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Feudalismo na Europa Ocidental

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Feudalismo
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Uma imagem típica da paisagem feudal: o castelo do senhor controlando as terras onde seus súditos trabalham. Iluminura em Les très riches heures du duc de Berry.
Feudalismo compreende o sistema político, econômico e social que predominou na Europa Ocidental entre o início da Idade Média até a afirmação dos Estados modernos, tendo seu apogeu entre os séculos XI e XIII. O conceito teórico foi criado nos séculos XVII e XVIII pelos advogados franceses e ingleses e popularizado pelo filósofo Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu.[1]
O feudalismo deve sua formação a uma série de fatores, entre eles a desagregação do Império Romano, o declínio da escravidão e do comércio, a ruralização da população, a formação de múltiplos senhorios e reinos bárbaros independentes, a incapacidade da maioria dos sacro-imperadores romano-germânicos em reconstituir uma unidade política abrangente e eficiente, a supressão do paganismo e o fortalecimento político da Igreja Católica e do movimento monástico. O feudalismo evoluiu lentamente até se tornar o modelo dominante na Europa, e se caracterizou, em sua forma madura, pela regionalização ou encelulamento do poder, ou seja, sua concentração em âmbito local nas mãos de uma aristocracia rural que dominava a terra com grande autonomia, e subjugava a maior parte da população através do poder de dominium. O sistema era garantido pelo monopólio das forças militares pela elite, pelo apoio da Igreja, por uma progressiva sustentação jurídica e ideológica, e por uma forte rede de obrigações entre os senhores feudais e seus vassalos e súditos.[2][3]
A partir do século XIII, com o surgimento de novas monarquias centralizadas e poderosas, a reurbanização da Europa, o reaquecimento e diversificação da economia, entre outros fatores, o sistema iniciou seu declínio, que se acelerou a partir do século XIV com a emergência do proto-capitalismo, a concorrência da burguesia, a substituição de grande parte dos servos por trabalhadores assalariados, a maior laicização da sociedade e grandes mudanças culturais, mas algumas instituições feudais, mais notadamente o feudo propriamente dito, perduraram na Europa até depois do fim do Antigo Regime.[3][4] O sistema foi típico da Europa, onde se desenvolveu com características únicas, mas vários historiadores vem tentando compará-lo com outros sistemas não-europeus, com resultados muito controversos.[3]
Sua imagem pública foi profundamente manchada com as revoluções burguesas, atendendo ao interesse da burguesia em afirmar a legitimidade e superioridade do seu próprio modelo, dissolvendo-se entre os séculos XIX e XX as últimas instituições feudais ainda remanescentes em regiões isoladas da Europa. Devido à negativa propaganda burguesa, por muito tempo o feudalismo foi visto como um sistema autoritário, violento, opressor e explorador, cuja economia era estagnada, cuja política era caótica, e que não tinha flexibilidade para admitir mudanças. Hoje entende-se que precisa ser reavaliado e sua história entendida em suas próprias bases e contexto, e não a partir de projeções judiciosas modernas sobre uma época em que todo o pensamento era diferente. Reconhece-se hoje que o feudalismo foi, também, coerente, dinâmico e adaptável, manteve-se em um estado de contínuo rearranjo sem alterar sua essência, perdurando por muitos séculos, e propiciou o desenvolvimento de novas técnicas e métodos de produção e trocas que impulsionaram um reflorescimento econômico a partir dos séculos XI-XII, com um rico paralelo nas artes, na arquitetura, na literatura e na cultura em geral. No entanto, estudos mais recentes vêm mostrando que o sistema foi muito menos homogêneo do que se pensava, com uma ampla variedade de formas de articulação nas diferentes regiões e ao longo do tempo, gerando um grande debate sobre sua definição e sobre a aplicabilidade dos antigos conceitos sobre o tema.[2][5][6]
Índice
1	Introdução
2	A formação do feudalismo
2.1	Vilas: uma tradição romana
2.2	A contribuição dos povos germânicos
2.3	O crescimento populacional
3	As ordens da sociedade feudal
4	Origem e natureza do poder feudal
5	O feudo
6	A economia feudal
6.1	Tributos
6.2	Cidades e comércio: nova paisagem
6.3	O comércio de longa distância
7	A cultura feudal
7.1	As heresias
7.2	O clero secular e o clero regular
7.3	Ensino, conhecimento e arte
7.4	As universidades
7.5	O conhecimento
7.6	Uma arte a serviço de Deus
8	O mundo feudal em transformação
8.1	As cruzadas
8.2	Declínio
9	Ver também
10	Referências
11	Bibliografia
12	Ligações externas
Introdução
Com uma multiplicidade de problemas a afectá-lo, Teodósio viu-se na necessidade de dividir o Império Romano em duas partes distintas. Uma sediada no Ocidente e outra com sede em Bizâncio, depois Constantinopla, atual Istambul. Sortes distintas tiveram estes territórios. O do ocidente acossado pelas contradições internas mas também assoladas com várias vagas de invasores, sucumbiu não conseguindo mais manter o seu poderio que lhe deu fama e abriu a porta a uma nova realidade, a fragmentação do poder em vários senhores, em suma o Feudalismo.[7]
A formação do feudalismo
Os romanos, a exemplo dos gregos, chamavam de "bárbaros" a todos aqueles que não tinham seus costumes e que não falavam sua língua. Entre esses povos, estavam os germanos, cujas invasões provocariam a desestruturação do Império Romano do Ocidente.[8]
A partir do fim do século III, com o enfraquecimento do poder de Roma, alguns povos que habitavam nas proximidades das fronteiras do Império começaram a se instalar pacificamente em seu território, como aliados, isto é, como colonos e, sobretudo, como soldados.[7]
No final do século IV, os hunos, povo guerreiro de origem asiática, chegaram a Europa oriental e mudaram esse quadro, acelerando o processo de desintegração do Império Romano. Praticamente empurrados pelas invasões dos hunos, os povos germânicos levariam de roldão as fragilizadas defesas das fronteiras romanas. Assim, francos, burgúndios, alamanos, ostrogodos, visigodos, anglo-saxões invadiam e pilhavam as cidades do Império.[8]
Migrações bárbaras em território romano entre os séculos IV e V
Em 410, os visigodos ocuparam a península Itálica, tomando e saqueando Roma. Os vândalos, por sua vez, avançaram pela Península Ibérica, atravessaram o estreito de Gibraltar e estabeleceram-se no norte da África.[7]
O golpe definitivo ocorreu em 476, quando Odoacro, chefe dos hérulos, destronou o imperador de Roma, pondo fim ao Império Romano do Ocidente. Esse acontecimento assinala a passagem entre Antiguidade e a Idade Média na Europa, mas também alguns historiadores acreditam em outras formas de passagem entre as mesmas, por exemplo: divisão do império em oriente e ocidente, deposição do último imperador no ocidente ou a liberdade de culto para os cristãos.[9]
Assim, ao término do século V, toda a porção ocidental do Império Romano, agora sob o domínio dos germanos, começava a assumir uma configuração inteiramente diversa, do ponto de vista de sua organização social, política e econômica. Era o mundo feudal que começava a se formar.[7]
Mas seriam necessários mais de três séculos para que as estruturas da nova sociedade estivessem plenamente consolidadas. Nesse período, a administração centralizada do Império Romano daria lugar a diversos reinos, como o dos ostrogodos, o dos francos e outros nos quais vigoravam formas descentralizadas de poder.[10]
De todos os reinos feudais, o mais duradouro foi o dos francos. Por volta do século IX, seu poder era tão grande que alguns acreditavam na possibilidade de o Império Romano do Ocidente voltar a surgir.[11]
A base social dos reinos feudais se constituiria a partir do encontro e da combinação de tradições, costumes, crenças e estruturas sociais herdadas dos romanos e dos povos germânicos.[9]
Vilas: uma tradição romana
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Ao longo de todo processo de desagregação do Império Romano do
Ocidente, que durou cerca de duzentos anos, as cidades se despovoaram, enquanto o comércio e a produção artesanal entraram em declínio. Sem dinheiro para manter as fronteiras, o imperador não conseguia garantir a integridade do território. Para se proteger, a população abandonava as cidades, principais alvos dos povos invasores.[7]
Ao mesmo tempo, com o fim das guerras de expansão do Império, a mão-de-obra escrava, base da economia romana, praticamente desapareceu. Com isso, as grandes propriedades rurais escravistas – os latifúndios – perderam importância.[10]
No lugar dos latifúndios, começaram a surgir as vilas, grandes propriedades rurais que tinham por objetivo a auto-suficiência, tendo em vista que o fluxo comercial diminuiu com as invasões. Nas vilas, a mão-de-obra principal passou a ser dos colonos, trabalhadores que entregavam parte do que produziam ao senhor, em troca da permissão de uso da terra do senhor. Com o passar do tempo, os pequenos agricultores também entregariam suas terras aos grandes proprietários em troca de proteção.[8]
Essas vilas e as relações nelas estabelecidas contribuíram para a formação dos feudos, unidade básica de todo o sistema feudal.[7]
Feudo também era em benefício, muitas vezes uma área territorial, que o senhor doava a um nobre. Aquele que fazia a doação era chamado de suserano ou senhor, enquanto o que recebia a doação chamava-se vassalo.[9]
O vassalo não era proprietário do feudo - ele podia apenas usufruir desse bem. Portanto, ele estava proibido de fazer qualquer negociação que envolvesse a venda da terra. A partir do século IX, o feudo tornou-se um bem hereditário. Ao receber a doação, o vassalo tornava-se senhor das terras que recebia. Ele então podia doar parte dessas terras a outro homem e, assim, tornar-se também um suserano ou senhor.[7]
A contribuição dos povos germânicos
A intensificação das invasões germânicas na Europa ocidental trouxe mudanças e acrescentou novos elementos à sociedade que se formava.[10]
Os povos germânicos trouxeram consigo certos costumes que se incorporaram à sociedade nascente, como o padrão de justiça, baseada na tradição (consuetudinário), e noções de honra e lealdade, que fundamentavam as relações entre o chefe guerreiro e seus comandados.[8]
Prática comum entre os germânicos, o ato de conceder terras como recompensa aos homens que se destacavam nos combates foi consolidada nesse período. Assim, à medida que avançavam e se instalavam no território romano, os guerreiros tornavam-se senhores de terras. A união entre eles e seus comandantes baseava-se apenas na lealdade e na palavra. Assim, os novos senhores da terra passavam a ser praticamente independentes dentro de seus domínios, que agregavam germânicos e romanos. Com o tempo, eles se transformariam em senhores feudais, e a administração fortemente centralizada do Império Romano daria lugar a um poder descentralizado.[7]
A nova organização social que despontava na Europa com a desagregação do Império Romano – o feudalismo – assumiu sua forma mais acabada por volta dos séculos VIII e IX. Nessa época, outra onda de invasões, desta vez empreendidas pelos povos árabes, húngaros, eslavos e normandos (ou viquingues), isolou a Europa ocidental do Oriente. O clima de insegurança e isolamento criado pela nova onda de invasões dificultava a circulação de pessoas, debilitando ainda mais as atividades comerciais e a força das cidades.[9]
O crescimento populacional
A população europeia era de aproximadamente 18 milhões de pessoas no ano 800. Em trezentos anos, até o ano 1100, esse número aumentou em cerca de 8 milhões de habitantes, saltando a população total para quase 26 milhões. Em 1200, foi atingida a marca de 34 milhões de habitantes. Isso quer dizer que em apenas quatrocentos anos a população da Europa praticamente dobrou.[12]
A diminuição das invasões a partir do século X gerou um clima de estabilidade social sem precedentes no mundo feudal. O isolamento entre os feudos permitiu que o número de mortes por epidemia diminuísse consideravelmente. Sem disputas contra invasores e momentaneamente livres das epidemias, o número de nascimentos começou a superar o de mortes, ocasionando o aumento populacional.[10]
Com esse crescimento, iniciou-se um processo de exploração agrícola das terras de florestas e de pântanos. Segundo Georges Duby, nobres em busca de expandir seus domínios, camponeses que criavam novas propriedades nos bosques senhoriais, a fundação de novas aldeias nas fronteiras de um principado ou iniciativas individuais, de pessoas em busca de mais pastos, faziam os arroteamentos (recuo de florestas, terrenos baldios, zonas pantanosas para criar áreas cultiváveis) na época.[13] A ocupação dessas novas áreas e a introdução de algumas inovações nas técnicas de cultivo permitiram aumentar a produção agrícola. Entretanto, isso não foi suficiente para alimentar a população crescente dos feudos.[14] Os senhores feudais começaram então a expulsar o excedente populacional. Banidos dos feudos geralmente sob a alegação de terem quebrado alguma regra, muitos servos viram-se obrigados a mendigar ou a saquear nas estradas.[12]
Enquanto isso ocorria com a população mais pobre, os filhos de senhores feudais viram-se na contingência de abandonar a propriedade paterna. Para garantir a supremacia dos feudos e não dividir suas posses, os senhores feudais fizeram do seu filho primogênito o seu único herdeiro. Assim, os outros filhos eram praticamente expulsos das terras, tendo de encontrar novos meios para sobreviver.[8] A consequência desse quadro foi o aparecimento de inúmeros grupos de bandoleiros nas estradas, que viviam de raptar algum senhor feudal poderoso para exigir o pagamento de resgate.[7]
Essas circunstâncias acentuavam o clima de disputa entre os nobres cavaleiros. Durante esse período, efetuavam-se também combates e torneios que transformavam os campos em verdadeiras arenas. Foi necessária a intervenção da Igreja, instituindo dias para os torneios, como forma de regulamentá-los e evitar que a produção agrícola fosse prejudicada. Esse ambiente, dominado pelo espírito guerreiro, favoreceu o movimento das Cruzadas, promovido pela Igreja.[11]
As ordens da sociedade feudal
A sociedade feudal é dividida em três grandes ordens. A primeira compreendia os oratores, "aqueles que rezam", os integrantes do clero, que cuidavam da fé cristã. Na prática, exercia grande poder político sobre uma sociedade bastante religiosa, onde o conceito de separação entre a religião e a política era desconhecido. Mantinham a ordem da sociedade evitando, por meio de persuasão e criação de justificativas religiosas, revoltas e contratações camponesas. A segunda reunia os bellatores, "os que lutam", incluindo a nobreza por um todo, responsáveis pela guerra e pela segurança. Já a última ordem era a dos laboratores, "aqueles que trabalham", constituída pelo povo (servos e súditos), que trabalhava para sustentar toda população.[15][16]
O que determinava o status social era o nascimento, porém, não se pode dizer que a mudança de classe social não existisse, pois alguns camponeses tornavam-se padres e passavam a integrar o baixo clero, por exemplo, mas essa mudança era rara e um servo dificilmente ascenderia a outra posição.[12]
Os homens livres formavam uma classe especial distinta do clero, dos servos e da nobreza. Não estavam sujeitos à servidão, eram geralmente donos de alódios e detinham diversos privilégios, como a isenção de alguns tributos, direito à Justiça do rei, capacidade de participar de tribunais e ser alistados entre os homens de armas, podendo eventualmente chegar a ser ordenados cavaleiros, e podiam ter servos e atuar como agentes administrativos de feudos, ou arrendá-los privadamente. Porém, podiam estar de alguma forma vinculados aos senhores feudais como clientes ou tutelados, embora essas relações geralmente fossem voluntárias.[17][18] Muitos viveram nas cidades como membros da burguesia, e em algumas regiões da Europa eram vistos como
o estrato inferior da nobreza.[19][20]
Na sociedade feudal, a honra e a palavra tinham importância fundamental. Desse modo, os senhores feudais ligavam-se entre si por meio de um complexo sistema de obrigações e tradições.[10] A fim de obter proteção, os senhores feudais geralmente procuravam por outro senhor mais poderoso, jurando-lhe fidelidade e obediência. Chamava-se vassalo, o senhor feudal que pedia proteção a outro. Essa aliança deveria ser consolidada pelo senhor mais poderoso, o suserano, por meio da concessão de um feudo, que podia ser constituído de terras ou de bens ou de ambos.[12][8] Nesse sistema, o vassalo devia várias obrigações ao seu suserano, como o serviço militar, por exemplo. Por essa razão, quanto maior o número de vassalos, maior o prestígio e o poder de um suserano. O compromisso estabelecido nesse sistema tinha caráter sagrado e constituía falta grave sua violação.[9]
Origem e natureza do poder feudal
A partir do século III, o Império Romano conheceu um longo processo de desestruturação e um dos principais fatores desta foi a dificuldade de gerir e manter unido o seu vasto território.[10] Depois da derrocada do Império Romano do Ocidente a Europa havia se fragmentado em uma multiplicidade de reinos e principados, e o Sacro Império, que pretendeu substituir Roma, só conseguiu manter sua coesão por pouco tempo, também ele fragmentando-se em ducados e condados largamente autônomos. Estes por sua vez, da mesma forma não conseguiram se sustentar no longo prazo, e o resultado é que no século XI o poder havia se pulverizado em uma infinidade de senhorios e feudos de dimensões relativamente reduzidas (áreas de apenas 150-200 hectares não eram raras, mas em geral eram maiores), e de administração largamente independente das autoridades maiores. Os imperadores, reis, príncipes, duques e condes continuaram a existir, mas sua capacidade de interferir diretamente nos senhorios declinou rapidamente e de forma generalizada, e seus titulares preservaram uma autoridade principalmente simbólica e cerimonial, exercendo um poder efetivo e obtendo seus rendimentos principais apenas em seus domínios privados.[7][9]
O projeto unificador de Império foi assumido então pela Igreja, fundamentando-o numa dimensão espiritual. No século XII a Europa Ocidental estava praticamente livre do paganismo, e sua sociedade se tornou uma sociedade eminentemente cristã, homogeneizando em larga medida os valores e práticas das pessoas e instituições, a ponto de na Idade Média os conceitos de sociedade e de cristandade se tornarem praticamente sinônimos.[21][9] Naquela época a religião era uma prática tida como indispensável para os interesses individuais e da sociedade, e ninguém questionava seriamente a realidade da verdade divina revelada através das Escrituras, cujos únicos intérpretes autorizados eram os clérigos. A salvação da alma era a preocupação principal de todo cristão, e essa salvação dependia inapelavelmente do conhecimento da doutrina, dos sacramentos celebrados pelos clérigos e de sua atividade como intercessores junto a Deus e os santos e distribuidores de suas graças. Entre os séculos IX e XIII a Igreja erigiu um vasto edifício doutrinal que estabelecia as práticas lícitas e ilícitas para todo o cristão seguir ou evitar em virtualmente todos os aspectos da vida, e o risco envolvido na transgressão das normas podia ser catastrófico, podendo significar a condenação eterna nas chamas e tormentos do Inferno. Sua organização hierárquica, no topo da qual estava o papa, era extremamente centralizada e rígida, e os membros do clero cumpriam um rigoroso regime de obediência e disciplina.[22][10]
Três monges trabalhando num scriptorium medieval.
A coroação do imperador Carlos Magno pelo papa Leão III.
Entre outros meios de interferência de que dispunha, era ela que introduzia o indivíduo na sociedade cristã pelo batismo, regulava as práticas de casamento, os hábitos sexuais, formas de comércio e confraternização, delimitava as competências e sacramentava os valores considerados próprios de cada classe, interferia na política, na administração da justiça e na transmissão de herança da aristocracia, praticamente monopolizava a assistência aos pobres, órfãos e doentes, organizava boa parte do povoamento e fixava a população na terra através da vinculação a uma paróquia específica, ritmava o cotidiano pelo toque dos sinos acompanhando as horas canônicas e definia o ciclo anual pelo calendário litúrgico, chegando mesmo a assumir o papel de polícia e árbitro eminente das consciências privadas através da instituição da confissão, onde segredos e faltas do indivíduo deviam ser revelados.[22][10]
Em meio a uma sociedade constituída de pessoas iletradas, mantinha o controle quase absoluto do saber erudito. Detendo privilegiadamente informações e conhecimentos importantes, a Igreja garantia que seu domínio se estendesse ao longo de séculos de maneira quase inabalável. Não por acaso provinha do clero a maior parte dos administradores, notários, conselheiros, jurisconsultos e médicos que serviam nas cortes de alto escalão e nos senhorios da aristocracia. Naquela época, tinha-se o costume de fazer com que o segundo filho de uma família nobre seguisse a carreira eclesiástica — o primeiro filho herdava o feudo, segundo o direito de primogenitura. Inversamente, reforçando os laços com o poder laico, os membros mais elevados da hierarquia eclesial, o papa, os cardeais, bispos e abades, eram recrutados entre os nobres.[9] Mesmo os reis e imperadores dependiam da Igreja para legitimar sua autoridade: era ela que os sagrava e ungia com o óleo santo, o que os revestia de uma aura sagrada, e justificava a crença no direito divino dos reis.[22][7] As próprias noções de autoridade e hierarquia, tão importantes no pensamento medieval, encontravam uma justificação teológica, pois acreditava-se que o mundo tinha origem divina e Deus, em sua sabedoria infinita, havia estabelecido as coisas e pessoas em seus lugares apropriados; até mesmo os anjos, segundo os teólogos, eram divididos em ordens ou hierarquias, e daí a divisão da sociedade em três ordens, e dentro de cada uma se estruturasse, em uma escada de múltiplos degraus, uma organização bastante precisa de eminências e subordinações, superioridades e inferioridades.[21]
Hemma de Gurk doando a Catedral de Gurk à Virgem Maria.
João II da França ordenando cavaleiros. O rito de ordenação era abençoado pela Igreja e era um dos mais importantes meios de admissão à nobreza, de regulação das hierarquias aristocráticas e de confirmação dos laços vassaláticos.
Seu poder também se assentava no âmbito econômico. A Igreja se tornou extremamente rica, depositária de um imenso patrimônio em joias, metais preciosos e obras de arte, além de edifícios e outros bens imóveis, geralmente obtido através da doação dos devotos, que assim procuravam melhorar suas chances de serem incluídos entre os bem-aventurados após a morte. Ao mesmo tempo, por séculos a Igreja foi o maior senhor feudal da Europa, detendo, também geralmente através de doações, a posse de um terço a um quarto de todo o território ocidental, e parte significativa desse patrimônio fundiário era enfeudada.[22]
Destarte, a Igreja tinha interesses múltiplos na preservação, controle e legitimação da ordem feudal, e exercia uma influência ideológica, organizadora e normativa esmagadora sobre toda a organização e funcionamento da sociedade e sobre todo o modo de vida da população de todas as classes.[22][7] Segundo Jérôme Baschet, à Igreja deve-se não apenas a função de coluna vertebral da civilização feudal, mas também a envolveu completamente e lhe deu sua própria forma.[21]
Sancionados pela Igreja, a hierarquia e o poder territorial dos senhores feudais se exerciam através do poder de dominium, uma forma de controle combinado da terra e das pessoas ali fixadas. A posse da terra não significava uma posse absoluta, mas era ampla e se ramificava de várias maneiras. A posse e exploração direta da terra pelos
senhores, chamados domini, se limitava a uma parte apenas do senhorio, o "manso do senhor", e o restante era arrendado ou usufruído diretamente pelos súditos individuais ou pelas comunidades aldeãs. Porém, esse usufruto impunha o pagamento de uma pesada série de impostos, taxas e outras obrigações devidas ao senhor, o que na prática significava um controle total, embora em sua maior parte indireto, dos meios de produção e das fontes de renda. Nesse contexto, os feudos propriamente ditos, seu componente mais famoso e uma das bases do dominium, segundo pesquisas recentes constituíam na verdade uma proporção relativamente pequena no total dos territórios dominados, mas tinham um grande significado simbólico na ideologia aristocrática, e eram um instrumento importante para a organização das suas hierarquias internas, subordinando o detentor do feudo a um senhor de hierarquia mais elevada através da relação de vassalagem, o que lhes acarretava uma série de obrigações mútuas, incluindo financeiras. Além disso, aos senhores cabia o controle dos tribunais e a administração de toda a justiça, na maior parte das vezes exercendo eles mesmos a função de juízes, e a eles cabia por excelência o exercício do poder militar, sendo de fato a atividade nas armas considerada a mais honrosa para um aristocrata. Aos militares, em particular à classe dos cavaleiros e aos mercenários recrutados pelos senhores, competia a proteção da população dos senhorios, embora cometessem repetidos abusos e pilhagens contra os camponeses e vilãos.[21]
A Igreja tentava moderar os excessos, as injustiças e a violência da nobreza militarizada, fixando suas funções e comportamento na moldura da ética cristã. Embora essa tentativa tenha falhado tantas vezes, ela contribuiu para elevar um pouco o padrão moral da nobreza, pelo menos num plano ideal, e suas doutrinas constituem parte da substância do famoso código de ética da cavalaria. Neste movimento, a Igreja conseguiu arregimentar a nobreza militar em larga escala para o ideal religioso das cruzadas contra os infiéis e os heréticos e para a reconquista dos Lugares Santos do Oriente, projeto de vastas repercussões que provocou um significativo rearranjo na geopolítica da região mediterrânea, em parte concebido para canalizar, para um propósito então considerado digno, necessário e justo, o expansionismo predador, as ambições desenfreadas de glória e honra e a pouco controlável turbulência endêmica de uma aristocracia fortemente orgulhosa e competitiva.[21][23]
O trabalho na terra à sombra do castelo, iluminura de Les très riches heures du duc de Berry.
Finalmente, o dominium envolvia também a relação pessoal e estrutural do senhor com seus súditos não aristocráticos, os laboratores, e que se expressava de três formas principais. A primeira era a da servidão, uma condição que podia ser tão opressiva quanto a escravidão, mas se distinguia dela por alguns traços importantes: os servos não podiam ser mortos ao arbítrio do senhor, tinham alguma liberdade, embora limitada pela obrigação de pagamento de taxas e prestação de serviços, não podiam transmitir herança, nem casar, nem abandonar o senhorio sem o consentimento do senhor, e sua condição em várias regiões era manifesta através de um ritual público de submissão humilhante, o que lhes impunha um estigma adicional de discriminação e vergonha.[21][8] Ao contrário do que se pensou por muito tempo, pesquisas recentes têm demonstrado que os servos compunham uma parte não preponderante da população rural, que variava de cerca de metade a menos de 20% do total, conforme a região, e em alguns locais, pelo menos por algum tempo, chegou a zero.[21]
A segunda forma dizia respeito aos homens livres, que gozavam de uma liberdade quase irrestrita, incluindo o direto de possuir alódios (terras livres de qualquer jurisdição senhorial), mas essa liberdade com o tempo foi sendo erodida, pois no século XII virtualmente toda a população europeia estava agregada de alguma forma à rede de senhorios, e mesmo os alódios, bastante numerosos até o século IX, no século XIII haviam praticamente desaparecido, sendo sujeitos à tributação e incorporados aos senhorios,[21] e seus possuidores se tornaram de uma ou outra forma clientes ou tutelados dos senhores.[24][25] Por outro lado, os homens livres recebiam privilégios significativos, detinham alguma autoridade governamental sobre os trabalhadores de suas terras, podiam caçar, participar de tribunais,[26][27] e em várias regiões eram reconhecidos como o estrato inferior da nobreza.[28][29]
A terceira forma de relação com os súditos era a dominação exercida sobre a população urbanizada. Mesmo que as vilas e cidades usualmente recebessem cartas de franquia, isenções e privilégios dos senhores, e seus habitantes fossem em sua larga maioria não-servos, a feudalidade penetrava em seus muros de várias maneiras. Os privilégios recebidos dependiam de uma outorga senhorial — que podia ser resultado de lutas violentas, mas geralmente acontecia em negociações diplomáticas —, muitos nobres viviam nas vilas, e ali detinham um significativo patrimônio imobiliário e um elevado prestígio e influência social. Embora pouco a pouco os nobres fossem sendo excluídos do governo direto das vilas à medida que a burguesia nascente se empoderava e assumia o poder urbano através das irmandades, das guildas e dos conselhos cívicos, esse empoderamento acabou reproduzindo a ideologia aristocrática, formando-se uma elite burguesa também aristocrática, que procurava por todos os meios ser assimilada à nobreza incorporando seus valores, adquirindo ou arrendando feudos, adotando brasões, buscando casamentos na nobreza empobrecida, vivendo uma vida de consumo ostensivo, além de inventarem genealogias míticas à maneira dos grandes nobres.[21][28][23][30]
Hans Fugger, membro de uma das mais poderosas e ricas famílias da alta burguesia da Europa.
Em muitos locais, com maior ênfase na metade norte da Itália, Países Baixos e alguns pontos da Germânia, essa elite burguesa, controlando todo o Legislativo comunal, veio a se auto-legitimar como patriciados nobres hereditários, fundando as dinastias da nobreza cívica, que a partir do século XIV passaram a cultivar um ethos diferenciado e articular um discurso ideológico autonomista. Esse discurso almejava a dignificação da origem da sua riqueza e poder, equiparava a posse de cultura e boa educação à atividade militar como fontes de honra, e se sustentava pela introdução do princípio jurídico da consuetudo loci, a transformação em lei dos costumes típicos de cada lugar, legitimando ao mesmo tempo a existência de variadas interpretações e aplicações do conceito legal de nobreza nas inúmeras cidades europeias, cada qual com seus costumes e história característicos. Desse princípio tirou-se a conclusão de que, se distinguindo da baixa burguesia, excluída dos Conselhos, mereciam ser considerados nobres aqueles indivíduos de qualquer origem que vieram a deter poder de principatum, ou seja, a capacidade de legislar. Haviam enriquecido principalmente do comércio, das manufaturas, da indústria e da atividade bancária, jurídica e administrativa, atividades consideradas quase todas indecorosas pela nobreza feudal territorial, mas também se firmavam socialmente pela sua crescente sofisticação e por suas realizações culturais e beneficentes, acentuando as rivalidades com a nobreza de origem feudal. No longo prazo, a burguesia desempenhou um importante papel na dissolução do feudalismo.[23]
Os escravos, em número reduzido e mantidos apenas em algumas regiões próximas ao Mediterrâneo, trabalhavam em atividades domésticas.[10]
O feudo
Ver artigo principal: Feudo
Trabalhadores do Feudo
Os feudos eram os núcleos com base nos quais a sociedade feudal se organizou. Por volta do ano 1000, a maioria das pessoas na Europa ocidental vivia em feudos. Nesse período, a terra converteu-se no bem mais importante, por ser a principal fonte de sobrevivência e de poder.[9]
As terras do feudo distribuíam-se da
seguinte forma:[8]
Manso senhorial – Representava cerca de um terço da área total e nela os servos e vilões trabalhavam alguns dias por semana. Toda produção obtida nessa parte da propriedade pertencia ao senhor feudal;
Manso servil – Área destinada ao usufruto dos servos. Parte do que era produzido ali era entregue como pagamento ao senhor feudal;
Terras comunais – Era a parte do feudo usada em comum pelos servos e pelos senhores. Destinava-se à pastagem do gado, à extração de madeira e à caça, direito exclusivo dos senhores.
Muitas cidades europeias da Idade Média tornaram-se livres das relações servis e do predomínio dos nobres. Essas cidades chamavam-se burgos. Por motivos políticos, os "burgueses" (habitantes dos burgos) recebiam frequentemente o apoio dos reis que, muitas vezes, estavam em conflito com os nobres.[8] Na língua alemã, o ditado Stadtluft macht frei ("O ar da cidade liberta") ilustra este fenômeno. Em Bruges, por exemplo, conta-se que certa vez um servo escapou da comitiva do conde de Flandres e fugiu por entre a multidão. Ao tentar reagir, ordenando que perseguissem o fugitivo, o conde foi vaiado pelos "burgueses" e obrigado a sair da cidade. Desta maneira, o servo em questão tornou-se livre.[10]
Essas e outras formas de pagamento eram compulsórias. Por meio delas, transferia-se para o senhor feudal a maior parte da produção.[10] Os camponeses tinham de viver com o pouco que sobrava. Moravam em casa de madeira, sem divisões internas, com telhado de palha e chão batido. Assim como os senhores, em sua maioria não sabiam ler nem escrever. Vestiam-se com roupas de lã, linho ou couro. Seu divertimento, geralmente, estava relacionado à fé cristã e aos festejos comemorativos por ocasião do plantio e da colheita.[12]
A economia feudal
A produção feudal própria do Ocidente europeu tinha por base a economia agrária, de escassa circulação monetária, auto-suficiente. A propriedade feudal pertencia a uma camada privilegiada, composta pelos senhores feudais, altos dignitários da Igreja e longínquos descendentes dos chefes tribais germânicos. As estimativas de renda per capita da Europa feudal a colocam em um nível muito próximo ao mínimo de subsistência.[9] Na Alta Idade Média ocorreu uma acentuada retração das atividades comerciais e artesanais. Em razão disso, houve um processo de ruralização da sociedade da Europa ocidental, com o predomínio da agricultura de subsistência.[9]
A principal unidade econômica de produção era o feudo, que se dividia em três partes distintas: a propriedade individual do senhor, chamada manso senhorial ou domínio, em cujo interior se erigia um castelo fortificado; o manso servil, que correspondia à porção de terras arrendadas aos camponeses e era dividido em lotes denominados tenências; e ainda o manso comunal, constituído por terras coletivas - pastos e bosques -, usadas tanto pelo senhor quanto pelos servos.[31]
Devido ao caráter expropriador do sistema feudal, o servo não se sentia estimulado a aumentar a produção com inovações tecnológicas, uma vez que tudo que produzia de excedente era tomado pelo senhor. Por isso, o desenvolvimento técnico foi pequeno, limitando aumentos de produtividade. A principal técnica adaptada foi a de rotação trienal de culturas, que evitava o esgotamento do solo, mantendo a fertilidade da terra.[8]
Dentro dos feudos, a agricultura era praticada por meio de técnicas simples. Os principais instrumentos eram feitos de madeira, pois o ferro era de difícil aquisição. O arado, puxado por boi, era o equipamento principal. Para não esgotar o solo, usava-se um sistema de rotação trienal: a terra de cultivo era dividida em três partes e o plantio era feito de tal modo que sempre uma dessas partes permanecia em descanso.[11]
Cada família de servos tinha a posse de um lote (ou tenência) em cada um desses campos, para que sempre houvesse terra disponível para o cultivo. O quadro a seguir representa o aproveitamento da terra, de acordo com o sistema de três campos.[7]

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