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Da Narrativa ao Corpo _ Revista Emília

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19/04/2019 Da Narrativa ao Corpo | Revista Emília
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Da Narrativa ao Corpo
POR IRENE MONTEIRO | 19 DE SETEMBRO DE 2017 | ARTE EDUCAÇÃO, CULTURA DA
INFÂNCIA |
que os olhos não veem o coração não sente. Sabemos bem disso, mas me diga se o oposto também é
possível: o que os olhos veem o coração sente?
Nosso peito se expande e se retrai com o passar das páginas de um livro. Olhos e ouvidos pescam imagens e
palavras e vamos engolindo a narrativa; trazendo-a peito adentro. O coração, então, se remexe e os
sentimentos emergem: medo, encantamento, alegria ou curiosidade diante daquela história. Eles nos ocupam e
preenchem nosso corpo.
E nós? Fazemos o quê com esse corpo?
Corcundamos nossa coluna, enrijecemos nossos músculos e sustentamos a cabeça pensante que cada vez se
torna mais e mais pesada. Pouco a pouco o leitor vai se transformando em traça de biblioteca; silencia seu
corpo, destonifica suas fibras e perde espaços articulares. A entrega subjetiva aos mundos imaginários fica
resguardada à cabeça e ao cérebro que a recheia, cabendo ao corpo apenas se encaramujar.
Me pergunto, então, como transportar essa experiência de leitura da nossa maleta intelectual para a sensorial?
Da cabeça para o corpo em sua totalidade? Pode parecer simples, mas não é. Quando criança meu corpo era
tímido e vivia dentro de suas próprias casas imaginárias. Bons e raros foram os momentos em que aprendi – e
continuo aprendendo – a me transportar das casas para o corpo e do corpo para as casas levando para o
coração e para a ação as narrativas que vi, li e ouvi.
No entanto, a experiência de muitas crianças é outra, sejam elas leitoras ou não. A restrição à expressão
corporal infantil tem se tornado cada vez mais evidente e é responsável, em grande parte, por minguar as
potências da elasticidade, do tônus e da narrativa lúdica que são tão próprias do corpo da criança.
Me vejo constantemente desafiada por isso em meus caminhos profissionais. Eles têm me conduzido ao
cruzamento entre o mundo intelectual e o corporal, na tentativa de estreitar o abismo entre ambos ampliando,
assim, nossas maneiras de ser e de cuidar de si.
á pouco tempo, portanto, propus oficinas para crianças de 1 a 2 anos em que a narrativa tinha a liberdade
de saltar do livro para o corpo e do corpo novamente para o livro. Educadoras e crianças se arriscaram a
estreitar os espaços entre mundos para explorar movimentos e narrativas que cada corpo é capaz de
trazer à tona. A partir de narrativas vindas de livros, músicas ou da tradição oral, diversas brincadeiras e
movimentos foram descobertos, reinventados e compartilhados entre nós.
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No primeiro dia, colocamos saias e, embarcando em uma brincadeira recorrente do grupo de crianças com um
tal de “Samba-le-lê”, cantamos e tocamos pandeiro ao som ritmado da música. Os ouvidos e as bocas puderam
amolecer na cadência do samba e os corpos foram encontrando diferentes maneiras de se entender e de se
mover com o ritmo. Esse lugar esquisito do corpo que cai, mas não cai e que amolece, mas tonifica, para o qual
o samba nos leva, é brincante e repleto de sentido vivencial para uma criança que diariamente é desafiada pela
força da gravidade enquanto dá seus primeiros – e desajeitados – passos. O chão é muito mais próximo para
ela do que para nós, que em nossa bipedia rígida, desaprendemos a cair.
 
 
queda nos levou para outra oficina, na mais arriscada história de um tatu-bola que queria virar balão (Tatu-
balão de Sônia Barros). E quanto mais longe do chão ele estava, maior era a possibilidade de queda.
Comecei com a mediação do livro e logo virei um tatu rolando pela sala. Crianças me imitaram, sentindo a
louca experiência de rodar até ficar tonto, cair no chão e rolar ou dar cambalhotas. Alguns, reservadamente,
apenas observaram a dança dando espaço para a compreensão e o reconhecimento da vivência corporal do
outro. Com a criatividade espontânea das outras educadoras cantamos músicas de tatu, colocamos uma saia
rodada e viramos balão, encerrando o encontro deitadas lado a lado com as crianças, fantasiando um céu
colorido de São João.
Nos encontramos, em seguida, com a história do Carneiro das lãs douradas,contadas por Stela Barbieri no
curso La poética de la Primera Infância. Cada personagem era um objeto e, amarrados entre si, dançarilhavam
nas minhas mãos enquanto o humilde pastor tocava sua flauta, e a narrativa era construída. Depois escolhemos
as personagens representadas por seus objetos e corremos pela sala ora virando um ora outro. Movendo os
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corpos juntos ou separados exploramos a transformação e a criatividade corporal de virar um carneiro, virar uma
padeira para, depois, virar um bastão.
 
 
Por fim, demos espaço para o reflexo. Mediei o livro Espelho (Suzy Lee) e, por ser composto apenas de
imagens, a leitura foi feita com diferentes expressões faciais e corporais. Ficava com medo e retraía o corpo ou
curiosa, abria bem os olhos. Ou então ficava alegre e sacudia o livro de cá para lá. A história não precisou
terminar para que as crianças se aproximassem dos vários espelhos espalhados pela sala. A curiosidade pelo
próprio corpo refletido foi tanta que extrapolamos o horário da oficina e ficamos a nos imitar com gritos e poses
engraçadas, rindo uns dos outros. Olhos abertos e coração presente, o imaginário do livro se corporificou em
nós. Ele ficou ali, junto dos espelhos, e as crianças folheavam, mergulhavam na narrativa e, então, retomavam a
brincadeira com o corpo.

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