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FEIRA DE SANTANA-BA v. 1, nº 4 p. 1 – 102 Ano 2016 REVISTA SÍSIFO ANO 2016 www.revistasisifo.com FEIRA DE SANTANA-BA v. 1, nº 4 p. 1 – 102 Ano 2016 Endereço para correspondência. Adress for correspondence: Revista Sísifo Site: www.revistasisifo.com / E-mail: sisiforevista@gmail.com Feira de Santana — Bahia — Brasil Revista Sísifo – Feira de Santana – v. 1, n. 1 (2014-) nº 4 novembro 2016 Filosofia – Periódicos I ISSN: 2359-3121 FEIRA DE SANTANA-BA v. 1, nº 4 p. 1 – 102 Ano 2016 REVISTA SÍSIFO ANO 2016 www.revistasisifo.com CORPO EDITORIAL Yves São Paulo (Editor) Marcelo Vinicius (Editor) CONSELHO EDITORIAL Andreia A. Marin (UFTM) Bruna Torlay (UEFS) Dinameire Oliveira Carneiro Rios( doutoranda - UFBA) Eduardo Pellejero (UFRN) Rodrigo Ornelas (UEFS) Rodrigo Araújo (IFBA) Wanderley C. Oliveira (UFSJ) Os artigos e demais textos publicados nesta revista são de inteira responsabilidade de seus autores. A reprodução, parcial ou total, é permitida, desde que seja citada a fonte. SUMÁRIO EDITORIAL Marcelo Vinicius Yves São Paulo................................................................................................................. 5 DYLAN É UM OUTRO Carlos Inácio Coelho Neto............................................................................................... 6 ENTRE FÊMEAS HUMANAS E QUIMERAS: O DEMONÍACO E O CORPO Paulo Manaf Andreia A.Marin............................................................................................................. 14 DOIS NEO-REALISMOS E UMA CINEASTA: POSSÍVEIS LEITURAS DO NEO-REALISMO LATINO-AMERICANO EM LUCRECIA MARTEL Diego Martins Haase...................................................................................................... 33 INTUIÇÃO E CRIAÇÃO: A FILOSOFIA COMO ATO DE RESISTÊNCIA Pablo Enrique Abraham Zunino..................................................................................... 43 A MÚSICA COMO OBJETIVAÇÃO IMEDIATA DA VONTADE NA METAFÍSICA DO BELO DE ARTHUR SCHOPENHAUER José Luís de Barros Guimarães...................................................................................... 55 A FILOSOFIA-MEDICINA ORGÂNICA DE TROTULA DE RUGGIERO, NA BAIXA IDADE MÉDIA (1050-1097) Dr. Marcos Roberto Nunes Costa................................................................................. 73 TRADUÇÃO A ÁFRICA E A FILOSOFIA YOPOREKA SOMET Humberto Luiz Lima de Oliveira................................................................................... 80 SUBMISSÃO............................................................................................................... 101 Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 5 EDITORIAL O esforço de Sísifo parece inútil. Uma atividade a ser repetida pela eternidade e que nunca encontrará um resultado final, que nunca será terminada. Mas ao longo de sua atividade, Sísifo pode encontrar um sentido, ou dotar sua atividade com um sentido, independente de ela terminar ou não. O conhecimento permanece nesse devir. As pessoas nunca realmente o possuem por completo, estando sempre em busca de conhecer um pouco mais, de aprimorar aquilo que já conhecem, de adicionar algum detalhe à cadeia de conhecimentos conquistados. Publicar novas edições de uma revista de filosofia segue este rumo. O conhecimento está sempre se ampliando, crescendo, e por mais edições que tenhamos publicado, nunca estaremos próximos de compilar todo o saber da humanidade. Ainda assim, persistimos. Uma tarefa absurda. Um absurdo que é evocado no nome da revista. Um absurdo que é abraçado com agrado por quem lê a revista, e por quem com ela coopera. O intelectual não é um ser acabado, estando sempre a se construir. E tal como Sísifo, realiza o eterno erguimento do saber ao agarrar dos livros da biblioteca. Os livros descem as prateleiras rumo à mesa de estudos e por mais que o estudioso, o pesquisador ou o curioso ponha um livro na estante, outro cairá em suas mãos. E como o conhecimento nunca está completo, é válido estudar tudo. Desde os primeiros filósofos no Egito antigo, até as poesias-musicais de Bob Dylan. No fim das contas, não existe conhecimento improfícuo, existe conhecimento não aplicável. Marcelo Vinicius Yves São Paulo Editores Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 6 DYLAN É UM OUTRO Carlos Inácio Coelho Neto 1 Em carta enviada a Georges Izambard, em setembro de 1870, Rimbaud escreveu uma frase curta, direta, que aparentemente está perdida no texto escrito ao seu ex- professor. Trata-se da frase ―Eu é um outro‖ 2 . A frase remete ao espelhamento da própria identidade, personalidade ou ego em uma outra identidade, personalidade ou ego. Existe nela a recusa de ser alguém ou algo definitivamente. O jovem poeta indica, talvez intuitivamente, a necessidade de assumirmos/possuirmos diferentes personas e devemos, portanto, vivê-las afim de experimentarmos diferentes modos de estar no mundo. Robert Allen Zimmerman sempre foi outros. Ao longo da sua vida assumiu as mais diversas personalidades, começando pela adoção do nome pelo qual seria imortalizado pelo legado musical que vem construindo nas últimas cinco décadas. Desde jovem a poesia, a literatura e a música despertaram seu interesse e paixão. Adotou o nome do poeta galês Dylan Thomas como sobrenome. Aliás, poeta que influenciou fortemente poetas e escritores responsáveis por criar o movimento beatnik. Movimento literário que forneceu toda matéria prima necessária à constituição da 1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Editor, criador e colunista do site de música Oganpazan (www.oganpazan.com.br). 2 RIMBAUD, Arthur, Correspondência de Arthur Rimbaud, pág. 34. Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 7 contracultura nos Estados Unidos, a qual Robert Zimmerman participou ativamente. Desse modo, Robert Allen Zimmerman, entrou em modo standby, cedendo o lugar a Bob Dylan. A conexão de Bob Dylan com a poesia está em suas origens artísticas. Aos 12 anos já rabiscava seus primeiros versos. Mas como dissera Leminski no vídeo Ervilha da Fantasia (1985) é muito fácil ser poeta na juventude. Todos fazem seus versos durante a juventude, a maioria abandona esse afazer, guarda seus versos como registro de um momento da vida. Os poetas de verdade continuam a fazer seus versos ao longo de toda sua existência. Bob Dylan está passando pelo seu 75º ano de vida fazendo versos. Continua se reinventando, tornando-se sempre outro, como nenhum artista fizera até então. Desde antes do momento em que seu eu espelhou-se em um outro e Robert Zimmerman tornou-se Bob Dylan a poesia já o acompanhava. É muito possível que antes de ter sido despertado para a música, ele havia sido despertado para a poesia. Percebendo a ligação íntima entre música e poesia, não teve porque optar por uma delas, resolveu uni-las, descobrindo a maneira apropriada de realizar suas pretensões de jamais ser cristalizado numa definição. Décio Pignatari em O Que é Comunicação Poética diz que ―A poesia parece estar mais do lado da música e das artes plásticas e visuais do que da literatura‖ 3 . Não é absurdo algum considerar verdadeira essa tese, uma vez que a poesia, assim como a música, possui ritmo, sua sonoridade, assim como na música, preocupa-se em produzir imagens, provocar sensações, prezando por fazê-lo de modo abstrato, completamente despreocupada quanto à produção de significados. Podemos considerar haver uma ligação sanguínea entre poesia e música. Talvez intuitivamente Bob Dylantenha percebido essa ligação e resolveu seguir fazendo as duas coisas. As mudanças pelas quais passou pessoalmente e artisticamente sempre estiveram em acordo com sua procura íntima por jamais se prender a um rótulo. Essa busca constante por descobrir a si mesmo jamais foi compreendida por seu público, contudo, o ímpeto criador diretamente ligado tanto à música quanto à poesia, mais do que qualquer outro tipo de manifestação artística, garantiu que Bob Dylan se mantivesse no caminho de sempre trazer ao mundo algo novo, fugindo das garras da repetição. 3 PIGNATARI, Décio, O Que é Comunicação Poética, pág. 9. Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 8 A preocupação de Bob Dylan em se manter livre de formatações, colocando-se em constante transformação, impedindo a cristalização indissolúvel de uma identidade remete à natureza poética cuja liberdade consiste em sempre criar novas formas. Dylan continua fazendo isso, essa é a tônica da sua existência e que rendeu críticas por parte de seus admiradores. As mudanças em sua obra artística acompanha as mudanças da sua personalidade. Quando a vida o joga por uma direção sua arte o acompanha. Nesse sentido Dylan não é um artista convencional, preocupado em manter seu público cativado. Seu ethos de poeta o coloca em movimento, um nômade preocupado em encontrar novos territórios que supram suas necessidades artísticas, mas também pessoais. Pouco importa se isso agradaria o público que formou, tampouco seus admiradores, muitos dos quais ligados ao mundo das artes. Se o instinto criador apontava para uma nova direção, para lá Dylan seguia independente do rastro de decepção e fúria que deixasse para trás. A década de 60 sem dúvida é a mais frutífera da história do rock. Obras primas foram gravadas naquela década. Bandas fantásticas, compositores, músicos com incríveis carreiras solo, as mais variadas vertentes do rock surgiram nesta década, responsável por expandir as experiências sonoras desse gênero musical. As possibilidades de criação na esfera do rock pareciam infinitas. Não seria exagero afirmar que todo esse universo direta ou indiretamente gravitou em torno da música de Bob Dylan. Justamente por Dylan ter seguido seus instintos e realizado as transformações que sentia necessárias para atender cada nova demanda pessoal por novas formas de se expressar através dos versos e músicas. Jimi Hendrix declarou em diversas entrevistas ter sido influenciado pela música de Dylan. Em seu histórico e marcante show no Monterey Pop Festival de 1967 tocou sua versão para Like a Rolling Stone, música marcante para a eletrificação da música de Dylan. Sem falar na célebre versão de All Along The Watchtower registrada em 1968 no álbum Eletric Ladyland. The Beatles em sua primeira visita aos EUA só queriam conhecer uma pessoa, Bob Dylan. Este apresentou o quarteto britânico à maconha. Depois do encontro com Dylan, The Beatles abandonaram o bom mocismo, reformularam seu som e iniciaram a fase madura da banda, responsável por legar-lhes o lugar de desataque que ocupam na história da música do século XX. As mudanças na música de Dylan durante os anos 60 foram acompanhadas por mudanças também no conteúdo e forma das letras que escrevia. Podemos identificar três fases distintas nessa primeira década de sua carreira: A fase country/folk/ballad, Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 9 caracterizada muito mais pelos versos escritos por Dylan do que pelas músicas. Os três primeiros álbuns, os quais analisaremos à parte mais adiante, são compostos por canções em que Dylan praticamente recita seus versos. O violão cumpre função secundária, apenas criando uma atmosfera para o desenvolvimento da métrica declamada pelo cantor. Depois temos a fase mais roqueira que marca a guinada mais importante da carreira de Dylan, quando resolve aderir à eletrificação da sua música. Essa fase apresenta letras mais metafóricas, buscando imagens mais soltas, despreocupadas em cumprir uma função concreta. Por fim a fase madura, quando estabelece uma sonoridade mais sofisticada, se é que podemos descrever assim. O refinamento musical é acompanhado pelo refinamento das letras, levando Dylan a encontrar a justa medida entre sua música e sua poesia. Podemos traçar essas fases a partir dos álbuns lançados durante aquela década. Bob Dylan, lançado em 1962, marca o início da carreira de Dylan. Jovem, aos 21 anos, grava seu primeiro álbum sob influência de seu grande herói de juventude, Woody Guthtrie. Na adolescência entrou em contato com a literatura que influenciou os beatnicks. Entre eles Jack London, o escritor que vivia na estrada, mostrando que era possível ser livre tendo pouco. Dylan colocou em prática o que leu nos contos e romances de London. Foi ao encontro de Woody Guthtrie, viu sua ―Arma de Matar Fascistas‖ (é o que estava escrito no corpo do violão de Woody). E quando seu herói estava à beira da morte em Nova York, foi ao seu encontro. Despediu-se de Woody e deu início à sua carreira dando prosseguimento ao legado de seu herói. O primeiro álbum de Dylan trás canções de forte conotação política e demarcou sua primeira identidade musical, a qual se desdobraria nos álbuns que o sucederiam. No ano seguinte, 1963, vem The Freewheelin' Bob Dylan. No curto espaço de tempo entre um álbum e outro o teor das composições sofre profundas transformações. O conteúdo e forma das letras mostram um Dylan um pouco mais cuidadoso e seguro sobre o que está fazendo. Consegue se afastar do estilo de Guthtrie e firmar o seu próprio. Blow In The Wind abre o álbum, torna-se a canção que impulsiona e marca o território de Dylan entre os ambientes onde a música folk de protesto era cultuada. Nesse ínterim, a fama de Dylan crescia e não apenas no que diz respeito à sua música, mas às suas letras. O rótulo de poeta já lhe era imputado pelo público que havia Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 10 conquistado entre estudantes universitários e intelectuais. Contudo Dylan rejeitava o ―título‖ conforme nos relata Robert Shelton no Prelúdio de No Direction Home 4 : Apesar disso, era comum que se sentisse desconfortável ao ser rotulado de ―poeta‖. Ele certa vez explodiu comigo: ―Essa é uma palavra grande pra caramba para alguém chamar a si mesmo. ‗Poeta!‘ Acho que poeta é qualquer pessoa que não se chamaria de poeta. Quando as pessoas passaram a me ver dessa forma, isso não me deixou nem um pouco mais feliz.‖ 5 Embora não tenha reconhecido o título de poeta, Dylan não podia controlar esse olhar que estava sendo lançada sobre sua obra. Desde seu primeiro álbum essa marca já o seguia, jamais deixando de ser associada a ele. Seu reconhecimento nos meios literários só cresceu ao longo dos anos, e essa primeira fase de sua carreira foi a base sólida da qual esse reconhecimento foi construído. Em 1964 são lançados The Times They Are A-Changin' e Another Side Of Bob Dylan, excelentes álbuns que mantém o impacto de Freewheelin' e estabelecem de vez Bob Dylan como representante maior do universo cult intelectual e universitário, nicho cuja trilha sonora consistia na canção de protesto. Esse momento é crucial para os rumos que sua música tomaria a partir dali. Em pouco mais 2 anos, Dylan, com 23, 24 anos já estava na crista da onda, era representante maior de jovens da classe média americana descontentes com os rumos que a sociedade tomava naquele momento. Dylan, mesmo sem querer, havia se tornado uma espécie de líder, quase religioso, a voz de uma geração. Estava no auge mal tinha iniciado sua vida de músico e poeta. Tudo que poderia ser feito dentro daqueles limites estava feito. Veio o tédio, a falta de paciência com as loucuras que a fama provocava naspessoas que o rodeavam. Esgotadas as possibilidades de criar algo a partir da folk music, Dylan levantou acampamento e foi buscar novas fontes de inspiração. 1965 marca a primeira grande mudança na carreira de Dylan. Bringing It All Back Home trás as primeiras músicas com uso de banda de apoio, formato tão desprezado pelo nicho político/cultural que desde as primeiras apresentações de Bob Dylan nos cafés do Greenwich Village o cultuavam como representante maior da anti- indústria cultural. Os instrumentos elétricos, principalmente a guitarra, representavam 4 No Direction Home é considerada a melhor obra biográfica escrita sobre Bob Dylan. Isso porque Robert Shelton esteve próximo a Dylan desde o início da carreira do compositor, rendendo amizade entre ambos. Amizade que lhe permitiu conhecer a intimidade de Dylan, colocando em situação privilegiada em relação a outros estudiosos. Além disso, Shelton teve acesso a fontes que nenhum outro biógrafo teve como os pais de Dylan, por exemplo. 5 SHELTON, Robert, No Direction Home: A Vida e a Música de Bob Dylan, pág. 12-13. Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 11 para essas pessoas a submissão da música ao mercado e sua transformação em produto de consumo, perdendo completamente sua força revolucionária. Dylan não tinha no ativismo político sua prioridade. Para ele importava seus interesses artísticos e ele claramente via no rock possibilidades de novas realizações artísticas. Mudou radicalmente seu modo de vestir e sua postura diante do público, adotou um visual rocker, que associado à nova sonoridade ajudou a criar o contexto propício às suas novas pretensões artísticas. Bringing It All Back Home foi a transição, a interseção entre dois mundos: o acústico e o eletrificado. Há nestes álbuns baladas com levadas e estruturas muito similares ao que fizera em seus quatro primeiros álbuns, como She Belong To Me, Love Minus Zero, No Limit e faixas mais roqueiras como Subterranean Homesick Blues, Outlaw Blues, On The Road Again, sem falar em uma faixa folk Mr Tambourine Man, que agradaria os puristas caso não tivesse uma guitarra ao fundo ornamentando a canção com efeitos slide e licks. Cabe ressaltar a influência que Dylan sofreu do poeta Allen Ginsberg nesse período. Este um dos poucos admiradores e amigos a apoiarem a mudança estética na sonoridade de Dylan. Podemos nos arriscar a dizer que a influência de Dylan foi determinante para as mudanças no seu modo de escrever as letras e compor suas músicas. Isso podemos perceber no uso de versos mais livre e metáfora mais abstratas. Inacreditável, mas ainda em 1965, Dylan lança outro álbum igualmente impactante, duas obras primas num intervalo de 5 meses entre o lançamento de um e outro álbum. Bring It All Back Home lançado à 22 de maio e Highway 61 Revisited à 30 de agosto. Neste álbum está definida por completo a nova sonoridade de Dylan. Da primeira à última música a pegada roqueira se faz presente, revestida por arranjos de fundo bem elaborados, com forte teor jazzístico. Destaque para Like A Rolling Stone, faixa de abertura do álbum, que se tornou um épico da música do século XX. Aliás, essa música estabeleceu novos parâmetros para a indústria musical, foi uma das músicas mais pedidas e tocadas nas rádios quando foi lançada, algo difícil de se imaginar para uma faixa tão longa, com mais de 6 minutos de duração. Dylan quebrou inclusive com os padrões da indústria que até então exigia músicas de duração média entre 2,5 e 3 minutos. Parecia que Dylan havia alcançado seu auge em menos de 5 anos. Tentem imaginar o que se passava na cabeça de alguém que curtia rock nos anos 60 e acompanhara os desdobramentos de Bob Dylan até ali. Certamente fica difícil conceber alguém que esperaria um álbum à altura de Highway 61 Revisited nos próximos anos. Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 12 Ainda mais após um ano do lançamento de dois álbuns em que claramente um era a sequencia do outro e que podem inclusive ser compreendidos como uma mesma obra. Aí a genialidade de Dylan não para de surpreender, sua capacidade de se reinventar e a necessidade de sempre fazer valer seu ethos nômade faziam a diferença a seu favor. Menos de um ano após o lançamento de Highway 61 Revisited, Dylan lança, em maio de 66, o álbum duplo Blonde On Blonde. Assustador imaginar que ele fora capaz de em menos de dois anos produzir três obras primas, recheadas de excelentes canções, onde se encontram elementos de tudo que fora feito na música do século XX até então. Muitos estilos musicais, estruturas e sonoridades foram reunidas por Dylan e cuidadosamente manuseadas por ele. Em Blonde On Blonde Dylan vai na contramão do que havia feito nos dois álbuns de 65. Criou um álbum permeado por músicas mais densas, carregadas de expressividade, uma antítese da pegada entusiástica e garageira à la Dylan, porque não, em Highway 61 Revisited. Dylan concentra as composições de seu primeiro álbum duplo no que há de mais intenso no blues, no country e folk. As mutações continuaram e tudo indicava que o talento de Dylan não conhecia limites. Não havia formas que não pudessem ser destruídas para num outro momento servirem de matéria prima para novas estruturas. Os álbuns seguintes, John Wesley Harding (1967) e Nashville Skyline (1969), são o retorno de Dylan às suas raízes folk, porém amplamente revestidas pelas descobertas realizadas através das experiências que teve ao se aventurar pela música eletrificada. John Wesley Harding trás baladas calmas, reflexivas, amparadas por uma atmosfera musical intensa, rica em melodias, harmonizações e efeitos instrumentais diversos. Dylan encontra o meio termo entre a música de protesto acústica e o rock´n roll permeado de todo aparato elétrico. Mais uma vez Dylan avança sem recorrer à comodidade de repetir aquilo que já deu certo. Isso tudo em menos de uma década. Nashville Skyline encerra as três fases que marcam as transformações empreendidas por Dylan no primeiro momento de sua carreira. Pode-se dizer tratar de um álbum country num sentido mais completo. Músicas cadenciadas, com melodias mais densas, explorando tonalidades graves, para encorpar a voz de Dylan, resultando num efeito dramático e intimista. A década de 60 termina, Dylan mantêm-se na interseção, sempre num movimento de transformação. Jamais parou de se definir, passou pelas décadas seguintes produzindo bons e excelentes álbuns. Claro, a frequência de composição e Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 13 lançamentos de novos álbuns diminuiu. Importa, contudo, que quando novos álbuns foram compostos eles tinham por trás uma intenção artística, o desejo de Dylan em mostrar algo novo. Diferente de outros artistas e bandas que mantiveram suas carreiras moribundas ao longo das décadas, apenas para continuar ganhando a vida como uma banda. Exemplo maior são os Rolling Stones que estão na estrada por mais de 50 anos e há mais de 20 sem lançar algo com o mínimo de qualidade. São praticamente uma banda baile sempre tocando o mesmo batido e desgastado repertório com os hits que consagram a banda, todos compostos nos anos 60 e 70. Dylan ainda está na ativa pela música, seus álbuns trazem sempre mudanças, por mínimas que sejam. Ele ainda tem o que nos dizer. Nada de tentar parecer o roqueiro rebelde das duas primeiras décadas de sua carreira. Há tempos esse Dylan não existe mais, o que não é motivo de lamentações, pois o Dylan velhinho tem novidades a nos mostrar, revelando qual o seu ponto de vista desta posição na escala da vida. Basta ouvir os seus dois últimos álbuns: Shadows In The Night (2015) e Fallen Angels (2016). Neles encontramos um Dylan suave, contemplativo, assumindo uma posturade crooner, revelando um outro Dylan, até então desconhecido por nós. Dylan é muitos outros ainda, que não mostramos aqui. O cínico, que respondia sempre de forma debochada as perguntas banais feitas por jornalistas preocupados apenas com o que viam na superfície de sua obra. Incapazes da acuidade visual necessária para enxergar a genialidade escondida nos detalhes. O cristão convertido pela aparição de Cristo diante de si. Durante toda sua trajetória apenas algo se manteve constante: sua necessidade de se expressar através da música e da poesia. REFERÊNCIAS: PIGNATARI, Décio, Comunicação Poética, Cotia - SP, Atelie Editorial, 2006. RIMBAUD, Arthur, Correspondência de Arthur Rimbaud (Coleção Rebeldes e Malditos 04), Porto Alegre – RS, L&PM, 1983. SHELTON, Robert, No Direction Home: A Vida e a Música de Bob Dylan, São Paulo – SP, Editora Lafonte, 2011. Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 14 ENTRE FÊMEAS HUMANAS E QUIMERAS: O DEMONÍACO E O CORPO Paulo Manaf (ZooMM) Andreia A.Marin (UFTM) De um ponto (aleatório) de partida... (introdução) para além da borda pretensamente humana, para além dela, mas de forma alguma sobre uma única borda oposta, no lugar do ―Animal‖ ou da ―Vida-Animal‖, há, de antemão, uma multiplicidade heterogênea de viventes... (DERRIDA, 2011,p.60). O texto é tecido com fragmentos de diálogos, em cartas imaginárias, tratando de seres imaginários e perfeitamente existentes, com a devida licença poética que dá vida a qualquer ser no momento de sua invenção. Da concepção ao nascimento desses seres, já parece haver uma sutil intencionalidade, ainda que a arte jamais possa pautar-se em intenções carregadas de sentidos pré-definidos. Tal intencionalidade é produtiva, quer tornar o que existe em dimensões não facilmente perceptíveis, no mundo diminuído por nossas pretensões racionalizadas, visíveis e, por que não, palpáveis. Não é incomum que esses seres causem repulsa ou atração, ou ambos e a um só tempo. Dão indícios de algo que tendemos a evitar: a suspeita de que são partes nossas materializadas em imagens estranhas. Em outros termos, eles parecem carregar os Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 15 estranhamentos que pressentimos em nós e dos quais um movimento de projeção à dimensão que denominamos imaginária parece nos libertar. Essa não é uma tentativa incomum: muito já se falou sobre os artifícios humanos para apartar de si o animal, depurar suas forças instintivas que impedem a formação de uma integral humanidade. Recuperemos o discurso sobre o corpo dos ressurretos, tão bem discutido por Agambem (2013, p.35-38): nesse corpo, já liberto das restrições de uma humanidade encarnada, tudo o que simboliza sua animalidade foi extirpado: produção, reprodução, alimentação, defecação, em síntese, o seu devir orgânico. Doravante, pode viver a essência humana para a qual sempre estivera destinado esse ser para além dos outros seres... É fácil desdobrar: o devir orgânico prende e demoniza; a santificação se livre dos limites de sua corporeidade, de sua finitude. O homem ―pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominá-lo e de destruir sua própria animalidade‖ (AGAMBEN, 2013, p.26). A pulsão própria do devir orgânico, materializada a todo o momento e de infinitas formas – produção, excreção, nudez, contaminação, hibridização – está estampada em esculturas de arquitetos medievais e das criações contemporâneas de Piccinini. As fêmeas aí hibridizadas são também, recorrentemente, imagens embebidas na dimensão do sagrado e, muitas vezes, demonizadas. O duplo destino: na linguagem antropocêntrica-androcêntrica 6 , o animal e a mulher são contidos em seus devires orgânicos, ao mesmo tempo em que mergulhados no sagrado. Seus corpos, substratos do funcionamento da vida, ganham asas de anjos, traços grotescos e demoníacos. É com essas imagens que queremos ―falar‖, provocando um movimento filíaco com a bios, e confusões entre humanidade e não humanidade. Para isso, precisaremos contornar a reprovação do não-humano, do visceral, do descontrole, representados nas fêmeas demonizadas em gárgulas, e a repulsa diante do estranho, do misto, do corpo producente de Piccinini. Os seres de Piccinini não são humanos, tampouco inumanos. Eles habitam um mundo que poderia ser o nosso mesmo, como uma das muitas possibilidades, um lugar onde as fronteiras são delicadamente destroçadas pela potência da obra de arte.Síntese do trajeto: a intenção é colocar em evidência o que falha no projeto existencial humano; o encontro entre gárgulas e híbridos leva à positivação de 6 Utilizamos este tempo fazendo referência ao masculino humano (andro) recorrentemente colocado no centro do discurso sobre a fêmea humana e das representações de mulher. Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 16 uma zona de compartilhamento que é comprovada na apelação ao imaginário, mas negada pelo discurso moralizante e androcêntrico; a meta é a reconciliação, como se as imagens de Piccinini legitimassem as gárgulas, os grotescos, fazendo o humano se transpor para a fronteira, a zona de compartilhamento, conciliado com sua animalidade. Encontro com gárgulas... Era uma experiência de melancolia. Sentia-me desencarnada vagando pelas ruelas de uma cidade desconhecida. Grupos de turistas invadiam espaços curiosos, amplas praças onde desembocavam ruas estreitas e interiores sombrios de igrejas. Eu, do fundo do meu nada não queria sair para explorações históricas, humana ou arquitetônica. Queria somente perder-me. Perdi-me, de fato... Olhando para o alto para tentar localizar algum marco referencial, ou talvez o destino do bonde que atravessava caoticamente as ruas em direção do Mosteiro de São Jorge, encontrei as figuras intrigantes. Eram muitas e espalhadas por todos os lados onde se pudesse avistar uma torre, um telhado, despencando das alturas para um voo que começava a me alucinar. Meus olhos, nos primeiros instantes, as tinham visto imóveis, irresolutas, mas, em questão de minutos, já se moviam, sobrevoando, confusas, os jardins internos e becos por onde cada vez mais me embrenhava na experiência de deriva. Devaneei absorta nas imagens errantes, no balé de formas bizarras e indeterminadas. Eram asas imensas que, no movimento de abertura, deixavam à mostra corpos fortes, mas flexíveis, aparentemente capazes de uma grande destruição caso se pusessem em ataque. Mas continuavam, com suas formas diversas, apenas assemelhadas pelas asas e pela força, em um movimento per si, sem qualquer intenção insinuada, e com uma destreza surpreendente que evitava os choques. Depois de algum tempo, o devaneio cedeu ao comportamento teórico e comecei uma observação mais acurada tentando identificar, onde só haviam quimeras, panmorfismos, um animal não humano ou um humano ou um demônio ou um deus ou... Uma mulher! E isso me devolveu um estado melancólico agravado por uma curiosidade senil e a preguiça de ser enredada em academicismos, que eu queria evitar. Tarde demais. O balé foi logo dando espaço a mil questões e, por que não admitir, a um certo temor infundado que reverberava da tradição judaico-cristã em que fora mergulhada minha existência, me forçando a evitar as feições demoníacas dos seres voadores de meu devaneio, agora novamente imobilizados nos cantos dos telhados, ameaçadores. Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 17 Saí dos jardins internos, dos becos enigmáticos, das ruas confusas em busca de uma biblioteca, de algum acesso ao mundo seguro dos conceitos, onde pudesse entender em que momento,e por quais motivações, o humano aventurara-se nas formas aberrantes, sempre impressas com traços animais, nos cantos do mundo que desenhara para abrigar seus projetos existenciais. Aceitei, de bom grado, os primeiros contatos com um acervo literário que ia anunciando, em minha busca teórica, as gárgulas femininas apresentadas por Catarina Barreira e as harpias. Curiosamente, um animal humano, distante um oceano de mim, era atravessado por inquietações muito próximas das minhas, além do compartilhamento de algum estado melancólico. Observava, intrigado, as fêmeas mutantes da artista Patricia Piccinini, com as quais passou a compor um texto que, quimericamente, vai penetrando nessa escrita. DearPatricia, Hoje de manhã aconteceu uma coisa muito estranha. Tudo começou quando eu estava breakingmyfastcom café, bolo e frutas - coisa que, imagino, você também coma - sob o lento sol de outono do Cerrado. Por sinal, Patricia, devo revelar a todos, o quanto antes, que, embora suspeite que caminhões betoneira estejam se reproduzindo, hibridizando em gárgulas globalizadas, geneticamente modificadas para vomitar concreto movediço sobre o Cerrado, sinto cada vez mais o calor do vento, o doce das flores, a cor guará do crepúsculo varando tudo o que é urbano e me arrebatando para si, talvez um paralelo com o que a savana australiana faça com você de vez em quando. Estava conversando baixinho com o Cerrado, ele sussurrando em meu ouvido histórias tão antigas quanto o mar e eu, admirado, murmurando coisas que virão e coisas que existem no coração dos homens. Ao morder uma maçã, veio à lembrança a imagem de uma mulher alta, esbelta, cabelos lisos grisalhos presos em um rabo-de-cavalo, falando com a plateia. Os olhos eram astutos, os gestos contidos, porém contundentes. Era alguém influente, só não me recordava quem exatamente. Lembrei então que a imagem se parecia muito com Donna Haraway. Uma nova mordida na maçã e, então, percebi que poderia não ser Haraway, mas sim Jane Goodall. Satisfeito, estava me preparando para continuar com minha maçã quando, subitamente, tive um pensamento incomum: na verdade, a imagem que vi não era Donna HarawayouJane Goodall, mas sim HarawayeGoodall. Duas mulheres diferentes eram uma só matéria ambivalente. É Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 18 assim, Patrícia, como as coisas dos sonhos, as coisas imaginadas às vezes possuem propriedades totipotentes e podem se transfigurar em coisas derivadas. Suponho que nem mesmo você, minha querida artista, tenha a medida exata de quanta ambiguidade somos capazes de negligenciar. Coloquei mais um pouco de café na xícara, afaguei a gata em meu colo e imaginai o impacto que algumas de suas obras causam nas pessoas. Nem sempre é fácil reparar no quanto nossa sociedade se esforça para eliminar totalmente as ambiguidades do mundo. Certezas científicas, dogmas religiosos, maniqueísmos sociais, precisões técnicas, assertividades corporativas, estatísticas exatas, notícias incontestáveis, medicamentos seguros, emoções catalogadas, enfim, parece haver toda uma gama de estratégias para criarmos asserções artificiais, de forma cada vez mais incisiva e a cada dia mais dependente da tecnologia. Imprecisões e ambivalências podem causar desconforto e, portanto, devem ser desbastadas ao máximo, de jovens adestrados para entrevistas de trabalho a doutorandos cerceados a paperspragmáticos, enfim, imprecisão e acaso, embora substrato do mundo, não são bem-vindos na execução do protocolo de previsão e controle. Talvez porque ambiguidades demandam tempo: quando o cérebro é confrontado com informações ambíguas, reage recrutando um número maior de áreas neurais; ele tenta engajar setores cognitivos superiores mais sofisticados, na ânsia de capturas padrões e buscar significados que realizem nossa necessidade de entendimento. Como resultado, o tempo de processamento da informação aumenta sensivelmente. Só isto já é o suficiente para que empresas sejam obrigadas a gastar bilhões com campanhas publicitárias cada vez mais rápidas e certeiras. Se tempo é dinheiro, então a ambiguidade é o que me mantém pobre e, portanto, incompetente para o mundo da tecnocultura. Purificados do incômodo da ambiguidade - e, por conseguinte, dos resultados inesperados das nossas ações - podemos projetar, enfim, uma tecnologia em termos valorativos absolutos: boa, acessível a todos e em constante movimento linear ascendente rumo à plenitude; a tecnologia má e apocalíptica é então expurgada para a ficção e circunscrita nos filmes de ação. Retorno à ambiguidade talvez não seja um termo apropriado para uma reflexão a partir da sua obra, Patricia, mas não posso deixar de notar que ele expressa, de certa forma, a ideia de resistência contra ilusões visuais e sonoras meticulosamente arquitetadas - e muito bem pagas - para um mundo entulhado de certezas sintéticas. Nunca saímos daqui e continuamos sendo o que somos. Em suas obras de arte, você nos apresenta narrativas carregadas de ambiguidades pungentes, frente às quais não somos Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 19 mais capazes de negligenciar nossas próprias narrativas e ambiguidades da experiência com o outro - mesmo quando este outro é um artefato tecnológico. Em suas mãos, o hiper-realismo torna-se um meio eficaz para criar um mundo atual e absolutamente factível de desdobramentos que irradiam a partir de um núcleo efervescente de potencialidades, em especial as potencialidades de conexão entre os seres. Como disse Giovanni Aloi (2012, p.83), ―Piccinini‘s works are open texts carefully balanced to encourage a sympathetic bond with her hybric creatures – afterall, they are not wholly monstruous‖.A ambiguidade inflama nossa percepção na medida em que suas obras se abrem para leituras pessoais e comunitárias concomitantes, onde a possibilidade de conexões emocionais inesperadas entre espécies recebem atenção pungente. A propósito, só para que saiba, adorei aquilo que você disse: "the world that I live in butcannottotallyunderstandorcontrol" (PICCININI, 2007, s/p). Passamos então a suspeitar da integridade das fronteiras que havíamos traçado entre um ser humano, um caminhão e um porco. Não temos mais certeza se a tecnologia é boa ou má, ou se é boa e má ao mesmo tempo, ou talvez não seja nem boa e nem má. Em meio a esforços para solidificar convicções, as esculturas de silicone carnal e latarias reluzentes nos impactam com a potência da conexão, com suas ambiguidades e com as responsabilidades decorrentes do ato de criar. Ao terminar meu café, tive outra visão, desta vez muito mais extraordinária do que a anterior. Entendi então que não se tratava da fêmea que você criou em The Young Family; contudo, tampouco da Vênus de Willendorf 7 , mas sim desta e daquela, as duas uma só mulher totipotente, transmutando-se ao longo dos séculos. Dear Patrícia, precisamos falar sobre isto. Me fale mais de estranhos... A carta compartilhada, meu amigo, me despertou muitas inquietações, mas também algum conforto. Bom saber que as formas se hibridizam, percebamos ou não, e que outras são criadas espontaneamente pelas mãos de quem transvê o mundo para além dos conceitos. Queria falar demoradamente com você sobre estranhos. Eles capturam minha atenção com crescente força. De pronto, te envio, além dos meus relatos bizarros, o material reunido na minha busca conceitual, que surpreendentemente, não destoava da 7 Representação feminina em uma estatueta de 11,1com da era do paleolítico, sem rosto definido. Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 20 matéria da minha experiência sensível-devaneante: transmutação e composição de formas mistas, onde o limiar entre animais, incluindoentre animais humanos e não humanos, ruía. Ao mesmo tempo, algo que emanava de minhas inquietações atuais se misturava às novas experiências: meu incômodo sobre os conceitos excludentes de mulher se alimentava das novas imagens de gárgulas parturientes, fêmeas encerradas em seu devir orgânico e imobilizadas nas torres de instituições responsáveis pela contenção moral da vida e de seus pulsos. Cara Catarina, Escrevo para contar-lhe como você me deslocou e me fez viajar por terras portuguesas em busca das gárgulas parturientes de seu texto. Rizo (2014, p.56) também me fez notar o destaque para o misto de seres humanos e animais nessas imagens que misturam bodes diabólicos e mulheres sorridentes, de uma sensualidade rude: ―o repertório formal da maioria das gárgulas se constituía de bestas bizarras, desconhecidas e desprovidas de nome e identificação‖. Notemos que se trata de estranhos sem nomes e recordemos a discussão feita por Derrida (2011, p.26) que vê na identificação e nomeação do outro uma forma de contê- lo, enquanto o seu olhar insiste em mostrar uma existência rebelde a todo conceito. O olhar do que chamamos animal é anterior a conceitos e nomes. As gárgulas não identificadas, não descritas, sem nome, permanecem como zonas de escape. Não é impressionante ver as figuras grotescas, detalhadamente esculpidas e colocadas nos pontos mais altos dos edifícios, onde não só se tornam permanentemente visíveis, como parecem nos inquirir sobre o que são e quem somos diante delas? Há, ao que parece, um desejo humano de ir além de seus limites, projetando a si mesmo em seres estranhos, de um lado denunciando seus demônios e suas potências animais, de outro anunciando um poder de depurar o humano que é, apartando-os de si e contendo- os no território imaginário, onde podem ser justificados. Não deixa de ser paradoxal: para compor tais seres foi preciso que o homem encontrasse em si a animalidade e imediatamente a repelisse para outros domínios. Chamou-me especial atenção a Igreja da Nossa Srª do Pópulo (BARREIRA, 2010, p. 185), em Caldas da Rainha: a fêmea de aspectos negroides que você associou à imagem da tela O Inferno (Autor desconhecido, 1510-20). Nua, a fêmea pousa a mão sobre o púbis, lá onde está retida em algo como um devir orgânico, todo corpo explícito, como em qualquer vivente animal. Ocorre-me já aí a insinuação de um duplo Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 21 preconceito: é mulher, é animal. Não me furto a denunciar um preconceito mais velado, do qual retiro evidências da própria história: é negra, é escrava, submetida pela força como qualquer outro vivente animal. Ambos, mulher e animal, encerrados em algo que não se pode contornar: o corpo e sua pulsão erótica, perdido nas forças de sua animalidade.Em Leiria, na Batalha, busquei as formas nuas que você destacou (BARREIRA, 2010, p.185) e a interessante mistura de formas animais e de fêmeas humanas. Nas Capelas Imperfeitas (BARREIRA, 2011, p.113), a fêmea humana encarna o sagrado e o profano, colocando as mãos em reverência devocional e, ao mesmo tempo, expondo seus órgãos sexuais, como você mesma observou. Você comentou bem o corpo das luxúrias que precisaria ser contido na mulher, objetivo pelo qual se mostram as gárgulas nuas como exemplo de perdição, imagens que coagem moralmente as fêmeas humanas. Ocorre-te que a nudez não quer mais que devolver o suposto humano dessas fêmeas a uma animalidade condenável? Não é só o erotismo, a luxúria, a devassidão da mulher, mas também o apagamento do refinamento de um suposto humano que é mais que animal, mais que corpo, humano em que as forças orgânicas, especialmente as sexuais, fazem perder a suposta essência moral e racional que o homem quis conservar, a todo custo, no ser que autodenomina humano. O termo animalização é usado toda vez que se vai mencionar a fusão visceral com o mundo, com todo caráter negativo com que se associou, secularmente, o corpo e suas pulsões a desgoverno do humano. Esses movimentos, na idade média, são interpretados como inclinações a forças demoníacas, em uma aproximação definitiva entre animalização e demonização do corpo. Já leu Beauvoir (1970)? A ideia do destino existencial do homem, em detrimento do destino orgânico da mulher, é dela e, se parece não fazer muito mais sentido em nossos dias, se prova na história de constituição e usos dos conceitos de mulher. O homem esteve cuidando de sua existência, tentando afirmar nela todo seu potencial humano, e tomando a mulher como coadjuvante de sua própria história: precisa dela para garantir a vida encarnada em sua existência. Não se trata de perceber a natural condição de compartilhamento, mas de tomar a fêmea com as mesmas intenções com que se toma o animal, ainda que de modo mais sutil, para submetê-los a um projeto autorreferente. Ambos preenchem uma lacuna fundamental no projeto antropo(andro)cêntrico: nada se poderá garantir sem a matriz orgânica da mulher e do animal. No entanto, do mesmo modo que o tolo animal humano pensa que todo o universo converge para si (provocação nietzscheana), tangenciando-o todas as formas Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 22 viventes que, ao alcance de suas mãos, podem estar submetidos, o homem pensa que todas as forças convergem para um ponto falocêntrico. Animais e mulheres geram vida, homens a tomam e organizam em projeções existenciais... Mulheres perdem-se, como os animais, em seus corpos. Homens superam a pura animalidade e fazem nascer em perfeição e esplendor sua humanidade. Animais são instintos; homens são razão. Mulheres se perdem em emoções, pervertem; homens modulam seus afetos, moralizam. Não posso deixar de lembrar o comentário de Flória Emília na sua carta ao amante Aurélio (Santo Agostinho): ―Tenho medo, Aurélio. Tenho medo do que os homens da Igreja possam fazer a mulheres como eu. Não pelo fato de sermos mulheres, mas porque Deus criou-nos assim, e porque assim seduzimos os homens‖ (GAARDER, 2006, p.88). Mas, voltemos à sua imagem: as mãos da gárgula nua estão em gesto devocional. Aí encontramos o outro destino que o homem julga poder permitir à mulher: quando esgota os sentidos de sua existência, chama a mulher para cavar no sagrado algo mais que o permita contornar sua condição efêmera. As mulheres historicamente protagonizam os rituais de nascimento e de morte. Quando gestam, já não são apenas um corpo gerando vida, mas uma matéria tomada como uma essência sagrada que fará convergir para a existência humana uma vida já cheia de sentidos. E, em outra peculiar condição, se algum sacrifício é necessário para trazer para si a força de presenças ocultas, os favores dos poderes divinos, é vida que precisam ofertar, retirada do sangue pulsante dos animais e das virgens. Cidre (2014, p. 22) nos lembra que muitas mulheres foram igualadas a animais nos rituais de sacrifício, havendo uma inequívoca simbologia que aproxima o sangue da mulher e do animal. Note, Catarina: prevalece o devir orgânico, do qual se retirará o animal e a mulher não para elevá-los a uma existência humana, mas para conduzi-los, sem desvios, ao sagrado, extraindo sua forças e transmutando-as em linguagens acolhidas pelas divindades. Não te parece curioso que justamente o sangue se volatize em poder de acesso à dimensão sagrada? A essa altura, minha cara, não seria proveitoso pensarmos que, para além da função pedagógica e moralizante das gárgulas, dadas como exemplos de desumanização, há um complexo substrato de representações que tornam a recorrente presença do corpo nu, testemunho da condição orgânica e da permanência da animalidade, nos espaços sagrados como catedrais e mosteiros, algo perfeitamente compreensível? São os domínios edificados e adornados para garantir uma existência para além, um monumento emprova de sua super-humanidade. Ali, aprisionou o que escapa a sua compreensão, às suas determinações morais. Não é sempre um Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 23 contraexemplo? Em suas análises, você enfatiza que, para além da função estrutural dessas imagens, quer seja, o de escoar água dos telhados das catedrais, há sempre uma intenção de colocar em foco a perdição, a imoralidade, para suscitar o senso de correção e conversão. O modelo exemplar negativo parece ter tido mais força no imaginário medievo que o da mulher casta, sempre dedicada à família e tendo, sob controle, as inclinações sexuais. As imagens reforçam justamente o oposto, aquilo que escapa, que subtrai do humano sua suposta humanidade, que o aproxima do animal. A essa altura já não me parecem mais estranhas as imagens que você descreve, e que infelizmente ainda não pude observar, tiradas de Santa Maria de Alcobaça e do Mosteiro de Sta. Maria de Belém: as gárgulas híbridas (BARREIRA, 2010, p.185). Nelas, misturam-se mulheres e animais: uma delas, segundo sua descrição, um corpo de mulher com cabeça de cão, manipulando os mamilos; outra com caracteres animais e longos cabelos, pernas cruzadas, uma das mãos sobre os genitais. A aproximação entre os destinos da mulher e animal são inquestionáveis e você coerentemente cita São Basílio para explicitá-la ainda mais: essas gárgulas representariam ―um tipo de vida dominado por pecados como a luxúria e a gula‖, o que ―aproxima o homem dos animais‖(BARREIRA, s/d, p.12). Li um texto seu por esses dias em que, de outra perspectiva, você apresenta justamente os extremos dessa dualidade no destino da fêmea humana: ora a imagem da mulher tem significado religioso, como as imagens relacionadas à Virgem Maria, ora a mulher plenamente inserida no projeto existencial masculino, pertencente a um grupo social destacado ou, simplesmente, contida em um modelo familiar após converte-seda experiência do pecado. No outro extremo, você menciona a mulher descendente de Eva, tentadora e pecadora, associados a figuras mitológicas como sereias e harpias. Veja, novamente: a mulher que foge da contenção ganha caracteres animais, transmutando-se em imagens híbridas. Estão, agora, no campo da perdição, onde impera a animalidade, mais próximas de um corpo demoníaco. Sei que o que era para ser uma breve comunicação já muito se alongou, mas não posso deixar de relatar o último ponto das minhas experiências exploratória, no seu rastro: as parturientes no Convento de Nossa Senhora da Conceição e em Santa Clara do Porto. As gárgulas parturientes deixam à mostra o incontornável do devir orgânico: a geração da vida. Nesses casos, o paradoxo entre geração e condenação, uma vez que se dá em condições moralmente inaceitáveis. Como você destacara, vi na primeira, a metáfora do ato de dar à luz escondida do mundo: parece, de fato, uma freira, com as Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 24 mãos em ato devocional e a cabeça de bebê entre as pernas.Da outra imagem, de Santa Clara, você descreve um aspecto de grande interesse: trata-se de uma parturiente híbrida, misto entre mulher e animal, com patas e garras. Não posso deixar de relembrar o Mosteiro da Batalha, onde se encontra a intrigante imagem de uma gárgula que não pode conter a produção, deixando à mostra o bebê que lhe sai pela boca. A questão por trás dessas imagens me parece ser a da contenção da geração da vida. Tal geração só aparece em uma versão positiva quando contida em um projeto existencial que converte o devir orgânico em intencionalidade androcêntrica organizada pela moral. Quando não contida nesses limites, a geração é mais um dos sinais da pura animalidade, não significada pela condição humana. Espero não ter corrompido as reflexões que você suscitou, cara Catarina. Agradeço ter me apresentado essas imagens irmãs dos meus devaneios. Estranho compartilhamento... Já não sinto tanto estranhamento diante dessas imagens destacadas por Catarina, que aqui te envio, caro amigo. Talvez você tenha dificuldade de aceitar minhas reflexões, se não despertar uma condição andrógina própria de todas(os) nós. Esqueça os conceitos e os destinos de homem e mulher em nossa cultura e olhe para essas questões como se fizesse uma arqueologia ou simplesmente uma análise histórica. Talvez assim consiga enxergar a força de submissão da mulher e do animal. Consegue ver essas condições reveladas pelas gárgulas? A carne das fêmeas humanas está tomada por forças demoníacas, como recorrentemente a dos animais; mulher e animal tem acesso às dimensões mística e carnal, ou se sacralizando, ou se demonizando, respectivamente; as fêmeas humanas são parturientes, não podendo fugir do devir orgânico, sendo que, pela gestação se divinizam, se incluídas em um projeto de existência, ou se demonizam, se movidas pelas puras potências animais. Diga-me, amigo, você que vê beleza na produção que transmuta o corpo das fêmeas em constantes potências geradoras, como no vídeo De dentro, de Patrícia Piccinini (2012a), onde o mel da vida não cessa de materializar-se pela boca de uma mulher: acha que a origem e permanência dessas representações comentadas com Catarina poderiam se situar em outro centro que não em um androcentrismo? Poderiam dar-se as fêmeas a própria limitação de suas potências? Poderiam enclausurar o seu próprio devir em um aquém de uma plena humanidade? Compartilhariam o mesmo desejo ingênuo e inglório de desprenderem-se, definitivamente, do animal? Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 25 Compreenderiam como pura consequência do poder natural masculino as incontáveis formas da sua escravização? Ora... Será preciso ―extrair-lhe‖, tal qual se faz com o animal não humano, a fina intuição, a linguagem e a razão, para tornar tais condições pertinentes. Que acha do fato destacado por Catarina de que, somente nos séculos XV e XVI, o universo das gárgulas deixa para segundo plano o bestiário e dá à figura humana um lugar de destaque (BARREIRA, 2010, p.178)? E, quando isso acontece, as imagens femininas espalham-se com tanta recorrência? Trata-se de um tempo em que o homem tenta assegurar, a todo custo, a centelha do fogo divino em sua suposta essência. Para isso, valoriza um humano muito mais próximo dos deuses que dos animais, muito mais sagrado do que profano. Natural que tudo que sugerisse sua animalidade fosse condenável a uma dimensão insana, imoral. Foi, de fato, uma época em que o homem evitaria ao máximo enfrentar seu próprio reflexo, com receio de ver-se despido de sua autoimagem, do nome e da identificação que deu a si mesmo. O problema é que a mulher e o animal jamais puderam se esconder pela estratégia de um recurso metafísico: seu devir orgânico colocava diante dos homens todas as potências que eles pretendiam evitar. Como são compreensíveis as feições demoníacas do corpo dos animais e das fêmeas humanas, ou de seus híbridos, estampadas nas imagens dispostas bem no alto dos espaços dedicados a elevar o sagrado no homem! Você sabia que existe, em alguns desses espaços, imagens de fêmeas humanas não necessariamente corrompidas pelas pulsões do corpo, mas julgadas perdidas simplesmente pelo fato de, escapando da restrição do oikos e da figura materna, reproduzirem existências não comprometidas com planos androcêntricos? Catarina se refere a elas como soldadeiras ou jogralesas, mulheres que cantavam, dançavam e tocavam, em uma vida nômade marcada por episódios indecorosos (BARREIRA, s/d, p.25). Bela figura de transgressão, mas colocada no alto de mosteiro com intenção moralizante, mostrando aquilo que se desejaria evitar na materialização da imagem da mulher casta, contida.Compartilho, então, com essas figuras transgressoras o desejo de um escape dos limitesandrocêntricos impostos à existência feminina. Acha que toda forma de produção orgânica está associada com uma não- humanidade? O que vem de dentro... Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 26 Minha cara amiga, vou preferir falar de compartilhamentos, desses que você intuiu na sua relação com animais e fêmeas gargulóides. É inevitável se situar em positividades quando se está contaminado pelas imagens de Piccinini, de onde o próprio compartilhamento se confunde com fusão, hibridização, e onde o que vem de dentro dos seres, em prova de sua existência orgânica, são ricas materializações de suas potências criadoras. Começo contando-lhe a experiência de contágio com os híbridos de Patrícia. Escolhi a manhã de uma segunda-feira para visitar a exposição da artista plástica Patricia Piccinini. Durante o trajeto a pé, do estacionamento no bairro da Liberdade até o CCBB, gastei pouca da minha atenção com as pequenas multidões ocupando cada espaço de calçada. Da mesma forma, quase não me atentei para a preocupação no rosto dos ambulantes, pouco reparei nas pastelarias lotadas com aromas de café e tentei não me render aos encantos formais da Catedral da Sé. Nem mesmo me ative aos detalhes pitorescos da arquitetura do antigo centro financeiro, que desde criança me impressionam. Economizava minha atenção para as obras de arte que em breve contemplaria... Não havia filas e, portanto, minha entrada foi imediata... Tão imediata a ponto de me deparar, espantado, com a Grande Mãe (Big Mother, 2005) (Fig.1) logo na entrada do saguão! Não esperava encontrar aquele ser de quase um metro e oitenta, nu, amamentando um bebê humano à porta do edifício, como se prestes a sair para a rua. Fig.1. Big Mother 2005. Fotografia de Paulo Manaf, 2015 Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 27 Precisei de um tempo especial para apreciar a escultura. A princípio nos impacta a profusão de caracteres tão associados a humanos – como a postura ereta, a pele glabra, os cabelos longos e a expressão facial – esplendidamente misturados a outros que consideramos alheios a nós – ou nem tanto assim, como sugere a obra. Mas o impacto maior nos é causado pelo olhar angustiado, totalmente alheio ao turbilhão de transeuntes desfilando na calçada a poucos passos dali. Como a própria autora descreve, a criatura é feita para amamentar humanos: ―I trytoaddressethicalquestions, butthroughemotionandempathy‖ (PICCININI, 2005, s/p). Logo percebi tratar-se de uma existência tão possível naquele lugar como qualquer humano de carne e osso ali presente. A escultura era, então, o vértice entre dois mundos possíveis, aquele das imagens que havia visto em meu trajeto e outro que ainda estava por vir, encorpado nas demais obras da exposição. Cogitei então que, a partir daquele ponto, estariam temporariamente suspensas as linhas divisórias entre o animado e o inanimado, entre o lá fora e o lá dentro, entre a ética e o cotidiano, entre o real e o hiper-real. Mais do que suspensas, estas linhas já não fariam sentido algum. Ao longo da exposição foi ganhando evidência a dificuldade do expectador em esboçar qualquer categorização. O hiper-realismo é um instrumento nas mãos de Patricia, uma artista que nos suga para dentro da obra de arte e com ela nos faz estabelecer conexões inesperadas, ao mesmo tempo em que posiciona a criatura imaginada, assim como tantas outras que também podemos imaginar, diretamente em nosso cotidiano mais trivial. A partir daquele momento, não seria mais possível cogitar a rua lá fora, seus pedestres, carros, edifícios, árvores, pombos e tudo mais como sendo a expressão única e correta da realidade: a arte tornou-se experiência de uma realidade que trinca sob o peso de sua própria inconsistência e que, formidavelmente, se parte em tantas outras possibilidades. A presença do feminino permeava toda a exposição. Desde o impacto da Grande Mãe, passamos por uma inusitada bota - ―Bootflower‖, 2015 (Fig.2) -, que se transforma em uma flor de carne, semelhante a genitais, que bota ovos e que, de forma cíclica, produz mais flores por todo o espaço para então, finalmente, adquirir um aspecto amorfo e indefinido, mas ainda assim repleto de potencialidades latentes.Esta irrefreável capacidade produtora do mundo orgânico é um dos temas recorrentes da autora (PICCININI, 2012b). Uma de suas obras mais importantes neste sentido é um vídeo de 12 minutos intitulado De Dentro (PICCININI, 2012a). Nele, vemos uma mulher liberando pela boca um líquido com cor e consistência parecidas com o mel, que vai se Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 28 solidificando no chão. Aos poucos vamos percebendo que todo o lugar onde ela está é formado pela tal substância, já solidificada. Percebemos também que não é o caso de vômito ou regurgitação: ela delicadamente verte o líquido, de forma aparentemente deliberada e natural. Também não se trata de um líquido repulsivo e, de forma alguma, o vídeo nos provoca asco. Ao contrário, o semblante plácido da mulher e a mansidão do ambiente acabam por suscitar simpatia. Fig.2. Bootflower, 2015. Fotografia de Paulo Manaf, 2015 Pela indicação do título da obra, julgamos que é a própria personagem que produz o líquido abundante, certamente de forma prodigiosa, que então derrama serenamente; as mãos dispostas sobre o colo sugerem um caráter transcendente, quase religioso à ação. Não há indícios de início e tampouco de fim nesta narrativa cíclica reforçada pela constante repetição do vídeo. Contudo, duas características chamam a atenção. Em primeiro lugar o tipo comum da personagem, caracterizada com simplicidade nas roupas, cabelo, maquiagem e atitudes – poderia perfeitamente ser uma das tantas mulheres que eu havia visto no trajeto até ali. Em segundo lugar, a riqueza de contrastes expostos na cena, conforme construída pela autora: The woman is unexpectedly serene, as this viscous liquid pours out of her. It seems a deliberate process, a carefully controlled emission rather than a violent regurgitation. However, it goes against the deep-seated intuition that nothing but breath should come out of our mouth, and indeed that nothing good ever comes back out of the body. Still, the world that this woman has Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 29 constructed out the matter within her is undeniably beautiful. (PICCININI, 2012a). Um mundo interior escuro, porém tranquilo; aparentemente fechado para o exterior, porém construído por algo que vem copiosamente de outro mundo, ou melhor, de dentro do mundo da personagem. Quantos mundos interiores poderiam se desdobrar a partir dali? De onde vem o líquido e como poderia ser produzido de forma sustentada, aparentemente sem fim? Estas mesclas complexas de contraposições, multiplicações e dimensões metafóricas, aliadas às sensações que suscitam, rendem uma estranha materialidade à obra, capaz de torná-la uma obra impressionante, no sentido mesmo de impingir à percepção a capacidade de notar – ou mais precisamente de ter ao menos uma pálida ideia – a imensurável produtividade do mundo orgânico. Produtividade, aqui, em termos simples de massa orgânica, em termos de biomassa, que surpreende tanto pela quantidade quanto pela qualidade. Folhas, cascas, membranas, pétalas, pelos, gases, líquidos, polens, venenos, sucos, envoltórios, ramos e tudo mais, uma produtividade gigantesca que não cessa enquanto houver vida. Nossa percepção, usualmente encarcerada entre limites das mais diversas naturezas – desde limites fisiológicos dos órgãos dos sentidos até aqueles culturalmente impostos – muitas vezes não apreende a dimensão de tal produtividade. Raramente nos damos conta disso porque que os eventos botânicos – os mais produtivos– ocorrem em escalas de tempo muito diferentes da humana em sua maioria; já o acesso ao reino animal e outros reinos é ainda mais difícil de ser realizado por seres humanos. Nosso acesso cotidiano a outras formas de vida, mediado pela cultura cientificista é, além de modesto demais, também repleto de vieses. O acesso extraordinário mediado pela arte propõe experiências mais abrangentes do que a razão poderia nomear. Trata-se de um ser atemporal, em forma humana, que nos faz refletir, em primeira mão, sobre a produtividade do mundo. Emconjunto com A Grande Mãe, abrangetambém o tema da nutrição: ―for me, the essence of life is to nurture and be nurtured, and that is something that cuts across species.‖(PICCININI, 2005, s/p). Na entrada da exposição, a ama amamenta, produzindo eternamente seu leite que concede a um humano a possibilidade da vida. De dentro da exposição, a mulher, já além da idade reprodutiva, concede seu fluído belo e translúcido. Aquela que amamenta tem um semblante terrivelmente ansioso, que imediatamente reconhecemos e através do qual estabelecemos uma inesperada conexão empática com a obra de arte. A mulher em seu mundo isolado aparentemente produz aquilo que definitivamente a encarcera. Uma vez Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 30 conectados com a personagem do vídeo, temos então a sensação de que, de alguma forma ou em algum grau, dependermos daquele líquido quase maternal. Há, sem dúvida, algumas aproximações entre as criaturas de Piccinini e as gárgulas excretoras e parturientes. Dão, ambas, testemunho de um devir orgânico e de uma relação inusitada do humano com seus estranhos. Tornam visíveis as potências produtivas do feminino e as zonas de compartilhamento possíveis entre animais humanos e não-humanos. No entanto, na obra De Dentro, Patricia Piccinini nos apresenta, de outro ponto de vista, uma espécie de anti-gárgula.Nas gárgulas medievais, o líquido é bem mais fluído e bem menos passível de solidificação. São águas pluviais impotáveis ou repletas de dejetos humanos. Não são as gárgulas que produzem essas águas; os líquidos as transpassam e jorram por bocas que se abrem, geralmente, em feições desfiguradas ou caricaturais. Quase um expurgo. Ao que parece, o corpo produtivo de Piccinini positiva o que vem de dentro... Nas obras de Patricia, não há uma moral ao fim da estória, mesmo porque as narrativas apresentadas ainda se encontram em pleno curso quando com elas nos deparamos. Os excretos dão prova do que somos também nós, animais... Os ressurretos atingiram seu ser pleno, suprassensível. Apartaram-se do animal que excreta seus dejetos... Nada mais têm a ver com as gárgulasrabos-ao-léu das Sé da Guarda, Sé de Braga, e Matriz de Caminha (BARREIRA, 2010, p.189), que tem seus ânus em destaque e excretam, dando prova de sua animalidade, não obstante serem visivelmente animais humanos. Também, supostamente, nada comungam mais com as gárgulas fêmeas evidenciando sua luxúria com as mãos sobre seus órgãos sexuais ou com o gárgula-homem fornicador da Lonja de la Sena, em Valencia. Os excretos sinalizam para o que somos nós, na plena condição de nossa animalidade. Tudo que parece sair das gárgulas, pelas suas bocas, seus ânus ou suas vaginas são negativados, quer seja produzido por seus corpos ou os transpassem. Não te parece possível positivar o que vem de dentro de gárgulas, se sobrepusermos sobre elas as imagens impactantes da potência produtiva do humano, retratada por Piccinini? E, me parece mesmo inevitável reconhecer nelas as mesmas hibridizações, ambiguidades. A distinção parece estar em uma intencionalidade distinta na criação de ambas as séries de imagens: se nas gárgulas, há sinais de uma fobia, uma intenção de contra exemplo do que deve ser o que se autodenomina humano, nos Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 31 híbridos de Piccinini, uma provocação de relações de suspensão da repulsa e de uma filia possível a partir do reconhecimento de um compartilhamento. Desconsiderado o olhar e a intencionalidade de quem a eles se dirigem, suspensas as impregnações demoníacas que lhe atribuímos, em suas existências próprias, esses seres panmórficos, gárgulas e híbridos, são depositários de nossas animalidades. Exigem-nos o deslocamento para além do limiar humano-animal, para além de qualquer traço hierárquico entre homem-mulher, para além do real e do imaginário. Quisera terem a dinamicidade dos animais em movimento vital, e nos olhariam de frente... E não poderíamos nos esquivar de seus olhares e, portanto, não poderíamos evitar a intuição de um ser junto, um compartilhamento, ou mesmo, uma possível transmutação, de outra perspectiva. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio.O aberto: o homem e o animal. Trad. Pedro Mendes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. ALOI, Giovanni. Art & Animals. London, New York: I.B.Tauris, 2012. BARREIRA, Catarina A. M. F. A presença feminina nas gárgulas medievais. Revista As Faces de Eva, Universidade Nova de Lisboa. S/d. Disponível em <https://www.academia.edu/3502892/A_presen%C3%A7a_feminina_nas_g%C3%A1rg ulas_medievais>. Acesso em:20jan2016. ___________. A relação entre gárgulas e textos no contexto tardo-medieval em Portugal: preocupações em torno do comportamento do corpo e os pecados. In: COSTA, Ricardo da (coord.). As relações entre História e Literatura no Mundo Antigo e Medieval. Mirabilia, v. 13, Jun-Dez 2011. ___________. Contributos para o estudo das gárgulas medievais em Portugal : desvios e transgressões discursivas? Lusitania Sacra, v. 22, p.169-199, 2010. BEAUVOIR, Simone.O segundo sexo. 1: Fatos e mitos. 4ª ed. Paris: Gallimard, Difusão Europeia do Livro, 1970. Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 32 CIDRE, Elza Rodríguez. Mujeres, animales y sacrificio en Bacantes de Eurípides. Asparkía, v.25, pp. 19-32, 2014. DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Trad. Fábio Landa. 2 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. GAARDER, Jostein. A vida é breve:Carta De Flória Emília A Aurélio Agostinho. 5ª ed. Lisboa: Editora Presença, 2006. PICCININI, P. Big mother,2005. Disponível em< http://www.patriciapiccinini.net/writing/50/167/83>. Acesso em: 11 dez 2015. ________________. Fromwithin.2012(a).Vídeo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bjgnUc6cIuc&feature=youtu.be>. Acesso em: 12 de dez. de 2015. ________________. Those Who dreambynight.2012(b). Disponível em: < http://www.patriciapiccinini.net/writing/38/297/73>. Acesso em: 12 dez 2015. PICCININI, Patrícia; ORGAZ, Laura F.The Naturally Artificial World.Originally published: (tender) creatures, exhibition catalogue.Artium. 2007. Disponívelem<http://www.patriciapiccinini.net/printessay.php?id=29>. Acesso em: 12 dez 2015. RIZO, Sérgio R. O corpo do demônio. Revista Estética e Semiótica, Brasília, v.4, n.2, p.42-68, Jul/Dez, 2014. AUTORES *PAULO MANAF: Biólogo do Zoológico Municipal de Mogi Mirim. Grad. Em Biologia/USP, Dr. em Psicologia (Neurociências e Comportamento)/USP. paulomanaf@gmail.com **ANDREIA A. MARIN: Docente/pesquisadora da UFTM. Grad. em Biologia/USP e Filosofia/UFPR, Dra.em Ecologia/UFSCar. aamarin@ig.com.br mailto:paulomanaf@gmail.com mailto:aamarin@ig.com.br Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 33 DOIS NEO-REALISMOS E UMA CINEASTA: Possíveis leituras do neo-realismo latino-americano em Lucrecia Martel Diego Martins Haase 8 I Nesse artigo proponho analisar as similitudes estéticas do chamado Novo Cinema Argentino dos anos 90 9 (consagrado ao longo da crise de 2001), e o neorrealismo italiano do pós-guerra. Ambas as manifestações estéticas surgiram de uma intensa transformação social que propiciou a origem das suas expressões cinematográficasrealistas, através das quais os cineastas buscavam se reconhecer ante o desamparo e a desolação da sua própria realidade: a Itália, destruída pelo fascismo e pela guerra e a Argentina, abalada pela ditadura militar e pelas políticas do neoliberalismo selvagem que a levaram a passar por uma das crises econômicas e políticas mais profundas da sua história. Os filmes destas vertentes estéticas afloraram das ruínas do seu tempo criando um espaço de distanciamento cultural com as representações do passado. Precisaram conceber suas experimentações simbólicas na emancipação do presente, e narrar suas adversidades de forma realista, para contribuir 8 Bacharelado Interdisciplinar em Artes na Universidade Federal da Bahia/ UFBA, cineasta e produtor cultural. 9 Convencionou-se que o novo cinema argentino nasceu em 1997, quando Adrian Caetano foi premiado no Festivalde Mar del Plata, com seu filme Pizza, Birra, Faso. Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 34 com a reconciliação de uma identidade nacional que precisava avançar sobre a sua tragédia, ou ao menos compreendê-la. Como diz o diretor Ferrand, personagem do filme A noite americana (1973), de François Truffaut, ―Os filmes de amanhã serão rodados na rua‖. Para Costa (1987), essa passagem foi uma homenagem de Truffaut à revolução estética que foi o neorrealismo italiano. (p.104) Essa revolução estética que influenciou todas as cinematografias do mundo reapareceria com força na era digital dos anos 90 para inspirar a jovem geração de diretores que, para alguns críticos, fundamentam o nascimento de um ―Novo Cinema Argentino‖ – entre eles podemos mencionar alguns precursores como Adrian Caetano (Pizza, Birra, Faso), Pablo Trapero (Mundo Grúa) e Lucrecia Martel (La Ciénaga). Estes cineastas não só tinham em comum a experimentação dentro de um cenário cheio de similaridades com o vivenciado pelos seus pares italianos. Vinham das periferias de Buenos Aires e do interior do país e traziam suas vozes, suas lembranças, filmavam seus próprios mundos, mostravam o país oculto pelos cartões postais da época com seus próprios pontos de vista, ao tempo em que desenvolviam suas próprias técnicas aliadas às novas tecnologias. Um dos pontos fortes do neo-realismo foi a capacidade de assimilar e adaptar à realidade italiana modelos cinematográficos e literários dos mais diferentes, em um clima de frenética atualização vivida como reação ao fechamento da cultura oficial fascista. (COSTA, 1985, p.107) É sobre um filme como Paísa(1946), de Roberto Rosselini, que o teórico francês André Bazin vê realizar-se a mutação que diz respeito às próprias modalidades de construção da narrativa cinematográfica. Segundo Bazin, ―a câmera tornou-se uma coisa só entre o olho e a mão que a conduzem: dessa forma, a narração que nasce de uma necessidade ‗biológica‘ antes de ser dramática, germina e cresce com a veracidade e liberdade da vida‖. (COSTA, 1985, p. 107). Se o novo cinema argentino fosse um espelho do neorrealismo italiano, seria possível afirmar que Lucrecia Martel foi a mais frenética atualização vivida pelas experimentações do novo cinema argentino, e a sua forma narrativa a mais ―biológica‖, a ponto da sua obra-prima se chamar O pântano (2001). Ao contrário do neorrealismo italiano, que se caracterizou como um movimento de expressão coletiva pelas similaridades estéticas e pelas formas narrativas da sua concepção, o ―neorrealismo argentino‖, assim chamado pelos críticos que mais evidenciaram essa relação (ou novo cinema argentino), não chegou a se consolidar Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 35 como um movimento, nem criar convenções entre os cineastas que fizeram parte do mesmo. No entanto, podemos considerar que, mesmo não adotando o modelo neorrealista como uma convenção estética – mas apenas retomando suas características para ―filmar a realidade‖ com personagens interpretados por não-atores e as histórias de ―metamorfose humana‖ frente às conseqüências de um cenário desolador –,os jovens cineastas argentinos parecem ter aproximado um mesmo cinema de dois mundos. Trata- se de uma coincidência nem um pouco aleatória, visto que a Argentina foi um país de imigrantes italianos, fazendo com que muito da história e da cultura de um país se reflita na expressão artística e cultural do outro. Nonovo cinema argentino parece se repetir uma ideia do neorrealismo italiano que é fundamental para a compreensão da linguagem cinematográfica que o caracterizou desde seu surgimento. Tal linguagem vem atrelada a um contexto técnico e político, no qual uma ruptura histórica com o modelo dominante leva a uma revolução estética da tecnologia e da libertação humana. Para ambas as cinematografias, esse paradigma se deve ao surgimento de um cinema feito na rua, com a emancipação em relação a uma cultura dominante. II Uma vez entrelaçadas as ideias e fundamentos que permitem vislumbrar as similitudes neorrealistas de cinematografias tão distantes no espaço-tempo dos acontecimentos que as desencadearam, podemos nos deter a pensar sobre a influência Revista Sísifo – v. 1, nº 4, Novembro. Ano 2016 - www.revistasisifo.com 36 do neorrealismo italiano sobre o novo cinema argentino, a ponto de ser chamado de ―neorrealismo argentino‖ por alguns críticos da época. Chega-se a dizer que o melhor cinema neorrealista italiano, dos anos 70, é feito, atualmente, em Buenos Aires. O crítico do Cahiers de Cinema, Serge Toubiana, afirma: ‖O cinema argentino é uma forma neo-realista reinventada‖. Onovo cinema argentinonunca contou com a presença de uma figura que alimentasse uma fundamentação teórica, como foi o caso de Zavattini no neorrealismo italiano, e desenvolveu uma diversidade autônoma de modos de produção sem enquadramentos que o determinassem como um movimento ou grupo. Por conta de sua diversidade, alguns críticos e diretores chegam a questionar sua permanência ou até a própria existência desta definição. No entanto, os filmes dessa geração jovem de diretores argentinos configuraram um corpus. E, a partir deste corpus, essa geração de diretores soube aceitar a existência e a convivência de um lugar comum de pertença para a sua cinematografia, reconhecida em qualquer lugar do mundo. De fato, se alguns filmes que marcaram o neorrealismo argentino alcançaram repercussão internacional, foi porque, ao tempo em que mostravam uma história particular, o faziam de forma universal. Para o crítico Leonardo M. De Espósito Muitos dos melhores filmes já feitos neste país são menos argentinos do que universais no sentido estrito da mise-en-scène, mesmo que suas imagens sejam argentinas. Mundo Grúa e LaLibertad, dois filmes onde a Argentina é algo vago, misterioso, fantástico, até mesmo aterrorizante, em um dos casos. Onde o reconhecível pelo público de ambientes deste país vai desapropriar quaisquer raízes vernáculas para retornar às ficções universais. Algo semelhante acontece com La Araña Vampiro e todo o trabalho de Lucrecia Martel e até mesmo com o grande pioneiro e fundador do ‗Novo Cinema Argentino‘, Martin Rejtman. Eles são tão argentinos como Kiarostami é iraniano ou James Cameron é norte- americano. (ESPÓSITO, Leonardo, 2010). Onovo cinema argentino não está só inspirado no existencialismo europeu que procurava um lugar possível para o homem em um mundo cheio de adversidades, mas também pelo cinema político da América Latina, que enfrentou o exílio, a perseguição, a tortura e a morte. Longe de se abrir para o mundo, filmes desapareceram, e outros tantos foram censurados. Na Estética da Fome (1965), Glauber Rocha nos lembra que os latino-americanos vivem sempre na incerteza, estamos sempre em guerra e desamparados. Essa lembrança ecoa mais forte quando,
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