fala dos principados antigos que tem por si seja a legitimidade da tradição, seja 
pelo peso da religião.
Ao longo dos últimos séculos, as classes em luta (campo burguês x campo 
dos trabalhadores^®’) encontraram no Liberalismo e no Marxismo as teorias 
que municiaram a luta na busca do estabelecimento da hegemonia das respec­
tivas classes na totalidade social. A hegemonia é um espaço de luta. Qualquer 
redução a um mero domínio ideológico ou a uma maioria (eventual) de uma classe sobre 
a(s) out.ra(s) é um desconliecimento da sua própria natureza. Sua realização mais 
acabada, se dá na transformação em horizonte ideológico de uma época, como 
o projeto da totalidade da sociedade. Ela deve ser capaz de incorporar as 
demais classes na resolução concreta da materialidade e não apenas no plano 
ideológico, da desconstrução do conjunto ideológico das demais classes e de 
sua reescritura, isto é, de ser capaz de destruir a lógica do adversário. Ou, no 
mínimo, deve neutralizar as ações daqueles. Não se trata apenas de reprimir, 
pura e simplesmente, as ideologias contrárias, mas trabalhar-lhe as questões a 
partir da perspectiva hegemônica. Dar-lhes novo sentido e direção, articulando as 
ideologias e práticas delas às suas.
As classes dirigentes (e não apenas dominantes) têm que, em maior ou 
menor escala, construir a racionalidade de sua intervenção seja buscando criar 
um novo mundo, uma nova civiltà (processo revolucionário) seja manter, 
ampliadamente, o projeto anterior. Insisto: o uso da linguagem é decisivo. A 
afirmação, por exemplo, dos chamados “anos de ouro do capitalismo” pelos 
economistas, historiadores e cientistas sociais pata referir-se ao imediato pós- 
segunda guerra interimperialista (dita mundial); marca um período de inúmeras 
manifestações radicais das classes subalternas e das nações oprimidas como um 
período de paz e prosperidade e mostra o pacto social-democracia/ capitalis­
mo como sendo uma forma que garantiu melhores condições de vida para as 
classes subalternas. O que não enfatizam é que o período imediatamente subse- 
qüente é aquele em que o welfare state e as leis sociais são acusados de criar as 
condições do engessamento da acumulação capitalista e portanto de impossi­
bilitares do desenvolvimento “normal” da economia. Em última instância tra­
tou-se de identificar as lutas de classe na produção, as lutas nacionais, de gênero 
etc., como perturbadores da ordem. E o fazem sem sequer dar-se ao trabalho 
de explicar como um período gerou o outro. Neutralizava-se assim (pelo me­
nos se tentava) a possibilidade de criação de uma nova sociabilidade em con­
traste com a ordem do capital.
Nessas lutas, as ideologias desempenham um papel decisivo. Não são 
ilusões, nem sequer um mero “fazer a cabeça do outro” . O mais sintomá­
tico é que o soi disant campo socialista, que se pretendeu campeão internaci-
Ao fnlíirmos em campos não os pensamos como puros, sem contradições, mas como espaço 
onde outras ideologias, organizações etc., atuam.
onal dos subalternos negou, reiterada e peremptoriamente, a eficácia da 
ideologia transformando-a em mero epifenômeno da economia. A redu­
ção da luta ao plano da produção material imediata, caracterizado como 
momento econômico-corporativo por Gramsci, foi uma das mais perver­
sas formas de determinismo e gerou as condições do desarme dos sujeitos 
antagônicos ao capital. Ou seja dificultou a passagem ao momento ético- 
político, ao momento da catarse: o da ruptura ao nível da centralidade da 
dominação.
O próprio marxismo foi subalternizado no seu papel de ideologia 
organizadora da vontade dos subalternos^®® e transformado em pura lógica 
estatal. A negação da ideologia 'vista como mero reflexo - foi usada pelos 
deterministas - sejam liberais, social-democratas ou estalinistas - como ilusão 
sem materialidade o que confirmava para eles sua “falta de cientificidade”,ou 
seja seu erro. Ao mesmo tempo a “materialidade” do capital era vista como 
“objetiva”, vale dizer "científica” . O procedimento “cientificista” era necessá­
rio para sacralizar o domínio das burocracias estalinistas que substituíram o 
papel do partido que já havia substituído as classes“ ®. A transformarão da mais 
afiada navalha crítica sobre o capitalismo passou a legitimar um poder estatal, negando na 
prática a eficácia da luta de classes. No campo social-democrata o marxismo aca­
bou por ser simplesmente abandonado, cedendo espaço a um liberalismo mi­
tigado, próprio a uma visão de uma esquerda “redistribucionista” que teve no 
welfare State sua grande estrela. Formas mistas articulando essas duas possibili­
dades se generalizaram no chamado mundo capitalista. O fio da navalha fi­
cou cego.
A visão da ideologia como falsa consciência, dominante em um discurso 
pseudomarxista, é absolutamente reducionista. Se em 1845, quando Marx e 
Engels escreveram A Ideologia Alemã usando a metáfora do jogo de lentes 
que projeta uma imagem invertida, logo corrigida por outro {dafalsa à verda­
deira consciêncid) isto poderia fazer sentido. Essa afirmação buscava encontrar 
a base empírica das formulações filosóficas, afirmando, alto e bom som, 
que a história era a história dos homens concretos, de carne e osso. A partir 
daí foi lido (lembremos Altliusser) que a ideologia não tinha história, A ide-
Não importa que, de fato, não se tratasse reaknente do marxismo. O trágico é que era visto 
assim pelos trabalhadores em escala planetária.
Nunca é demais lembrar que o processo de dominação dessa burocracia requereu, a um só 
tempo, dois pressupostos: a mudança da base social do partido e a eliminação das oposições 
internas do partido com a consequente destruição do rico debate teórico-prático que fizeram 
do partido bolchevique, na expressão gramsciana, um “experimentador liistórico”, um cien­
tista coletivo experimental da política.
ologia não se produzia, afirmaram Marx e Engels, pela mera reflexão de 
intelectuais puros. Ainda que de forma limitada, buscava-se compreender e 
demonstrar o nexo teoria-prática. E foi uma poderosa crítica ao transcen- 
dentalismo religiosô . Esse momento inaugural da investigação, essa constatação, 
tinha um caráter revolucionário. Eternizá-lo, retirando-o do contexto da in­
vestigação, afirmando-o como válido para todo o sempre, significou negar a 
prática social como laboratório e fazer daquele nexo uma mera declamação 
retórica^^.
Essa concepção já estava de fato superada, principalmente a partir á&O 18 
Bmmário no qual .MaiTc demonstra à saciedade, o papel das ideologias como 
armas de classe, como constituidoras do real. Esta é uma brilhante demonstra­
ção de como o marxismo foi alterado pelo debate com o socialismo existente. 
Esta é uma brilhante demonstração de como o marxismo foi alterado elo 
debate com o socialismo.
Apesar de isto a concepção da falsa consciência retorna no AntíDühring. Ao 
reduzir a obra marxiana a um mero contraponto com Dühring Engels acaba 
por permitir uma desnaturação da descoberta revolucionária da nova teoria. 
Examinaremos mais adiante a relação entre pensamento crítico e pensamento 
polêmico. No 18 Bmmário Mai-x analisa os textos constitucionais da revolução 
de 48, a possibilidade de a forma republicana permitir o exercício coletivo do 
poder pelas frações burguesas superando as suas limitações particularistas ante- 
riores“ ^. As ideologias iluminam o modo próprio de fazer política de cada 
uma das classes ou de suas frações.
Entre essas duas possibilidades de construção da hegemonia (a liberal e a 
marxista) existe uma semelhança formal, mas, também, diferenças reais. A seme­
lhança. ambas trabalham as práticas de suas classes, vêem os passos necessários 
para construir uma historicidade universal. A diferença, os capitalistas podem, 
porque suas práticas no plano da produção material já existiam ou estavam em 
estado avançado de constituição, pensá-las voltadas para uma origem mítica 
que lhes confira coerência e legitimidade, como continuum.]^ as classes subalter-
Cf. as Teses sobre Feuerbach e a crítica dos limites do materialismo mecanicista e do idealismo,
Toda vez que afkmamos um conliecimeiito para além do contexto em que foi produzido, sem 
correlação efetiva com o elemento pesquisado e, além disso, afirmamos genericamente sua 
“verdade” estamos camiuliando no sentido de elaborar uma formulação ideológica no senti­
do deteriorado, isto é, de produzir um erro.
Aqui está claramente desmistificada a falsa acusação segundo a qual Marx não leva em conta 
o plano da institucionalidade. A diferença - radical — é que a análise marxiana trata-a em 
movimento, como contradição em processo e não no puro plano abstrato-formal da análise 
liberal.
nas têm esse procedimento interditado, visto não existirem práticas comunistas 
consolidadas no interior do capitalismo.
O procedimento dos teóricos liberais pauta-se exatamente nisto. A idéia de 
uma sociabilidade, a priori, externa à sociedade é essencial à constituição das 
relações capitalistas de produção. A invenção da tradição, pela recriação do passado a 
serviço do presente é vital. Marx, analisando o processo revolucionário francês, em 
0 18 Brumário, afirma:
...os heróis, os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, de­
sempenharam a tarefa de sua época, a tarefa de liberar e instaurar a 
moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com frases roma­
nas. Os primeiros reduziram a pedaços a base feudal e deceparam as 
cabeças feudais que sobre ela haviam crescido. Napoleão, por seu lado, 
criou na França as condições sem as quais não seria possível desenvol­
ver a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida e 
utilizar as forças produtivas industriais da nação que tinham sido liber­
tadas; além das fronteiras da França, ele varreu por toda parte as insti­
tuições feudais, na medida em que isto era necessário para dar à socie­
dade burguesa da França um ambiente adequado e atual no continente 
europeu.” ^
Já aos socialistas e comunistas esse caminlio é vedado:
A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, 
e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de 
toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tive­
ram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem 
quanto ao próprio conteúdo. A revolução do século XIX deve deixar 
que os mortos enterrem a seus mortos. Antes a frase ia além do conteú­
do; agora é o conteúdo que vai além da frase.“ '‘
Para realizar o processo de legitimação necessário à plenitude da forma 
capitalista é necessário identificar a história do capitalismo à história tout court, 
como naturesça. Marx chama a atenção para o fato de que a
...tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o 
cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenliados em re-
op. üt., p. 337. 
op. d t, p. 337.
volucionar^se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisa­
mente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram an­
siosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes em­
prestados seus nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apre­
sentar-se nessa linguagem emprestada^®.
O passado legitimaria o futuro:
A ressurreição dos mortos nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade 
de glorificar as novas lutas e não a de parodiar as passadas, de engrande­
cer na imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua solução na 
realidade; de encontrar novamente o espírito da revolução e não de 
fazer o seu espectro caminhar outra vez^*^.
Dito em outras palavras: fazer o seu programa ser o programa da “hu­
manidade” .
O debate entre essas concepções de mundo é hoje, não obstante a afir­
mação, repetida ad nausean da morte do marxismo, mais do que nunca neces­
sário e nos ajuda a compreender o movimento do real. Apesar do triunfo 
transitório, ainda que por três décadas

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