Buscar

Um Sussurro nas Trevas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 103 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 103 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 103 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

1 
Um Sussurro nas Trevas 
H.P. Lovecraft 
 
I 
 
Faço questão de frisar que não me vi diante de 
qualquer horror concreto, afinal de contas. Dizer que um 
choque mental foi a causa do que inferi — a gota d’água 
que me fez fugir em disparada da solitária fazenda de 
Akeley, pelos morros em meia-lua de Vermont, em um 
veículo de que lancei mão sem-cerimônia — equivale a 
ignorar os fatos mais simples de minha experiência final. 
Não obstante, a enormidade das coisas que vi e escutei, e 
apesar da confessada nitidez da impressão que tais coisas 
produziram em mim, mesmo agora não posso provar se 
eu estava certo ou errado em minha terrível inferência. 
Afinal de contas, o desaparecimento de Akeley nada 
prova. Não se encontrou nada de estranho em sua casa, 
apesar das marcas de balas por dentro e por fora. Era 
como se ele houvesse saído casualmente para um passeio 
pelas colinas e não voltasse. Não havia sequer sinais de 
um hóspede ou de que aqueles horríveis cilindros e 
máquinas tivessem ficado guardados no estúdio. Por 
outro lado, nada significa também o fato de que ele 
temesse mortalmente as inúmeras colinas verdes e os 
regatos intermináveis entre os quais nascera e se criara, 
pois milhares de pessoas estão sujeitas a esses mesmos 
receios mórbidos. A excentricidade, ademais, poderia 
facilmente explicar os atos estranhos e as apreensões 
esquisitas que ele vinha demonstrando ultimamente. 
No que me diz respeito, tudo começou com as 
inundações que assolaram o Vermont a 3 de novembro 
 
2 
de 1927, um desastre sem precedentes. A esse tempo, 
como ainda hoje, eu lecionava literatura na Universidade 
de Miskatonic em Arkham, Massachusetts, e nutria um 
interesse ardoroso pelo folclore da Nova Inglaterra. 
Pouco tempo depois da cheia, em meio ao grande 
número de notícias que davam conta de sofrimentos, 
infortúnios e assistência organizada aos desabrigados, 
começaram a aparecer na imprensa notas esquisitas sobre 
coisas que desciam por alguns dos rios mais engrossados. 
Assim, muitos amigos meus se entregaram a discussões 
acaloradas sobre a questão, e me procuraram na 
esperança de que eu pudesse esclarecê-la de algum 
modo. Senti-me envaidecido ao ver meus estudos de 
folclore serem levados a sério e fiz o que me foi possível 
para depreciar as histórias absurdas e mal articuladas 
que pareciam ser, evidentemente, resultado de antigas 
superstições rurais. Divertia-me ver tantas pessoas 
educadas insistindo que algum estrato de verdades 
obscuras e distorcidas, talvez embasassem a boataria. 
Os relatos trazidos à minha atenção chegavam 
sobretudo na forma de recortes de jornais; no entanto, 
uma das narrativas tinha uma fonte oral e foi repetida a 
um amigo meu em uma carta enviada por sua mãe, que 
residia em Hardwick, Vermont. O gênero do fato descrito 
era essencialmente o mesmo em todos os casos, ainda 
que parecesse haver três instâncias distintas — uma 
ligada ao rio Winooski, perto de Montpelier, outra 
associada ao rio Ocidental, no condado de Windham, 
depois de Newfane, e uma terceira relacionada ao rio 
Passumpsic, no condado de Caledônia, ao norte de 
Lyndonville. É claro que vários recortes mencionavam 
outros episódios, mas, bem analisados, todos pareciam 
 
3 
resumir-se nesses três. Em cada um dos casos, pessoas do 
campo informavam ter visto um ou mais objetos notáveis 
e estranhíssimos, nas águas caudalosas que desciam dos 
montes pouco freqüentados, e havia a tendência 
generalizada de se associar essas visões a um ciclo 
primitivo e meio esquecido de lendas reticentes que os 
mais velhos ressuscitaram. 
As pessoas acreditavam ver formas orgânicas que 
não se assemelhavam a nada que já houvessem visto. 
Havia, naturalmente, muitos cadáveres humanos que 
desciam as correntes naquele período trágico, mas as 
pessoas que descreviam aquelas formas estranhas 
asseveravam estarem certas de que não eram humanas, 
apesar de uma ou outra similitude superficial de 
tamanho e contorno geral. Tampouco poderiam ser 
qualquer espécie de animal conhecido no Vermont, 
diziam as testemunhas. Eram coisas rosadas, com mais 
ou menos um metro e meio de comprimento, com corpos 
crustáceos dotados de grandes pares de barbatanas 
dorsais ou asas membranosas, além de vários conjuntos 
de membros articulados, e que mostrava uma espécie de 
elipsóide torcida, coberta de inumeráveis antenas, 
curtíssimas, no lugar onde normalmente estaria uma 
cabeça. Fato notável era a estreita coincidência das 
descrições, oriundas de fontes diferentes. No entanto, o 
espanto era minorado pelo fato de que as velhas lendas, 
em dada época correntes em toda a região das 
montanhas, fornecia uma imagem morbidamente vívida 
que bem poderia ter influenciado a imaginação de todas 
as supostas testemunhas. Cheguei à conclusão de que tais 
testemunhas — sempre interioranos ingênuos e simples 
— teriam visto, de relance, os corpos mutilados e 
 
4 
inchados de pessoas ou animais domésticos nas torrentes 
em turbilhão; depois, haviam permitido que o folclore, 
ainda conservado no fundo da lembrança, atribuísse a 
esses restos feições fantásticas. 
O antigo folclore, ainda que nebuloso, evasivo e 
em grande parte esquecido pela presente geração, tinha 
caráter singularíssimo e obviamente refletia a influência 
de crendices indígenas ainda mais recuadas. Conquanto 
nunca tivesse estado no Vermont, eu conhecia bem 
aquelas narrativas, através da raríssima monografia de 
Eli Davenport, que compreende material obtido 
oralmente, antes de 1839, entre os habitantes pioneiros do 
Estado. Esse material, ademais, coincidia de perto com as 
histórias que eu havia escutado pessoalmente de 
campônios idosos nas montanhas de New Hampshire. 
Em síntese, aludia a uma raça oculta de seres 
monstruosos, que habitariam algum ponto das 
montanhas mais remotas — nas densas florestas dos 
picos mais altos e nos vales sombrios por onde correm 
riachos provenientes de nascentes ignotas. Pouquíssimas 
vezes esses seres eram vistos, porém indícios de sua 
presença eram trazidos por aqueles que se aventuravam 
em certas montanhas ou se embrenhavam em 
determinados desfiladeiros fundos e apertados que até 
mesmo os lobos evitavam. 
Havia estranhas marcas de pés ou garras na lama à 
beira dos ribeirões e em tratos inóspitos, bem como 
curiosos círculos de pedras, em torno das quais a grama 
desaparecera, e que não pareciam ter sido dispostos ou 
inteiramente moldados pela natureza. Havia, ainda, 
certas cavernas de duvidosa profundidade nas encostas 
das montanhas; suas bocas estavam fechadas, por 
 
5 
matacões, de um modo dificilmente acidental e um 
número mais que razoável de pegadas seguia na direção 
dessas entradas, ou saíam delas — se é que, na verdade, a 
direção de tais pegadas podia ser avaliada com justeza. E, 
acima de tudo, havia as coisas que pessoas aventurosas 
tinham contemplado, ainda que muito raramente, no 
crepúsculo dos vales mais remotos e nas impenetráveis 
matas perpendiculares, para além dos limites normais até 
onde os montes eram escalados. 
Seria menos inquietante se os relatos esparsos 
sobre tais criaturas não se coadunassem tão bem. Na 
verdade, quase todos os boatos tinham vários pontos em 
comum; levavam a crer que as criaturas eram uma 
espécie de enorme caranguejo vermelho-claro, com 
diversos pares de pernas e duas grandes asas, como de 
morcego, no meio do dorso. Às vezes caminhavam com 
todas as pernas, em outras ocasiões usavam somente o 
par mais anterior, utilizando os demais membros para 
carregar grandes objetos de natureza indeterminada. De 
certa feita, tinham sido vistos em grande número, e em 
um grupo menor que estava a vadear um raso curso 
d’água em um bosque; eram três daquelas criaturas, 
caminhando em uma formação disciplinada. De outra 
vez, um deles tinha sido visto voando. Lançara-se do alto 
de uma colina desnuda e solitária, à noite, e desaparecera 
no céu, mas antes disso suas grandes asas haviam sido 
silhuetadas contra a lua cheia. 
De maneira geral, tais criaturaspareciam não se 
interessar pêlos seres humanos, muito embora de vez em 
quando fossem responsabilizados pelo sumiço de 
pessoas de caráter mais aventureiro... principalmente 
daquelas que construíam casas perto demais de 
 
6 
determinados vales ou nas proximidades do topo de 
certas montanhas. Muitas localidades passaram a ser 
consideradas como inadequadas para se viver nelas, e a 
idéia persistia muito depois de se haver esquecido a 
causa de tal opinião. As pessoas levantavam os olhos 
para alguns dos precipícios no alto de montanhas 
vizinhas, com um sobressalto, mesmo quando não 
pensavam no número de colonos que ali haviam 
desaparecido ou em quantas casas haviam sido 
reduzidas a cinzas nas encostas mais baixas dessas 
graves e verdes sentinelas. 
No entanto, muito embora as lendas rezassem que 
as criaturas só pareciam fazer mal àqueles que lhes 
invadiam a privacidade, mais tarde surgiram relatos a 
respeito de sua curiosidade em relação aos homens e 
sobre suas tentativas de implantar postos avançados no 
mundo humano. Falavam-se das insólitas marcas de 
garras que haviam sido percebidas ao redor de janelas de 
fazendas, de manhã, e de desaparecimentos de pessoas 
em regiões além das áreas obviamente assombradas por 
tais seres. Havia, ademais, comentários sobre vozes que 
zumbiam, imitando a fala humana, e que faziam 
surpreendentes ofertas a viajantes solitários em estradas 
e trilhas nas densas florestas, bem como sobre crianças 
que teriam ficado horrivelmente assustadas com coisas 
vistas ou ouvidas nas florestas virgens, que às vezes 
chegavam até o quintal de suas casas. Na série final de 
lendas — a série que precedera de imediato o declínio da 
superstição e o abandono de contacto mais estreito com 
os lugares temidos — havia referências medrosas a 
ermitões e fazendeiros solitários que, em um ou outro 
período de suas vidas, pareciam ter sofrido uma 
 
7 
repelente alteração mental, pessoas que eram evitadas ou 
das quais se murmurava que se haviam vendido a seres 
estranhos. Em um dos condados do nordeste parece 
mesmo que esteve em moda, por volta de 1800, acusar 
misantropos de serem aliados ou representantes 
daquelas criaturas repugnantes. 
Quanto à natureza de tais criaturas, as explicações 
naturalmente discrepavam. O nome que se dava a eles 
mais comumente era “aqueles” ou “os antigos”, ainda 
que outros termos tivessem utilização local ou efêmera. É 
possível que a maioria dos colonos puritanos os 
encarassem simplesmente como parentes do demônio, 
tornando-os objeto de amedrontada especulação 
teológica. As pessoas cuja ascendência os faziam 
conhecedoras de lendas célticas — sobretudo os 
escoceses-irlandeses de New Hampshire, bem como 
ramos dessa etnia que se haviam fixado em Vermont por 
terem ganho terras do governador Wentworth — 
ligavam tais criaturas, vagamente, às fadas malignas e às 
“pessoinhas” dos pântanos e brejos, e se protegiam com 
encantamentos mal recordados e que eram passados de 
geração a geração. No entanto, eram os índios que 
possuíam as teorias mais fantásticas. Conquanto as 
lendas diferissem de tribo para tribo, havia um 
acentuado consenso com relação a determinadas 
características essenciais; as lendas indígenas afirmavam, 
todas elas, que as criaturas não pertenciam a este mundo. 
Os mitos dos Pennacook, que eram os mais 
coerentes e pitorescos, diziam que os Alados provinham 
de Ursa Maior, e que possuíam minas em nossas 
montanhas, de onde extraíam uma espécie de pedra que 
não podiam conseguir em nenhum outro mundo. Não 
 
8 
residiam na Terra, afirmavam os mitos, mas tão-somente 
mantinham aqui postos avançados, e depois de haverem 
minerado enormes quantidades daquela pedra, voavam 
com a carga para suas estrelas no norte. Só faziam mal às 
pessoas que se aproximavam excessivamente deles ou 
que os espionavam. Os animais os evitavam devido a 
uma aversão instintiva, e não porque fossem por eles 
perseguidos. As criaturas não podiam comer as coisas e 
os animais da Terra, e por isso traziam seu próprio 
alimento das estrelas. Fazia mal chegar perto delas, e 
certos caçadores jovens que se haviam aventurado pelos 
morros onde habitavam nunca mais tinham regressado. 
Também não era bom escutar o que sussurravam à noite 
nas florestas, com suas vozes semelhantes às das abelhas 
e que tentavam arremedar os sons humanos. As criaturas 
conheciam as línguas de todas as raças de homens — 
Pennacooks, Hurons, homens das Cinco Nações — mas, 
ao que parecia, não possuíam idioma próprio, nem 
precisavam disso. Conversavam com suas cabeças, que 
mudavam de cor para indicar o que desejavam. 
Todas essas lendas, é claro, tanto as dos índios 
como as dos brancos, morreram durante o século XIX, e 
só ocasionalmente ressurgiam aqui e ali, como um 
atavismo. Os costumes dos naturais de Vermont se 
fixaram; e tão logo suas estradas habituais e seus locais 
de residência passaram a obedecer a um certo plano fixo, 
fazendo-os esquecer gradativamente tais medos e receios, 
e acabaram por esquecer até mesmo que tinham existido 
medos e receios. Na maioria, as pessoas sabiam apenas 
que certas regiões montanhosas eram consideradas 
altamente insalubres, que ali as terras eram ruins ou 
“azarentas”, e que quanto mais longe delas se estivesse, 
 
9 
melhor. Com o tempo, as marcas do hábito ou do 
interesse econômico ficaram de tal maneira gravadas que 
deixou de haver motivo para que as pessoas saíssem dos 
locais que eram aprovados, e assim as montanhas 
assombradas ficaram abandonadas, mais por acidente do 
que por intenção. Salvo por ocasião de raros surtos locais 
de medo, somente anciãos amantes de prodígios ou 
octogenários saudosistas se referiam, de vez em quando e 
em murmúrios, a seres que habitariam aqueles montes. 
Mas mesmo essas pessoas admitiam que não havia muito 
o que temer de tais seres, agora que se haviam 
acostumado à presença de casas e povoados e que os 
homens haviam deixado inteiramente o território 
escolhido por tais criaturas. 
Eu havia tomado conhecimento de tudo isso em 
minhas leituras e em certas histórias coletadas em New 
Hampshire. Assim, quando começaram a aparecer os 
boatos, por ocasião das cheias, percebi facilmente de que 
lastro folclórico provinham. Expliquei tudo isso 
pormenorizadamente a meus amigos, e foi com 
hilaridade que constatei que várias almas ingênuas 
continuavam a insistir em que talvez existisse uma pitada 
de verdade nos relatos. Essas pessoas tentavam observar 
que as lendas antigas mostravam uma persistência e uma 
uniformidade significativas, e que a natureza 
praticamente inexplorada das montanhas de Vermont, 
fazia com que fosse inconveniente sermos dogmáticos 
com relação ao que poderia existir ou não nelas; 
tampouco essas pessoas se deixavam persuadir por meu 
argumento de que todos os mitos obedeciam a um molde 
conhecido, comum à maior parte da humanidade, e que 
haviam sido formadas em fases primitivas de experiência 
 
10 
imaginativa, que sempre produziam o mesmo tipo de 
ilusão. 
De nada valeu demonstrar a esses obstinados que 
os mitos de Vermont diferiam pouquíssimo, em essência, 
daquelas lendas universais de personificação natural que 
haviam enchido o mundo antigo com faunos, dríades e 
sátiros, que haviam sugerido os kallikanzarai da Grécia 
moderna ou dado ao País de Gales e à Irlanda suas 
crenças em raças estranhas, pequenas e ocultas de 
trogloditas e seres subterrâneos. Não adiantou, da 
mesma forma, apontar a crença, de semelhança ainda 
mais notável, dos nepaleses das montanhas nos temidos 
Mi-Go ou “abomináveis homens das neves”, que 
segundo eles se escondem entre o gelo e os pináculos 
rochosos dos cumes do Himalaia. Quando terminei de 
expor tudo isso, meus oponentes usaram contra mim 
minha própria argumentação, alegando que tais lendas 
só podiam indicar alguma realidade histórica original; 
que justamente a universalidade desses mitos indicava a 
existência real de alguma estranha raça terrestre, mais 
antiga que os homens, que havia sidolevada a se ocultar 
nos ermos depois do advento e a dominação da 
humanidade, e que possivelmente teria sobrevivido em 
número cada vez menor até épocas relativamente 
recentes... ou mesmo até o presente. 
Quanto mais eu zombava dessas teorias, mais 
esses amigos cabeçudos as sustentavam; acrescentavam 
que mesmo sem a herança de tais lendas, os relatos 
recentes eram por demais claros, coerentes, detalhados e 
sadiamente prosaicos para serem de todo ignorados. Dois 
ou três extremistas fanáticos chegaram ao ponto de 
insinuar possíveis significados nos antigos mitos 
 
11 
indígenas, que davam aos seres ocultos uma origem 
extraterrestre; para corroborar o que diziam, citaram os 
livros bizarros de Charles Fort, autor que afirma que 
viajantes de outros mundos e do espaço remoto têm 
visitado a Terra com freqüência. A maior parte de meus 
adversários, entretanto, era formada por românticos que 
insistiam em transferir para a vida real os mitos 
fantásticos de “pessoinhas”, popularizados pela 
esplêndida literatura de horror de Arthur Machen. 
 
II 
 
Como era natural nas circunstâncias, esse 
acalorado debate terminou chegando à imprensa, na 
forma de cartas ao Arkham Advertiser; algumas dessas 
cartas foram transcritas nos jornais das regiões de 
Vermont, de onde vinham os relatos das cheias. O 
Rutland Herald estampou meia página de excertos das 
cartas, defendendo ambos os lados da questão, ao passo 
que o Brattleboro Reformer reproduziu na íntegra um de 
meus longos ensaios históricos e mitológicos, que saiu 
acompanhado de comentários que apoiavam e 
aplaudiam minhas céticas conclusões. Na primavera de 
1928 eu me havia transformado quase em uma 
celebridade em toda Vermont, apesar do fato de nunca 
ter posto os pés nesse Estado. Foi então que vieram as 
cartas desafiadoras de Henry Akeley, que me 
impressionaram de modo tão profundo e que me 
levaram, pela primeira e última vez, ao reino fascinante 
de precipícios verdes e murmurantes regatos de florestas. 
A maior parte do que sei a respeito de Henry 
Wentworth Akeley foi obtido através de correspondência 
 
12 
com seus vizinhos e com seu filho único, residente na 
Califórnia, depois de minha experiência em sua fazenda 
solitária. Ele era, como vim a descobrir, o último 
representante, em sua terra natal, de uma longa e 
eminente estirpe de juristas, administradores e fidalgos 
lavradores. Nele, contudo, a família se desviara de 
assuntos práticos para a erudição pura; de modo que ele 
se fizera um notável estudioso de matemática, 
astronomia, biologia, antropologia e folclore, na 
Universidade de Vermont. Antes disso, eu nunca tinha 
ouvido falar dele, nem ele forneceu muitos elementos 
autobiográficos em suas comunicações. No entanto, à 
primeira vista, percebi tratar-se de homem de caráter, 
educação e letras, ainda que fosse um misantropo, com 
pouco ou nada de vaidades mundanas. 
Apesar da total implausibilidade do que ele 
afirmava, não me foi possível deixar de levar Akeley 
mais a sério do que eu havia levado todos os demais 
contestadores de meus pontos de vista. Para começar, ele 
se encontrava realmente próximo aos fenômenos reais — 
visíveis e tangíveis — sobre os quais teorizava de 
maneira tão grotesca; e, em segundo lugar, e isso era 
extraordinário, ele estava disposto a deixar suas 
conclusões sem um arremate definitivo, como procederia 
um verdadeiro homem de ciência. Não o moviam 
quaisquer preferências pessoais, e era sempre orientado 
por aquilo que considerava ser provas categóricas. É 
evidente que desde o começo julguei-o enganado, mas 
respeitei-o por se enganar de maneira inteligente; e em 
momento algum imitei alguns de seus amigos, que 
atribuíam suas idéias — tanto quanto o medo que ele 
nutria pêlos solitários montes verdes — à insanidade 
 
13 
mental. Eu percebia que o homem era digno de ser 
levado em conta, e sabia que o que ele afirmava decorria 
certamente de alguma circunstância estranha que 
merecia investigação, por menor que fosse sua relação 
com as causas fantásticas que ele aceitava. Mais tarde, 
vim a receber dele certas provas materiais que colocaram 
a questão em um plano um tanto diferente e 
espantosamente absurdo. 
A melhor coisa que posso fazer consiste em 
transcrever por inteiro, na medida do possível, a longa 
carta com que Akeley se apresentou, e que constituiu 
marco tão importante em minha própria história 
intelectual. Essa carta não está mais comigo, porém 
minha memória guarda quase todas as palavras de sua 
inacreditável mensagem; e mais uma vez reitero minha 
confiança na sanidade do homem que a escreveu. Eis o 
texto, que chegou às minhas mãos na caligrafia trôpega e 
arcaizante, de uma pessoa que, evidentemente, não tivera 
muito a ver com o mundo durante sua vida de recluso 
erudito. 
 
Townshend, Windham County, Vermont 
5 de maio de 1928 
Exmo. Sr. ALBERT N. WILMARTH 
RUA SALTONSTALL, 118 
ARKHAM, MASSACHUSETTS 
 
Prezado Senhor: 
Foi com grande interesse que li a transcrição, no 
Brattleboro Reformer de 23-IV-28, de sua carta sobre as 
recentes histórias sobre corpos estranhos que foram avistados 
flutuando nas cheias de nossos rios no outono p.p. e sobre as 
 
14 
curiosas lendas com que tão bem coincidem. É fácil entender o 
motivo que levaria um forasteiro a assumir a atitude que o 
senhor defende, e até mesmo por que o redator dos comentários 
do jornal concorda com o senhor. Essa é a atitude que em geral 
assumem as pessoas educadas, tanto em Vermont como fora do 
Estado, e foi também minha própria atitude na juventude — 
tenho agora 57 anos — antes que meus estudos, tanto os de 
natureza geral quanto os realizados com base no livro de 
Davenport, me levassem a realizar algumas explorações em 
partes dos montes daqui, que habitualmente não são visitados. 
Fui conduzido a esses estudos pelas estranhas 
narrativas antigas que eu costumava ouvir da boca de 
lavradores idosos, nada letrados; mas hoje penso que oxalá não 
me tivesse interessado absolutamente por esses assuntos. Posso 
dizer, sem falsa modéstia, que as disciplinas da antropologia e 
do folclore não me são de modo algum estranhas. Estudei-as 
aprofundadamente na universidade, e estou familiarizado com 
as obras das autoridades mais acatadas, como Tylor, Lubbock, 
Prazer, Quatrefages, Murray, Osborn, Keith, Boule, G. Elliott 
Smith, etc. Não é novidade para mim que histórias sobre raças 
ocultas são tão antigas quanto a própria humanidade. Li as 
transcrições de cartas suas, e de outras que concordam com 
elas, no Rutland Herald, e suponho que sei em que pé se 
encontra no momento a controvérsia. 
O que lhe desejo dizer nesta carta é que, em minha 
opinião, seus oponentes acham-se mais perto da verdade do que 
o senhor, muito embora a racionalidade pareça estar de seu 
lado. Aquelas pessoas acham-se mais perto da verdade do que 
elas próprias imaginam, pois evidentemente guiam-se somente 
pela teoria, e não podem saber aquilo que eu sei. Se eu soubesse 
tão pouco sobre o assunto quanto elas sabem, eu me sentiria 
justificado em pensar como elas. Eu estaria inteiramente do 
lado do senhor. 
 
15 
Como o senhor pode perceber, estou-me retardando em 
circunlóquios, provavelmente porque na verdade tenho medo de 
tocar no assunto que desejo expor. A verdade nua e crua é que 
possuo provas concretas de que coisas monstruosas realmente 
vivem nas florestas dos montes altos, que ninguém visita. Não 
vi nenhuma das coisas que, tal como noticiado, estiveram 
flutuando rio abaixo, mas vi coisas semelhantes, em 
circunstâncias que não gostaria de descrever. Já vi pegadas, e 
de algum tempo a esta parte, as tenho visto mais perto de 
minha própria casa — resido na antiga propriedade dos Akeley, 
ao sul de Townshend, do lado do monte Escuro — do que ouso 
lhe contar. E entreouvi vozes nas florestas, em certos pontos 
delas, vozes que nem tentarei descrever por escrito. 
Em um desses sítios, escutei-as com tamanha 
intensidade que levei para lá um fonógrafo, equipado com um 
ditafone e ceravirgem, e farei o possível para que o senhor 
tenha oportunidade de escutar a gravação que fiz. Reproduzi 
essa gravação para algumas das pessoas mais idosas daqui, e 
uma das vozes quase as paralisou de medo, em virtude de sua 
semelhança com uma certa voz — a voz zumbidora das 
florestas mencionada por Davenport — sobre a qual falavam 
suas avós e que elas tentavam imitar. Sei muito bem o que a 
maioria das pessoas pensa a respeito de um homem que diz 
“ouvir vozes”... Mas antes que o senhor tire conclusões, peço-
lhe que escute a gravação e pergunte a alguns dos moradores 
mais velhos destes ermos o que pensam a respeito. Se o senhor 
puder explicá-la em termos normais, muito bem; mas tem de 
haver alguma coisa por trás disso. Ex nihilo nihil fit, como o 
senhor sabe. 
Meu intuito ao lhe escrever não consiste em iniciar uma 
polêmica, mas sim passar-lhe informações que, em meu 
entender, um homem com seus interesses julgará bastante 
interessantes. O que lhe digo aqui é particular. Publicamente, 
 
16 
estou de seu lado, pois certas coisas me ensinam que não 
convém às pessoas saberem demasiado a respeito desses 
assuntos. Meus próprios estudos são atualmente de todo 
privados, e de modo algum pretendo dizer alguma coisa que 
atraia a atenção das pessoas e as faça visitar os lugares que 
explorei. É verdade, infelizmente é verdade, que existem 
criaturas não humanas que nos vigiam constantemente; que 
mantém espiões entre nós, a colherem informações. Foi de um 
homem desgraçado que, se era mentalmente são — e acredito 
que era — foi desses espiões, obtive grande parte de meu 
conhecimento sobre o assunto. Mais tarde ele veio a suicidar-se, 
mas tenho motivos para crer que existem outros atualmente. 
As coisas vêm de outro planeta e são capazes de viver no 
espaço interestelar e de voar nele, com asas desajeitadas e 
potentes, que de alguma forma funcionam no éter, mas que são 
demasiado ineficientes na atmosfera para ser-lhes de muita 
valia aqui na Terra. Falarei sobre isso mais tarde, se o senhor 
não decidir a não me dar ouvidos, julgando-me louco varrido. 
Esses seres vêm até aqui a fim de obterem metais, em minas que 
cavam profundamente nas montanhas, e creio que sei de onde 
eles procedem. Não nos farão mal algum se os deixarmos em 
paz, mas ninguém saberá dizer o que acontecerá se nos 
mostrarmos demasiado curiosos com relação a eles. É evidente 
que um bom exército de homens teria condições de erradicar 
sua colônia de mineração. É isso que eles receiam que aconteça. 
No entanto, se tal viesse a suceder, um número maior deles 
viria de fora... uma quantidade inimaginável. Poderiam 
conquistar a Terra com toda facilidade, mas até hoje não 
tentaram isso porque não tiveram necessidade. Preferem deixar 
as coisas como estão para se pouparem do trabalho. 
Creio que pretendem livrar-se de mim, devido ao que 
descobri. Nas florestas do morro Redondo, a leste daqui, 
encontrei uma enorme pedra preta, com hieróglifos 
 
17 
desconhecidos, meio desgastados pelo tempo. E depois que a 
trouxe para casa, tudo se tornou diferente. Se julgarem que 
suspeito de muitas coisas, de duas uma: ou me matarão ou me 
levarão para o lugar de onde vieram. De vez em quando, levam 
daqui homens educados, a fim de se manterem informados sobre 
o estado das coisas no mundo humano. 
Com isso, chego a meu segundo objetivo em lhe 
escrever: instá-lo a abafar o atual debate, ao invés de lhe dar 
ainda mais publicidade. As pessoas devem ficar longe daquelas 
montanhas, e por isso, a curiosidade popular não deve ser de 
modo algum atiçada ainda mais. Só Deus sabe o perigo que já 
existe, causado por incorporadores e agentes imobiliários que 
invadem Vermont no verão, com chusmas de visitantes que 
correm de um lado para o outro e enchem os morros de 
bangalôs malfeitos. 
Apreciaria continuar a trocar correspondência com o 
senhor, e farei o possível para lhe mandar aquela gravação e a 
pedra negra — já tão erodida que fotografias não mostram 
muita coisa — por via expressa se o senhor assim desejar. Digo 
“farei o possível” porque acredito que aquelas criaturas de uma 
maneira ou de outra conseguem influir nas coisas por aqui. Em 
uma fazenda perto da aldeia mora um sujeito furtivo e 
arrogante, Brown, que, segundo julgo, serve de espião para 
eles. Pouco a pouco, estão tentando me tirar do mundo, porque 
eu sei coisas demais a respeito do mundo deles. 
É impressionante o modo como conseguem descobrir o 
que faço. É possível que o senhor nem receba esta carta. Creio 
que serei obrigado a deixar essa área do país e ir morar com 
meu filho em San Diego, na Califórnia, se as coisas piorarem, 
mas não é fácil para uma pessoa abandonar a terra em que 
nasceu e onde a família viveu durante seis gerações. Além do 
mais, dificilmente eu teria coragem de vender esta casa a 
alguém, agora que as criaturas passaram a observá-la de perto. 
 
18 
Tenho a impressão de que estão procurando recuperar a pedra 
preta e destruir a gravação fonográfica, mas não permitirei que 
o façam, se puder. Possuo alguns canzarrões, policiais, que 
sempre os mantém a distância, pois até agora são poucos por 
aqui, e se locomovem com dificuldade. Tal como disse, suas asas 
não são de grande valia para vôos curtos em nossa atmosfera. 
Estou na iminência de decifrar aquela pedra — com grandes 
sustos e padecimentos — e tendo em vista seu conhecimento do 
folclore, talvez o senhor pudesse me fornecer achegas suficientes 
para me ajudar. Suponho que o senhor esteja a par dos 
tenebrosos mitos a respeito das épocas anteriores à aparição do 
homem na Terra — os ciclos de Yog-Sothoth e de Cthulhu — 
aos quais há referências oblíquas no Necronomicon. De certa 
feita tive acesso a um exemplar dessa obra, e pelo que ouvi dizer 
o senhor possui um deles, guardado a sete chaves em sua 
biblioteca na universidade. 
Para concluir, Sr. Wilmarth, acredito que, com nossos 
conhecimentos, possamos ser utilíssimos um para o outro. Não 
desejo fazer com que o senhor corra qualquer perigo, e julgo ser 
de meu dever adverti-lo de que manter em sua posse a pedra e a 
gravação não será muito seguro; no entanto, penso que o 
senhor achará que vale a pena correr os riscos, por amor à 
ciência. Irei de carro até Newfane ou Brattleboro a fim de lhe 
remeter o que o senhor me autorizar, pois nesses lugares os 
correios são mais seguros. Talvez convenha informar-lhe que 
atualmente vivo inteiramente sozinho, uma vez que não posso 
mais ter criados. Não ficam aqui por causa das coisas que 
tentam aproximar-se da casa de noite, e que mantêm os cães 
ladrando incessantemente. Fico contente ao pensar que não me 
enfronhei tanto nisso enquanto minha mulher era viva, pois ela 
teria ficado louca. 
Na esperança de que não o esteja incomodando 
demasiado, e que o senhor decida entrar em contacto comigo, ao 
 
19 
invés de jogar essa carta no lixo, como delírio de louco, 
subscrevo-me, 
 
Atenciosamente, 
Henry W. Akeley 
 
P.S. Estou providenciando cópias adicionais de certas 
fotografias que tirei, e que, em minha opinião, ajudarão a 
corroborar alguns pontos a que me referi. As pessoas mais 
idosas as julgam monstruosamente fiéis à realidade. Eu as 
enviarei em breve, se o senhor estiver interessado em vê-las. 
 
Seria difícil descrever minha sensação ao ler esse 
estranho documento pela primeira vez. Segundo todas as 
regras comuns, eu deveria ter gargalhado ainda mais 
diante dessas maluquices do que das teorias, muito mais 
moderadas, que anteriormente me haviam levado ao riso. 
No entanto, havia no tom daquela carta alguma coisa que 
me fazia encará-la com paradoxal seriedade. Não que eu 
acreditasse, por um só momento, na abstrusa raça 
proveniente das estrelas de que falava meu 
correspondente; mas o fato foi que, após algumas graves 
dúvidas iniciais, vim a me persuadir estranhamente da 
sua sanidade mental e de sua sinceridade. Convenci-me 
também de que ele havia estado diante de algum 
fenômeno verdadeiro, ainda que singular e anormal, que 
ele nãoera capaz de explicar, salvo daquela maneira 
fantasiosa. Era forçoso crer que ele havia imaginado tudo 
aquilo, refleti; por outro lado, eu não podia deixar de 
pensar que o caso merecia investigação. O homem 
parecia exageradamente agitado e alarmado com alguma 
coisa, mas era difícil imaginar que sua aflição fosse 
 
20 
inteiramente destituída de motivo. Mostrava-se ele 
bastante específico e lógico em muitas coisas. E, afinal, 
sua história se ajustava à perfeição a alguns mitos antigos 
— até com as mais desvairadas lendas indígenas. 
Era bastante possível que ele tivesse realmente 
escutado vozes perturbadoras nas montanhas e que 
tivesse, com efeito, encontrado a pedra preta de que 
falava, apesar das inferências delirantes que tinha feito — 
inferências provavelmente sugeridas pelo homem que se 
confessara um espião a serviço dos seres alienígenas e 
que mais tarde se suicidara. Era fácil deduzir que esse 
homem devia ter sido louco varrido, mas que, 
provavelmente, mostrava um comportamento lógico que 
levara o ingênuo Akeley — já então predisposto a crer 
nessas coisas, devido a seus estudos do folclore — a 
acreditar em suas narrativas. Quanto aos fatos mais 
recentes — tinha-se a impressão, pela impossibilidade de 
Akeley manter seus criados, que seus vizinhos mais 
ignorantes estavam tão convencidos quanto ele que sua 
casa era sitiada por seres fantásticos à noite. O fato de os 
cães ladrarem não devia levar a conclusões apressadas. 
Havia ainda a questão da gravação fonográfica, 
que nada fazia crer que não tivesse sido obtida da 
maneira por ele descrita. Aquilo devia ter uma 
explicação, porém. Talvez fossem ruídos de animais, 
enganosamente semelhante à linguagem humana, ou 
mesmo a fala de algum homem que perambulasse às 
ocultas pela floresta, de noite, um ser humano que 
estivesse reduzido a um estado pouco superior ao dos 
animais. Meus pensamentos voltavam então à pedra 
negra coberta de hieróglifos e a especulações sobre qual 
seria sua explicação. E o que dizer das fotografias que 
 
21 
Akeley estava disposto a me enviar, e que os anciãos do 
lugar achavam tão terrivelmente convincentes? 
Relendo a carta, com sua caligrafia garranchosa, 
eu senti, mais do que antes, que meus crédulos 
oponentes talvez estivessem mais perto da verdade do 
que eu havia admitido. Afinal de contas, era possível que 
existissem naquelas montanhas interditas alguns 
ermitões, solitários e talvez malformados por 
hereditariedade, muito embora decerto aquela história de 
monstros das estrelas só pudesse ser fantasia. E se nas 
montanhas habitava gente esquisita, a presença de corpos 
estranhos nas caudais não seria inteiramente absurda. 
Seria excessiva presunção imaginar que tanto as velhas 
lendas como as notícias recentes tivessem, a fundamentá-
las, essa dose de verdade? Ainda assim, mesmo enquanto 
eu alimentava essas dúvidas, sentia-me envergonhado 
pelo fato de um desvario tão grande quanto a carta de 
Henry Akeley tê-las feito nascer em meu espírito. 
Por fim, acabei respondendo a carta de Akeley, 
assumindo um tom de polido interesse e solicitando mais 
pormenores. Sua resposta me chegou às mãos quase pela 
volta do correio e continha, com efeito, alguns 
instantâneos de cenas e objetos que ilustravam o que ele 
tinha a contar. Ao ver de relance aquelas imagens, 
quando as tirei do envelope, senti uma curiosa impressão 
de medo e de proximidade a coisas proibidas. Isto 
porque, a despeito da vagueza da maioria delas, tinham 
uma força horrivelmente sugestiva, intensificada pelo 
fato de serem fotografias verdadeiras — vínculos ópticos 
reais com o que retratavam e produto de um processo 
impessoal de comunicação, sem preconceitos, falibilidade 
ou má fé. 
 
22 
Quanto mais eu olhava aquelas fotografias, mais 
me convencia de que eu não me enganara ao conceder 
seriedade a Akeley e à sua história. Evidentemente, 
aquelas fotos representavam prova concludente de que 
havia nas montanhas de Vermont alguma coisa que se 
situava muitíssimo além do campo de nosso 
conhecimento e nossa convicção ordinárias. O pior de 
tudo era uma pegada — uma fotografia tirada em um 
ponto em que o sol brilhava sobre um pequeno lamaçal, 
em algum lugar de um planalto deserto. Que não se 
tratava de nenhuma falsificação grosseira, eu podia 
perceber em um átimo, pois os seixos definidos com 
nitidez e as hastes de capim presentes no campo de visão 
proporcionavam uma clara indicação da escala e não 
deixavam nenhuma possibilidade de um truque, como 
dupla exposição. Eu chamei a coisa de “pegada”, que 
significa “vestígio que o pé deixa no solo”; entretanto, 
aquilo mais se parecia à marca de uma garra. Ainda 
agora não posso descrevê-la direito, e o melhor que posso 
fazer é dizer que se assemelhava, horrendamente, à 
marca de uma pata de caranguejo e que parecia haver 
uma certa ambigüidade com relação à sua direção. Não 
era uma marca muito funda ou recente, mas parecia ser 
do tamanho de um pé humano mediano. A partir de um 
bulbo central, pares de pinças serrilhadas se projetavam 
em direções opostas. Ou seja, sua função era bastante 
enigmática, se é que o objeto fosse exclusivamente um 
órgão locomotor. 
Outra fotografia — evidentemente se tratava de 
uma exposição prolongada, em local fortemente 
sombreado — mostrava a boca de uma caverna, com um 
rochedo arredondado fechando a abertura. No solo 
 
23 
desnudo, à sua frente só se podia discernir uma densa 
trama de trilhas curiosas, e quando examinei a fotografia 
com uma lupa tive a certeza inquietante de que as marcas 
eram semelhantes à da outra foto. Um terceiro 
instantâneo mostrava um círculo de pedras eretas, como 
as levantadas pelos druidas, no topo de um morro. Em 
torno do círculo críptico, a grama estava muito pisada e 
desgastada, muito embora eu não conseguisse detectar 
nenhuma marca no chão, nem mesmo com a lupa. Que o 
local era extremamente inóspito era evidenciado pelo 
verdadeiro mar de montanhas desabitadas, que formava 
o fundo e se estendia em direção a um horizonte 
enevoado. 
Entretanto, se a fotografia mais perturbadora era a 
da “pegada”, a que despertava maior curiosidade era a 
da grande pedra preta achada, nas matas do morro 
Redondo. Akeley a havia fotografado sobre uma mesa 
que era, obviamente, seu local de estudo, pois eu podia 
ver prateleiras de livros e um busto de Milton ao fundo. 
Como era de esperar, o objeto tinha sido fotografado em 
posição vertical e apresentava superfície irregularmente 
curva, com cerca de palmo e meio de largura por três 
palmos de altura. No entanto, afirmar qualquer coisa de 
definitivo a respeito daquela superfície ou sobre a forma 
geral do objeto, como um todo, quase ultrapassa o poder 
da linguagem. Que estranhíssimos princípios 
geométricos haviam orientado seu talhe — pois eu estava 
convicto de que a pedra fora talhada artificialmente — 
era coisa que eu não podia sequer começar a conjecturar; 
e nunca, até então, eu vira uma coisa que me parecesse 
tão esquisita e inequivocamente estranha a este nosso 
planeta. Quanto aos hieróglifos em sua superfície, eu 
 
24 
podia perceber pouquíssimos, mas um ou dois que pude 
discernir me causaram um choque. Evidentemente, 
podiam ser fraudulentos, pois outras pessoas além de 
mim já tinham lido o monstruoso e abominável 
Necronomicon, de Abdul Al-Hazred, o árabe louco. No 
entanto, senti um calafrio ao reconhecer certos 
ideogramas que o estudo me ensinara a relacionar aos 
mais enregeladores e blasfemos murmúrios de coisas que 
haviam tido uma espécie de semi-vida louca, antes que se 
formassem a Terra e os demais planetas interiores do 
sistema solar. 
Das cinco fotografias restantes, três eram de 
paisagens de pântanos e montes que pareciam mostrar 
vestígios de ocupação, sub-reptícia, de seres tétricos. 
Uma outra mostrava uma marca esquisita no solo, bem 
perto da casa de Akeley; segundo ele dizia, tinha tirado a 
fotografia de manhã, depois de uma noite em que os cães 
haviam latido muito mais que de costume.Estava muito 
desfocada, e na verdade não permitia conclusões seguras; 
mas assemelhava-se diabolicamente à outra marca 
fotografada no planalto ermo. A última fotografia era da 
propriedade de Akeley; um belo sobrado branco, com 
sótão, com seus cento e poucos anos, atrás de um 
gramado bem-cuidado e um caminho ladeado de pedras 
que levava a um portal georgiano, entalhado com bom 
gosto. Vários canzarrões policiais, enormes, estavam 
sentados junto de um homem de rosto simpático, de 
barba grisalha e aparada, que julguei ser o próprio 
Akeley — que fotografara a si mesmo, como se podia 
inferir pelo cabo propulsor, de bulbo, em sua mão. 
Das fotografias, passei à carta, redigida em uma 
caligrafia de letras apertadas. E durante as três horas 
 
25 
seguintes estive mergulhado em um abismo de indizível 
horror. As questões que Akeley havia antes tratado por 
alto eram agora expostas em minudências; apresentava 
ele longas transcrições de palavras entreouvidas de noite 
nas florestas, longas descrições de hediondas formas 
rosadas avistadas ao crepúsculo entre moitas nos morros, 
bem como uma terrível narrativa cósmica derivada da 
aplicação de uma profunda e variegada erudição às 
intermináveis arengas do louco que se declarara espião e 
que se matara. Vi-me diante de nomes e termos que havia 
encontrado alhures, ligados às coisas mais horrendas que 
se podem imaginar — Yuggoth, Grande Cthulhu, 
Tsathoggua, R’lyeh, Nyarlathotep, Azathoth, Hastur, 
Yian, Leng, o lago de Hali, Bethmoora, o Signo Amarelo, 
L’mur-Kathulos, Bran e o Magno Inominando — e fui 
arrastado, por eras sem nome e por dimensões 
inconcebíveis, a mundos de existência prístina e remota 
sobre os quais o delirante autor do Necronomicon só 
havia feito conjecturas vaguíssimas. Ouvi falar das fontes 
da vida primeva, e das correntes que de lá haviam 
brotado; e, finalmente, do minúsculo regato que saía de 
uma daquelas correntes, que se haviam emaranhado com 
os destinos de nosso próprio mundo. 
Minha cabeça rodopiava. E ao passo que antes 
procurara dar explicações aos fatos, agora comecei a 
acreditar nas maravilhas mais absurdas e incríveis. O 
acúmulo de provas vitais era de uma vastidão e uma 
concludência horripilantes; e a atitude serena e científica 
de Akeley — uma atitude inimaginavelmente distante 
daquela que se poderia esperar de um demente, um 
fanático, um histérico ou mesmo do sonhador 
extravagante — exerceu um efeito tremendo em meu 
 
26 
raciocínio e meu julgamento. Quando por fim terminei de 
ler a carta, pude entender os medos que ele passara a 
sentir, e estava pronto a fazer qualquer coisa a meu 
alcance a fim de manter as pessoas afastadas daqueles 
montes inóspitos e assombrados. Mesmo agora, depois 
que o tempo embotou as primeiras impressões e me faz 
quase questionar minha própria experiência e as dúvidas 
atrozes, há coisas naquela carta de Akeley que eu não 
gostaria de repetir ou mesmo formular por escrito. Sinto 
quase satisfação pelo fato de a carta, a gravação e as 
fotografias não existirem mais — e gostaria, por motivos 
que em breve esclarecerei, que o novo planeta além de 
Netuno nunca tivesse sido descoberto. 
Com a leitura daquela tarde, terminou para 
sempre a polêmica que eu vinha mantendo em público 
sobre o horror de Vermont. Argumentações apresentadas 
por oponentes permaneciam sem resposta ou eu as 
descartava com promessas, e por fim a controvérsia 
minguou e cessou de vez. Passei o fim de maio e o mês 
de junho em correspondência com Akeley; de vez em 
quando uma carta se extraviava, de modo que tínhamos 
de refazer nosso caminho e realizar um considerável 
trabalho de cópia. Em síntese, o que estávamos tentando 
fazer era comparar anotações a respeito de obscuros 
dados mitológicos para chegarmos a uma correlação mais 
clara dos horrores de Vermont com o conjunto geral de 
lendas primitivas. 
Desde o início, concluímos que aquelas 
monstruosidades e o demoníaco Mi-Go himalaio 
pertenciam a uma única e mesma ordem de pesadelo 
encarnado. Havia ainda absorventes conjecturas 
zoológicas, que eu teria apresentado ao professor Dexter, 
 
27 
em minha universidade, não fora Akeley haver 
ordenado, categoricamente, que eu nada dissesse, a 
qualquer pessoa, a respeito daquele assunto. Se dou 
mostras de desobedecer a essa determinação agora, é 
apenas por pensar que, nesta altura dos acontecimentos, 
uma advertência com relação àquelas distantes 
montanhas de Vermont — e sobre aqueles picos dos 
Himalaias, onde a cada dia que passa um maior número 
de ousados exploradores se aventura — é mais propício à 
segurança pública do que seria o silêncio. Uma atividade 
específica que estávamos realizando era o deciframento 
dos hieróglifos gravados naquela infame pedra negra — 
uma decodificação que bem nos poderia conduzir a 
segredos mais profundos e mais assombrosos que 
qualquer outro jamais detectado pelo homem. 
 
III 
 
Perto do fim de junho chegou a gravação 
fonográfica, remetida de Brattleboro, uma vez que 
Akeley não se dispunha a confiar no ramal que operava 
ao norte daquela localidade. Ele havia começado a ter 
uma crescente sensação de espionagem, agravada pelo 
extravio de algumas de nossas cartas; e referia-se muito 
aos atos suspeitos de certos homens, que ele considerava 
instrumentos e agentes dos seres alienígenas. 
Desconfiava sobretudo do soturno fazendeiro chamado 
Walter Brown, que morava sozinho em uma casa velha, 
construída em um morro perto das matas mais densas, e 
que era freqüentemente visto a perambular pelas 
esquinas de Brattleboro, Bellows Falls, Newfane e South 
Londonderry, sem nenhum motivo aparente. Akeley 
 
28 
estava convencido de que era de Brown uma das vozes 
que ele havia entreouvido, em certa ocasião, travando 
uma conversa horrenda. E em outra ocasião havia 
encontrado uma “pegada” ou marca de garra perto da 
casa de Brown, marca essa que poderia ter o mais nefasto 
significado. A marca estava, curiosamente, junto de 
pegadas do próprio Brown — e voltada para estas. 
Assim sendo, a gravação foi remetida de 
Brattleboro, aonde Akeley foi em seu Ford, por desertas 
estradas secundárias de Vermont. Confessou, em um 
bilhete que acompanhava a gravação, que começava a 
sentir medo daquelas estradas e que só se dispunha a ir 
comprar provisões em Townshend em plena luz do dia. 
Não valia a pena, ele reiterava sempre, saber demasiado, 
a menos que se estivesse muito longe daquelas 
silenciosas e problemáticas montanhas. Muito em breve 
ele viajaria para a Califórnia, a fim de morar com o filho, 
embora fosse difícil abandonar um lugar no qual se 
concentravam todas as suas recordações, pessoais e 
ancestrais. 
Antes de reproduzir a gravação na máquina 
comercial que tomei de empréstimo na administração da 
universidade, repassei cuidadosamente todas as 
explicações contidas nas diversas cartas de Akeley. A 
gravação, conforme ele relatava, havia sido obtida mais 
ou menos à l hora da manhã do dia lº de maio de 1915, 
perto da boca fechada de uma caverna, no ponto em que 
a encosta oeste da montanha Escura se ergue do pântano 
de Lee. Àquele lugar fora sempre atribuída a existência 
de vozes estranhas, sendo este o motivo pelo qual ele 
havia levado consigo o fonógrafo, o ditafone e a cera 
virgem, à espera de resultados. A experiência já lhe 
 
29 
ensinara que a véspera do lº de maio — a medonha noite 
sabática das lendas européias — provavelmente seria 
mais frutífera que qualquer outra data, e ele não se 
decepcionou. Era interessante notar, contudo, que jamais 
voltara a escutar vozes naquele mesmo lugar. 
Ao contrário da maior parte das vozes 
entreouvidas nas florestas, os sons contidos na gravação 
tinham um quê de ritualístico e entre eles havia uma voz 
palpavelmente humana, que Akeley nunca soubera a 
quem atribuir. Não era a de Brown, e parecia pertencer a 
uma pessoa de melhor educação. Era a segunda voz, no 
entanto, que constituía o busílis... pois se tratava do 
amaldiçoado zumbido que não parecia em nada humano,apesar das palavras humanas, pronunciadas com boa 
prosódia e entonação educada. 
O fonógrafo e o ditafone não haviam funcionado 
muito bem durante todo o tempo de gravação, e havia a 
prejudicá-los, naturalmente, a natureza remota e abafada 
do ritual entreouvido; assim, o vozerio fixado na cera 
estava muito fragmentado. Akeley me havia enviado 
uma transcrição do que, segundo acreditava, diziam as 
vozes, e lancei um olhar ao papel, enquanto preparava a 
máquina. O texto tinha antes um mistério sombrio do 
que uma hediondez ostensiva, muito embora o 
conhecimento de sua origem e da maneira como havia 
sido obtida me transmitissem todo o horror associativo 
que nenhum conjunto de palavras poderia perfeitamente 
traduzir. Apresento-o aqui na íntegra, tal como me 
lembro, e estou bastante certo de que memorizei bem o 
texto, não só por haver lido a transcrição, mas por ter 
reproduzido a gravação vezes sem conta. Não se trata de 
uma coisa que eu pudesse esquecer facilmente! 
 
30 
— Sons indistintos — 
— Uma voz humana, masculina e educada — 
 
...é o Senhor da Floresta, mesmo para... e as dádivas dos 
homens de Leng... e das fontes da noite aos abismos do espaço, e 
dos abismos do espaço às fontes da noite, sempre o louvor ao 
Grande Cthulhu, a Tsathoggua, e Àquele que Não Deve Ser 
Nomeado. Sejam sempre louvados, e haja abundância para o 
Bode Negro das Florestas. Iä! Shub-Niggurath! O Bode de Mil 
Filhos! 
 
— Um zumbido imitando voz humana — 
 
Iä! Shub-Niggurath! O Bode Negro da Floresta, de Mil Filhos! 
 
— Voz humana — 
 
E sucedeu que o Senhor das Florestas, estando... sete e 
nove, descendo os degraus de ônix... rende tributo a Ele, o do 
Abismo, Azathoth, A Ele de Quem Tu nos contaste 
maravilhas... nas asas da noite, para além do espaço, para além 
d... até Aquele de Quem o filho mais novo é Yuggoth, girando 
em solidão no espaço negro, na borda... 
 
— Voz zumbidora — 
 
...caminhai entre os homens e aprendei seus costumes, 
para que Ele. o do Abismo, os conheça. A Nyarlathotep. 
Poderoso Mensageiro, todas as coisas devem ser contadas. E Ele 
há de assumir a semelhança de homens, a máscara de cera e o 
manto que oculta, e há de descer do mundo dos Sete Sóis para 
zombar... 
— Voz humana — 
 
31 
...Nyarlathotep, Grande Mensageiro, portador de 
estranha alegria a Yuggoth, através do vazio, Pai do Milhão de 
Eleitos, Errante entre... 
 
— Vozes interrompidas pelo final da gravação — 
 
Eram essas as palavras que eu haveria de escutar 
quando liguei o fonógrafo. Foi com um traço de medo e 
relutância que premi o botão e escutei os arranhões 
preliminares da ponta de safira e fiquei satisfeito com o 
fato de as primeiras palavras, distantes e fragmentárias, 
serem pronunciadas por voz humana — uma voz macia e 
educada, com sotaque vagamente bostoniano, e que 
decerto não pertencia a nenhum nativo das montanhas 
de Vermont. Escutando aquela reprodução 
tantalizantemente débil, eu constatava que as palavras 
eram idênticas às da transcrição que Akeley havia 
preparado com muito cuidado. Aquela macia voz 
bostoniana entoava “Iä Shub-Niggurath! O Bode de Mil 
Filhos!...” 
Foi então que ouvi a outra voz. Até hoje ainda 
tremo quando me lembro do que senti ao ouvi-la, embora 
estivesse preparado pelos relatos de Akeley. Aquelas 
pessoas a quem descrevi a gravação afirmam não ver 
nela nada senão grosseira impostura ou loucura. Mas se 
pudessem escutar pessoalmente aquela coisa maldita, ou 
ler as cartas de Akeley, principalmente aquela segunda 
carta que ele me enviou, com um volume enciclopédico 
de informações, sei que pensariam outra coisa. Hoje, acho 
que foi uma pena eu não haver desobedecido a Akeley e 
reproduzido a gravação para outras pessoas — e foi 
pena, também, que todas as suas cartas tenham-se 
 
32 
perdido. Para mim, devido a meu contacto de primeira 
mão com os sons e por causa do conhecimento que eu 
tinha das circunstâncias que cercavam sua obtenção, 
aquela voz era alguma coisa de monstruoso. Ela se 
sucedia rapidamente à voz humana no responsório do 
ritual, mas em minha imaginação era um eco mórbido 
que atravessava, sinuosamente, abismos inimagináveis 
que partiam de infernos inimagináveis. Faz mais de dois 
anos que fiz tocar pela última vez aquele blasfemo 
cilindro de cera; mas neste exato momento, e em 
qualquer outro momento, ainda escuto aquele zumbido 
débil e diabólico, tal como o ouvi pela primeira vez. 
 
“Iä! Shub-Niggurath! O Bode Negro da Floresta de Mil 
Filhos!“ 
 
No entanto, ainda que a voz continue a soar em 
meus ouvidos sem cessar, até hoje não consegui analisá-
la suficientemente bem para poder descrevê-la em 
palavras. Era como o zunido de um inseto horrendo e 
gigantesco que tivesse sido, por milagre, transformado na 
fala articulada de uma espécie alienígena, e tenho certeza 
absoluta de que os órgãos que o produziam não podiam 
ter nenhuma semelhança com os órgãos vocais do 
homem — ou de qualquer outro mamífero. Havia 
singularidade de timbre, amplitude e matizes que 
colocavam aquele fenômeno inteiramente fora da esfera 
da humanidade e da vida terrestre. A maneira súbita 
como começou a soar daquela primeira vez quase me 
aturdiu e escutei o resto da gravação em uma espécie de 
torpor. Quando chegou a passagem mais longa daquele 
zumbido, houve como que uma intensificação acentuada 
 
33 
daquela sensação de blasfema infinitude que havia 
tomado conta de mim durante a passagem anterior, mais 
curta. Por fim, a gravação terminou de repente, durante 
uma alocução desusadamente límpida daquela voz 
humana e bostoniana. Mas depois de a máquina ter-se 
desligado automaticamente, fiquei por longo tempo 
paralisado. 
Creio ser excusado dizer que reproduzi aquela 
gravação demoníaca muitas outras vezes, e que fiz 
tentativas exaustivas de analisá-la e comentá-la, trocando 
opiniões com Akeley. Seria inútil e cansativo registrar 
aqui todas as conclusões a que chegamos; mas talvez não 
seja desinteressante observar que concordamos em que 
havíamos obtido uma chave para deslindar alguns dos 
mais repulsivos costumes daquelas insondáveis religiões 
antigas da humanidade. Além disso, parecia-nos claro 
que havia antigas e complexas alianças entre aquelas 
criaturas ocultas e certos membros da raça humana. Até 
que ponto iam essas alianças, e de que maneira se 
podiam comparar as que existiam hoje com as existentes 
em eras mais remotas, não tínhamos nenhum meio de 
saber. No entanto, sobrava margem para um volume 
ilimitado de horrorizadas conjecturas. Parecia haver um 
vínculo tenebroso e imemorial, em vários estágios 
definidos, entre o homem e a infinitude inominada. As 
blasfêmias que apareciam na Terra, segundo éramos 
levados a crer, vinham do trevoso planeta Yuggoth, nos 
confins do sistema solar. Contudo, esse planeta não 
passava do posto avançado, povoado, de uma medonha 
raça interestelar cuja origem suprema deveria situar-se 
muito além do imaginável, além mesmo do continuum 
espaço-tempo einsteiniano. 
 
34 
Nesse ínterim, continuamos a discutir a respeito 
da pedra preta e da melhor maneira de fazê-la chegar a 
Arkham, uma vez que Akeley julgava desaconselhável 
que eu o fosse visitar no cenário de seus estudos de 
pesadelo. Por algum motivo, Akeley receava confiar o 
objeto a qualquer meio de transporte comum ou 
plausível. Por fim, ele decidiu levar a pedra até Bellows 
Falls, de onde a embarcaria pela rede ferroviária de 
Boston e do Maine, através de Keene, Winchendon e 
Fitchburg, ainda que isso o obrigasse a dirigir por 
estradas mais solitárias e através de mais florestas do que 
a estrada principal, que passava por Brattleboro. Disse-
me ele que havia observado um homem vagueando pelo 
escritório da transportadora em Brattleboro na ocasião 
em que remetera a gravação fonográfica. Era um homem 
cujos atos e fisionomia estavam longe de serem 
tranqüilizantes. Dera mostras de estar ansioso por 
conversar com os funcionários e havia embarcado no 
trem no qual a gravação fora remetida. Akeley confessouque não se sentira inteiramente tranqüilo com relação à 
gravação até eu haver acusado seu recebimento. 
Mais ou menos nessa época — a segunda semana 
de julho — extraviou-se outra carta minha, como vim a 
saber por uma comunicação ansiosa de Akeley. Depois 
disso, ele me pediu que não lhe escrevesse mais para 
Townshed, e que enviasse toda e qualquer 
correspondência para a caixa postal de Brattleboro; ele 
faria viagens freqüentes até lá, de carro ou pela linha de 
ônibus que havia substituído o serviço de passageiros do 
ramal ferroviário, cujas composições atrasavam-se 
constantemente. Percebi que ele se tornava cada vez mais 
ansioso, pois detinha-se, em suas cartas, a falar 
 
35 
pormenorizadamente dos latidos dos cães nas noites sem 
lua e das marcas frescas de garras que às vezes 
encontrava na estrada e na lama do terreiro da fazenda, 
quando amanhecia. De certa feita referiu-se a um 
verdadeiro exército de marcas, formando uma linha 
fronteira à uma linha igualmente densa e resoluta de 
marcas das patas dos cães, e mandou-me um instantâneo 
fotográfico horrivelmente perturbador para comprovar o 
que dizia. Isso ocorreu após uma noite em que os cães 
haviam latido e ladrado como nunca. 
Na manhã de quarta-feira, 18 de julho, recebi um 
telegrama expedido de Bellows Falls, no qual Akeley 
informava estar despachando a pedra preta pela B. & M., 
no trem número 5508, que partiria de Bellows Falls às 
12:15 e que deveria chegar à Estação Norte de Boston às 
16:12. Calculei que a encomenda certamente estaria em 
Arkham por volta das 12 horas do dia seguinte. Por isso, 
passei toda a manhã de quinta-feira em casa, a fim de 
recebê-la. Mas o meio-dia chegou e passou sem que a 
encomenda aparecesse. Quando telefonei para o 
escritório da companhia, fui informado de que não havia 
chegado nenhuma encomenda para mim. Minha próxima 
providência, tomada em meio ao crescente alarme, 
consistiu em dar um telegrama interurbano para o agente 
da companhia, na Estação Norte de Boston; e não foi com 
grande surpresa que soube que meu despacho não havia 
aparecido. O trem 5508 havia chegado com um atraso de 
apenas 35 minutos na véspera, mas não havia trazido 
nenhum pacote endereçado a mim. Contudo, o agente 
prometeu realizar uma investigação. Terminei o dia 
remetendo a Akeley uma carta noturna em que 
historiava a situação. 
 
36 
Com louvável presteza, o escritório de Boston 
emitiu um relatório na tarde seguinte, e o agente 
telefonou assim que teve em mãos os dados. Ao que 
parecia, o funcionário do serviço de entregas, que viajava 
na composição 5508, lembrava-se de um incidente que 
poderia estar relacionado com minha perda: uma 
discussão com um homem que tinha uma voz 
curiosíssima, magro, de cabelos claros e aspecto rude, 
quando o trem parou em Keene, New Hampshire, pouco 
depois das 13:00. 
Esse homem, disse ele, estava tomado de grande 
agitação por causa de uma caixa pesada que, segundo 
declarou, estava esperando, mas que nem estava no trem 
nem havia sido registrada nos livros da companhia. Dera 
o nome de Stanley Adams, e tinha uma voz tão 
rouquenha, grave e esquisita, que o empregado se sentira 
anormalmente tonto e sonolento por escutar o que ele 
dizia. O rapaz não se lembrava direito de como a 
conversa tinha terminado, mas afirmava que se sentira 
imediatamente mais desperto assim que o trem 
recomeçou a viagem. O agente de Boston acrescentava 
que esse empregado era um jovem de inteira confiança, 
com antecedentes conhecidos e que trabalhava na 
companhia há longos anos. 
Naquela noite fui a Boston a fim de me entrevistar 
com o funcionário em pessoa, depois de obter seu nome e 
endereço no escritório da empresa. Tratava-se de um 
rapaz franco e simpático, mas constatei que ele não podia 
acrescentar nada a seu relato anterior. Estranhamente, 
não tinha muita certeza de que pudesse sequer 
reconhecer o estranho novamente. Compreendendo que 
ele não tinha mais o que informar, voltei para Arkham e 
 
37 
passei a noite em claro, escrevendo cartas para Akeley, 
para a companhia e para o departamento de polícia e o 
agente da estação em Keene. Acreditava que o homem de 
voz estranha, que tão notavelmente havia perturbado o 
funcionário, só podia ter um papel crucial naquela 
situação ominosa, e eu esperava que os empregados da 
estação de Keene e os registros do telégrafo tivessem 
alguma coisa a informar sobre ele e sobre a maneira 
como se apresentara como destinatário da encomenda 
que a mim tinha sido dirigida. 
Devo admitir, não obstante, que minha 
investigação deu em água de barreia. O homem de voz 
esquisita realmente tinha sido visto a perambular pela 
estação de Keene no começo da tarde de 18 de julho, e 
uma pessoa parecia associá-lo vagamente com uma caixa 
pesada. Entretanto, era de todo desconhecido por ali, 
nem tinha sido visto outra vez depois disso. Não havia 
ido à agência dos telégrafos nem recebido qualquer 
mensagem, ao que se sabia; tampouco qualquer 
mensagem que pudesse ser considerada referente à 
presença da pedra negra no trem 5508 havia sido passada 
pela agência, destinada a mim ou a qualquer outra 
pessoa. Naturalmente, Akeley também participou dessas 
investigações, e chegou até a fazer uma viagem pessoal a 
Keene, a fim de conversar com pessoas que 
freqüentavam a estação. No entanto, sua atitude em 
relação ao episódio era mais fatalista do que a minha. 
Parecia considerar a perda da caixa um cumprimento 
prodigioso e ameaçador de tendências inevitáveis, e na 
verdade não tinha a mínima esperança de que ela fosse 
recuperada. Falou a respeito dos indubitáveis poderes 
telepáticos e hipnóticos das criaturas das montanhas e de 
 
38 
seus agentes, e em uma de suas cartas insinuou que não 
acreditava que a pedra ainda estivesse neste planeta. De 
minha parte, senti-me verdadeiramente colérico, pois 
achava que havia pelo menos uma possibilidade de 
tomarmos conhecimento de coisas portentosas e 
assombrosas, a partir dos hieróglifos antigos e 
indistintos. Aquele caso me teria espicaçado a mente por 
muito tempo se as cartas seguintes de Akeley não 
houvessem aberto uma nova fase no tétrico problema das 
montanhas, e que de imediato exigiu toda minha atenção. 
 
IV 
 
As coisas desconhecidas, escreveu Akeley em uma 
caligrafia que se tornava lamentavelmente trêmula, 
haviam começado a acuá-lo com um grau de 
determinação inteiramente novo. Os latidos noturnos dos 
cachorros, sempre que a lua se mostrava baça ou ausente, 
haviam-se tornado agora terríveis; além disso, houvera 
tentativas de molestá-lo nas estradas abandonadas pelas 
quais ele era obrigado a trafegar de dia. No dia 2 de 
agosto, seguindo em direção à vila em seu carro, ele dera 
com um tronco de árvore atravessado no caminho, em 
um ponto em que a estrada cruzava um trecho denso da 
floresta. Os latidos desesperados dos dois canzarrões que 
ele levava consigo lhe mostraram perfeitamente que 
espécie de seres deviam estar à espreita nas 
proximidades. Ele não se atrevia a imaginar o que 
poderia ter acontecido se os cães não estivessem ali — 
mas agora nunca saía sem a companhia de pelo menos 
dois cães de sua fiel e forte matilha. Episódios análogos 
haviam ocorrido nos dias 5 e 6 de agosto. Da primeira 
 
39 
vez, um tiro roçara seu carro; da segunda, os latidos dos 
cães indicaram novamente a presença de criaturas 
odientas. 
No dia 15 de agosto recebi uma carta frenética, que 
me deixou enormemente perturbado, fazendo-me desejar 
que Akeley pusesse de lado sua reticência solitária e 
pedisse a ajuda da lei. Haviam ocorrido fatos 
assustadores na noite de 12 para 13, com balas zunindo 
pela fazenda, e três dos doze cães tinham sido 
encontrados mortos a tiro na manhã seguinte. Havia 
miríades de marcas de patas na estrada, e entre elas 
estavam as pegadas de Walter Brown. Akeley havia 
começado a telefonar para Brattleboro, a fim de obter 
novos cães, mas a ligação fora cortada antes que ele 
pudesse falar muita coisa. Mais tarde ele foi até 
Brattleboro decarro, e ficou sabendo ali que guardas-
linhas tinham encontrado o fio principal cortado de 
propósito em um ponto em que passava pelas montanhas 
desertas, ao norte de Newfane. Entretanto, estava prestes 
a voltar para casa, com quatro excelentes animais novos e 
várias caixas de munição para sua carabina de repetição. 
A carta tinha sido escrita nos correios de Brattleboro e 
chegou-me sem tardança. 
A essa altura, minha atitude em relação ao assunto 
deixava rapidamente de ser científica para se tornar 
alarmadamente pessoal. Temia o que pudesse acontecer a 
Akeley em sua fazenda remota e solitária, e, por que não 
dizer, sentia também algum medo por mim mesmo, 
agora que eu estava decididamente ligado ao estranho 
problema das montanhas. A coisa estava indo mais 
longe. Porventura chegaria até a mim? Ao responder a 
carta, instei com Akeley para que ele procurasse ajuda, e 
 
40 
insinuei que eu poderia tomar providências se ele não o 
fizesse. Falei em ir ao Vermont pessoalmente, a despeito 
de suas admoestações e em ajudá-lo a explicar a situação 
às autoridades. Contudo, recebi dele um telegrama, 
expedido de Bellows Falls, que dizia o seguinte: 
 
AGRADEÇO SEU INTERESSE MAS VOCÊ 
NADA PODE FAZER PT NÃO INTERVENHA DE 
MODO ALGUM POIS ISSO PREJUDICARIA 
AMBOS PT ESPERE EXPLICAÇÃO 
HENRY AKELY 
 
Entretanto, o caso se complicava a olhos vistos. 
Depois que respondi esse telegrama, recebi um bilhete 
trêmulo de Akeley com uma notícia aterradora: não só 
ele jamais havia enviado aquele telegrama como 
tampouco recebera a carta para a qual o telegrama 
constituía uma óbvia resposta. Investigações apressadas 
em Bellows Falls revelaram-lhe que o telegrama havia 
sido passado por um homem esquisito, de cabelos claros, 
com uma voz curiosamente grossa e rouquenha. Nada 
mais pôde saber. O funcionário mostrou-lhe o texto 
original, rabiscado a lápis pelo remetente, mas a 
caligrafia era inteiramente desconhecida. Era visível que 
a assinatura tinha sido escrita erradamente, — A-K-E-L-Y 
— sem o segundo “E”. Certas conjecturas seriam 
inevitáveis, mas em meio à crise ele não parou para 
refletir sobre elas. 
Referiu-se à morte de outros cães e à compra de 
outros, bem como à troca de tiros, coisa que se tornara 
comum a cada noite sem luar. As pegadas de Brown e de 
pelo menos mais um ou dois seres humanos calçados 
 
41 
agora eram encontradas regularmente entre as marcas de 
garras, na estrada e no terreiro da fazenda. A situação, 
admitia Akeley, estava ficando insustentável. E por certo 
não se passaria muito tempo antes que ele tivesse de ir 
morar com o filho na Califórnia, vendesse ou não sua 
propriedade. Mas não era fácil abandonar o único lugar 
que ele realmente podia chamar de lar. Ele tinha de 
tentar agüentar um pouco mais. Talvez conseguisse 
afugentar os intrusos — sobretudo se ostensivamente 
desistisse de novas tentativas de deslindar seus segredos. 
Escrevi incontinenti a Akeley, reiterando minhas 
ofertas de ajuda, e falei novamente em visita-lo e auxiliá-
lo a convencer as autoridades do perigo atroz que ele 
estava correndo. Em sua resposta, ele deu a impressão de 
estar menos contra esse plano do que suas atitudes 
anteriores levariam a prever, mas disse que gostaria de 
esperar um pouco mais — o suficiente para ajeitar suas 
coisas e se conformar com a idéia de abandonar um 
torrão natal que ele amava quase morbidamente. As 
pessoas não viam com bons olhos seus estudos e 
especulações, e seria melhor sair dali em silêncio, ao 
invés de deixar a região em polvorosa e criar dúvidas 
generalizadas com relação à sua própria saúde mental. 
Ele já tinha agüentado o suficiente, admitia, mas se 
possível gostaria de sair dali honrosamente. 
Essa carta chegou às minhas mãos no dia 28 de 
agosto, e logo escrevi e postei a resposta mais 
encorajadora de que fui capaz. Ao que parece, esse 
encorajamento teve efeito, pois Akeley não se mostrava 
tão aterrorizado como antes quando acusou o 
recebimento de meu bilhete. Contudo, não estava muito 
otimista e manifestou a opinião de que era apenas a lua 
 
42 
cheia que estava mantendo as criaturas a distância. Ele 
esperava que não houvesse muitas noites de nuvens 
pesadas, e falou vagamente em se hospedar em algum 
lugar em Brattleboro quando a lua começasse a minguar. 
Mais uma vez dirigi-lhe uma carta animadora, mas a 5 de 
setembro chegou uma outra carta dele, que 
evidentemente havia cruzado com minha própria missiva 
nos correios. E a essa carta eu não podia dar resposta tão 
esperançosa. Em vista de sua importância, creio que seria 
melhor transcreve-la na íntegra. Faço-o da melhor 
maneira que posso, de memória. Redigida na mesma 
caligrafia trêmula das cartas anteriores, ela dizia, 
essencialmente, o seguinte: 
 
Segunda-feira 
Prezado Wilmarth 
Esta carta constitui um post-scriptum um tanto 
desalentado à minha última comunicação. A noite passada foi 
bastante nublada, ainda que não chovesse, e não houve sequer 
uma réstia de luar. Foi horrível, acredito que o fim esteja se 
aproximando, apesar de toda nossa esperança. Passada a meia-
noite, alguma coisa caiu no telhado da casa, e os cachorros 
correram, todos eles, para ver do que se tratava. Eu podia ouvi-
los pulando e arranhando as paredes, e um deles conseguiu 
subir ao telhado, saltando da puxada baixa. Houve uma luta 
terrível lá em cima, e escutei um zumbido horroroso, que nunca 
mais hei de esquecer. E aí comecei a sentir um cheiro 
nauseabundo. Mais ou menos ao mesmo tempo, alguém 
começou a atirar contra a janela, e as balas quase roçaram em 
mim. Em minha opinião, a linha principal das criaturas das 
montanhas havia chegado bem perto da casa quando os 
cachorros se dividiram por causa do barulho no telhado. Ainda 
 
43 
não sei o que havia lá em cima, mas creio — e tremo ao pensar 
nisso — que as criaturas estejam aprendendo a utilizar melhor 
suas asas feitas para o espaço. Apaguei a luz e comecei a 
procurar brechas nas janelas, e fiz a ronda da casa, disparando 
a carabina, alto o suficiente para não atingir os cães. Com isso, 
terminou a algazarra, mas de manhã encontrei grandes poças 
de sangue no quintal, ao lado de poças de um fluido verde e 
viscoso que tinha o pior cheiro que jamais senti na vida. Subi ao 
telhado e encontrei lá mais desse fluido viscoso. Cinco cães 
estavam mortos. Creio que eu mesmo atingi um deles, por 
atirar baixo demais, pois ele tinha sido abatido pelas costas. 
Agora estou consertando as vidraças destroçadas pelos tiros e 
daqui a pouco vou a Brattleboro, a fim de comprar novos cães. 
Creio que os homens do canil me consideram louco. Espere 
urna carta com mais detalhes. Acho que estou disposto a viajar 
daqui a uma ou duas semanas, muito embora pensar nisso 
quase me parta o coração. Desculpe-me a pressa. 
 
Akeley 
 
No entanto, não foi esta a única carta a cruzar com 
a minha. Na manhã seguinte, 6 de setembro, recebi mais 
uma. Dessa vez, eram garranchos frenéticos que me 
deixaram inteiramente transtornado e sem saber o que 
dizer ou fazer. Tal como antes, acredito que o melhor a 
fazer seja citar o texto tão fielmente quanto me permitir a 
memória. 
 
Terça-feira 
 
O céu não limpou, de modo que hoje à noite não haverá 
luar mesmo. Eu teria mandado puxar energia para a casa e 
instalaria um refletor, se não soubesse que eles haveriam de 
 
44 
cortar os fios tão logo eu os consertasse. 
Acho que vou enlouquecer. É possível que tudo quanto 
lhe escrevi desde o começo seja sonho ou loucura. As coisas 
sempre foram horríveis, mas dessa vez passaram dos limites. 
Na noite passada eles conversaram comigo, naquela maldita 
voz de zumbido, e me disseram coisas que não me atrevo a lhe 
repetir. Eu os escutava claramente, acima do latido dos 
cachorros, e em um certo momento em que silenciaram, uma 
voz humana os ajudou. “Fique longe disso, Wilmarth... é pior 
do que eu ou você jamais suspeitamos.” Agora não pretendem 
deixar que eu vá para a Califórnia. Querem me levar vivo, ou 
aquilo que teórica e mentalmenteequivale a vivo, não só a 
Yuggoth, mas ainda mais além, para fora da galáxia e 
possivelmente para além dos confins mais remotos do espaço. 
Eu lhes respondi que não iria aonde querem levar-me, ou da 
maneira horrível como pretendem levar-me, mas acho que não 
há solução. Minha propriedade fica tão afastada que em breve 
hão de vir tanto de dia como de noite. Morreram mais seis 
cachorros, e senti presenças em todos os trechos de mata da 
estrada quando fui a Brattleboro hoje. 
Cometi um erro ao lhe enviar aquela gravação 
fonográfica e a pedra preta. É melhor você destruir a gravação, 
antes que seja tarde demais. Amanhã lhe escreverei um novo 
bilhete, se ainda estiver vivo. Gostaria de poder providenciar 
que meus livros e minhas coisas ficassem guardadas em 
Brattleboro. Eu partiria sem nada de meu se pudesse, mas 
alguma coisa dentro de mim me contém. Posso ir para 
Brattleboro, onde estaria em segurança, mas lá me sinto tão 
prisioneiro quanto em minha casa. E tenho a impressão de que 
não conseguiria ir muito longe, mesmo que abandonasse tudo e 
tentasse. É horrível. Não se envolva nisto. 
 
Com estima, Akeley. 
 
45 
Passei a noite sem dormir, depois de receber essa 
medonha carta, e me senti de todo perplexo com relação 
ao que poderia restar de sanidade mental em Akeley. 
Muito embora o conteúdo de sua carta fosse inteiramente 
insano, sua expressão, em vista de tudo que acontecera 
anteriormente, tinha um tom de persuasão feroz. Não fiz 
nenhuma tentativa de escrever, julgando ser melhor 
esperar até que Akeley tivesse tempo de responder à 
última carta que eu lhe enviara. Essa resposta realmente 
chegou no dia seguinte, ainda que as informações novas 
que ela trazia suplantassem todos os pontos levantados 
pela carta que ela, nominalmente, respondia. Eis o que 
dizia, segundo me recordo, o texto dessa carta, em 
garranchos e manchada, como se redigida da maneira 
mais apressada e frenética que se possa imaginar. 
 
Quarta-feira 
Wilmarth 
Recebi sua carta, mas agora não adianta mais discutir 
nada. Estou inteiramente resignado. Admito até que ainda me 
reste força de vontade para lutar contra eles. Não posso fugir, 
mesmo que estivesse disposto a desistir de tudo e correr. Vão 
me pegar. 
Recebi urna carta deles ontem — o carteiro a entregou 
pessoalmente, quando estive em Brattleboro. Escrita e postada 
em Bellows Falls. Ela diz o que eles querem fazer comigo — 
não posso repetir o que dizem. Cuidado com você também! O 
céu continua nublado e a lua diminui a cada noite. Gostaria de 
me atrever a pedir ajuda — talvez isso me desse novo ânimo, 
mas qualquer pessoa que ousasse vir aqui me chamaria de 
louco, a menos que por acaso acontecesse alguma coisa que 
comprovasse minhas alegações. Eu não poderia chamar gente 
 
46 
aqui sem alguma razão plausível. Estou inteiramente afastado 
das pessoas e vivo assim há anos. 
Mas ainda não lhe disse o pior, Wilmarth. Segure-se 
para ler o que vou escrever, pois você vai sentir um choque. 
Mas estou contando a pura verdade. É o seguinte: vi e toquei 
uma daquelas criaturas, ou parte de uma dessas criaturas. Por 
Deus, amigo, que horror! Estava morta, naturalmente. Um dos 
cães a havia abatido, e eu a encontrei perto do canil, hoje de 
manhã. Tentei guardá-la no lenheiro, para poder convencer as 
pessoas de tudo que eu contasse, mas a coisa se evaporou dentro 
de poucas horas. Não sobrou nada. Como você se lembra, todas 
aquelas coisas nos rios só foram avistadas na primeira manhã 
depois da enchente. E isso ainda não foi o pior. Tentei 
fotografar a criatura para que você a visse, mas quando revelei 
o filme, não havia nada visível nela, exceto o lenheiro. De que 
matéria seria constituída aquela coisa? Eu a vi e a toquei, e 
todas elas deixam marcas de garras. Evidentemente, era feita de 
matéria. Mas, que espécie de matéria? A forma é indescritível. 
Era um enorme caranguejo com uma porção de anéis 
empilhados uns sobre os outros, ou nós de uma substância 
densa e parecida com corda, coberta de tentáculos no local onde 
estaria a cabeça. A substância viscosa verde é seu sangue ou 
linfa. E uma quantidade maior deles deve chegar à Terra a 
qualquer momento. Walter Brown anda desaparecido. Não tem 
sido visto perambulando como de costume pelas vilas. Devo tê-
lo atingido com um de meus tiros, e as criaturas, ao que parece, 
sempre procuram carregar seus mortos e feridos. 
Cheguei à cidade esta tarde sem qualquer dificuldade, 
mas estou com a impressão de que estão começando a não me 
importunar porque têm certeza de que vão me pegar. Estou 
escrevendo nos correios de Brattleboro. Talvez esta carta seja de 
adeus. Se assim suceder, escreva a meu filho George 
Goodenough Akeley, Pleasant Street, nº 176, San Diego, 
 
47 
Califórnia, mas não venha aqui. Escreva ao rapaz se não receber 
notícias minhas dentro de uma semana, e procure informações 
nos jornais. 
Vou jogar agora meus dois últimos trunfos — se ainda 
me restarem forças. Primeiro, vou tentar envenenar as coisas 
com gás — obtive os produtos químicos necessários e preparei 
máscaras, para mim e para os cães — e depois, se isso não der 
certo, vou contar ao xerife. Podem trancafiar-me em um 
hospício, se quiserem — afinal isso será melhor do que as 
outras criaturas me fariam. É possível que eu os convença a 
prestar atenção às marcas em torno da casa. São tênues, mas eu 
as encontro toda manhã. Suponhamos, entretanto, que a polícia 
alegue que eu as forjei. Isso é possível, pois todo mundo me 
considera um tipo esquisitão. 
Deverei tentar fazer com que um policial passe uma 
noite aqui comigo e comprove o que digo — muito embora seja 
bastante possível que as criaturas descubram e evitem 
importunar-me nessa noite. Cortam os fios sempre que tento 
telefonar de noite. Os inspetores da companhia telefônica 
acham isso muito estranho, e poderiam testemunhar em meu 
favor, isso se não imaginarem que eu mesmo os cortei. Já faz 
mais de uma semana que não peço que consertem os fios 
novamente. 
Eu poderia conseguir que alguns dos roceiros 
depusessem em meu favor, a respeito da realidade dos horrores, 
mas todos riem do que eles dizem, e, de qualquer modo, evitam 
a minha casa há tanto tempo que nem têm conhecimento das 
coisas que vêm acontecendo. Não há dinheiro que persuada um 
daqueles lavradores miseráveis a chegar a um quilômetro de 
minha casa. O carteiro escuta as coisas que eles contam e 
brinca comigo a respeito. Meu Deus! Às vezes me dá vontade 
de lhe contar o quanto existe de verdade nisso! Acho que 
tentarei fazer com que ele observe as marcas no chão, mas 
 
48 
sucede que ele passa aqui à tarde e a essa hora geralmente as 
marcas já desapareceram. Se eu conservasse uma delas, 
cobrindo-a com uma caixa ou uma panela, certamente ele 
haveria de pensar que se tratava de uma falsificação ou de uma 
brincadeira. 
Gostaria que não me tivesse tornado tão eremita, pois 
por isso as pessoas não passam mais por aqui como 
costumavam fazer. Nunca me atrevi a mostrar a pedra negra 
ou as fotografias, nem a tocar aquela gravação, a não ser para 
as pessoas ignorantes daqui da roça. Os outros diriam que eu 
havia forjado tudo e só fariam rir. Entretanto, é possível que eu 
ainda me anime a exibir as fotografias. Elas mostram aquelas 
marcas com toda clareza, muito embora as coisas que as 
produziram não possam ser fotografadas. É uma pena que 
ninguém tenha visto aquela coisa de manhã, antes que ela se 
evaporasse! 
Mas não me importo. Depois de tudo por que passei, 
talvez um hospício não seja lugar tão ruim. Os médicos talvez 
me ajudem a tomai a decisão de sair desta casa, e só isso me 
poderá salvar. 
Escreva para meu filho George se não tiver notícias 
minhas em breve. Adeus. Destrua aquela gravação, e não se 
envolva nisso. 
 
Com estima, Akeley. 
 
Posso afirmar que essa carta me fez mergulhar no 
mais negro terror, e eu não sabia o que dizer em resposta, 
mas rabisquei algumas palavras incoerentes, de 
conselhos e encorajamento, e as enviei por remessa

Outros materiais