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TRABALHO DOCENTE SOB FOGO CRUZADO Amanda Moreira da Silva Danielle de Oliveira Ribeiro Fernando de Araújo Penna (Entrevistado) Francisca Clara de Paula Oliveira Maria Aparecida Silva Ribeiro Maria da Conceição da Silva Freitas Paulina Sanbáñez Cavieres Jonas Magalhães Claudia Affonso Vera Nepomuceno Cláudio Fernandes Valéria Moreira TRABALHO DOCENTE SOB FOGO CRUZADO Organizadores © Jonas Magalhães Gramma Livraria e Editora Conselho editorial: Bethania Assy, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Geraldo Tadeu Monteiro, Gláucio Marafon, Ivair Reinaldim, João Cézar de Castro Rocha, Lúcia Helena Salgado e Silva, Maria Cláudia Maia, Maria Isabel Mendes de Almeida, Mirian Goldenberg e Silene de Moraes Freire. Produção editorial Supervisão editorial: Gisele Moreira Coordenação editorial: Flávia Midori Revisão de arquivos: Frederico Hartje Revisão de provas: Aline Canejo Capa: Paulo Vermelho Diagramação: Wilma Ferraz Acompanhamento gráfico: Evelyn Costa Catalogação na fonte Bibliotecária Maria Helena Ferreira Xavier da Silva CRB-7 5688 T758 Trabalho docente sob fogo cruzado / organização [de] Jonas Emanuel Pinto Magalhães , Claudia Regina Amaral Affonso , Vera Lucia da Costa Nepo- muceno. – Rio de Janeiro: Gramma, 2018. 264 p. ; 23 cm. ISBN 978-85-5968-423-0 1. Sociologia educacional. 2. Capitalismo. 3. Educação - Finalidades e objetivos. 4. Educação - Aspectos políticos. 5. Capitalismo e educação. 6. Educação - Aspectos econômicos. I. Magalhães, Jonas Emanuel Pinto, Org. II. Affonso, Claudia Regina Amaral, Org. III. Nepomuceno, Vera Lucia da Costa, Org. Título. CDD 370.19 Gramma Livraria e Editora Rua da Quitanda, nº 67, sala 301 CEP.: 20.011-030 – Rio de Janeiro (RJ) Tel./Fax: (21) 2224-1469 E-mail: contato@gramma.com.br Site: www.gramma.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) PREFÁCIO Gaudêncio Frigotto1 O conjunto de textos que compõe a coletânea Trabalho do- cente sob fogo cruzado sinaliza diferentes aspectos da natureza alie- nadora, expropriadora e destrutiva que assume as relações sociais capitalistas mundialmente, mas que se mostram mais brutais onde as burguesias locais, como no caso brasileiro, se associam de forma subordinada aos centros hegemônicos do capital e conformam uma sociedade de capitalismo dependente. Esta brutalidade se expressa pelo aprofundamento dos processos e técnicas de exploração e expropriação da classe tra- balhadora e pela penetração dos critérios e valores mercantis em todas as esferas da vida. Para manter-se, o sistema capitalista necessita destruir um a um os direitos duramente conquistados pela classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, em nome do lucro, aniquilar as bases da vida mediante a degradação do meio am- biente. Um sistema, portanto, que já não se justifica, mas que pros- segue com o seu DNA destrutivo e regressivo. Os campos da Saúde e da Educação, direitos básicos universais, vão sendo transformados em serviços mercantis. Do mesmo modo, as conquistas das leis que minimizavam a exploração do trabalhador estão sendo revogadas, 1 Professor do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor titular, aposentado, da Universidade Federal Flu- minense (UFF). Jonas MagalhãesVI retroagindo aos métodos de espoliação do século XVIII. A recen- te contrarreforma trabalhista no Brasil (Lei nº 13.467/1917) é o exemplo mais perverso desta regressão. O processo de mercantilização, da educação e, por conse- quência, do trabalho docente, explicita como o capital, para enfren- tar sua crise estrutural cada vez mais profunda, vai abolindo a esfera pública e, portanto, o único espaço onde os direitos universais po- dem ter refúgio. De fato, um olhar histórico nos permite perceber que o ideá- rio da classe burguesa, no contraponto ao Estado absolutista e ao domínio da Igreja, da escola pública, universal, gratuita e laica, vai sendo relegado como estratégia para enfrentar ou minimizar a crise estrutural do capital. Do mesmo modo, as teses da “fraternidade”, liberdade e igualdade, incompatíveis sob o sistema capital, mas fun- cionais no plano ideológico na reprodução das relações sociais capi- talistas, cedem espaço ao Estado policial e à pedagogia da violência e do medo. Com efeito, a gênese histórica da escola se dá, especialmente, ao longo do século XVIII, dentro do mesmo processo de emer- gência da ciência moderna e da ascensão da burguesia como classe social hegemônica. Ela nasce, no plano discursivo ideológico, com a função de desenvolver uma nova cultura, integrar as novas gerações no ideário da sociedade moderna e socializar, de forma sistemática, o conhecimento científico. Todavia, a escola, na verdade, desde sua origem, foi organizada, sobretudo, para aqueles que não precisam vender sua força de trabalho e que têm tempo de viver a infância e a adolescência fruindo o ócio. Daí seu caráter dual e, dentro da dualidade, com formas crescentes de diferenciação. Na realidade, instaura-se e se perpetua, de um lado, a esco- la clássica, formativa, de ampla base científica e cultural para as classes dirigentes e, de outro, a escola instrumental, adestradora e de educação profissional restrita e na ótica das demandas do mer- cado, para os trabalhadores. Uma educação pragmática e rápida para aqueles que, na visão do filósofo francês Antoine-Louis-Clau- Trabalho docente sob fogo cruzado VII de Destutt de Tracy, são destinados ao duro ofício do trabalho penoso2. Contudo, mesmo sob essa dualidade, a escola básica foi con- cebida como a instituição encarregada da produção, da organização e da reprodução do conhecimento e do espaço de socialização de valores, atitudes e símbolos. Assim, é sob a égide desta função clás- sica, de instituição cultural e social e de profunda aposta na ciência e na formação científica, que se estruturam os mais sólidos sistemas educacionais nos países de capitalismo central. No entanto, até hoje não se tem um sistema nacional de edu- cação efetivo em sociedades de capitalismo dependente, que con- centram a riqueza para um grupo restrito e produzem a miséria e se nutrem dela, como a brasileira. A contrarreforma do Ensino Médio, por exemplo, protago- nizada pelo golpe de Estado de agosto de 2016, sepulta a concepção de educação básica. Assim, nega a 85% dos jovens o Ensino Médio de qualidade, condição para a leitura autônoma da realidade social, política e cultural, e o preparo para o processo produtivo sob a atual base técnica. Voltamos ao início do século XIX, praticando as ideias de Destutt. A ruptura da função clássica da escola, mesmo que de forma desigual, efetiva-se a partir da década de 1950, no contexto do fim da Segunda Guerra Mundial e da expansão do socialismo, com a cria- ção da União Soviética. Uma questão central ocupava os dirigentes e intelectuais do sistema capitalista após a Segunda Guerra Mundial e a ampliação geopolítica do socialismo: qual seria a chave para diminuir a desigualdade entre nações e entre indivíduos? De forma invertida, consideraram o investimento privado e público na educação, tradu- zido este como a noção de capital humano, a chave milagrosa para enfrentar a pobreza e o risco da expansão do comunismo. Invertida porque a origem da desigualdade não está na educa- ção, mas nas relações sociais e, portanto, os pobres e os países po- 2 Ver CLAUDE, Antoine-Louis Destutt de Tracy. Eléments d’idéologie, v. 1. Paris: Coutcier Impre- meurs, 1908. Jonas MagalhãesVIII bres não investem em educação exatamente porque não têm como fazer isso no mesmo nível que as nações ricas. Inversão, também, porque transforma o direito universal, social e subjetivo, da edu- cação básica pública, num serviço mercantil que produz “capital”. Vale ressaltar, como registra Marx, em 1852, numacarta ao amigo Weidemeyer, que são os limites de uma época – de uma classe – mais que um “egoísmo” deliberado ou uma “mentira de classe”, que explicam os limites das ideias. Estes limites não só evidenciam o aumento sistemático da desigualdade entre nações e no interior das nações ao longo dos últimos 70 anos, mas também o agravamento da crise estrutural do sistema capitalista. Sistema que, com o colapso do socialismo real e a apropriação de mais um salto tecnológico, que condensa o espaço e acelera o tempo, radicaliza a vingança do capital contra a classe trabalhadora, passando a gerir o trabalho no campo da saúde e da educação “públicas” com critérios mercantis. Neste contexto, passa-se a cobrar da instituição escola, e dos processos de formação profissional, novas atribuições fundadas numa regressão que retira toda a proteção social e imputa a cada indivíduo a tarefa de se defender na competição do mercado. Um ideário que postula que não há lugar para todos, mas apenas para os mais competentes. Com efeito, as novas noções de sociedade do conhecimento, qualidade total, polivalência, policognição, mul- ti-habilitação, formação abstrata, formação flexível, requalificação, competências, empregabilidade e empreendedorismo cumprem essa função ideológica. Estas noções são formuladas, especialmente a partir da déca- da de 1980, pelos organismos internacionais – sentinelas e intelec- tuais coletivos dos centros hegemônicos do sistema capital mundial, que se constituem como arautos que orientam as reformas educa- tivas, vinculadas às reformas do Estado. Um Estado social mínimo, que, no plano da educação, precisa controlar os gastos públicos e retirar dos docentes aquilo que os identifica – produzir, organizar e socializar conhecimentos. Trabalho docente sob fogo cruzado IX Dessa forma, assumem centralidade, neste cenário, os siste- mas mercantis de avaliação que provocam uma profunda alteração, tanto no plano organizativo quanto no plano político-pedagógico da escola. No plano organizativo, assumem centralidade as ideias de gestão e de avaliação e, no plano pedagógico, o ideário neopragmá- tico do aprender a aprender, das competências, da empregabilidade e do empreendedorismo. A visão invertida dos intelectuais da classe detentora do capi- tal no enfrentamento das contradições e crises do sistema capitalista tem efeitos e peso destrutivo diverso, de acordo com o processo histórico de cada sociedade. No caso da sociedade brasileira, o peso destrutivo sobre os direitos dos trabalhadores e suas condições de trabalho ao longo deste processo são avassaladores. No Brasil, o processo de colonização e os quase quatro sé- culos de regime escravocrata conformaram uma classe dominante, com DNA tingido pela brutalidade e pela violência contra a classe trabalhadora. Em diferentes momentos, a classe trabalhadora e seus intelectuais conseguiram avanços no âmbito dos direitos, mas estes sempre foram, invariavelmente, truncados por ditaduras ou golpes de Estado. Ao longo de século XX, foram duas ditaduras e vários golpes institucionais. E, no atual século, após uma década com al- gumas conquistas para a classe trabalhadora, um golpe de natureza jurídica, parlamentar e midiática protagoniza contrarreformas, que aniquilam tais avanços e regridem em formas de violência primiti- vas. A coletânea organizada por Cláudia Affonso, Jonas Magalhães, Vera Nepomuceno, Valéria Moreira e Cláudio Fernandes, Trabalho docente sob fogo cruzado, traduz, não sem embates, como o processo de mercantilização da educação penetrou na escola pública e regu- lou o trabalho docente sob os critérios da gerência da mercadoria força de trabalho do setor privado. Um processo, portanto, que visa transformar o trabalho complexo da atividade pedagógica em trabalho simples, comandado desde fora da escola por instituições privadas ou parcerias público-privadas. Um processo, como mos- Jonas MagalhãesX tram os textos da coletânea, que atinge frontalmente a autonomia docente, a profissão e os saberes docentes, anulando conquistas da categoria, em especial nas últimas décadas. A coletânea explicita, em particular a partir da década de 1990, com a adoção da doutrina neoliberal e o processo de crescen- te desmanche da função e do trabalho docente. Este processo co- meçou com o investimento maciço dos dirigentes do Ministério da Educação, com o apoio da mídia empresarial, propagando-se a tese de que escola pública era ruim porque era malgerida. O que a me- lhoraria seria a adoção da eficiência e da efetividade da gestão priva- da. O passo seguinte foi o ataque ao currículo, com a tese de que a escola pública básica ensinava coisas demais e desnecessárias. Além disto, aqueles que têm necessidade (destinados ao trabalho peno- so) de entrar precocemente no mercado de trabalho não precisam aprender tudo. Para tanto, impuseram o Decreto nº 2.208/1997, formalizando em lei a dualidade estrutural da educação. Mas, para que este processo de fato fosse efetivo, era neces- sário anular a função e a autonomia docente. A tese alardeada é de que a escola pública não respondia às demandas do tempo presen- te porque a formação docente era impregnada de teorias sociais, culturais, econômicas e políticas desnecessárias. O que caberia aos cursos de formação era ensinar aos futuros docentes as “regras do bem ensinar”. Tratava-se de formar entregadores do conhecimento, produzido por instituições privadas ou por parcerias público-pri- vadas. A base social que elegeu, em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva tinha como agenda avanços nas reformas estruturais, historicamente adiadas, além da ampliação dos direitos sociais. As reformas estru- turais uma vez mais foram postergadas, mas houve avanço significa- tivo no valor do salário mínimo, na forma de distribuir renda e em políticas sociais de transferência de renda. O mecanismo de reação da classe dominante brasileira foi de organizar-se de modo potente em dois movimentos. Em 2004, nascia o Movimento Escola sem Partido e, no ano seguinte, o Movimento Todos pela Educação. Este Trabalho docente sob fogo cruzado XI último buscou pautar, por critérios mercantis, a educação pública no conteúdo, na forma e no método, regulando, portanto, a função e o trabalho docente. Sobre este aspecto, o pensamento educacional crítico produziu análises que orientaram a luta política. O que não nos demos conta é que o ovo da serpente estava sendo gestado no Movimento Escola sem Partido. Já no processo do golpe de Estado, consumado em agosto de 2016, este movimento explicitava a conjugação do fascismo de mercado, político e midiático. Não aleatoriamente, o foco é a de- monização dos docentes, tratados como inimigos doutrinadores. Cabe enfatizar que, na verdade, o que denominam ideologização, doutrinação e lavagem cerebral tem por trás a defesa da neutralida- de do conhecimento e do processo educativo. Não por acaso, uma das primárias medidas do governo golpista foi efetivar a contrar- reforma do Ensino Médio mediante a Lei nº 13.415. Esta é uma das faces práticas dos movimentos de classe – Todos pela Educação (privada) e Escola sem Partido. Uma face que busca interditar, por um lado, o caminho à universidade para a maioria dos jovens da classe trabalhadora e, por outro, as bases científicas que permitam ascender ao trabalho complexo. Quando se tira a máscara moralista, fica evidente que este movimento postula neutralizar o pensamento crítico e a formação de sujeitos autônomos e protagonistas de novas relações sociais. A forma tosca como Miguel Nagib, um dos fundadores e árduo de- fensor do Movimento Escola sem Partido, expõe em depoimentos midiáticos ao definir o papel do professor, da escola e do aluno, desmascara o que querem esconder. Para os desta organização, ou partido ideológico, “Escola sem Partido”, na voz de Nagib, o profes- sor é definido como um “burocrata do Estado” que “deve ensinar o que está prescrito” e, portanto, não deve ter o direitode “liberdade de expressão”. Pode ensinar, mas não educar. A escola é entendida como uma organização social que atende a consumidores e, como tal, deve ser regida pelo Código do Consumidor. O aluno é enten- dido como propriedade dos pais. Jonas MagalhãesXII O fogo cruzado sobre o trabalho docente, que a coletânea ex- plicita, tem na tentativa de transformar em lei as teses deste movi- mento o tiro de liquidação da categoria. O que postulam é traduzir em lei, como verdade suprema, o partido único do mercado e do capital. A convocatória no site para que pais, alunos e colegas de- nunciem os professores que não seguem sua cartilha e submetê-los, não ao estado de direito, mas ao estatuto policial, que criminaliza antes para, em seguida, justificar a condenação. Trata, portanto, de instaurar a pedagogia do medo e da eliminação daqueles que têm uma análise divergente. Unem-se, nesta tarefa, os fundamentalis- mos econômico, político, religioso e midiático. Trata-se de uma coletânea que, ao expor o processo que busca liquidar e anular a função docente, não quer transmitir uma mensagem fatalista que tudo está perdido e que os adversários e e os muitos inimigos da escola pública e dos direitos universais nos derrotaram por completo. Pelo contrário, trata-se de uma coletâ- nea que, ao trazer os mecanismos deste processo, busca demons- trar, não só aos docentes da escola pública e privada, mas também aos movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos, instituições científicas e culturais, que nos cabe uma resistência ativa, no todo e no detalhe. Resistência que para ter potência demanda a busca, no pluralismo da esquerda, de uma unidade inequívoca em temas fun- damentais, como é o da defesa da escola pública e dos conjuntos de trabalhadores que nela atuam. A tarefa imediata dos trabalhadores da escola pública e de suas organizações sindicais, científicas e cultu- rais e dos movimentos sociais da cidade e do campo, empenhados na defesa da escola pública, e de uma educação que forme leitores do mundo, é conquistar a adesão dos pais ou responsáveis pelos alunos. Por fim, a coletânea estimula a todos nós, mas, sobretudo, aos milhares de professores que atuam na educação básica em todo o país, a não capitularmos à pedagogia do medo, pois nela é que está a aposta dos que querem destruir a escola e a educação pública. Mas isso não vingará, pois aprendemos com Florestan Fernandes, ícone da defesa da educação pública e dos direitos universais da classe Trabalho docente sob fogo cruzado XIII trabalhadora, que a história nunca se fecha para sempre. Pelo con- trário, são os homens e mulheres que em luta fecham e abrem os ciclos da história. O Grupo de Pesquisa Trabalho, Práxis e Formação Docen- te, organizador desta coletânea, com seus membros vinculados ao Grupo These – Projetos Integrados em Trabalho, História, Educa- ção e Saúde, composto por pesquisadores e estudantes de doutora- do, mestrado, especialização e graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), constitui-se em exemplo da batalha das ideias e da luta política para abrir e superar o ciclo que enfrentamos na sociedade brasileira. Na mesma direção, está a criação, por educadores da sociedade Escola Democrática, de um contraponto ético-político do partido único do mercado e do capital que se denomina “sem partido”. APRESENTAÇÃO Marise Nogueira Ramos3 É com enorme satisfação que apresento o livro Trabalho docen- te sob fogo cruzado. Trata-se de uma produção gestada no interior do Grupo THESE – Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, His- tória, Educação e Saúde, UFF/UERJ/EPSJV-FIOCRUZ, a partir de jovens pesquisadores(as) inconformados(as) com a desvalorização e a descaracterização do trabalho docente pela política educacional brasileira e no interior das escolas públicas de educação básica. Todos os autores deste livro exercem ou exerceram a profis- são docente nessas escolas e, além de sentirem diretamente em suas vidas essa realidade, tomaram-na como tema de estudo e investiga- ção, orientados pelo princípio de que a ação prática, para ser efi- caz, precisa se fundamentar na compreensão das determinações do fenômeno. Isso implica construí-lo como objeto do trabalho cien- tífico, buscando-o na sua historicidade e nas suas contradições, ao ponto de captar e ordenar as mediações no plano do pensamento. Assim se chega a teoria, que não representa abstratamente um fenômeno. Ao contrário, ultrapassa sua pseudoconcreticidade 3 Doutora em Educação (UFF), com pós-doutorado em Etnossociologia do Conhecimento Pro- fissional (UTAD/Portugal). Especialista em Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública da EPSJV-FIOCRUZ. Docente do quadro permanente dos Programas de Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde (EPSJV-FIOCRUZ) e em Políticas Públicas e Formação Hu- mana (PPFH/UERJ). Coordena o Grupo These junto com Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta, Júlio Lima, Eveline Algebaile e Lia Tiriba. Jonas MagalhãesXVI em direção ao concreto pensado.4 Em outras palavras, após a in- vestigação, o fenômeno não se apresenta mais somente no plano da experiência sensível – primeira forma de conhecimento do real, de que advém a necessidade de se investigá-lo – mas se torna concreto porque é conhecido na sua “essência”. Este é o fundamento da prá- xis. A teoria adquire força material porque ela reproduz a realidade não como um reflexo inerte, e sim como um processo ativo que Marx5 definiu como a ascensão do abstrato ao concreto pelo pensa- mento, em estrita vinculação com a prática social. É isto que encontramos neste livro, com seus 12 artigos e uma entrevista. Cláudia Affonso identifica como uma “reestrutura- ção produtiva” o que ocorre atualmente na escola, que eu diria ser, aparentemente, às avessas do que se passa no trabalho industrial e que mereceu esta designação. A reestruturação da produção indus- trial implicou a superação da lógica taylorista-fordista pelo trabalho flexível e em equipe. Porém, estudos demonstram o quanto este processo, guiado pela Pedagogia das Competências6, visava mais a adaptação dos trabalhadores à gestão do trabalho, baseada em metas de produtividade e na responsabilização individual do trabalhador, do que sua autonomia. Pois bem: o que Cláudia nos fala sobre a “mecanização do tra- balho docente”, a princípio característica do taylorismo-fordismo, é, na verdade, uma maneira de adaptar o docente à a uma formação flexível sua e dos estudantes. Flexível porque, na sociedade pós-mo- derna, não existe futuro, não existe projeto, não existe transforma- ção. Existe o efêmero, o provisório, o fortuito. Então, para que o conhecimento sistematizado? Para que o professor intelectual? Para que o pensamento crítico? Para que 2.400 horas de formação bá- sica? Paulina Santibáñez Cavieres nos mostra a reestruturação da 4 KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 5 MARX, K. Para a crítica à economia política. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 116-123. 6 RAMOS, M. N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação. São Paulo: Cor- tez, 2001. Trabalho docente sob fogo cruzado XVII carreira docente também no Chile, produzindo uma nova forma de ser docente, cuja subjetividade é conveniente ao sistema neoliberal. Valéria Moreira nos traz o ensino de Sociologia como expres- são de mais uma face dessa reestruturação, que é a intensificação do trabalho docente, dada a redução da carga horária e o aumen- to de turmas. Ela identifica, então, a intensificação do trabalho do professor de Sociologia e a diminuição da qualidade do ensino. A autonomia e a profissionalização docente são um eixo que articula todos os textos, por serem objetos de luta histórica dos professo- res. Estudos comparativos entre diferentes sociedades ajudam-nos a ver essas questões como mediações próprias das formações sociais concretas,assim como o quanto o valor do trabalho docente traz a marca dessas culturas. Numa sociedade escravocrata como a brasi- leira, o trabalho de ensinar suportou a determinação do autoritaris- mo, muitas vezes tomando o professor como um preposto da classe dominante. O texto de Danielle de Oliveira Ribeiro nos convida a essas reflexões. A contrarreforma do Ensino Médio empreendida pelo gover- no ilegítimo de Michel Temer pela Medida Provisória nº 746/2016 e consolidada na Lei nº 13.415/2017 é a mais recente expressão do desmonte da educação brasileira e da “desnecessidade” do trabalho docente, como nos mostra Vera Nepomuceno e Cláudio Fernandes. Ela é a expressão material da seletividade social promovida pelo neoliberalismo. Este recupera o princípio de Adam Smith de que a educação da classe trabalhadora deveria ser o mínimo necessário para evitar o completo aparvalhamento do trabalhador pela frag- mentação do trabalho industrial e, ainda assim, em doses homeo- páticas. Este princípio manifesta-se na contrarreforma com a dimi- nuição da carga horária destinada à formação geral comum dos es- tudantes no Ensino Médio, na fragmentação dos itinerários forma- tivos. Entre eles, está a educação profissional, a qual sequer precisa se realizar na escola e com professores com formação adequada, retroagindo-se, assim, ao século XIX, em que os trabalhadores Jonas MagalhãesXVIII aprendiam suas tarefas diretamente na produção. A carga horária de Sociologia, tal como abordada por Valéria Moreira, deixa de ser um problema, já que seu ensino não será mais obrigatório. A falta de professor também será facilmente contornada pela redução do currículo, comprovando-se que, aos poucos, o docente, de fato, irá se tornar desnecessário. Quando muito, sua formação, assim como a de seus alunos, será delimitada pelas competências a serem desenvolvidas para que todos sejam capazes de se adaptar à sociedade flexível, mas também desigual e cruelmente excludente. Trata-se de ações coerentes com a direção da política pública sob a hegemonia da classe burguesa, que dispõe de instrumentos para atuar no interior do Estado e nos espaços da sociedade civil, como é o caso dos Movimentos “Todos pela Educação” e “Escola sem Par- tido”. Amanda Moreira da Silva irá nos mostrar, assim, “a presença de frações da classe burguesa na educação pública brasileira e as in- terferências no trabalho docente”. Já Maria Aparecida Ribeiro falará sobre o esvaziamento dos cursos de licenciatura, ameaçadas ainda mais por sua delimitação à Base Nacional Comum Curricular e sua indução também pela Pedagogia das Competências, por meio da tão propalada tese de Philipe Perrenoud sobre as “competências para ensinar”. Tal tendência é confrontada pela crítica que Jonas Magalhães faz à teoria hegemônica sobre os saberes docentes, representada por Maurice Tardif com sua epistemologia da prática. Esta valoriza so- bremaneira os saberes docentes advindos da experiência, os quais, por sua vez, também se afinam com a referida tese de Philipe Per- renoud. Em tempos de regressão de direitos e de desvalorização do trabalho docente, é muito bem-vindo um estudo que focalize os saberes docentes na dimensão da sua profissionalidade “e da práxis educativa na sua relação com a totalidade social em seus aspectos múltiplos, dialéticos e contraditórios”. Construção esta que tem sustentação tanto teórica quanto empírica. Assim como Jonas Magalhães questiona algumas das asserções correntemente aceitas nos estudos sobre os saberes docentes, apon- Trabalho docente sob fogo cruzado XIX tando inconsistências teórico-metodológicas da epistemologia da prática a partir do materialismo histórico-dialético, Maria da Con- ceição da Silva Freitas analisa a produção acadêmica sobre professo- res(as) mediante a pesquisa da Redecentro, que reúne instituições do Centro-Oeste, em trabalhos que apontam “contradições que se verificam na pluralidade dos discursos sobre profissionalização docente; tendências à desintelectualização, privatização; formação ampliada e parcelizada; e tendência à perda do controle do conheci- mento do trabalho pelo docente”. A valorização e a desvalorização docente não são questões somente simbólicas, mas essencialmente materiais, considerando as condições de trabalho, carreira e salário do professor. É opor- tuno, então, que Francisca Clara de Paula Oliveira nos traga re- flexões sobre políticas regulatórias de valorização do professor no Brasil, com foco no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) e na Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica. Políticas essas que se encontram gravemente ameaçadas hoje pelo novo regime fiscal que tem a Emenda Constitucional nº 95/2016 como a mais pura expressão. Dessa forma, tem-se, hoje, o oposto do que Francisca constata em seu texto, ou seja, a busca, pelo governo federal, no contexto de promulgação dessas políticas, de “recuperar um papel protagonista do estado brasileiro no desenvolvimento de políticas para o setor educacional, em particular para a valorização da escola básica e de seus profissionais”. Os demais textos aqui apresentados fornecem os dados políticos da regressão ora vivida. A entrevista de Fernando Penna encerra de forma brilhante o presente livro. Proporciona a compreensão de motivações, estra- tégias e princípios das políticas regressivas levadas à frente por mo- vimentos neo e ultraconservadores no plano da sociedade civil, em busca do consenso. Eles adentram também ao Estado stricto sensu, obtendo êxito ao conferir forma e conteúdo jurídicos às suas ideias. Este livro, assim, é uma ferramenta de ação. Mais do que sim- bolizar a epígrafe do Grupo These – “Os filósofos se limitaram a Jonas MagalhãesXX interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é trans- formá-lo” (Marx, XI Tese ad Feurbach) –, Trabalho docente sob fogo cruzado comprova materialmente que a batalha das ideias não é vã quando se consegue demonstrar o confronto de interesses. Assim, alimentar a luta que revela a própria história da humanidade, a luta de classes. SUMÁRIO Capítulo 1 Trabalho de professor no fio da navalha: reengenharia das escolas e reestruturação produtiva em tempos de Escola sem Partido e Reforma do Ensino Médio Cláudia Affonso 1 Capítulo 2 A Organização do Trabalho do Professor e a Qualidade do Ensino Valéria de Moraes Vicente Moreira 27 Capítulo 3 Carrera profesional docente en Chile: la construcción de un nuevo modo de ser profesor Paulina Santibáñez Cavieres 49 Capítulo 4 História da docência e autonomia profissional: notas sobre experiências em Portugal, Quebec e Canadá Danielle de Oliveira Ribeiro 61 Capítulo 5 Reforma do Ensino Médio: uma estratégia do capital? Vera Nepomuceno 87 Capítulo 6 Da “desnecessidade” da Educação à “desnecessidade” do trabalho docente no ensino médio: contradições e possibilidade Claudio Fernandes 105 Capítulo 7 A Presença de Frações da Classe Burguesa na Educação Pública Brasileira e as Interferências no Trabalho Docente Amanda Moreira da Silva 129 Capítulo 8 Qual Escola? Para que Sociedade? Desafios da formação docente em um contexto de contrarreforma e retrocessos na gestão da Educação pública brasileira Maria Aparecida Silva Ribeiro 149 Capítulo 9 O FUNDEB e a Política Nacional de Formação de Professores da Educação Básica: uma nova regulação para a valorização do trabalho docente? Francisca Clara de Paula Oliveira 165 Capítulo 10 Trabalho docente no ideário do materialismo histórico-dialético – Redecentro: 2010 a 2014 Maria da Conceição da Silva Freitas 181 Capítulo 11 Saberes docentes e epistemologia da prática: apontamentos críticos e possibilidades de investigação a partir do materialismo histórico- dialético Jonas Emanuel Pinto Magalhães 199 Capítulo 12 Projeto Escola sem Partido: a ofensiva ultraconservadora contra o professor Entrevista com Fernando Penna 227 Capítulo 1 Trabalhode professor no fio da navalha: reengenharia das escolas e reestruturação produtiva em tempos de Escola sem Partido e Reforma do Ensino Médio Cláudia Affonso7 “Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gra- mática e a lei, ainda nos podemos mexer.” Graciliano Ramos Aproximação ao fenômeno escola8 Se tomarmos a escola como fenômeno social, logo percebe- remos que, tão contraditória quanto sua existência, é sua negação. Nascida em seu formato atual no contexto mesmo de afirmação do mundo contemporâneo, da industrialização e e da expansão dos ideais liberais e individualizantes, carrega a marca de seu tempo na dualidade de sua forma e seu conteúdo e no ethos burguês (RUM- MERT, 2000) que hegemonicamente reproduz. É, portanto, uma instituição conservadora (BOURDIEU, 1999). Não sem razão, autores do campo progressista, como Caná- rio (2008), Nóvoa e Rodrigues (2008) e Cavaco (2002) têm denun- 7 Professora titular de História do Colégio Pedro II, membro do GT Trabalho, Práxis e Formação Docente do Grupo These. E-mail para contato: professoraclaudiaaffonso@gmail.com 8 Ao longo deste texto, dialogaremos com autores brasileiros e portugueses preferencialmente. Do nosso ponto de vista, não se trata de uma coincidência. Os processos analisados aqui, embora se considerem as particularidades de cada caso – notadamente de temporalidade, guardam suges- tivas semelhanças de forma e conteúdo. Jonas Magalhães2 ciado a escolarização do mundo9 como um dos mecanismos de hie- rarquização e subordinação das classes trabalhadoras, de seu modo de viver e saber. Não lhes escapa um dos cernes da questão, já que, para os autores, a escola “[...] traduz um incontestável progresso social, designadamente no que diz respeito à proteção das crianças e dos seus direitos. Mas provoca um empobrecimento dos processos de formação que tendem a restringirem-se a lógicas escolarizantes” (NÓVOA; RODRIGUES, 2008, p. 7). De outra parte, contudo, a crítica à escola como aquela fei- ta pelo Movimento da Escolha Escolar, nos Estados Unidos, vem crescendo também no Brasil. Sustenta-se que os pais teriam direito a proteger seus filhos dos riscos e perigos do ambiente escolar, garan- tindo a eles escolaridade doméstica, ou homeschooling, a partir de suas concepções morais e religiosas. Isabel Lyman estuda o caso em sua tese de doutoramento intitulada The Homeschooling Revolution na qual sustenta que “as quatro principais razões para se evitar o ensino escolar convencional foram a insatisfação com as escolas públicas, o desejo de se transmitir livremente valores religiosos, a superiorida- de acadêmica do ensino doméstico e a necessidade de se construir laços familiares mais robustos”.10 Nos dois casos, por razões diversas, percebe-se a escola como lugar estratégico para a formação dos indivíduos e dos grupos e, portanto, para a reprodução social. Guimarães sintetizou esta cen- tralidade ao afirmar que Como instituição social, a escola interage com diferentes grupos, sujeitos e instituições. Trans- forma-se junto com a sociedade, mas também contribui para essa transformação. Assim, ocupa um lugar estratégico, porque faz a mediação das relações entre a sociedade: a educação, o Estado, a cultura e a cidadania (GUIMARÃES, 2003, p. 101) 9 Nóvoa e Rodrigues (2008) chegam a afirmar que “a escola torna-se uma das primeiras institui- ções da globalização”. 10 Confira em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=153>. Acesso em: 22 nov. 2016. Trabalho docente sob fogo cruzado 3 Para Biesta (2012), a escola é locus de qualificação, ou seja, lugar onde se desenvolvem habilidades e conhecimentos para que se possa saber fazer alguma coisa; de socialização, já que nos tornamos membros e partes de ordens sociais, culturais e políticas específicas; e de subjetivação, ou seja, de processamento dessas mesmas ordens, às vezes contraditório com elas. Desde muito antes, Cury (1986), em Educação e contradição, e Frigotto (1984), em A produtividade da escola improdutiva, já explicitavam os mecanismos efetivos dessas lógicas. De qualquer maneira, persiste a tese da contradição que mar- ca a educação escolar na sociedade capitalista: Trata-se da contradição entre a especificidade do trabalho educativo na escola – que consiste na so- cialização do conhecimento em suas formas mais desenvolvidas – e o fato de que o conhecimento é parte constitutiva dos meios de produção que, nes- ta sociedade são propriedade do capital e, portan- to, não podem ser socializados” (SAVIANI; DUAR- TE, 2012, p. 2). Definida como estratégica a posição da escola, verifica-se a centralidade do trabalho do professor, ainda mais se o percebemos como capaz de interferir na produção da humanidade, no sentido da apropriação das [...] propriedades do mundo real (ciência), da valo- rização (ética) e da simbolização (arte). Tais aspec- tos, na medida em que são objeto de preocupação explícita e direta, abrem a perspectiva de uma ou- tra categoria de produção que pode ser traduzida pela rubrica “trabalho não material”. Trata-se aqui da produção de ideias, conceitos, valores, símbo- los, hábitos. Numa palavra, trata-se da produção do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultu- ra, isto é, o conjunto da produção humana. Ob- viamente, a educação situa-se nessa categoria de trabalho não material (SAVIANI, 2008, p. 12-13). Dito de outra forma, a disputa de projetos que se dá no chão da escola operará sempre num campo material e simbólico. Não Jonas Magalhães4 por acaso, as Reformas da Educação (1990-2000) compreenderem não apenas o processo de reestruturação da escola,11 de reengenha- ria do trabalho docente, de flexibilização dos marcos regulatórios do trabalho, mas também de serem acompanhadas por produções discursivas que, hoje em dia, se baseiam, como adverte Frigotto (2015), em recente atualização de seu clássico, nas novas noções surgidas no campo educacional, como sociedade do conhecimen- to, qualidade total, formação por competências e empregabilida- de. Frigotto (2015) conclui que estas noções radicalizam o caráter ideológico da noção de capital humano, mascarando a regressão so- cial e educacional subjacente. No campo desta regressão, acrescen- tem-se a construção do ódio aos professores e a criminalização do trabalho docente.12 Diríamos mesmo que, no Brasil, os perigos da escola ganham uma roupagem específica, focada na desconfiança no trabalho do professor, na negação/recusa da educação de gênero e da pluralidade religiosa. O exame que se pretende aqui articula três das várias dimen- sões do problema: a reestruturação produtiva das escolas; a Refor- ma do Ensino Médio e o avanço do Movimento Escola sem Partido, por considerar que, embora se apresentem de forma dissociada, são partes de uma totalidade interessante para se conhecer. Trabalho e produção no chão da escola: aproximação teórica Ainda que se considere o conjunto dos trabalhadores envolvi- dos no processo desenvolvido na escola, aqui compreendidos todos como educadores, verifica-se a centralidade do trabalho docente na 11 Sirvo-me aqui da ideia de reestruturação das escolas como método de cotejamento com aquilo que a literatura nomeou reestruturação produtiva, ao definir, como fez Harvey (2002), o novo processo de acumulação flexível. Este supera e mantém o fordismo e implica a implantação de inovações tecnológicas – notadamente informacionais – na produção; na flexibilização das rotinas de trabalho; na reengenharia do poder no interior das organizações; e na afirmação de fórmulas superficiais de cooperação entre os trabalhadores. Também me valho das questões de investigação daquele autor ao inferir se o processo levaria à qualificação, à desqualificação ou à qualificação/ desqualificação dos trabalhadores. 12 Os termos intitulam um dos primeiros textos a propósito do Movimento Escola sem Parti- do. Confira-se PENNA, F. Ódio aosprofessores. Disponível em: <https://liberdadeparaensinar. wordpress.com>. Acesso em: 14 out. 2015. Trabalho docente sob fogo cruzado 5 criação e implementação de projetos e programas levados a cabo por esta instituição. Será? Particularmente no período recente, en- tre os anos 1990 e 2016, verifica-se intenso processo de reestrutu- ração produtiva das escolas tendo como meta e foco a destituição de competências dos profissionais de educação, incidindo dramatica- mente sobre sua autonomia, com implicações na pedagogia pratica- da e na capacidade formativa das novas gerações. A crescente meca- nização do trabalho docente indica que estamos diante da transição da expectativa e e da perspectiva de o professor constituir-se como intelectual, além de sua crescente subsunção a lógicas externas a seu trabalho. Como a reestruturação se dá no nível do processo e não das relações de trabalho,13 já que, embora haja a flexibilização da regulação dele, o assalariamento segue sendo sua forma fundamen- tal de contratação, é pertinente a apropriação das categorias profis- sionalização e proletarização para tentar uma aproximação com o universo que pretendo conhecer. O trabalho docente tem suscitado pesquisas e interpreta- ções diversas quanto à sua natureza e e à sua função na sociedade capitalista. Num balanço da produção acadêmica sobre o tema, na década de 1990, Tumolo e Fontana (2008) encontraram uma prevalência das análises baseadas no binômio profissionalização- -proletarização docente. Segundo estes autores, notabilizou-se na- quele período uma leitura da realidade baseada na obra de Enguita (1991), que considerava antagônica a relação entre os dois referidos processos. Da análise das obras selecionadas do período, Tumolo e Fon- tana concluem: 13 Está em Marx a distinção entre “processo de trabalho” e “relação de trabalho”. A primeira expressão nomeia o trabalho em si, suas formas e produtos. Já a segunda nomeia a relação que mantém os trabalhadores para produzir: se escravos, assalariados etc. No caso dos professores, somos hoje hegemonicamente assalariados e produtivos, embora na argumentação de Tumolo (2008) os professores da rede privada sejam produtores de mais-valia e estejam, portanto, numa relação de trabalho tipicamente capitalista. Enquanto isso, os das redes públicas não produziriam mais-valia. Jonas Magalhães6 [...] é possível constatar que a proletarização do trabalho docente é concebida como um processo inerente à desqualificação e precarização do traba- lho docente, em decorrência das mudanças ocorri- das na sociedade capitalista e, como consequência, no processo de trabalho do professor. Ao contrário da proletarização, a profissionalização é afirmada como um movimento que promove a categoria do magistério à consolidação desses trabalhadores como profissionais (2008, p. 64). Além disso, percebem uma apropriação oscilante em rela- ção ao sentido de trabalho produtivo e improdutivo no capitalismo e em relação ao trabalho docente. Para os autores, está em Marx a ideia de que “trabalho produtivo é aquele referente ao processo de produção capitalista, ou seja, é trabalho que produz mais-valia, e consequentemente, capital” (TUMOLO; FONTANA, 2008, p. 166). Encarado desta maneira, trabalho produtivo está presente em toda relação de produção capitalista, não importando se agrícola, fabril, ou na escola. Mesmo considerando que os trabalhadores da educação são hoje hegemonicamente assalariados, os autores dife- renciam aqueles que trabalham para empresas privadas e produzem mais-valia – trabalhador produtivo – e aqueles que trabalham para o Estado e, para eles, considerados trabalhadores improdutivos. Ci- tando Marx, definem: Se for permitido escolher um exemplo fora da es- fera da produção material, então um mestre-escola é um trabalhador produtivo se ele não apenas tra- balha a cabeça das crianças, mas extenua a si mes- mo para enriquecer o empresário. O fato de que este último tenha investido seu capital numa fábri- ca de ensinar, em vez de numa fábrica de salsichas, não altera nada a relação (MARX, 1984, p. 105- 106 apud TUMOLO; FONTANA, 2008, p. 168). Em contraposição, percebem o trabalho do professor da esco- la pública como improdutivo, já que, “[...] embora venda sua força de trabalho ao Estado, ele produz um valor de uso e não um valor Trabalho docente sob fogo cruzado 7 de troca e, portanto, não produz(iria) valor nem mais-valia” (idem, p. 168 – grifo nosso). Para os autores, estes professores não estabe- leceriam uma relação de produção tipicamente capitalista. O tema é polêmico. Para Tumolo e Fontana (2008), a maior parte das obras encara o processo de proletarização como produto da degradação do pro- cesso de trabalho. Assim, esquece-se de que o fenômeno da proleta- rização não se refere ao processo de trabalho mais ou menos quali- ficado ou autônomo. Refere-se, sim, à relação de produção mantida pelo indivíduo para a execução do trabalho. Sendo a classe social definida para os autores, antes de tudo, pelas relações de produção, seriam proletários os professores assa- lariados em escolas privadas. Em uma crítica a Enguita, afirmam: “Ele não percebeu que a discussão sobre profissionais, ou categoria profissional, é referente ao processo de trabalho e que a de proletário diz respeito ao proces- so de produção do capital” (idem, p. 172). Se tentarmos argumentar dessa forma, a categoria profissão e os significados de profissionalização se tornam estratégicos para compreender os alcances da reestruturação das escolas. Advirta-se desde logo que estamos falando de formas de trabalho que não su- peram nem comprometem. Muito pelo contrário: aprofundam e exacerbam o assalariamento. Em busca de mais referências, recorremos a Nóvoa (1992), que fixou um ponto importante da definição do que virá ser a pro- fissão: a consolidação de novas regulações e dispositivos de tutela pelo Estado ou o desenvolvimento científico da profissão no quadro de uma autonomia contextualizada. Para o autor, a formação é cen- tral neste debate que depende das visões da profissão docente. No campo da sociologia estruturalista, profissionalização é inserção na regulamentação própria da profissão. Para os funciona- listas, profissionalização é adesão aos valores científicos e práticos do grupo profissional. Para os interacionistas, é socialização na cul- tura professional. Jonas Magalhães8 Importa-nos perceber o deslocamento vivido entre o re- latório da UNESCO/OIT, de 1966, que enfatizava a “Condição Docente” e propunha um reforço à análise dos condicionantes, da qualificação e da desqualificação do trabalho, no trabalho. No rela- tório Delors, produzido pela UNESCO, que desloca a ênfase para a “expectativa de que os professores cumpram sua missão com de- dicação e com um profundo sentimento de suas responsabilidades” (1996, p. 166). Perrenoud focaliza os objetivos comuns, a ética partilhada e uma deontologia própria como critérios de profissionalização. Para eles, “a profissionalização cresce quando, no ofício, a realização de regras preestabelecidas dá lugar a estratégias orientadas por objeti- vos e por uma ética” (1999, p. 60). Não raramente, ouvimos em entrevistas com professores o quão traumáticos foram seus processos de inserção na profissão. Choques de realidade e dissabores, em geral, marcam boa parte das suas memórias. É notável também o papel formativo ocupado pe- los colegas mais experientes na profissão. Muitos professores lem- bram-se com carinho daquela mão ou do exemplo que receberam no início da carreira. Uma visão da profissão emanada dos movimentos da catego- ria14 afirma que: a construção de uma escola pública de qualidade demanda profissionais de qualidade, isto é, com só- lida formação intelectual, política, cultural e peda- gógica, bem como com condições adequadas para a realização do trabalho docente. Essas condições se concretizam por meio de uma carreira docen- te que valorize o trabalho coletivo,a participação docente na construção e efetivação do projeto 14 Documento elaborado pelas seguintes entidades: Associação Nacional pela Formação dos Pro- fissionais da Educação (ANFOPE), Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) e Fórum Nacional de Diretores de Faculdades e Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras (FORUMDIR), com base nas contribuições de pesquisadores vinculados às mencionadas entidades em seminário realizado em Brasília, nos dias 26 e 27 de maio de 2011. Trabalho docente sob fogo cruzado 9 pedagógico da escola, a permanência e dedicação a uma única unidade educacional, com jornada de trabalho que inclua as atividades de interação com os educandos e aquelas relativas ao estudo, planejamento e avaliação; por meio da garantia de formação contínua como direito fundamental da profissão docente, que se realiza tanto em cursos (de atualização, aperfeiçoamento, especialização, mestrado e doutorado) quanto em momentos de discussão e reflexão coletivas construídas na di- nâmica dos processos de trabalho na escola (DA- MASSENO; OTRANTO, 2014, p. 10). Em pares antitéticos, a profissionalização está em disputa e polariza por um lado a valorização dos saberes docentes e dos co- nhecimentos por eles produzidos; a autonomia relativa do profes- sor; a valorização da carreira docente e das condições de trabalho; o tipo e as condições de formação e as formas de socialização na profissão. Por outro lado, as reformas instituem um novo léxico e rebatizam o professor como profissional do magistério15; responsa- bilizam o professor pela qualidade da escola e pela possibilidade de reverter a crise da escola; e implantam modelos como a padroniza- ção da atividade e da avaliação docente no processo que resulta na redução das competências deste indivíduo. Para Ramos (2009, p. 209), a Pedagogia das Competências atribui aos professores o papel de “[…] negociar e conduzir proje- tos com os alunos, propondo situações problemas e negociando-as para que se tornem significativas e mobilizadoras para os alunos”. Desse modo, o professor deve identificar e ajudar o aluno a identi- ficar o obstáculo e torná-lo ponto nodal da ação pedagógica, o que representaria um esvaziamento profissional, aproximando-se das proposições de Dewey para quem o mestre era um guia das inicia- tivas dos alunos. Segundo a autora, as políticas públicas baseadas em competências, por um lado, “despertam o (neo)pragmatismo; por outro, um (neo)tecnicismo” (RAMOS, 2011, p. 205). Assim, 15 O Censo do Professor (INEP, 1997) passa a chamar-se Censo do Profissional do Magistério (2003), por exemplo. Jonas Magalhães10 reduzem as chamadas competências profissionais aos desempenhos observáveis; reduzem a natureza do conhecimento ao desempenho que pode desencadear; consideram a atividade profissional com- petente como uma justaposição de comportamentos elementares cuja aquisição obedeceria a um processo cumulativo; e não colo- cam a efetiva questão sobre os processos de aprendizagem, que subjazem aos comportamentos e desempenhos: os conteúdos da capacidade. Uma dimensão capturada por Nóvoa, na década de 1990, em Portugal, aponta para esta destituição de competências do professor com a mudança da visão burocrática centralista por uma função de regulação-avaliação que prolongou o controle sobre os profissionais docentes. Segundo o autor: Prolonga-se uma tutela estatal sobre o professora- do, entendido como um corpo profissional sem ca- pacidade de gerar autonomamente, ad intra, os sa- beres e os princípios deontológicos de referência: uns e outros têm que lhes ser impostos do exterior, o que acentua a subordinação docente (NÓVOA, 1990, p. 10). A verdadeira reestruturação produtiva do ensino, levada à cabo pelas reformas, implica formar e formar-se na e para a poli- valência e a flexibilidade, a fim de garantir a empregabilidade; na desregulamentação/flexibilização das relações de trabalho: pro- fessores substitutos, temporários; na depreciação das condições de trabalho; no esfacelamento do espaço público; na ampliação do condicionamento da educação em relação ao mercado; no merca- do da Formação Docente; na expansão dos critérios técnicos de eficiência e produtividade para avaliação da atividade docente; na hipertrofia das funções da escola; na pressão do desemprego (intra e extra) profissão; na reconfiguração identitária; na certificação dos professores pela conformidade; e no Estado intensamente re- gulador no campo da formação de professores (ALVES; CANÁ- RIO, 2008) Trabalho docente sob fogo cruzado 11 O tema foi tratado por Nóvoa (1992), diferentemente de Tu- molo e Fontana (2008), em termos de proletarização docente, fenô- meno que passaria por: • Separação entre concepção e execução na prática pedagógica. • Separação entre o saber coletivo e da experiência e o es- vaziamento deste espaço pela intensificação do trabalho. • Degradação do estatuto profissional, dos rendimentos e do poder/autonomia. • Estandartização das tarefas. • Intensificação que deprecia a experiência e as capacidades adquiridas coletivamente. • Autoestima profissional combalida. Mais uma vez, Nóvoa (1990) é paradoxal: “[...] a profissio- nalização do ensino fez-se à custa do saber experiencial” (1995, p. 17), podendo até adaptar-se a expressão de Anthony Giddens e de- nunciar a “confiscação da experiência” (GIDDENS, 1991 apud NÓ- VOA, 1995, p. 17). Neste cenário, de deslocamento do ethos educativo do campo da humanização e transformação social para o da adaptação ao mo- vimento do mercado, segundo Evangelista e Leher (2012), a for- mação de professores poderia ser deslocada das universidades para agências privadas. Em parte, isso acontece. Porém, como a disputa de sentido ocorre também quanto ao papel das universidades, no caso brasileiro, assistimos à progressiva adesão de setores acadê- micos ao ethos da sociedade de mercado. Dessa forma, não fere o projeto de restruturação do trabalho docente manter a universi- dade, notadamente a pública, como uma das principais agências de formação, bem como a articulação das universidades com setores empresariais para o desenvolvimento da chamada inovação. Trabalho de professor sob fogo cruzado Em 1993, Jorge Mattoso, professor de economia da Univer- sidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pesquisador do Centro Jonas Magalhães12 de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT), da mesma instituição, concluía sua tese de doutorado intitulada Trabalho e desi- gualdade social no final do século XX. Da tese, nasceu o famoso artigo “Trabalho sob fogo cruzado”, publicado no ano seguinte na revista São Paulo em Perspectiva. Em seus estudos, o autor evidenciava os impactos constrangedores e destrutivos da reestruturação produ- tiva em relação aos postos de trabalho, explicando o fenômeno do desemprego em suas causas estruturais. Em 1999, Márcio Pochmann, professor e pesquisador da UNICAMP e do CESIT publicaria o livro O trabalho sob fogo cruzado: exclusão, desemprego e precarização no final do século, atualizando dados e discutindo o tema na realidade brasileira. Da análise resultante da produção associada, depreendiam-se o agravamento da questão e o adensamento da reflexão crítica. Em sentido semelhante, embora muito mais modesto, sirvo- -me aqui do texto “A reestruturação do trabalho docente: precari- zação e flexibilização”, de Dalila Andrade de Oliveira, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Ge- rais (UFMG), publicado em 2004, na Revista Educação e Sociedade, a quem agradecemos a possibilidade do diálogo. No texto em questão, a professora analisava os efeitos das reformas educacionais em curso entre os anos 1990 e 2000 e con- cluía que estas vinham implicando profundas mudanças na natu- reza do trabalho escolar. No esforçode descrever a nova regu- lação das políticas educacionais no Brasil, a autora destacava a centralidade atribuída à administração escolar nos programas de reforma, ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensi- no Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF) e à ampliação dos exames nacionais de avaliação, entre outros, como fatores da [...] reconfiguração das redes nos seus aspectos fí- sicos e organizacionais e que tem se assentado nos conceitos de produtividade, eficácia, excelência e eficiência, importando, mais uma vez, das teorias Trabalho docente sob fogo cruzado 13 da administração as orientações para o campo pe- dagógico (OLIVEIRA, 2004, p. 1130). Preocupada com o tema, e com as lacunas da produção acadê- mica a seu respeito, a autora conclamava ao estudo tanto das “condi- ções atuais de trabalho nas escolas quanto (das) formas de resistên- cia e conflito que são manifestas nessa organização” (idem, p. 1128). Além disso, atentava para as “relações de trabalho dos profissionais da educação, a começar por aquelas concernentes ao processo de trabalho na escola e os procedimentos normativos que determinam a carreira e a remuneração docente [...]” (idem, p. 1130). Para tan- to, elegia como chave de compreensão o estudo dos processos de desvalorização, desqualificação, desprofissionalização e proletariza- ção docentes. São precisamente esses os temas e problemas eleitos pelo GT Trabalho, Práxis e Formação Docente, formado em 2015, no uni- verso do Grupo These de Pesquisa, que agrega profissionais da UFF, UERJ e FIOCRUZ, além de colegas de todo o Brasil. Para a autora, tais reformas teriam a marca da padronização e da massificação de processos administrativos e pedagógicos, sob a marca da universalidade, o que possibilitaria baixar custos e ampliar o controle central dos gestores. Ainda segundo ela, a expansão da educação básica estaria sendo feita com a sobrecarga e a responsa- bilização dos professores em meio às condições inexistentes e ao recurso ao maior envolvimento da comunidade. Diante da amplia- ção das funções atribuídas à escola, os professores sofreriam com a desprofissionalização, a desqualificação e a desvalorização, já que “as reformas em curso tendem a retirar deles a autonomia, entendida como condição de participar da concepção e organização do seu trabalho” (idem, p. 1132). Numa observação, talvez marcada pelas expectativas daquele contexto, entretanto, Oliveira destaca: O trabalho docente não é definido mais apenas como atividade de sala de aula, ele agora com- preende a gestão da escola no que se refere à dedi- Jonas Magalhães14 cação dos professores ao planejamento, à elabora- ção de projetos, à discussão coletiva do currículo e da avaliação. O trabalho docente amplia seu âmbito de compreensão e, consequentemente, as análises a seu respeito tendem a se complexificar (idem, p. 1132). Embora reconheça que as teses sobre a desvalorização e a des- qualificação do trabalho docente sejam amplamente aceitas no pe- ríodo em que escreve, a autora sugere a necessidade de atualização do debate frente às mudanças mais recentes nas escolas. A partir daí, o texto investiga em Enguita (1991) a ambiguidade do proces- so de profissionalismo e proletarização vivida pelo professorado. Dessa forma, apresenta a tese da profissionalização não como ca- pacitação, qualificação, conhecimento e formação, mas como uma “expressão de uma posição social e ocupacional, da inserção de um tipo determinado de relações sociais de produção e de processo de trabalho” (ENGUITA, 1991 apud OLIVEIRA, 2004, p. 1133). Seriam profissionais aqueles que gozam de plena autonomia em seu processo de trabalho e não se submetem à regulamentação alheia. A proletarização seria, para Enguita, o inverso da profissionalização, como se viu antes na crítica de Tumolo e Fontana (2008). Segundo Oliveira, A discussão que se colocava à época (décadas de 1970 e 1980) está relacionada, então, à busca de uma autoproteção dos professores e demais traba- lhadores da educação por meio da profissionaliza- ção. [...] Esta seria a “condição de preservação e garantia de um estatuto profissional que levasse em conta a autorregulação, a competência específica, rendimentos, licença para atuação, vantagens e be- nefícios próprios, independência, etc. A discussão acerca da autonomia e do controle sobre o trabalho é ponto fulcral (idem, p. 1133). Ao dialogarmos com a autora, percebemos que o que era àquela altura uma possibilidade, anunciada pelas lutas sindicais da categoria em defesa da profissionalização que continha em si um Trabalho docente sob fogo cruzado 15 sentido de autonomia profissional, metamorfoseou-se numa uto- pia mais distante frente ao avanço de padronização, apostilagem, propostas curriculares centralizadas e avaliações externas. Se, no momento em que Dalila escreve, estes eram dados oriundos dos países centrais do capitalismo, verificamos a decisiva mundialização da educação desde então. O controle técnico sobre o currículo das escolas (APPLE, 1995 apud OLIVEIRA, 2004, p. 1134) é hoje uma realidade mais que material em tempos de Currículo Único na Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro e da muito breve implementação da Base Nacional Comum Curricular. Ele serve, a um só tempo, como ma- triz definidora da política nacional de formação de professores, avaliação do livro didático e referência curricular para os exames nacionais de avaliação. Os processos de consulta e participação dos professores na construção desses modelos merece detida atenção. Embora apresentados e incensados como democráticos, esses pro- cessos não passam de escutas pontuais, hegemonicamente através de métodos individuais, que não conseguem representar um avan- ço na mobilização e na reflexão coletiva dos professores acerca do tema. Ao fim e ao cabo, representam mais a força de grupos e or- ganizações de pressão como o Movimento pela Base, que, fruto do poder econômico e político a ele associados, consegue repercutir, como vontade geral, sua própria vontade.16 No texto de Oliveira, que nos inspira esta leitura, a aproxi- mação com o debate sobre a desprofissionalização se dá por meio da mediação da leitura de Rodrigues (2002), autora portuguesa que considera que o processo se deve [...] a emergência de consumidores menos passi- vos e com maiores expectativas de participação, a escolarização universal e generalizada, implicando em melhoria nos níveis educativos e informacio- nais dos indivíduos, e, ainda, o aumento da espe- cialização teria como consequência a perda, por 16 Exemplar, neste caso, parece ter sido a polêmica em torno da primeira versão da BNCC de História e a forma de superação da polêmica por meio da imposição de uma nova versão “oficial”. Jonas Magalhães16 parte dos profissionais, da confiança dos clientes, o que resultaria em perda de autonomia, do poder e da autoridade (idem, p. 1134). A hipótese aceita por Oliveira a conduz a refletir sobre as im- plicações do avanço da gestão democrática e a consequente amplia- ção dos mecanismos de participação da comunidade nos processos decisórios da escola como fatores de ameaça “às supostas garantias de exclusividade sobre determinados terrenos [...] Muitos profes- sores veem-se ameaçados quando a chamada ‘caixa preta’ da sala de aula é desvelada [...]” (idem, p. 1135). Embora sejam consideradas válidas para uma parcela do universo de professores as afirmativas acima, cabe destacar o encurtamento da noção de autonomia docente quando aproximada da ideia de exclusividade ou do mando único. Até onde consegui- mos enxergar, o efeito da democratização da gestão escolar tem sido muito mais um discurso do que uma prática efetiva. Os conselhos escolares raramente existem, da mesma forma que as nomeações para diretor seguem sendo moeda de troca política.17 Na falta destes e de outros espaços de participação qualificada, a presença/pressão da comunidade escolar – no que diz respeito aotrabalho dos pro- fessores – mantém-se no nível da relação pessoal, quando não da intimidação e da ameaça. Este é, precisamente, um dos terrenos de consolidação e expansão do ódio e da criminalização dos profes- sores. Obviamente, tal fenômeno não se refere exclusivamente ao ambiente escolar, mas reflete para este ambiente o universo mais amplo de conflitos ético-políticos de nosso tempo. Assim, há, tanto entre os pais quanto entre os alunos e professores, diferentes pos- turas e expectativas em relação ao papel da escola e ao trabalho do professor.18 17 Observe-se, por exemplo, que um dos pontos de pauta das ocupações estudantis nas escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro, ao longo de 2016, foi a regularização de eleições livres. 18 A forma como este conflito se explicitou no Colégio Pedro II, no Rio de janeiro, talvez seja exemplar do que afirmo aqui. Desde o fenômeno potencializador do conflito, quando da libe- ração do uso de uniformes por condição de gênero e não sexual, passando pela intervenção do Ministério Público, no caso da intimação de dirigentes sindicais no caso das faixas “Fora Temer”, Trabalho docente sob fogo cruzado 17 De outro lado, porém, parecem potentes as observações de Ro- drigues (2001, p. 71 apud OLIVEIRA, 2004, p. 1135), segundo as quais: “A tendência para a desprofissionalização assenta naquilo a que se pode chamar mecanismos de desqualificação dos profissionais, de perda ou transferência de conhecimentos e saberes, seja para os con- sumidores, o público em geral, os computadores ou os manuais.” Uma situação implacável neste sentido tem sido a entrada na escola de dife- rentes empresas e organizações privadas, no contexto do movimento Todos pela Educação. Operando com métodos diversos, estas institui- ções têm primado pela “captura” de saberes docentes, transformados em métodos de ensino exógenos, posteriormente apresentados como “Solução Educacional”. Para Neves (2014), o processo aparta os pro- fessores da condição de intelectuais do processo de ensino e apren- dizagem e favorece uma “privatização de novo tipo [...] um processo organicamente articulado de difusão e legitimação de preceitos das organizações privadas nas instituições públicas” (2014, p. 41). Em tempos de afirmação da Reforma do Ensino Médio e da afirmação crescente da ideia de notório saber19 como requisito ne- cessário e suficiente para o exercício da docência, soam distantes a perspectiva de Rodrigues (2002), a partir de Wilensky para quem a profissionalização seria “[...] uma ocupação que exerce autoridade e jurisdição exclusiva simultaneamente sobre a área de atividade e de formação de conhecimento, tendo convencido o público de que os seus serviços são os únicos aceitáveis” (idem, p. 1136). A conclusão da autora indica que e chegando-se à ocupação de campi escolares e da greve de professores. Com diversas unidades escolares ocupadas pelos estudantes, o professorado em greve e os pais divididos entre “apoiado- res”, “críticos” e “violentamente críticos” em relação às ocupações; e os estudantes, estes também, divididos entre apoiadores e críticos. Hoje existem no CPII, entre outros, o Movimento Pais contra as Ocupações e CPII Diverso e Democrático. 19 O Blog do Freitas noticiou, em novembro de 2016, que, confirmando suas suspeitas, a expan- são da noção de notório saber para além das disciplinas do ensino técnico e profissional já estava em curso, em São Paulo. “Alertamos que isso escondia intenções mais amplas de desqualificação e desregulamentação da profissão e que estimularia a ampliação para as demais áreas do ensino básico.” A proposta do deputado Rodrigo Moraes do DEM que tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo propõe a ampliação da noção de notório saber para todas as áreas da educação básica. Jonas Magalhães18 [...] a autonomia e o controle sobre o recrutamen- to, formação, títulos e monopólios seriam prer- rogativas de poder extensivas às profissões esta- belecidas. [...] Contudo, o magistério não chegou a constituir-se solidamente como uma profissão, claro está que não deixa de sofrer processos de desprofissionalização (idem, p. 1137). Oliveira então conclui, e aqui marcamos profunda distinção de enfoque, que o processo de reestruturação do trabalho docen- te vem exigindo, assim como para os demais trabalhadores “[...]o desenvolvimento de habilidades cognitivas e comportamentais, em substituição aos modelos de qualificação, calcados no treinamento e na especialização[...]” (idem, p. 1138). A observação do fenômeno na atualidade revela ênfases diferentes. A chegada decisiva dos mé- todos de controle informacionais e o avanço das concepções con- servadoras a propósito do ato de ensinar tem conduzido à crescente mecanização pragmática do trabalho docente. Nas redes públicas e/ ou nos sistemas de ensino, contanto com razoável anuência dos res- ponsáveis – e mesmo, de professores –,20 planejamentos prontos e apostilas compradas e vendidas vêm substituindo a criatividade do- cente, reduzindo seu espaço de autonomia e mitigando as relações de ensino e aprendizagem. Além disso, considere-se a disputa em torno da concepção de formação docente como um elemento revelador do processo. Se, por um lado, a Reforma do Ensino Médio estabelece que a Base Nacional Comum Curricular passaria a servir de paradigma para a formação de professores – evidentemente incidindo na mecani- zação e no treinamento –, renomados pesquisadores da área21 têm 20 Não suponho o professorado como todo monolítico, conservador ou progressista. Tampouco percebo que a adesão aos métodos facilitadores e mecanizantes tenha causa única. A degradação das condições de trabalho, a sobreposição de cargas horárias, escolas e alunos que vem gerando o chamado “professor-táxi” – aquele que, para cumprir sua carga horária, é forçado a se dividir entre três, quatro diferentes escolas –, talvez sejam algumas das razões de adesão. Por outro lado, a sobrevivência da pedagogia jesuítica, difusa na sociedade, ajuda a afirmar métodos de educação bancária. 21 Bernadete Gatti é uma delas. Trabalho docente sob fogo cruzado 19 feito coro com a ideia de que as licenciaturas se afastaram de seus objetivos. Seguros do caminho a seguir, recomendam a diminuição das cargas horárias dedicadas à formação geral e filosófica e a am- pliação de cadeiras técnicas e das metodologias. O paralelo com o caso português salta aos olhos. Também lá, nos anos iniciais da Reforma, importantes intelectuais produziram denúncias desqualificantes dos docentes. Nuno Crato (2006), que viria a ser Ministro da Educação em anos posteriores e se notabili- zou com seu livro O Eduquês em discurso direto: uma crítica à pedagogia romântica e construtivista, foi um deles. Nesta linha de argumenta- ção, embora com adensamento conservador, temos no Brasil o livro Professor não é educador, de Armínio Moreira (2013). Assentando-se num dos temas que muito preocupam os professores – a indiscipli- na –, o livro propõe que diretores de escola formados em Admi- nistração e rígidos métodos disciplinares liberariam os professores para sua função precípua: instruir os alunos. A confluência deste conjunto é, lamentavelmente, o ódio e a criminalização dos professores, se estes desempenham suas funções com a autonomia profissional desejada desde muito. O que parecia um grito solto no ar reverbera em diferentes vozes: surge o Movi- mento Escola sem Partido. Ele afirma que: a doutrinação político-ideológica em nossas esco- las é um problema muito real em nosso país. Eu di- ria até, por razões que ficarão mais claras adiante, que o cartaz que causou tremenda indignação nas redes sociais ao conter os dizeres “Chega de dou- trinação marxista! Basta de Paulo Freire!” expressa um dos diagnósticos mais lúcidos da crise política que o país está vivendo neste momento (MATOS, 2015, p. 7). Apoiando-se num pretenso cálculo matemático de impacto, o professor contabiliza os formandos anuais das licenciaturas, e parti-cularmente dos cursos de pedagogia, para concluir que estaríamos falando de muita gente para instruir com vistas a tornar o Brasil melhor, mas que acaba trabalhando para doutrinar ideologicamente Jonas Magalhães20 os estudantes e catapultar o país para trás. Considera, ainda, que a doutrinação político-ideológica “[...] é mais grave nos cursos de Pedagogia do que nos demais cursos de licenciatura, [...] porque a doutrinação política e ideológica parece já ter se tornado hegemô- nica nessa área” (idem). Para o representante do Escola sem Partido, “[...] mesmo que se engajem na militância político-ideológica, professores de mate- mática, física e química não têm como desincumbir-se totalmente da tarefa de ensinar conteúdos científicos consagrados” (idem). Já nos cursos de Pedagogia, os professores se preocupariam menos em preparar seus alunos para saber ensinar as crianças a ler, escrever e fazer contas; e mais com a formação de cidadãos críticos. Seria uma evidência da doutrinação ideológica por eles praticada. Segundo o relatório do evento mencionado acima, todos os professores convidados para falar concordaram com este diagnósti- co. De qualquer forma, impõe-se como verdade que um coletivo de professores estava de acordo. Além disso, em tempos de fragilidade das convicções democráticas, fica claro o perfil de professor espera- do por esse grupo: aquele que ensina a ler, escrever e contar; ensina conteúdos científicos consagrados; e afasta-se da tarefa de formar cidadãos críticos. Num par contraditório, sustenta-se a necessidade do profissional que instrui, o instrutor, e a desnecessidade do pro- fissional que forma, o professor. A partir daí, institui-se o programa Escola sem Partido22 que pretende alterar a LDB 93.094/1996 e instituir a criminalização dos professores “doutrinadores”. Segundo Penna (2016, p. 44), o programa “Escola Sem Partido” tem uma forte ligação com o Rio de Janeiro, uma vez que foi um deputado estadual fluminense que teve a iniciati- 22 O Movimento Escola sem Partido surge em 2004, enquanto a iniciativa legal tem suas primei- ras aparições em 2014, nos Projetos de Lei Estadual nº 2.974/2014, ALERJ 15/05/2014 e PL 867/2015, de 03/06/2014, ambos sob os auspícios da família Bolsonaro. Somente em 2015, pelo PL 867/2015, de Izalci Lucas (PSDB-DF), propõe-se a inclusão do Escola sem Partido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A partir daí, começa a multiplicação do projeto em Projetos de Lei estaduais e a expansão da condenação para o que denominam “ideologia de gênero”. Trabalho docente sob fogo cruzado 21 va de criá-lo. O deputado estadual Jair Bolsonaro pediu ao coordenador do movimento Escola Sem Partido Miguel Nagib que formulasse o projeto com base em suas propostas. Reescrito e apresentado em diferentes câmaras municipais e assembleias legislativas nos estados, o programa vem sendo aprova- do, no todo ou em parte, em várias regiões do país. Não obstante, a manifestação da Procuradoria Geral da República que, atendendo às Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5.535/AL e 5.580/AL afirmou que a Lei “Escola Livre” – que institui o Escola sem Partido em Alagoas – é inconstitucional e os protestos do movimento “Pro- fessores contra o Escola sem Partido”, a tensão nas escolas continua a elevar-se. Os partidários do programa afirmam que os “professores doutrinadores” usurpam da incapacidade dos estudantes frente aos seus argumentos, mantendo um “público cativo” que, de certa for- ma, admira(ria) seus algozes, reprisando a síndrome de Estocolmo. Diante disso, em seu site, ensinam os responsáveis a flagrar e de- nunciar esses mesmos professores (PENNA, 2016). A dinâmica da realidade com jovens ocupando suas escolas e universidades, ativos nas redes sociais, produzindo e difundindo concepções diversas pa- rece, entretanto, contradizer as afirmativas. Desemprego de professor: a marca do fogo cruzado? Se o caso português serve como problematizador da nossa rea- lidade, estamos prestes a viver um tempo de desemprego em massa de professores, não obstante a urgência/premência/necessidade de docentes em todas as regiões do país. A reestruturação das escolas, com seus novos processos de gerenciamento e mecanização; a Reforma do Ensino Médio, com a afirmação tendencial do notório saber como critério de seleção de docentes; a extinção de disciplinas clássicas do currículo; e, ain- da, o estabelecimento da Base Nacional Comum Curricular como paradigma para a formação de professores, tudo isso, associado ao Jonas Magalhães22 processo de achincalhamento público pelas campanhas de desva- lorização, num contexto de esvaziamento do espaço público pro- vocado pela Emenda Constitucional 95 que inviabiliza concursos e contratações nos vários níveis da federação, leva a crer que es- tamos entrando num prolongado período de desemprego de pro- fessores. Foi/está sendo assim em Portugal. A reforma da Educação, implantada por lá desde o Acordo de Bolonha, produziu a mitigação da formação de professores, o fim do estatuto do funcionário pú- blico e da educação pública e gratuita, instituiu os exames nacionais de reenquadramento anual de professores – provocando mobilida- de nunca antes vista e, finalmente, o desemprego e o abandono da profissão. Ao contrário do que observa Oliveira, em 2004, para quem o processo de precarização das relações de trabalho “[...] não se circunscreve às relações de trabalho caracterizadas como aquelas intrínsecas ao processo de trabalho, mas compreende principalmente as relações de emprego, apresentando uma tentativa de flexibilização e até mesmo de desregulamentação da legislação trabalhista” (idem, p. 1138), as reformas têm logrado alcançar uma coisa e outra. O nexo construído ao final do texto por Dalila Oliveira me escapa completamente. Para a autora em tela, a escola tradicional, transmissiva, autoritária, verticalizada e burocrática mudou. E, ain- da que não estejamos numa escola democrática, pautada no traba- lho coletivo, [...] valores como autonomia, participação, demo- cratização foram assimilados e reinterpretados por diferentes administrações públicas, substantivados em procedimentos normativos que modificaram substancialmente o trabalho escolar. O fato é que o trabalho pedagógico foi reestruturado, dando lu- gar a uma nova organização escolar, e tais transfor- mações, sem as adequações necessárias, parecem implicar processos de precarização do trabalho do- cente (idem, p. 1140). Trabalho docente sob fogo cruzado 23 Ao que me parece, a autora com quem venho dialogando cul- tivava uma expectativa bastante positiva a respeito das possibilida- des de alteração do trabalho docente no contexto das reformas da gestão das escolas. Traição do objeto? Talvez. O fato é que a obser- vação do fenômeno hoje não nos permite esta leitura. O trabalho pedagógico foi/está sendo reestruturado e as adequações não fo- ram/estão sendo realizadas, pois essas medidas esvaziam a prática docente e são poupadoras de mão de obra. Referências AFFONSO, Cláudia. Relações (des)educativas entre o sindicalis- mo propositivo e o Estado no Brasil (1990-2000): contradições de uma experiência. 2007. Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. ALVES, N.; CANARIO, R. Educação, trabalho e identidades profissio- nais. Nota de apresentação da revista Sísifo. Revista de Ciências da Educação, Lisboa, n. 6, p. 2-6, maio/ago. 2008. BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. BOURDIEU, P. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGEUIRA, M. A.; CATANI, A. (Orgs.). Pierre Bour- dieu: Escritos de Educação. 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