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Revista Sísifo v 1, n 4 (2016) Completa

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Prévia do material em texto

FEIRA DE SANTANA-BA v. 1, nº 4 p. 1 – 102 Ano 2016 
 
 
 
REVISTA SÍSIFO 
ANO 2016 
www.revistasisifo.com 
 
FEIRA DE SANTANA-BA v. 1, nº 4 p. 1 – 102 Ano 2016 
 
 
Endereço para correspondência. Adress for correspondence: 
Revista Sísifo 
Site: www.revistasisifo.com / E-mail: sisiforevista@gmail.com 
Feira de Santana — Bahia — Brasil 
 
 
Revista Sísifo – Feira de Santana – v. 1, n. 1 (2014-) 
 
nº 4 novembro 2016 
 
Filosofia – Periódicos I 
 
ISSN: 2359-3121 
 
 
FEIRA DE SANTANA-BA v. 1, nº 4 p. 1 – 102 Ano 2016 
 
 
 
REVISTA SÍSIFO 
ANO 2016 
www.revistasisifo.com 
 
 
 
 
CORPO EDITORIAL 
Yves São Paulo (Editor) 
Marcelo Vinicius (Editor) 
CONSELHO EDITORIAL 
Andreia A. Marin (UFTM) 
Bruna Torlay (UEFS) 
Dinameire Oliveira Carneiro Rios( doutoranda - UFBA) 
Eduardo Pellejero (UFRN) 
Rodrigo Ornelas (UEFS) 
Rodrigo Araújo (IFBA) 
Wanderley C. Oliveira (UFSJ) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os artigos e demais textos publicados nesta revista são de inteira responsabilidade 
de seus autores. A reprodução, parcial ou total, é permitida, desde que seja citada 
a fonte. 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
EDITORIAL 
Marcelo Vinicius 
Yves São Paulo................................................................................................................. 5 
DYLAN É UM OUTRO 
Carlos Inácio Coelho Neto............................................................................................... 6 
ENTRE FÊMEAS HUMANAS E QUIMERAS: O DEMONÍACO E O CORPO 
Paulo Manaf 
Andreia A.Marin............................................................................................................. 14 
DOIS NEO-REALISMOS E UMA CINEASTA: POSSÍVEIS LEITURAS DO 
NEO-REALISMO LATINO-AMERICANO EM LUCRECIA MARTEL 
Diego Martins Haase...................................................................................................... 33 
INTUIÇÃO E CRIAÇÃO: A FILOSOFIA COMO ATO DE RESISTÊNCIA 
Pablo Enrique Abraham Zunino..................................................................................... 43 
A MÚSICA COMO OBJETIVAÇÃO IMEDIATA DA VONTADE NA 
METAFÍSICA DO BELO DE ARTHUR SCHOPENHAUER 
José Luís de Barros Guimarães...................................................................................... 55 
A FILOSOFIA-MEDICINA ORGÂNICA DE TROTULA DE RUGGIERO, NA 
BAIXA IDADE MÉDIA (1050-1097) 
Dr. Marcos Roberto Nunes Costa................................................................................. 73 
TRADUÇÃO 
 
A ÁFRICA E A FILOSOFIA 
YOPOREKA SOMET 
Humberto Luiz Lima de Oliveira................................................................................... 80 
SUBMISSÃO............................................................................................................... 101
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
5 
 
EDITORIAL 
O esforço de Sísifo parece inútil. Uma atividade a ser repetida pela eternidade e 
que nunca encontrará um resultado final, que nunca será terminada. Mas ao longo de 
sua atividade, Sísifo pode encontrar um sentido, ou dotar sua atividade com um sentido, 
independente de ela terminar ou não. 
 O conhecimento permanece nesse devir. As pessoas nunca realmente o possuem 
por completo, estando sempre em busca de conhecer um pouco mais, de aprimorar 
aquilo que já conhecem, de adicionar algum detalhe à cadeia de conhecimentos 
conquistados. 
 Publicar novas edições de uma revista de filosofia segue este rumo. O 
conhecimento está sempre se ampliando, crescendo, e por mais edições que tenhamos 
publicado, nunca estaremos próximos de compilar todo o saber da humanidade. Ainda 
assim, persistimos. 
 Uma tarefa absurda. Um absurdo que é evocado no nome da revista. Um absurdo 
que é abraçado com agrado por quem lê a revista, e por quem com ela coopera. 
 O intelectual não é um ser acabado, estando sempre a se construir. E tal como 
Sísifo, realiza o eterno erguimento do saber ao agarrar dos livros da biblioteca. Os livros 
descem as prateleiras rumo à mesa de estudos e por mais que o estudioso, o pesquisador 
ou o curioso ponha um livro na estante, outro cairá em suas mãos. 
 E como o conhecimento nunca está completo, é válido estudar tudo. Desde os 
primeiros filósofos no Egito antigo, até as poesias-musicais de Bob Dylan. No fim das 
contas, não existe conhecimento improfícuo, existe conhecimento não aplicável. 
 
Marcelo Vinicius 
Yves São Paulo 
Editores 
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
6 
 
DYLAN É UM OUTRO 
Carlos Inácio Coelho Neto
1
 
 
Em carta enviada a Georges Izambard, em setembro de 1870, Rimbaud escreveu 
uma frase curta, direta, que aparentemente está perdida no texto escrito ao seu ex-
professor. Trata-se da frase ―Eu é um outro‖
2
. A frase remete ao espelhamento da 
própria identidade, personalidade ou ego em uma outra identidade, personalidade ou 
ego. Existe nela a recusa de ser alguém ou algo definitivamente. O jovem poeta indica, 
talvez intuitivamente, a necessidade de assumirmos/possuirmos diferentes personas e 
devemos, portanto, vivê-las afim de experimentarmos diferentes modos de estar no 
mundo. 
Robert Allen Zimmerman sempre foi outros. Ao longo da sua vida assumiu as 
mais diversas personalidades, começando pela adoção do nome pelo qual seria 
imortalizado pelo legado musical que vem construindo nas últimas cinco décadas. 
Desde jovem a poesia, a literatura e a música despertaram seu interesse e paixão. 
Adotou o nome do poeta galês Dylan Thomas como sobrenome. Aliás, poeta que 
influenciou fortemente poetas e escritores responsáveis por criar o movimento beatnik. 
Movimento literário que forneceu toda matéria prima necessária à constituição da 
 
1
 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da Universidade 
Católica do Salvador (UCSAL). Editor, criador e colunista do site de música Oganpazan 
(www.oganpazan.com.br). 
 
2
 RIMBAUD, Arthur, Correspondência de Arthur Rimbaud, pág. 34. 
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
7 
 
contracultura nos Estados Unidos, a qual Robert Zimmerman participou ativamente. 
Desse modo, Robert Allen Zimmerman, entrou em modo standby, cedendo o lugar a 
Bob Dylan. 
A conexão de Bob Dylan com a poesia está em suas origens artísticas. Aos 12 
anos já rabiscava seus primeiros versos. Mas como dissera Leminski no vídeo Ervilha 
da Fantasia (1985) é muito fácil ser poeta na juventude. Todos fazem seus versos 
durante a juventude, a maioria abandona esse afazer, guarda seus versos como registro 
de um momento da vida. Os poetas de verdade continuam a fazer seus versos ao longo 
de toda sua existência. Bob Dylan está passando pelo seu 75º ano de vida fazendo 
versos. Continua se reinventando, tornando-se sempre outro, como nenhum artista fizera 
até então. 
Desde antes do momento em que seu eu espelhou-se em um outro e Robert 
Zimmerman tornou-se Bob Dylan a poesia já o acompanhava. É muito possível que 
antes de ter sido despertado para a música, ele havia sido despertado para a poesia. 
Percebendo a ligação íntima entre música e poesia, não teve porque optar por uma delas, 
resolveu uni-las, descobrindo a maneira apropriada de realizar suas pretensões de jamais 
ser cristalizado numa definição. 
Décio Pignatari em O Que é Comunicação Poética diz que ―A poesia parece 
estar mais do lado da música e das artes plásticas e visuais do que da literatura‖
3
. Não é 
absurdo algum considerar verdadeira essa tese, uma vez que a poesia, assim como a 
música, possui ritmo, sua sonoridade, assim como na música, preocupa-se em produzir 
imagens, provocar sensações, prezando por fazê-lo de modo abstrato, completamente 
despreocupada quanto à produção de significados. Podemos considerar haver uma 
ligação sanguínea entre poesia e música. 
Talvez intuitivamente Bob Dylantenha percebido essa ligação e resolveu seguir 
fazendo as duas coisas. As mudanças pelas quais passou pessoalmente e artisticamente 
sempre estiveram em acordo com sua procura íntima por jamais se prender a um rótulo. 
Essa busca constante por descobrir a si mesmo jamais foi compreendida por seu 
público, contudo, o ímpeto criador diretamente ligado tanto à música quanto à poesia, 
mais do que qualquer outro tipo de manifestação artística, garantiu que Bob Dylan se 
mantivesse no caminho de sempre trazer ao mundo algo novo, fugindo das garras da 
repetição. 
 
3
 PIGNATARI, Décio, O Que é Comunicação Poética, pág. 9. 
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
8 
 
A preocupação de Bob Dylan em se manter livre de formatações, colocando-se 
em constante transformação, impedindo a cristalização indissolúvel de uma identidade 
remete à natureza poética cuja liberdade consiste em sempre criar novas formas. Dylan 
continua fazendo isso, essa é a tônica da sua existência e que rendeu críticas por parte 
de seus admiradores. As mudanças em sua obra artística acompanha as mudanças da sua 
personalidade. Quando a vida o joga por uma direção sua arte o acompanha. 
Nesse sentido Dylan não é um artista convencional, preocupado em manter seu 
público cativado. Seu ethos de poeta o coloca em movimento, um nômade preocupado 
em encontrar novos territórios que supram suas necessidades artísticas, mas também 
pessoais. Pouco importa se isso agradaria o público que formou, tampouco seus 
admiradores, muitos dos quais ligados ao mundo das artes. Se o instinto criador 
apontava para uma nova direção, para lá Dylan seguia independente do rastro de 
decepção e fúria que deixasse para trás. 
A década de 60 sem dúvida é a mais frutífera da história do rock. Obras primas 
foram gravadas naquela década. Bandas fantásticas, compositores, músicos com 
incríveis carreiras solo, as mais variadas vertentes do rock surgiram nesta década, 
responsável por expandir as experiências sonoras desse gênero musical. As 
possibilidades de criação na esfera do rock pareciam infinitas. Não seria exagero 
afirmar que todo esse universo direta ou indiretamente gravitou em torno da música de 
Bob Dylan. Justamente por Dylan ter seguido seus instintos e realizado as 
transformações que sentia necessárias para atender cada nova demanda pessoal por 
novas formas de se expressar através dos versos e músicas. 
Jimi Hendrix declarou em diversas entrevistas ter sido influenciado pela música 
de Dylan. Em seu histórico e marcante show no Monterey Pop Festival de 1967 tocou 
sua versão para Like a Rolling Stone, música marcante para a eletrificação da música de 
Dylan. Sem falar na célebre versão de All Along The Watchtower registrada em 1968 no 
álbum Eletric Ladyland. The Beatles em sua primeira visita aos EUA só queriam 
conhecer uma pessoa, Bob Dylan. Este apresentou o quarteto britânico à maconha. 
Depois do encontro com Dylan, The Beatles abandonaram o bom mocismo, 
reformularam seu som e iniciaram a fase madura da banda, responsável por legar-lhes o 
lugar de desataque que ocupam na história da música do século XX. 
As mudanças na música de Dylan durante os anos 60 foram acompanhadas por 
mudanças também no conteúdo e forma das letras que escrevia. Podemos identificar três 
fases distintas nessa primeira década de sua carreira: A fase country/folk/ballad, 
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
9 
 
caracterizada muito mais pelos versos escritos por Dylan do que pelas músicas. Os três 
primeiros álbuns, os quais analisaremos à parte mais adiante, são compostos por 
canções em que Dylan praticamente recita seus versos. O violão cumpre função 
secundária, apenas criando uma atmosfera para o desenvolvimento da métrica 
declamada pelo cantor. 
Depois temos a fase mais roqueira que marca a guinada mais importante da 
carreira de Dylan, quando resolve aderir à eletrificação da sua música. Essa fase 
apresenta letras mais metafóricas, buscando imagens mais soltas, despreocupadas em 
cumprir uma função concreta. Por fim a fase madura, quando estabelece uma 
sonoridade mais sofisticada, se é que podemos descrever assim. O refinamento musical 
é acompanhado pelo refinamento das letras, levando Dylan a encontrar a justa medida 
entre sua música e sua poesia. 
Podemos traçar essas fases a partir dos álbuns lançados durante aquela década. 
Bob Dylan, lançado em 1962, marca o início da carreira de Dylan. Jovem, aos 21 anos, 
grava seu primeiro álbum sob influência de seu grande herói de juventude, Woody 
Guthtrie. Na adolescência entrou em contato com a literatura que influenciou os 
beatnicks. Entre eles Jack London, o escritor que vivia na estrada, mostrando que era 
possível ser livre tendo pouco. Dylan colocou em prática o que leu nos contos e 
romances de London. Foi ao encontro de Woody Guthtrie, viu sua ―Arma de Matar 
Fascistas‖ (é o que estava escrito no corpo do violão de Woody). E quando seu herói 
estava à beira da morte em Nova York, foi ao seu encontro. Despediu-se de Woody e 
deu início à sua carreira dando prosseguimento ao legado de seu herói. 
O primeiro álbum de Dylan trás canções de forte conotação política e demarcou 
sua primeira identidade musical, a qual se desdobraria nos álbuns que o sucederiam. No 
ano seguinte, 1963, vem The Freewheelin' Bob Dylan. No curto espaço de tempo entre 
um álbum e outro o teor das composições sofre profundas transformações. O conteúdo e 
forma das letras mostram um Dylan um pouco mais cuidadoso e seguro sobre o que está 
fazendo. Consegue se afastar do estilo de Guthtrie e firmar o seu próprio. Blow In The 
Wind abre o álbum, torna-se a canção que impulsiona e marca o território de Dylan 
entre os ambientes onde a música folk de protesto era cultuada. 
Nesse ínterim, a fama de Dylan crescia e não apenas no que diz respeito à sua 
música, mas às suas letras. O rótulo de poeta já lhe era imputado pelo público que havia 
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
10 
 
conquistado entre estudantes universitários e intelectuais. Contudo Dylan rejeitava o 
―título‖ conforme nos relata Robert Shelton no Prelúdio de No Direction Home
4
: 
Apesar disso, era comum que se sentisse desconfortável ao ser 
rotulado de ―poeta‖. Ele certa vez explodiu comigo: ―Essa é uma 
palavra grande pra caramba para alguém chamar a si mesmo. ‗Poeta!‘ 
Acho que poeta é qualquer pessoa que não se chamaria de poeta. 
Quando as pessoas passaram a me ver dessa forma, isso não me 
deixou nem um pouco mais feliz.‖
5
 
Embora não tenha reconhecido o título de poeta, Dylan não podia controlar esse 
olhar que estava sendo lançada sobre sua obra. Desde seu primeiro álbum essa marca já 
o seguia, jamais deixando de ser associada a ele. Seu reconhecimento nos meios 
literários só cresceu ao longo dos anos, e essa primeira fase de sua carreira foi a base 
sólida da qual esse reconhecimento foi construído. 
Em 1964 são lançados The Times They Are A-Changin' e Another Side Of Bob 
Dylan, excelentes álbuns que mantém o impacto de Freewheelin' e estabelecem de vez 
Bob Dylan como representante maior do universo cult intelectual e universitário, nicho 
cuja trilha sonora consistia na canção de protesto. Esse momento é crucial para os 
rumos que sua música tomaria a partir dali. Em pouco mais 2 anos, Dylan, com 23, 24 
anos já estava na crista da onda, era representante maior de jovens da classe média 
americana descontentes com os rumos que a sociedade tomava naquele momento. 
Dylan, mesmo sem querer, havia se tornado uma espécie de líder, quase religioso, a voz 
de uma geração. Estava no auge mal tinha iniciado sua vida de músico e poeta. 
Tudo que poderia ser feito dentro daqueles limites estava feito. Veio o tédio, a 
falta de paciência com as loucuras que a fama provocava naspessoas que o rodeavam. 
Esgotadas as possibilidades de criar algo a partir da folk music, Dylan levantou 
acampamento e foi buscar novas fontes de inspiração. 
1965 marca a primeira grande mudança na carreira de Dylan. Bringing It All 
Back Home trás as primeiras músicas com uso de banda de apoio, formato tão 
desprezado pelo nicho político/cultural que desde as primeiras apresentações de Bob 
Dylan nos cafés do Greenwich Village o cultuavam como representante maior da anti-
indústria cultural. Os instrumentos elétricos, principalmente a guitarra, representavam 
 
4
 No Direction Home é considerada a melhor obra biográfica escrita sobre Bob Dylan. Isso 
porque Robert Shelton esteve próximo a Dylan desde o início da carreira do compositor, 
rendendo amizade entre ambos. Amizade que lhe permitiu conhecer a intimidade de Dylan, 
colocando em situação privilegiada em relação a outros estudiosos. Além disso, Shelton teve 
acesso a fontes que nenhum outro biógrafo teve como os pais de Dylan, por exemplo. 
5
 SHELTON, Robert, No Direction Home: A Vida e a Música de Bob Dylan, pág. 12-13. 
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
11 
 
para essas pessoas a submissão da música ao mercado e sua transformação em produto 
de consumo, perdendo completamente sua força revolucionária. 
Dylan não tinha no ativismo político sua prioridade. Para ele importava seus 
interesses artísticos e ele claramente via no rock possibilidades de novas realizações 
artísticas. Mudou radicalmente seu modo de vestir e sua postura diante do público, 
adotou um visual rocker, que associado à nova sonoridade ajudou a criar o contexto 
propício às suas novas pretensões artísticas. Bringing It All Back Home foi a transição, a 
interseção entre dois mundos: o acústico e o eletrificado. Há nestes álbuns baladas com 
levadas e estruturas muito similares ao que fizera em seus quatro primeiros álbuns, 
como She Belong To Me, Love Minus Zero, No Limit e faixas mais roqueiras como 
Subterranean Homesick Blues, Outlaw Blues, On The Road Again, sem falar em uma 
faixa folk Mr Tambourine Man, que agradaria os puristas caso não tivesse uma guitarra 
ao fundo ornamentando a canção com efeitos slide e licks. 
Cabe ressaltar a influência que Dylan sofreu do poeta Allen Ginsberg nesse 
período. Este um dos poucos admiradores e amigos a apoiarem a mudança estética na 
sonoridade de Dylan. Podemos nos arriscar a dizer que a influência de Dylan foi 
determinante para as mudanças no seu modo de escrever as letras e compor suas 
músicas. Isso podemos perceber no uso de versos mais livre e metáfora mais abstratas. 
Inacreditável, mas ainda em 1965, Dylan lança outro álbum igualmente 
impactante, duas obras primas num intervalo de 5 meses entre o lançamento de um e 
outro álbum. Bring It All Back Home lançado à 22 de maio e Highway 61 Revisited à 30 
de agosto. Neste álbum está definida por completo a nova sonoridade de Dylan. Da 
primeira à última música a pegada roqueira se faz presente, revestida por arranjos de 
fundo bem elaborados, com forte teor jazzístico. Destaque para Like A Rolling Stone, 
faixa de abertura do álbum, que se tornou um épico da música do século XX. Aliás, essa 
música estabeleceu novos parâmetros para a indústria musical, foi uma das músicas 
mais pedidas e tocadas nas rádios quando foi lançada, algo difícil de se imaginar para 
uma faixa tão longa, com mais de 6 minutos de duração. Dylan quebrou inclusive com 
os padrões da indústria que até então exigia músicas de duração média entre 2,5 e 3 
minutos. 
Parecia que Dylan havia alcançado seu auge em menos de 5 anos. Tentem 
imaginar o que se passava na cabeça de alguém que curtia rock nos anos 60 e 
acompanhara os desdobramentos de Bob Dylan até ali. Certamente fica difícil conceber 
alguém que esperaria um álbum à altura de Highway 61 Revisited nos próximos anos. 
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
12 
 
Ainda mais após um ano do lançamento de dois álbuns em que claramente um era a 
sequencia do outro e que podem inclusive ser compreendidos como uma mesma obra. 
Aí a genialidade de Dylan não para de surpreender, sua capacidade de se 
reinventar e a necessidade de sempre fazer valer seu ethos nômade faziam a diferença a 
seu favor. Menos de um ano após o lançamento de Highway 61 Revisited, Dylan lança, 
em maio de 66, o álbum duplo Blonde On Blonde. Assustador imaginar que ele fora 
capaz de em menos de dois anos produzir três obras primas, recheadas de excelentes 
canções, onde se encontram elementos de tudo que fora feito na música do século XX 
até então. Muitos estilos musicais, estruturas e sonoridades foram reunidas por Dylan e 
cuidadosamente manuseadas por ele. 
Em Blonde On Blonde Dylan vai na contramão do que havia feito nos dois 
álbuns de 65. Criou um álbum permeado por músicas mais densas, carregadas de 
expressividade, uma antítese da pegada entusiástica e garageira à la Dylan, porque não, 
em Highway 61 Revisited. Dylan concentra as composições de seu primeiro álbum 
duplo no que há de mais intenso no blues, no country e folk. As mutações continuaram 
e tudo indicava que o talento de Dylan não conhecia limites. Não havia formas que não 
pudessem ser destruídas para num outro momento servirem de matéria prima para novas 
estruturas. 
Os álbuns seguintes, John Wesley Harding (1967) e Nashville Skyline (1969), 
são o retorno de Dylan às suas raízes folk, porém amplamente revestidas pelas 
descobertas realizadas através das experiências que teve ao se aventurar pela música 
eletrificada. John Wesley Harding trás baladas calmas, reflexivas, amparadas por uma 
atmosfera musical intensa, rica em melodias, harmonizações e efeitos instrumentais 
diversos. Dylan encontra o meio termo entre a música de protesto acústica e o rock´n 
roll permeado de todo aparato elétrico. Mais uma vez Dylan avança sem recorrer à 
comodidade de repetir aquilo que já deu certo. Isso tudo em menos de uma década. 
Nashville Skyline encerra as três fases que marcam as transformações 
empreendidas por Dylan no primeiro momento de sua carreira. Pode-se dizer tratar de 
um álbum country num sentido mais completo. Músicas cadenciadas, com melodias 
mais densas, explorando tonalidades graves, para encorpar a voz de Dylan, resultando 
num efeito dramático e intimista. 
A década de 60 termina, Dylan mantêm-se na interseção, sempre num 
movimento de transformação. Jamais parou de se definir, passou pelas décadas 
seguintes produzindo bons e excelentes álbuns. Claro, a frequência de composição e 
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
13 
 
lançamentos de novos álbuns diminuiu. Importa, contudo, que quando novos álbuns 
foram compostos eles tinham por trás uma intenção artística, o desejo de Dylan em 
mostrar algo novo. Diferente de outros artistas e bandas que mantiveram suas carreiras 
moribundas ao longo das décadas, apenas para continuar ganhando a vida como uma 
banda. Exemplo maior são os Rolling Stones que estão na estrada por mais de 50 anos e 
há mais de 20 sem lançar algo com o mínimo de qualidade. São praticamente uma 
banda baile sempre tocando o mesmo batido e desgastado repertório com os hits que 
consagram a banda, todos compostos nos anos 60 e 70. 
Dylan ainda está na ativa pela música, seus álbuns trazem sempre mudanças, por 
mínimas que sejam. Ele ainda tem o que nos dizer. Nada de tentar parecer o roqueiro 
rebelde das duas primeiras décadas de sua carreira. Há tempos esse Dylan não existe 
mais, o que não é motivo de lamentações, pois o Dylan velhinho tem novidades a nos 
mostrar, revelando qual o seu ponto de vista desta posição na escala da vida. Basta ouvir 
os seus dois últimos álbuns: Shadows In The Night (2015) e Fallen Angels (2016). Neles 
encontramos um Dylan suave, contemplativo, assumindo uma posturade crooner, 
revelando um outro Dylan, até então desconhecido por nós. 
Dylan é muitos outros ainda, que não mostramos aqui. O cínico, que respondia 
sempre de forma debochada as perguntas banais feitas por jornalistas preocupados 
apenas com o que viam na superfície de sua obra. Incapazes da acuidade visual 
necessária para enxergar a genialidade escondida nos detalhes. O cristão convertido pela 
aparição de Cristo diante de si. Durante toda sua trajetória apenas algo se manteve 
constante: sua necessidade de se expressar através da música e da poesia. 
 
REFERÊNCIAS: 
 
PIGNATARI, Décio, Comunicação Poética, Cotia - SP, Atelie Editorial, 2006. 
RIMBAUD, Arthur, Correspondência de Arthur Rimbaud (Coleção Rebeldes e 
Malditos 04), Porto Alegre – RS, L&PM, 1983. 
SHELTON, Robert, No Direction Home: A Vida e a Música de Bob Dylan, São Paulo – 
SP, Editora Lafonte, 2011. 
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
14 
 
ENTRE FÊMEAS HUMANAS E QUIMERAS: O DEMONÍACO E O CORPO 
 
Paulo Manaf (ZooMM) 
Andreia A.Marin (UFTM) 
 
 
 
De um ponto (aleatório) de partida... (introdução) 
para além da borda pretensamente humana, para além dela, mas 
de forma alguma sobre uma única borda oposta, no lugar do 
―Animal‖ ou da ―Vida-Animal‖, há, de antemão, uma 
multiplicidade heterogênea de viventes... (DERRIDA, 
2011,p.60). 
O texto é tecido com fragmentos de diálogos, em cartas imaginárias, tratando de 
seres imaginários e perfeitamente existentes, com a devida licença poética que dá vida a 
qualquer ser no momento de sua invenção. Da concepção ao nascimento desses seres, já 
parece haver uma sutil intencionalidade, ainda que a arte jamais possa pautar-se em 
intenções carregadas de sentidos pré-definidos. Tal intencionalidade é produtiva, quer 
tornar o que existe em dimensões não facilmente perceptíveis, no mundo diminuído por 
nossas pretensões racionalizadas, visíveis e, por que não, palpáveis. 
Não é incomum que esses seres causem repulsa ou atração, ou ambos e a um só 
tempo. Dão indícios de algo que tendemos a evitar: a suspeita de que são partes nossas 
materializadas em imagens estranhas. Em outros termos, eles parecem carregar os 
Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 
 
15 
 
estranhamentos que pressentimos em nós e dos quais um movimento de projeção à 
dimensão que denominamos imaginária parece nos libertar. Essa não é uma tentativa 
incomum: muito já se falou sobre os artifícios humanos para apartar de si o animal, 
depurar suas forças instintivas que impedem a formação de uma integral humanidade. 
Recuperemos o discurso sobre o corpo dos ressurretos, tão bem discutido por Agambem 
(2013, p.35-38): nesse corpo, já liberto das restrições de uma humanidade encarnada, 
tudo o que simboliza sua animalidade foi extirpado: produção, reprodução, alimentação, 
defecação, em síntese, o seu devir orgânico. Doravante, pode viver a essência humana 
para a qual sempre estivera destinado esse ser para além dos outros seres... É fácil 
desdobrar: o devir orgânico prende e demoniza; a santificação se livre dos limites de sua 
corporeidade, de sua finitude. O homem ―pode ser humano apenas na medida em que 
transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio 
da ação negadora, é capaz de dominá-lo e de destruir sua própria animalidade‖ 
(AGAMBEN, 2013, p.26). 
A pulsão própria do devir orgânico, materializada a todo o momento e de 
infinitas formas – produção, excreção, nudez, contaminação, hibridização – está 
estampada em esculturas de arquitetos medievais e das criações contemporâneas de 
Piccinini. As fêmeas aí hibridizadas são também, recorrentemente, imagens embebidas 
na dimensão do sagrado e, muitas vezes, demonizadas. O duplo destino: na linguagem 
antropocêntrica-androcêntrica
6
, o animal e a mulher são contidos em seus devires 
orgânicos, ao mesmo tempo em que mergulhados no sagrado. Seus corpos, substratos 
do funcionamento da vida, ganham asas de anjos, traços grotescos e demoníacos. 
É com essas imagens que queremos ―falar‖, provocando um movimento filíaco 
com a bios, e confusões entre humanidade e não humanidade. Para isso, precisaremos 
contornar a reprovação do não-humano, do visceral, do descontrole, representados nas 
fêmeas demonizadas em gárgulas, e a repulsa diante do estranho, do misto, do corpo 
producente de Piccinini. Os seres de Piccinini não são humanos, tampouco inumanos. 
Eles habitam um mundo que poderia ser o nosso mesmo, como uma das muitas 
possibilidades, um lugar onde as fronteiras são delicadamente destroçadas pela potência 
da obra de arte.Síntese do trajeto: a intenção é colocar em evidência o que falha no 
projeto existencial humano; o encontro entre gárgulas e híbridos leva à positivação de 
 
6
 Utilizamos este tempo fazendo referência ao masculino humano (andro) 
recorrentemente colocado no centro do discurso sobre a fêmea humana e das 
representações de mulher. 
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uma zona de compartilhamento que é comprovada na apelação ao imaginário, mas 
negada pelo discurso moralizante e androcêntrico; a meta é a reconciliação, como se as 
imagens de Piccinini legitimassem as gárgulas, os grotescos, fazendo o humano se 
transpor para a fronteira, a zona de compartilhamento, conciliado com sua animalidade. 
 
Encontro com gárgulas... 
Era uma experiência de melancolia. Sentia-me desencarnada vagando pelas 
ruelas de uma cidade desconhecida. Grupos de turistas invadiam espaços curiosos, 
amplas praças onde desembocavam ruas estreitas e interiores sombrios de igrejas. Eu, 
do fundo do meu nada não queria sair para explorações históricas, humana ou 
arquitetônica. Queria somente perder-me. 
Perdi-me, de fato... Olhando para o alto para tentar localizar algum marco 
referencial, ou talvez o destino do bonde que atravessava caoticamente as ruas em 
direção do Mosteiro de São Jorge, encontrei as figuras intrigantes. Eram muitas e 
espalhadas por todos os lados onde se pudesse avistar uma torre, um telhado, 
despencando das alturas para um voo que começava a me alucinar. Meus olhos, nos 
primeiros instantes, as tinham visto imóveis, irresolutas, mas, em questão de minutos, já 
se moviam, sobrevoando, confusas, os jardins internos e becos por onde cada vez mais 
me embrenhava na experiência de deriva. Devaneei absorta nas imagens errantes, no 
balé de formas bizarras e indeterminadas. Eram asas imensas que, no movimento de 
abertura, deixavam à mostra corpos fortes, mas flexíveis, aparentemente capazes de uma 
grande destruição caso se pusessem em ataque. Mas continuavam, com suas formas 
diversas, apenas assemelhadas pelas asas e pela força, em um movimento per si, sem 
qualquer intenção insinuada, e com uma destreza surpreendente que evitava os choques. 
Depois de algum tempo, o devaneio cedeu ao comportamento teórico e comecei 
uma observação mais acurada tentando identificar, onde só haviam quimeras, 
panmorfismos, um animal não humano ou um humano ou um demônio ou um deus ou... 
Uma mulher! E isso me devolveu um estado melancólico agravado por uma curiosidade 
senil e a preguiça de ser enredada em academicismos, que eu queria evitar. Tarde 
demais. O balé foi logo dando espaço a mil questões e, por que não admitir, a um certo 
temor infundado que reverberava da tradição judaico-cristã em que fora mergulhada 
minha existência, me forçando a evitar as feições demoníacas dos seres voadores de 
meu devaneio, agora novamente imobilizados nos cantos dos telhados, ameaçadores. 
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Saí dos jardins internos, dos becos enigmáticos, das ruas confusas em busca de 
uma biblioteca, de algum acesso ao mundo seguro dos conceitos, onde pudesse entender 
em que momento,e por quais motivações, o humano aventurara-se nas formas 
aberrantes, sempre impressas com traços animais, nos cantos do mundo que desenhara 
para abrigar seus projetos existenciais. Aceitei, de bom grado, os primeiros contatos 
com um acervo literário que ia anunciando, em minha busca teórica, as gárgulas 
femininas apresentadas por Catarina Barreira e as harpias. 
Curiosamente, um animal humano, distante um oceano de mim, era atravessado 
por inquietações muito próximas das minhas, além do compartilhamento de algum 
estado melancólico. Observava, intrigado, as fêmeas mutantes da artista Patricia 
Piccinini, com as quais passou a compor um texto que, quimericamente, vai penetrando 
nessa escrita. 
 
DearPatricia, 
Hoje de manhã aconteceu uma coisa muito estranha. Tudo começou quando eu 
estava breakingmyfastcom café, bolo e frutas - coisa que, imagino, você também coma - 
sob o lento sol de outono do Cerrado. Por sinal, Patricia, devo revelar a todos, o quanto 
antes, que, embora suspeite que caminhões betoneira estejam se reproduzindo, 
hibridizando em gárgulas globalizadas, geneticamente modificadas para vomitar 
concreto movediço sobre o Cerrado, sinto cada vez mais o calor do vento, o doce das 
flores, a cor guará do crepúsculo varando tudo o que é urbano e me arrebatando para si, 
talvez um paralelo com o que a savana australiana faça com você de vez em quando. 
Estava conversando baixinho com o Cerrado, ele sussurrando em meu ouvido 
histórias tão antigas quanto o mar e eu, admirado, murmurando coisas que virão e coisas 
que existem no coração dos homens. Ao morder uma maçã, veio à lembrança a imagem 
de uma mulher alta, esbelta, cabelos lisos grisalhos presos em um rabo-de-cavalo, 
falando com a plateia. Os olhos eram astutos, os gestos contidos, porém contundentes. 
Era alguém influente, só não me recordava quem exatamente. Lembrei então que a 
imagem se parecia muito com Donna Haraway. Uma nova mordida na maçã e, então, 
percebi que poderia não ser Haraway, mas sim Jane Goodall. Satisfeito, estava me 
preparando para continuar com minha maçã quando, subitamente, tive um pensamento 
incomum: na verdade, a imagem que vi não era Donna HarawayouJane Goodall, mas 
sim HarawayeGoodall. Duas mulheres diferentes eram uma só matéria ambivalente. É 
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assim, Patrícia, como as coisas dos sonhos, as coisas imaginadas às vezes possuem 
propriedades totipotentes e podem se transfigurar em coisas derivadas. 
Suponho que nem mesmo você, minha querida artista, tenha a medida exata de 
quanta ambiguidade somos capazes de negligenciar. Coloquei mais um pouco de café 
na xícara, afaguei a gata em meu colo e imaginai o impacto que algumas de suas obras 
causam nas pessoas. Nem sempre é fácil reparar no quanto nossa sociedade se esforça 
para eliminar totalmente as ambiguidades do mundo. Certezas científicas, dogmas 
religiosos, maniqueísmos sociais, precisões técnicas, assertividades corporativas, 
estatísticas exatas, notícias incontestáveis, medicamentos seguros, emoções catalogadas, 
enfim, parece haver toda uma gama de estratégias para criarmos asserções artificiais, de 
forma cada vez mais incisiva e a cada dia mais dependente da tecnologia. Imprecisões e 
ambivalências podem causar desconforto e, portanto, devem ser desbastadas ao 
máximo, de jovens adestrados para entrevistas de trabalho a doutorandos cerceados a 
paperspragmáticos, enfim, imprecisão e acaso, embora substrato do mundo, não são 
bem-vindos na execução do protocolo de previsão e controle. Talvez porque 
ambiguidades demandam tempo: quando o cérebro é confrontado com informações 
ambíguas, reage recrutando um número maior de áreas neurais; ele tenta engajar setores 
cognitivos superiores mais sofisticados, na ânsia de capturas padrões e buscar 
significados que realizem nossa necessidade de entendimento. Como resultado, o tempo 
de processamento da informação aumenta sensivelmente. Só isto já é o suficiente para 
que empresas sejam obrigadas a gastar bilhões com campanhas publicitárias cada vez 
mais rápidas e certeiras. Se tempo é dinheiro, então a ambiguidade é o que me mantém 
pobre e, portanto, incompetente para o mundo da tecnocultura. Purificados do 
incômodo da ambiguidade - e, por conseguinte, dos resultados inesperados das nossas 
ações - podemos projetar, enfim, uma tecnologia em termos valorativos absolutos: boa, 
acessível a todos e em constante movimento linear ascendente rumo à plenitude; a 
tecnologia má e apocalíptica é então expurgada para a ficção e circunscrita nos filmes 
de ação. 
Retorno à ambiguidade talvez não seja um termo apropriado para uma reflexão a 
partir da sua obra, Patricia, mas não posso deixar de notar que ele expressa, de certa 
forma, a ideia de resistência contra ilusões visuais e sonoras meticulosamente 
arquitetadas - e muito bem pagas - para um mundo entulhado de certezas sintéticas. 
Nunca saímos daqui e continuamos sendo o que somos. Em suas obras de arte, você nos 
apresenta narrativas carregadas de ambiguidades pungentes, frente às quais não somos 
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mais capazes de negligenciar nossas próprias narrativas e ambiguidades da experiência 
com o outro - mesmo quando este outro é um artefato tecnológico. Em suas mãos, o 
hiper-realismo torna-se um meio eficaz para criar um mundo atual e absolutamente 
factível de desdobramentos que irradiam a partir de um núcleo efervescente de 
potencialidades, em especial as potencialidades de conexão entre os seres. Como disse 
Giovanni Aloi (2012, p.83), ―Piccinini‘s works are open texts carefully balanced to 
encourage a sympathetic bond with her hybric creatures – afterall, they are not wholly 
monstruous‖.A ambiguidade inflama nossa percepção na medida em que suas obras se 
abrem para leituras pessoais e comunitárias concomitantes, onde a possibilidade de 
conexões emocionais inesperadas entre espécies recebem atenção pungente. A 
propósito, só para que saiba, adorei aquilo que você disse: "the world that I live in 
butcannottotallyunderstandorcontrol" (PICCININI, 2007, s/p). Passamos então a 
suspeitar da integridade das fronteiras que havíamos traçado entre um ser humano, um 
caminhão e um porco. Não temos mais certeza se a tecnologia é boa ou má, ou se é boa 
e má ao mesmo tempo, ou talvez não seja nem boa e nem má. Em meio a esforços para 
solidificar convicções, as esculturas de silicone carnal e latarias reluzentes nos 
impactam com a potência da conexão, com suas ambiguidades e com as 
responsabilidades decorrentes do ato de criar. 
Ao terminar meu café, tive outra visão, desta vez muito mais extraordinária do 
que a anterior. Entendi então que não se tratava da fêmea que você criou em The Young 
Family; contudo, tampouco da Vênus de Willendorf
7
, mas sim desta e daquela, as duas 
uma só mulher totipotente, transmutando-se ao longo dos séculos. 
Dear Patrícia, precisamos falar sobre isto. 
 
Me fale mais de estranhos... 
A carta compartilhada, meu amigo, me despertou muitas inquietações, mas 
também algum conforto. Bom saber que as formas se hibridizam, percebamos ou não, e 
que outras são criadas espontaneamente pelas mãos de quem transvê o mundo para além 
dos conceitos. 
Queria falar demoradamente com você sobre estranhos. Eles capturam minha 
atenção com crescente força. De pronto, te envio, além dos meus relatos bizarros, o 
material reunido na minha busca conceitual, que surpreendentemente, não destoava da 
 
7
 Representação feminina em uma estatueta de 11,1com da era do paleolítico, sem rosto 
definido. 
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matéria da minha experiência sensível-devaneante: transmutação e composição de 
formas mistas, onde o limiar entre animais, incluindoentre animais humanos e não 
humanos, ruía. Ao mesmo tempo, algo que emanava de minhas inquietações atuais se 
misturava às novas experiências: meu incômodo sobre os conceitos excludentes de 
mulher se alimentava das novas imagens de gárgulas parturientes, fêmeas encerradas em 
seu devir orgânico e imobilizadas nas torres de instituições responsáveis pela contenção 
moral da vida e de seus pulsos. 
 
Cara Catarina, 
Escrevo para contar-lhe como você me deslocou e me fez viajar por terras 
portuguesas em busca das gárgulas parturientes de seu texto. 
Rizo (2014, p.56) também me fez notar o destaque para o misto de seres 
humanos e animais nessas imagens que misturam bodes diabólicos e mulheres 
sorridentes, de uma sensualidade rude: ―o repertório formal da maioria das gárgulas se 
constituía de bestas bizarras, desconhecidas e desprovidas de nome e identificação‖. 
Notemos que se trata de estranhos sem nomes e recordemos a discussão feita por 
Derrida (2011, p.26) que vê na identificação e nomeação do outro uma forma de contê-
lo, enquanto o seu olhar insiste em mostrar uma existência rebelde a todo conceito. O 
olhar do que chamamos animal é anterior a conceitos e nomes. As gárgulas não 
identificadas, não descritas, sem nome, permanecem como zonas de escape. 
Não é impressionante ver as figuras grotescas, detalhadamente esculpidas e 
colocadas nos pontos mais altos dos edifícios, onde não só se tornam permanentemente 
visíveis, como parecem nos inquirir sobre o que são e quem somos diante delas? Há, ao 
que parece, um desejo humano de ir além de seus limites, projetando a si mesmo em 
seres estranhos, de um lado denunciando seus demônios e suas potências animais, de 
outro anunciando um poder de depurar o humano que é, apartando-os de si e contendo-
os no território imaginário, onde podem ser justificados. Não deixa de ser paradoxal: 
para compor tais seres foi preciso que o homem encontrasse em si a animalidade e 
imediatamente a repelisse para outros domínios. 
Chamou-me especial atenção a Igreja da Nossa Srª do Pópulo (BARREIRA, 
2010, p. 185), em Caldas da Rainha: a fêmea de aspectos negroides que você associou à 
imagem da tela O Inferno (Autor desconhecido, 1510-20). Nua, a fêmea pousa a mão 
sobre o púbis, lá onde está retida em algo como um devir orgânico, todo corpo explícito, 
como em qualquer vivente animal. Ocorre-me já aí a insinuação de um duplo 
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preconceito: é mulher, é animal. Não me furto a denunciar um preconceito mais velado, 
do qual retiro evidências da própria história: é negra, é escrava, submetida pela força 
como qualquer outro vivente animal. Ambos, mulher e animal, encerrados em algo que 
não se pode contornar: o corpo e sua pulsão erótica, perdido nas forças de sua 
animalidade.Em Leiria, na Batalha, busquei as formas nuas que você destacou 
(BARREIRA, 2010, p.185) e a interessante mistura de formas animais e de fêmeas 
humanas. Nas Capelas Imperfeitas (BARREIRA, 2011, p.113), a fêmea humana 
encarna o sagrado e o profano, colocando as mãos em reverência devocional e, ao 
mesmo tempo, expondo seus órgãos sexuais, como você mesma observou. 
Você comentou bem o corpo das luxúrias que precisaria ser contido na mulher, 
objetivo pelo qual se mostram as gárgulas nuas como exemplo de perdição, imagens 
que coagem moralmente as fêmeas humanas. Ocorre-te que a nudez não quer mais que 
devolver o suposto humano dessas fêmeas a uma animalidade condenável? Não é só o 
erotismo, a luxúria, a devassidão da mulher, mas também o apagamento do refinamento 
de um suposto humano que é mais que animal, mais que corpo, humano em que as 
forças orgânicas, especialmente as sexuais, fazem perder a suposta essência moral e 
racional que o homem quis conservar, a todo custo, no ser que autodenomina humano. 
O termo animalização é usado toda vez que se vai mencionar a fusão visceral com o 
mundo, com todo caráter negativo com que se associou, secularmente, o corpo e suas 
pulsões a desgoverno do humano. Esses movimentos, na idade média, são interpretados 
como inclinações a forças demoníacas, em uma aproximação definitiva entre 
animalização e demonização do corpo. 
Já leu Beauvoir (1970)? A ideia do destino existencial do homem, em detrimento 
do destino orgânico da mulher, é dela e, se parece não fazer muito mais sentido em 
nossos dias, se prova na história de constituição e usos dos conceitos de mulher. O 
homem esteve cuidando de sua existência, tentando afirmar nela todo seu potencial 
humano, e tomando a mulher como coadjuvante de sua própria história: precisa dela 
para garantir a vida encarnada em sua existência. Não se trata de perceber a natural 
condição de compartilhamento, mas de tomar a fêmea com as mesmas intenções com 
que se toma o animal, ainda que de modo mais sutil, para submetê-los a um projeto 
autorreferente. Ambos preenchem uma lacuna fundamental no projeto 
antropo(andro)cêntrico: nada se poderá garantir sem a matriz orgânica da mulher e do 
animal. No entanto, do mesmo modo que o tolo animal humano pensa que todo o 
universo converge para si (provocação nietzscheana), tangenciando-o todas as formas 
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viventes que, ao alcance de suas mãos, podem estar submetidos, o homem pensa que 
todas as forças convergem para um ponto falocêntrico. Animais e mulheres geram vida, 
homens a tomam e organizam em projeções existenciais... Mulheres perdem-se, como 
os animais, em seus corpos. Homens superam a pura animalidade e fazem nascer em 
perfeição e esplendor sua humanidade. Animais são instintos; homens são razão. 
Mulheres se perdem em emoções, pervertem; homens modulam seus afetos, moralizam. 
Não posso deixar de lembrar o comentário de Flória Emília na sua carta ao amante 
Aurélio (Santo Agostinho): ―Tenho medo, Aurélio. Tenho medo do que os homens da 
Igreja possam fazer a mulheres como eu. Não pelo fato de sermos mulheres, mas porque 
Deus criou-nos assim, e porque assim seduzimos os homens‖ (GAARDER, 2006, p.88). 
Mas, voltemos à sua imagem: as mãos da gárgula nua estão em gesto 
devocional. Aí encontramos o outro destino que o homem julga poder permitir à 
mulher: quando esgota os sentidos de sua existência, chama a mulher para cavar no 
sagrado algo mais que o permita contornar sua condição efêmera. As mulheres 
historicamente protagonizam os rituais de nascimento e de morte. Quando gestam, já 
não são apenas um corpo gerando vida, mas uma matéria tomada como uma essência 
sagrada que fará convergir para a existência humana uma vida já cheia de sentidos. E, 
em outra peculiar condição, se algum sacrifício é necessário para trazer para si a força 
de presenças ocultas, os favores dos poderes divinos, é vida que precisam ofertar, 
retirada do sangue pulsante dos animais e das virgens. Cidre (2014, p. 22) nos lembra 
que muitas mulheres foram igualadas a animais nos rituais de sacrifício, havendo uma 
inequívoca simbologia que aproxima o sangue da mulher e do animal. Note, Catarina: 
prevalece o devir orgânico, do qual se retirará o animal e a mulher não para elevá-los a 
uma existência humana, mas para conduzi-los, sem desvios, ao sagrado, extraindo sua 
forças e transmutando-as em linguagens acolhidas pelas divindades. Não te parece 
curioso que justamente o sangue se volatize em poder de acesso à dimensão sagrada? 
A essa altura, minha cara, não seria proveitoso pensarmos que, para além da 
função pedagógica e moralizante das gárgulas, dadas como exemplos de 
desumanização, há um complexo substrato de representações que tornam a recorrente 
presença do corpo nu, testemunho da condição orgânica e da permanência da 
animalidade, nos espaços sagrados como catedrais e mosteiros, algo perfeitamente 
compreensível? São os domínios edificados e adornados para garantir uma existência 
para além, um monumento emprova de sua super-humanidade. Ali, aprisionou o que 
escapa a sua compreensão, às suas determinações morais. Não é sempre um 
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contraexemplo? Em suas análises, você enfatiza que, para além da função estrutural 
dessas imagens, quer seja, o de escoar água dos telhados das catedrais, há sempre uma 
intenção de colocar em foco a perdição, a imoralidade, para suscitar o senso de correção 
e conversão. O modelo exemplar negativo parece ter tido mais força no imaginário 
medievo que o da mulher casta, sempre dedicada à família e tendo, sob controle, as 
inclinações sexuais. As imagens reforçam justamente o oposto, aquilo que escapa, que 
subtrai do humano sua suposta humanidade, que o aproxima do animal. 
A essa altura já não me parecem mais estranhas as imagens que você descreve, e 
que infelizmente ainda não pude observar, tiradas de Santa Maria de Alcobaça e do 
Mosteiro de Sta. Maria de Belém: as gárgulas híbridas (BARREIRA, 2010, p.185). 
Nelas, misturam-se mulheres e animais: uma delas, segundo sua descrição, um corpo de 
mulher com cabeça de cão, manipulando os mamilos; outra com caracteres animais e 
longos cabelos, pernas cruzadas, uma das mãos sobre os genitais. A aproximação entre 
os destinos da mulher e animal são inquestionáveis e você coerentemente cita São 
Basílio para explicitá-la ainda mais: essas gárgulas representariam ―um tipo de vida 
dominado por pecados como a luxúria e a gula‖, o que ―aproxima o homem dos 
animais‖(BARREIRA, s/d, p.12). 
Li um texto seu por esses dias em que, de outra perspectiva, você apresenta 
justamente os extremos dessa dualidade no destino da fêmea humana: ora a imagem da 
mulher tem significado religioso, como as imagens relacionadas à Virgem Maria, ora a 
mulher plenamente inserida no projeto existencial masculino, pertencente a um grupo 
social destacado ou, simplesmente, contida em um modelo familiar após converte-seda 
experiência do pecado. No outro extremo, você menciona a mulher descendente de Eva, 
tentadora e pecadora, associados a figuras mitológicas como sereias e harpias. Veja, 
novamente: a mulher que foge da contenção ganha caracteres animais, transmutando-se 
em imagens híbridas. Estão, agora, no campo da perdição, onde impera a animalidade, 
mais próximas de um corpo demoníaco. 
Sei que o que era para ser uma breve comunicação já muito se alongou, mas não 
posso deixar de relatar o último ponto das minhas experiências exploratória, no seu 
rastro: as parturientes no Convento de Nossa Senhora da Conceição e em Santa Clara do 
Porto. As gárgulas parturientes deixam à mostra o incontornável do devir orgânico: a 
geração da vida. Nesses casos, o paradoxo entre geração e condenação, uma vez que se 
dá em condições moralmente inaceitáveis. Como você destacara, vi na primeira, a 
metáfora do ato de dar à luz escondida do mundo: parece, de fato, uma freira, com as 
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mãos em ato devocional e a cabeça de bebê entre as pernas.Da outra imagem, de Santa 
Clara, você descreve um aspecto de grande interesse: trata-se de uma parturiente 
híbrida, misto entre mulher e animal, com patas e garras. Não posso deixar de relembrar 
o Mosteiro da Batalha, onde se encontra a intrigante imagem de uma gárgula que não 
pode conter a produção, deixando à mostra o bebê que lhe sai pela boca. A questão por 
trás dessas imagens me parece ser a da contenção da geração da vida. Tal geração só 
aparece em uma versão positiva quando contida em um projeto existencial que converte 
o devir orgânico em intencionalidade androcêntrica organizada pela moral. Quando não 
contida nesses limites, a geração é mais um dos sinais da pura animalidade, não 
significada pela condição humana. 
Espero não ter corrompido as reflexões que você suscitou, cara Catarina. 
Agradeço ter me apresentado essas imagens irmãs dos meus devaneios. 
 
Estranho compartilhamento... 
Já não sinto tanto estranhamento diante dessas imagens destacadas por 
Catarina, que aqui te envio, caro amigo. Talvez você tenha dificuldade de aceitar 
minhas reflexões, se não despertar uma condição andrógina própria de todas(os) nós. 
Esqueça os conceitos e os destinos de homem e mulher em nossa cultura e olhe para 
essas questões como se fizesse uma arqueologia ou simplesmente uma análise histórica. 
Talvez assim consiga enxergar a força de submissão da mulher e do animal. 
Consegue ver essas condições reveladas pelas gárgulas? A carne das fêmeas 
humanas está tomada por forças demoníacas, como recorrentemente a dos animais; 
mulher e animal tem acesso às dimensões mística e carnal, ou se sacralizando, ou se 
demonizando, respectivamente; as fêmeas humanas são parturientes, não podendo fugir 
do devir orgânico, sendo que, pela gestação se divinizam, se incluídas em um projeto de 
existência, ou se demonizam, se movidas pelas puras potências animais. 
Diga-me, amigo, você que vê beleza na produção que transmuta o corpo das 
fêmeas em constantes potências geradoras, como no vídeo De dentro, de Patrícia 
Piccinini (2012a), onde o mel da vida não cessa de materializar-se pela boca de uma 
mulher: acha que a origem e permanência dessas representações comentadas com 
Catarina poderiam se situar em outro centro que não em um androcentrismo? Poderiam 
dar-se as fêmeas a própria limitação de suas potências? Poderiam enclausurar o seu 
próprio devir em um aquém de uma plena humanidade? Compartilhariam o mesmo 
desejo ingênuo e inglório de desprenderem-se, definitivamente, do animal? 
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Compreenderiam como pura consequência do poder natural masculino as incontáveis 
formas da sua escravização? Ora... Será preciso ―extrair-lhe‖, tal qual se faz com o 
animal não humano, a fina intuição, a linguagem e a razão, para tornar tais condições 
pertinentes. 
Que acha do fato destacado por Catarina de que, somente nos séculos XV e XVI, 
o universo das gárgulas deixa para segundo plano o bestiário e dá à figura humana um 
lugar de destaque (BARREIRA, 2010, p.178)? E, quando isso acontece, as imagens 
femininas espalham-se com tanta recorrência? Trata-se de um tempo em que o homem 
tenta assegurar, a todo custo, a centelha do fogo divino em sua suposta essência. Para 
isso, valoriza um humano muito mais próximo dos deuses que dos animais, muito mais 
sagrado do que profano. Natural que tudo que sugerisse sua animalidade fosse 
condenável a uma dimensão insana, imoral. Foi, de fato, uma época em que o homem 
evitaria ao máximo enfrentar seu próprio reflexo, com receio de ver-se despido de sua 
autoimagem, do nome e da identificação que deu a si mesmo. O problema é que a 
mulher e o animal jamais puderam se esconder pela estratégia de um recurso metafísico: 
seu devir orgânico colocava diante dos homens todas as potências que eles pretendiam 
evitar. Como são compreensíveis as feições demoníacas do corpo dos animais e das 
fêmeas humanas, ou de seus híbridos, estampadas nas imagens dispostas bem no alto 
dos espaços dedicados a elevar o sagrado no homem! 
Você sabia que existe, em alguns desses espaços, imagens de fêmeas humanas 
não necessariamente corrompidas pelas pulsões do corpo, mas julgadas perdidas 
simplesmente pelo fato de, escapando da restrição do oikos e da figura materna, 
reproduzirem existências não comprometidas com planos androcêntricos? Catarina se 
refere a elas como soldadeiras ou jogralesas, mulheres que cantavam, dançavam e 
tocavam, em uma vida nômade marcada por episódios indecorosos (BARREIRA, s/d, 
p.25). Bela figura de transgressão, mas colocada no alto de mosteiro com intenção 
moralizante, mostrando aquilo que se desejaria evitar na materialização da imagem da 
mulher casta, contida.Compartilho, então, com essas figuras transgressoras o desejo de 
um escape dos limitesandrocêntricos impostos à existência feminina. 
Acha que toda forma de produção orgânica está associada com uma não-
humanidade? 
 
O que vem de dentro... 
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26 
 
Minha cara amiga, vou preferir falar de compartilhamentos, desses que você 
intuiu na sua relação com animais e fêmeas gargulóides. É inevitável se situar em 
positividades quando se está contaminado pelas imagens de Piccinini, de onde o próprio 
compartilhamento se confunde com fusão, hibridização, e onde o que vem de dentro dos 
seres, em prova de sua existência orgânica, são ricas materializações de suas potências 
criadoras. Começo contando-lhe a experiência de contágio com os híbridos de Patrícia. 
Escolhi a manhã de uma segunda-feira para visitar a exposição da artista plástica 
Patricia Piccinini. Durante o trajeto a pé, do estacionamento no bairro da Liberdade até 
o CCBB, gastei pouca da minha atenção com as pequenas multidões ocupando cada 
espaço de calçada. Da mesma forma, quase não me atentei para a preocupação no rosto 
dos ambulantes, pouco reparei nas pastelarias lotadas com aromas de café e tentei não 
me render aos encantos formais da Catedral da Sé. Nem mesmo me ative aos detalhes 
pitorescos da arquitetura do antigo centro financeiro, que desde criança me 
impressionam. Economizava minha atenção para as obras de arte que em breve 
contemplaria... 
Não havia filas e, portanto, minha entrada foi imediata... Tão imediata a ponto 
de me deparar, espantado, com a Grande Mãe (Big Mother, 2005) (Fig.1) logo na 
entrada do saguão! Não esperava encontrar aquele ser de quase um metro e oitenta, nu, 
amamentando um bebê humano à porta do edifício, como se prestes a sair para a rua. 
 
Fig.1. Big Mother 2005. Fotografia de Paulo Manaf, 2015 
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Precisei de um tempo especial para apreciar a escultura. A princípio nos impacta 
a profusão de caracteres tão associados a humanos – como a postura ereta, a pele glabra, 
os cabelos longos e a expressão facial – esplendidamente misturados a outros que 
consideramos alheios a nós – ou nem tanto assim, como sugere a obra. Mas o impacto 
maior nos é causado pelo olhar angustiado, totalmente alheio ao turbilhão de transeuntes 
desfilando na calçada a poucos passos dali. Como a própria autora descreve, a criatura é 
feita para amamentar humanos: ―I trytoaddressethicalquestions, 
butthroughemotionandempathy‖ (PICCININI, 2005, s/p). Logo percebi tratar-se de uma 
existência tão possível naquele lugar como qualquer humano de carne e osso ali 
presente. A escultura era, então, o vértice entre dois mundos possíveis, aquele das 
imagens que havia visto em meu trajeto e outro que ainda estava por vir, encorpado nas 
demais obras da exposição. Cogitei então que, a partir daquele ponto, estariam 
temporariamente suspensas as linhas divisórias entre o animado e o inanimado, entre o 
lá fora e o lá dentro, entre a ética e o cotidiano, entre o real e o hiper-real. 
Mais do que suspensas, estas linhas já não fariam sentido algum. Ao longo da 
exposição foi ganhando evidência a dificuldade do expectador em esboçar qualquer 
categorização. O hiper-realismo é um instrumento nas mãos de Patricia, uma artista que 
nos suga para dentro da obra de arte e com ela nos faz estabelecer conexões inesperadas, 
ao mesmo tempo em que posiciona a criatura imaginada, assim como tantas outras que 
também podemos imaginar, diretamente em nosso cotidiano mais trivial. A partir 
daquele momento, não seria mais possível cogitar a rua lá fora, seus pedestres, carros, 
edifícios, árvores, pombos e tudo mais como sendo a expressão única e correta da 
realidade: a arte tornou-se experiência de uma realidade que trinca sob o peso de sua 
própria inconsistência e que, formidavelmente, se parte em tantas outras possibilidades. 
A presença do feminino permeava toda a exposição. Desde o impacto da Grande 
Mãe, passamos por uma inusitada bota - ―Bootflower‖, 2015 (Fig.2) -, que se transforma 
em uma flor de carne, semelhante a genitais, que bota ovos e que, de forma cíclica, 
produz mais flores por todo o espaço para então, finalmente, adquirir um aspecto 
amorfo e indefinido, mas ainda assim repleto de potencialidades latentes.Esta irrefreável 
capacidade produtora do mundo orgânico é um dos temas recorrentes da autora 
(PICCININI, 2012b). Uma de suas obras mais importantes neste sentido é um vídeo de 
12 minutos intitulado De Dentro (PICCININI, 2012a). Nele, vemos uma mulher 
liberando pela boca um líquido com cor e consistência parecidas com o mel, que vai se 
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solidificando no chão. Aos poucos vamos percebendo que todo o lugar onde ela está é 
formado pela tal substância, já solidificada. Percebemos também que não é o caso de 
vômito ou regurgitação: ela delicadamente verte o líquido, de forma aparentemente 
deliberada e natural. Também não se trata de um líquido repulsivo e, de forma alguma, 
o vídeo nos provoca asco. Ao contrário, o semblante plácido da mulher e a mansidão do 
ambiente acabam por suscitar simpatia. 
 
Fig.2. Bootflower, 2015. Fotografia de Paulo Manaf, 2015 
 
Pela indicação do título da obra, julgamos que é a própria personagem que 
produz o líquido abundante, certamente de forma prodigiosa, que então derrama 
serenamente; as mãos dispostas sobre o colo sugerem um caráter transcendente, quase 
religioso à ação. Não há indícios de início e tampouco de fim nesta narrativa cíclica 
reforçada pela constante repetição do vídeo. Contudo, duas características chamam a 
atenção. Em primeiro lugar o tipo comum da personagem, caracterizada com 
simplicidade nas roupas, cabelo, maquiagem e atitudes – poderia perfeitamente ser uma 
das tantas mulheres que eu havia visto no trajeto até ali. Em segundo lugar, a riqueza de 
contrastes expostos na cena, conforme construída pela autora: 
The woman is unexpectedly serene, as this viscous liquid pours 
out of her. It seems a deliberate process, a carefully controlled 
emission rather than a violent regurgitation. However, it goes 
against the deep-seated intuition that nothing but breath should 
come out of our mouth, and indeed that nothing good ever 
comes back out of the body. Still, the world that this woman has 
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constructed out the matter within her is undeniably beautiful. 
(PICCININI, 2012a). 
 
Um mundo interior escuro, porém tranquilo; aparentemente fechado para o 
exterior, porém construído por algo que vem copiosamente de outro mundo, ou melhor, 
de dentro do mundo da personagem. Quantos mundos interiores poderiam se desdobrar 
a partir dali? De onde vem o líquido e como poderia ser produzido de forma sustentada, 
aparentemente sem fim? Estas mesclas complexas de contraposições, multiplicações e 
dimensões metafóricas, aliadas às sensações que suscitam, rendem uma estranha 
materialidade à obra, capaz de torná-la uma obra impressionante, no sentido mesmo de 
impingir à percepção a capacidade de notar – ou mais precisamente de ter ao menos 
uma pálida ideia – a imensurável produtividade do mundo orgânico. Produtividade, 
aqui, em termos simples de massa orgânica, em termos de biomassa, que surpreende 
tanto pela quantidade quanto pela qualidade. Folhas, cascas, membranas, pétalas, pelos, 
gases, líquidos, polens, venenos, sucos, envoltórios, ramos e tudo mais, uma 
produtividade gigantesca que não cessa enquanto houver vida. Nossa percepção, 
usualmente encarcerada entre limites das mais diversas naturezas – desde limites 
fisiológicos dos órgãos dos sentidos até aqueles culturalmente impostos – muitas vezes 
não apreende a dimensão de tal produtividade. Raramente nos damos conta disso porque 
que os eventos botânicos – os mais produtivos– ocorrem em escalas de tempo muito 
diferentes da humana em sua maioria; já o acesso ao reino animal e outros reinos é 
ainda mais difícil de ser realizado por seres humanos. Nosso acesso cotidiano a outras 
formas de vida, mediado pela cultura cientificista é, além de modesto demais, também 
repleto de vieses. O acesso extraordinário mediado pela arte propõe experiências mais 
abrangentes do que a razão poderia nomear. 
Trata-se de um ser atemporal, em forma humana, que nos faz refletir, em 
primeira mão, sobre a produtividade do mundo. Emconjunto com A Grande Mãe, 
abrangetambém o tema da nutrição: ―for me, the essence of life is to nurture and be 
nurtured, and that is something that cuts across species.‖(PICCININI, 2005, s/p). Na 
entrada da exposição, a ama amamenta, produzindo eternamente seu leite que concede a 
um humano a possibilidade da vida. De dentro da exposição, a mulher, já além da idade 
reprodutiva, concede seu fluído belo e translúcido. Aquela que amamenta tem um 
semblante terrivelmente ansioso, que imediatamente reconhecemos e através do qual 
estabelecemos uma inesperada conexão empática com a obra de arte. A mulher em seu 
mundo isolado aparentemente produz aquilo que definitivamente a encarcera. Uma vez 
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conectados com a personagem do vídeo, temos então a sensação de que, de alguma 
forma ou em algum grau, dependermos daquele líquido quase maternal. 
Há, sem dúvida, algumas aproximações entre as criaturas de Piccinini e as 
gárgulas excretoras e parturientes. Dão, ambas, testemunho de um devir orgânico e de 
uma relação inusitada do humano com seus estranhos. Tornam visíveis as potências 
produtivas do feminino e as zonas de compartilhamento possíveis entre animais 
humanos e não-humanos. No entanto, na obra De Dentro, Patricia Piccinini nos 
apresenta, de outro ponto de vista, uma espécie de anti-gárgula.Nas gárgulas medievais, 
o líquido é bem mais fluído e bem menos passível de solidificação. São águas pluviais 
impotáveis ou repletas de dejetos humanos. Não são as gárgulas que produzem essas 
águas; os líquidos as transpassam e jorram por bocas que se abrem, geralmente, em 
feições desfiguradas ou caricaturais. Quase um expurgo. Ao que parece, o corpo 
produtivo de Piccinini positiva o que vem de dentro... Nas obras de Patricia, não há uma 
moral ao fim da estória, mesmo porque as narrativas apresentadas ainda se encontram 
em pleno curso quando com elas nos deparamos. 
 
Os excretos dão prova do que somos também nós, animais... 
Os ressurretos atingiram seu ser pleno, suprassensível. Apartaram-se do animal 
que excreta seus dejetos... Nada mais têm a ver com as gárgulasrabos-ao-léu das Sé da 
Guarda, Sé de Braga, e Matriz de Caminha (BARREIRA, 2010, p.189), que tem seus 
ânus em destaque e excretam, dando prova de sua animalidade, não obstante serem 
visivelmente animais humanos. Também, supostamente, nada comungam mais com as 
gárgulas fêmeas evidenciando sua luxúria com as mãos sobre seus órgãos sexuais ou 
com o gárgula-homem fornicador da Lonja de la Sena, em Valencia. Os excretos 
sinalizam para o que somos nós, na plena condição de nossa animalidade. Tudo que 
parece sair das gárgulas, pelas suas bocas, seus ânus ou suas vaginas são negativados, 
quer seja produzido por seus corpos ou os transpassem. 
Não te parece possível positivar o que vem de dentro de gárgulas, se 
sobrepusermos sobre elas as imagens impactantes da potência produtiva do humano, 
retratada por Piccinini? E, me parece mesmo inevitável reconhecer nelas as mesmas 
hibridizações, ambiguidades. A distinção parece estar em uma intencionalidade distinta 
na criação de ambas as séries de imagens: se nas gárgulas, há sinais de uma fobia, uma 
intenção de contra exemplo do que deve ser o que se autodenomina humano, nos 
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híbridos de Piccinini, uma provocação de relações de suspensão da repulsa e de uma 
filia possível a partir do reconhecimento de um compartilhamento. 
Desconsiderado o olhar e a intencionalidade de quem a eles se dirigem, 
suspensas as impregnações demoníacas que lhe atribuímos, em suas existências 
próprias, esses seres panmórficos, gárgulas e híbridos, são depositários de nossas 
animalidades. Exigem-nos o deslocamento para além do limiar humano-animal, para 
além de qualquer traço hierárquico entre homem-mulher, para além do real e do 
imaginário. Quisera terem a dinamicidade dos animais em movimento vital, e nos 
olhariam de frente... E não poderíamos nos esquivar de seus olhares e, portanto, não 
poderíamos evitar a intuição de um ser junto, um compartilhamento, ou mesmo, uma 
possível transmutação, de outra perspectiva. 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
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Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 
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BARREIRA, Catarina A. M. F. A presença feminina nas gárgulas medievais. Revista 
As Faces de Eva, Universidade Nova de Lisboa. S/d. Disponível em 
<https://www.academia.edu/3502892/A_presen%C3%A7a_feminina_nas_g%C3%A1rg
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___________. A relação entre gárgulas e textos no contexto tardo-medieval em 
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COSTA, Ricardo da (coord.). As relações entre História e Literatura no Mundo Antigo 
e Medieval. Mirabilia, v. 13, Jun-Dez 2011. 
___________. Contributos para o estudo das gárgulas medievais em Portugal : desvios e 
transgressões discursivas? Lusitania Sacra, v. 22, p.169-199, 2010. 
BEAUVOIR, Simone.O segundo sexo. 1: Fatos e mitos. 4ª ed. Paris: Gallimard, 
Difusão Europeia do Livro, 1970. 
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CIDRE, Elza Rodríguez. Mujeres, animales y sacrificio en Bacantes de Eurípides. 
Asparkía, v.25, pp. 19-32, 2014. 
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Trad. Fábio Landa. 2 ed. São Paulo: 
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GAARDER, Jostein. A vida é breve:Carta De Flória Emília A Aurélio Agostinho. 5ª 
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________________. Those Who dreambynight.2012(b). Disponível em: < 
http://www.patriciapiccinini.net/writing/38/297/73>. Acesso em: 12 dez 2015. 
PICCININI, Patrícia; ORGAZ, Laura F.The Naturally Artificial World.Originally 
published: (tender) creatures, exhibition catalogue.Artium. 
2007. Disponívelem<http://www.patriciapiccinini.net/printessay.php?id=29>. Acesso 
em: 12 dez 2015. 
RIZO, Sérgio R. O corpo do demônio. Revista Estética e Semiótica, Brasília, v.4, n.2, 
p.42-68, Jul/Dez, 2014. 
 
 
AUTORES 
 
*PAULO MANAF: Biólogo do Zoológico Municipal de Mogi Mirim. Grad. Em 
Biologia/USP, Dr. em Psicologia (Neurociências e Comportamento)/USP. 
paulomanaf@gmail.com 
 
**ANDREIA A. MARIN: Docente/pesquisadora da UFTM. Grad. em Biologia/USP e 
Filosofia/UFPR, Dra.em Ecologia/UFSCar. aamarin@ig.com.br 
mailto:paulomanaf@gmail.com
mailto:aamarin@ig.com.br
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33 
 
DOIS NEO-REALISMOS E UMA CINEASTA: 
Possíveis leituras do neo-realismo latino-americano em Lucrecia Martel 
 
Diego Martins Haase
8
 
 
 
 
I 
Nesse artigo proponho analisar as similitudes estéticas do chamado Novo 
Cinema Argentino dos anos 90
9
 (consagrado ao longo da crise de 2001), e o 
neorrealismo italiano do pós-guerra. Ambas as manifestações estéticas surgiram de uma 
intensa transformação social que propiciou a origem das suas expressões 
cinematográficasrealistas, através das quais os cineastas buscavam se reconhecer ante o 
desamparo e a desolação da sua própria realidade: a Itália, destruída pelo fascismo e 
pela guerra e a Argentina, abalada pela ditadura militar e pelas políticas do 
neoliberalismo selvagem que a levaram a passar por uma das crises econômicas e 
políticas mais profundas da sua história. Os filmes destas vertentes estéticas afloraram 
das ruínas do seu tempo criando um espaço de distanciamento cultural com as 
representações do passado. Precisaram conceber suas experimentações simbólicas na 
emancipação do presente, e narrar suas adversidades de forma realista, para contribuir 
 
8
Bacharelado Interdisciplinar em Artes na Universidade Federal da Bahia/ UFBA, 
cineasta e produtor cultural. 
9
Convencionou-se que o novo cinema argentino nasceu em 1997, quando Adrian 
Caetano foi premiado no Festivalde Mar del Plata, com seu filme Pizza, Birra, Faso. 
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com a reconciliação de uma identidade nacional que precisava avançar sobre a sua 
tragédia, ou ao menos compreendê-la. 
Como diz o diretor Ferrand, personagem do filme A noite americana (1973), de 
François Truffaut, ―Os filmes de amanhã serão rodados na rua‖. Para Costa (1987), essa 
passagem foi uma homenagem de Truffaut à revolução estética que foi o neorrealismo 
italiano. (p.104) 
Essa revolução estética que influenciou todas as cinematografias do mundo 
reapareceria com força na era digital dos anos 90 para inspirar a jovem geração de 
diretores que, para alguns críticos, fundamentam o nascimento de um ―Novo Cinema 
Argentino‖ – entre eles podemos mencionar alguns precursores como Adrian Caetano 
(Pizza, Birra, Faso), Pablo Trapero (Mundo Grúa) e Lucrecia Martel (La Ciénaga). 
Estes cineastas não só tinham em comum a experimentação dentro de um cenário cheio 
de similaridades com o vivenciado pelos seus pares italianos. Vinham das periferias de 
Buenos Aires e do interior do país e traziam suas vozes, suas lembranças, filmavam 
seus próprios mundos, mostravam o país oculto pelos cartões postais da época com seus 
próprios pontos de vista, ao tempo em que desenvolviam suas próprias técnicas aliadas 
às novas tecnologias. 
Um dos pontos fortes do neo-realismo foi a capacidade de assimilar e 
adaptar à realidade italiana modelos cinematográficos e literários dos 
mais diferentes, em um clima de frenética atualização vivida como 
reação ao fechamento da cultura oficial fascista. (COSTA, 1985, p.107) 
É sobre um filme como Paísa(1946), de Roberto Rosselini, que o teórico francês 
André Bazin vê realizar-se a mutação que diz respeito às próprias modalidades de 
construção da narrativa cinematográfica. Segundo Bazin, ―a câmera tornou-se uma coisa 
só entre o olho e a mão que a conduzem: dessa forma, a narração que nasce de uma 
necessidade ‗biológica‘ antes de ser dramática, germina e cresce com a veracidade e 
liberdade da vida‖. (COSTA, 1985, p. 107). 
Se o novo cinema argentino fosse um espelho do neorrealismo italiano, seria 
possível afirmar que Lucrecia Martel foi a mais frenética atualização vivida pelas 
experimentações do novo cinema argentino, e a sua forma narrativa a mais ―biológica‖, 
a ponto da sua obra-prima se chamar O pântano (2001). 
Ao contrário do neorrealismo italiano, que se caracterizou como um movimento 
de expressão coletiva pelas similaridades estéticas e pelas formas narrativas da sua 
concepção, o ―neorrealismo argentino‖, assim chamado pelos críticos que mais 
evidenciaram essa relação (ou novo cinema argentino), não chegou a se consolidar 
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35 
 
como um movimento, nem criar convenções entre os cineastas que fizeram parte do 
mesmo. No entanto, podemos considerar que, mesmo não adotando o modelo 
neorrealista como uma convenção estética – mas apenas retomando suas características 
para ―filmar a realidade‖ com personagens interpretados por não-atores e as histórias de 
―metamorfose humana‖ frente às conseqüências de um cenário desolador –,os jovens 
cineastas argentinos parecem ter aproximado um mesmo cinema de dois mundos. Trata-
se de uma coincidência nem um pouco aleatória, visto que a Argentina foi um país de 
imigrantes italianos, fazendo com que muito da história e da cultura de um país se reflita 
na expressão artística e cultural do outro. 
Nonovo cinema argentino parece se repetir uma ideia do neorrealismo italiano 
que é fundamental para a compreensão da linguagem cinematográfica que o 
caracterizou desde seu surgimento. Tal linguagem vem atrelada a um contexto técnico e 
político, no qual uma ruptura histórica com o modelo dominante leva a uma revolução 
estética da tecnologia e da libertação humana. Para ambas as cinematografias, esse 
paradigma se deve ao surgimento de um cinema feito na rua, com a emancipação em 
relação a uma cultura dominante. 
 
II 
Uma vez entrelaçadas as ideias e fundamentos que permitem vislumbrar as 
similitudes neorrealistas de cinematografias tão distantes no espaço-tempo dos 
acontecimentos que as desencadearam, podemos nos deter a pensar sobre a influência 
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36 
 
do neorrealismo italiano sobre o novo cinema argentino, a ponto de ser chamado de 
―neorrealismo argentino‖ por alguns críticos da época. Chega-se a dizer que o melhor 
cinema neorrealista italiano, dos anos 70, é feito, atualmente, em Buenos Aires. O 
crítico do Cahiers de Cinema, Serge Toubiana, afirma: ‖O cinema argentino é uma 
forma neo-realista reinventada‖. 
Onovo cinema argentinonunca contou com a presença de uma figura que 
alimentasse uma fundamentação teórica, como foi o caso de Zavattini no neorrealismo 
italiano, e desenvolveu uma diversidade autônoma de modos de produção sem 
enquadramentos que o determinassem como um movimento ou grupo. Por conta de sua 
diversidade, alguns críticos e diretores chegam a questionar sua permanência ou até a 
própria existência desta definição. No entanto, os filmes dessa geração jovem de 
diretores argentinos configuraram um corpus. E, a partir deste corpus, essa geração de 
diretores soube aceitar a existência e a convivência de um lugar comum de pertença 
para a sua cinematografia, reconhecida em qualquer lugar do mundo. 
De fato, se alguns filmes que marcaram o neorrealismo argentino alcançaram 
repercussão internacional, foi porque, ao tempo em que mostravam uma história 
particular, o faziam de forma universal. Para o crítico Leonardo M. De Espósito 
Muitos dos melhores filmes já feitos neste país são menos argentinos do 
que universais no sentido estrito da mise-en-scène, mesmo que suas 
imagens sejam argentinas. Mundo Grúa e LaLibertad, dois filmes onde 
a Argentina é algo vago, misterioso, fantástico, até mesmo aterrorizante, 
em um dos casos. Onde o reconhecível pelo público de ambientes deste 
país vai desapropriar quaisquer raízes vernáculas para retornar às 
ficções universais. Algo semelhante acontece com La Araña Vampiro e 
todo o trabalho de Lucrecia Martel e até mesmo com o grande pioneiro 
e fundador do ‗Novo Cinema Argentino‘, Martin Rejtman. Eles são tão 
argentinos como Kiarostami é iraniano ou James Cameron é norte-
americano. (ESPÓSITO, Leonardo, 2010). 
Onovo cinema argentino não está só inspirado no existencialismo europeu que 
procurava um lugar possível para o homem em um mundo cheio de adversidades, mas 
também pelo cinema político da América Latina, que enfrentou o exílio, a perseguição, 
a tortura e a morte. Longe de se abrir para o mundo, filmes desapareceram, e outros 
tantos foram censurados. Na Estética da Fome (1965), Glauber Rocha nos lembra que 
os latino-americanos vivem sempre na incerteza, estamos sempre em guerra e 
desamparados. Essa lembrança ecoa mais forte quando,

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